Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
80/21.5JBLSB.L1-5
Relator: ANA CLÁUDIA NOGUEIRA
Descritores: SEQUESTRO
EXCLUSÃO DA ILICITUDE
CONSENTIMENTO
COSTUME
ETNIA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
REGIME DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: (da responsabilidade da relatora):
I. Encontrando-se provado que o transporte da vítima a partir de local ermo até a um bairro habitacional foi feito «sem o seu consentimento», e que «[n]o percurso que dista cerca de 1,3Km com a duração de cerca de 2 minutos» continuou a ser agredida, sendo propósito dos arguidos e suas acompanhantes humilharem-na e exporem-na, desnudada, de cabelo rapado e com marcas de agressões, no referido Bairro, para onde a transportavam e pretendiam deixar, não vindo impugnada a matéria de facto provada, resulta afastada qualquer ponderação da possibilidade de presumir-se o seu consentimento para tal facto nos termos da previsão do art.º 39º do Código Penal.
II. As exigências de prevenção geral e especial implicadas no juízo de substituição da pena de prisão não podem considerar-se menores pelo facto de a conduta ilícita - agressão e exposição pública da mulher como adúltera – se inserir no costume cultural da comunidade ou etnia a que pertencem agressores e vítima.
III. Todos os cidadãos, independentemente das respetivas etnias e conceções culturais, estão sujeitos à mesma lei, vigente num Estado de Direito fundado na dignidade da pessoa humana e regido por valores, princípios e regras comunitariamente tidos consensualmente como fundamentais – arts. 1º e 2º da Constituição da República Portuguesa.
IV. Segundo os princípios da universalidade e da igualdade, consagrados nos arts. 12º e 13º da Constituição da República Portuguesa, todos os cidadãos gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres consignados na Constituição – art.º 12º/1 -, têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei – art.º 13º/1.
V. O Tribunal, enquanto poder público diretamente vinculado pelo princípio da igualdade, jamais poderia diferenciar positivamente um cidadão autor de um crime em razão da sua etnia e dos seus costumes.
VI. Considerar, como uma espécie de atenuante da gravidade da conduta adotada pelo arguido ou fator favorável na avaliação das exigências de prevenção geral e especial, o facto de pertencer a uma etnia que é menos tolerante ao relacionamento extraconjugal, leia-se, da mulher, constituiria do mesmo passo, conceder-lhe um benefício injustificado em razão da sua etnia, e prejudicar a ofendida precisamente em razão da pertença a essa mesma etnia, considerando nessa base menos grave a conduta agressora de que foi vítima.
VII. No juízo de ponderação da aplicação do regime de permanência na habitação previsto pelo art.º 43º do Código Penal está em causa definir o regime de cumprimento da pena de prisão aplicada, se intramuros no estabelecimento prisional, se em casa, para o que releva essencialmente perceber se, cumprida em RPH a pena de prisão aplicada realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da execução da pena de prisão, de defesa da sociedade (prevenção geral) e de prevenção da prática de crimes, com foco na reintegração social do recluso (prevenção especial).
VIII. As anteriores condenações do arguido, em número de onze, todas em penas não detentivas, uma delas por crime de coação agravada, da mesma natureza de um dos que mereceram condenação nestes autos – sequestro -, este, cometido menos de um ano depois de findo o período de suspensão da execução daqueloutra, fazem elevar em tal medida as exigências de prevenção especial e geral, que tornam incompatível o cumprimento no domicílio da pena de prisão aplicada, com as necessidades de proteção da comunidade e dos bens jurídicos, assim como as necessidades de reeducação do arguido para o direito.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, as Juízas que compõem a 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. RELATÓRIO
1. Vem o presente recurso interposto pelo arguido AA do acórdão proferido em processo comum coletivo, pelo qual foi condenado pela prática dos crimes e nas penas seguintes:
a. como autor material, em concurso real e na forma consumada de 1 (um) crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos arts. 143º/1, e 145º/1, a), e 2, por referência ao art.º 132º/2, h), 1.º segmento, do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão;
b. pela prática, como autor material, em concurso real e na forma consumada, de 1 (um) crime de sequestro, previsto e punido pelo art.º 158º/1 do Código Penal, absolvendo-se da agravação prevista no n.º 2, alínea b), in fine, na pena de 10 (dez) meses de prisão;
c. em cúmulo jurídico, nos termos do disposto no art.º 77º/1 e 2, do Código Penal, das penas de prisão referidas nas alíneas a) e b), na pena única de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de prisão;
O arguido recorrente peticiona a sua absolvição do crime de sequestro e a suspensão da execução da pena de um ano e 8 meses de prisão em que foi condenado; subsidiariamente peticiona que possa cumprir essa pena em regime de permanência na habitação, formulando para tanto as seguintes conclusões [transcrição]:
«(…)
1. É entendimento do recorrente que não se mostra verificado o crime de sequestro, p. e p. pelo artigo 158.º, n.º 1 do Código Penal;
2. A ofendida foi surpreendida pela arguida BB no interior do veículo do recorrente,
3. Onde com ele mantinha contacto íntimo;
4. A ofendida limitou-se a seguir no veículo durante 1,3Km, desde local ermo até ao ..., local habitado,
5. Percurso que durou cerca de 2 minutos;
6. Teria a ofendida querido ficar largada num local inóspito, sozinha, numa noite de Dezembro?
7. Será de presumir o consentimento da ofendida em ser transportada daquele local?
8. Cremos que a resposta terá que ser positiva,
9. Já que a ofendida foi transportada durante o tempo estritamente necessário a ser deixada no referido Bairro;
10. O consentimento, ainda que tácito, exclui a ilicitude do facto, tal como decorre dos artigos 38.º e 39.º do Código Penal,
11. Impondo-se a absolvição do recorrente do crime de sequestro de que vem condenado;
De outro lado, e sem prejuízo,
12. O recorrente veio condenado numa pena efectiva de 1 ano e 8 meses;
13. O seu cumprimento efectivo é manifestamente desproporcional e excessivo;
14. Há que atender ao contexto cultural em que os factos foram praticados,
15. Bem como à antiguidade dos antecedentes criminais do recorrente;
16. Deverá, neste conspecto, convocar-se a diferente resolução criminosa quanto aos factos aqui em apreço;
17.O recorrente, no quadro fáctico como o dado como provado, age de acordo com o esperado pela comunidade em que se insere,
18. Ou seja, passivamente;
19. Não tem qualquer intervenção nas agressões levadas a cabo,
20. Tendo-se limitado a assistir às mesmas;
21. É, pelo exposto, possível ao julgador formular um juízo de prognose favorável,
22. Devendo a pena de prisão ser suspensa na sua execução, sujeita a regime de prova orientado para a formação cívica do recorrente e para a prevenção da violência;
23. Caso se entenda que as necessidades de prevenção imponham a privação da liberdade,
24. A pena de prisão deverá ser executada em regime de permanência na habitação, nos termos do artigo 43.º do Código Penal,
25. Sendo tal regime de execução mais benéfico para a ressocialização do condenado,
26. Pois evita o cumprimento de uma pena curta de prisão por um cidadão que nunca entrou em meio prisional,
27. E tem a virtualidade de permitir a preservação dos laços familiares, e evitar o estigma da prisão,
28. Ao mesmo tempo que não deixa de constituir um sinal de forte reprovação deste tipo de condutas;
29. Mostram-se violados os artigos 158.º, n.º 1, 38.º, 39.º, 50.º e 43.º do Código Penal;
(…)».
2. O recurso foi admitido a subir nos próprios autos, de imediato e com efeito suspensivo.
3. Notificado o Ministério Público do mesmo, veio em resposta pugnar pela confirmação do acórdão recorrido, que subscreveu, acrescentando o seguinte [transcrição]:
«(…)
O recorrente arguido elaborou as suas conclusões de recurso que traçam os limites do objecto do mesmo.
Os factos dados como provados que o arguido não contesta consubstanciam a prática do crime de sequestro. Ora resulta dos factos provados que o transporte da vítima foi feito “sem o seu consentimento” (facto 6) e que “o percurso que dista cerca de 1,3Km com a duração de cerca de 2 minutos” continuou a ser agredida (facto 9).
Para infirmar estes factos, dizendo que houve consentimento da vítima para a deslocação e que foi presumido, teria o recorrente de impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto, o que, ao que entendo, não fez, nomeadamente porque não cumpriu o disposto no artigo 412º nº 3 e 4 do CPP.
O tipo de crime de sequestro do art.º 158º nº 1 CP prevê “qualquer forma” de privação da liberdade ambulatória, sendo de execução não vinculada, o que inclui qualquer meio, demorado ou breve, sem distinguir, de atentado a tal autonomia.
Também foi dado como provado que a vítima durante o espaço de tempo em que foi transportada foi agredida pelo que, duvidas houvessem, que não há, quanto à falta de consentimento da vítima para o seu transporte, nunca as regras da experiência nos lavariam a concluir pela existência de consentimento presumido para ser levada de um local para o outro enquanto era alvo indefeso de várias pessoas.
Mais se refira que, encontrando-se a vítima desnudada (facto 4) e sem parte do cabelo “marcada” como adúltera, também não é de imaginar sequer, que quisesse ser transportada, sem mais, para outro local junto de outras pessoas da mesma comunidade.
Quanto à impossibilidade de suspensão da pena de prisão aplicada, importa desde logo considerar que o recorrente arguido tem vasta carreira criminosa. O recorrente já beneficiou de penas de multa e outras penas de substituição. O recorrente já cumpriu pena suspensa de prisão pela prática de crimes, nomeadamente coação agravada, detenção de arma proibida, introdução em lugar vedado ao público e furto qualificado.
O crime de sequestro atinge bem jurídico que protege directamente a pessoa, pelo que a sua conduta criminosa se agravou, não obstante as penas anteriormente aplicadas.
Assim, desde 2008 que o recorrente vem sendo acompanhado pelo Estado, investigado em processos crime e no cumprimento de penas não privativas da liberdade, referentes a crimes praticados contra vários bens jurídicos pessoais e outros, como o património, segurança rodoviária, autoridade do Estado e segurança inerente ao controlo de armas em circulação.
Praticou os factos em causa nos nossos autos em 2021, depois de ter sofrido nos 3 anos anteriores, condenações seguidas, transitadas em julgado, pelo que estas não foram aptas a surtir o efeito desejado de contenção do recorrente arguido.
A personalidade do arguido avessa ao direito e ao cumprimento de normas fundamentais desde 2008 fica assim claramente demonstrada.
A inserção familiar e a parca inserção profissional não foram também capazes de o afastar, de vez, da criminalidade.
(…)
Esta pena não poderia ser suspensa no caso concreto.
O recorrente conclui pela aplicação do regime de suspensão (art.º 50º CP), preferencial mente, como forma de satisfação e afirmação do princípio ressocializador das penas, porquanto os fins da punição, nessa modalidade de execução, seriam sempre possíveis de alcançar.
Ora, só em tese tal poderia acontecer, não fora o quadro concreto em que, necessariamente, se baseou o Acórdão recorrido, arrasador da personalidade do recorrente e que faz precludir essa oportunidade: actuou contra a vítima com quem se juntou para encontro amoroso em total desrespeito da sua autonomia e vontade.
Basta ler a “factualidade provada” para se verificar a dimensão da actuação delituosa, ocorrida depois do mesmo agente haver sido anteriormente condenado com “pena suspensa”, que, como se vê, não foi suficientemente dissuasora para o seu comportamento futuro, voltando o mesmo a ter recidiva criminosa.
São, assim, assinaláveis, as exigências preventivas gerais, atento o reconhecido e indiscutível sentimento de insegurança gerado pela prática de crimes contra as pessoas e até em contexto de relacionamentos amorosos, como é o caso da violência de género.
Assim como são prementes as necessidades preventivas especiais, reveladas pela latente impreparação do recorrente para respeitar os valores sociais tutelados pelo ordenamento jurídico, mesmo após já ter experimentado várias solenes advertências judiciais.
Do mesmo passo, acresce, o grau de culpa é intenso, mais ainda quando o agente retoma actividade criminosa, ético-penalmente ainda mais grave, demonstrando resistência ou indiferença às condenações antecedentes, revelando ter sido incapaz de adquirir, até ao momento, as atitudes necessárias à sua reinserção em liberdade de forma digna e responsável, sem recaídas no crime, impondo-se um verdadeiro e próximo acompanhamento para aquisição de competências pessoais e hábitos de trabalho e familiares que o afaste de tal caminho.
Neste contexto global, não é modificável e redutível a pena única de prisão efectiva aplicada, sob pena de se abdicar da assertividade da Ordem Jurídico-Penal e, com isso, trair a confiança e expectativa comunitárias na validade das normas penais (arts 40º, 1, e 71º, 1 e 2, CP).
De outra forma, seria negligenciar condutas de elevada danosidade social causadoras de grave sentimento de insegurança e humilhação, certamente com maiores custos para os ofendidos directos do que aqueles que só agora preocupam o recorrente, quando convoca razões que só se prendem verdadeiramente com a sua actual situação de arguido condenado para reclamar sanção não privativa da liberdade: está inserido na sociedade e a prisão vai prejudicar essa inserção actual.
Tudo razões que sempre impediriam a suspensão da pena, mesmo que sujeita a apertadas condições e regime de prova.
Não se pode concluir que a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, com vista à abolição definitiva da sua vida de actos criminosos.
Acresce que face ao passado criminal do arguido, a quantidade de crimes que antecederam os factos em causa nestes autos, o facto de ter praticado novo crime contra as pessoas, fundamenta o juízo de que as finalidades visadas pelo regime de permanência na habitação não seriam alcançadas por não terem o potencial de surtir o efeito desejado de afastar este arguido da criminalidade. O raciocínio de evitar o efeito criminógeno ou de dessocialização com aplicação do regime de permanência na habitação em substituição da prisão, no caso concreto, não faria sentido - art.º 43º CP.
E, não obstante os obstáculos que a privação da liberdade traz para a promoção da ressocialização de certos agentes do crime, no caso concreto do recorrente, atenta a necessidade de o afastar da prática de crimes e de o recuperar, é a forma mais adequada de a obter. O condenado beneficiará de um plano individual de readaptação, da oportunidade de participação activa na sua valorização pessoal para ocupação do tempo, da aplicação futura de medidas de flexibilização da pena e eventuais regimes especiais de reclusão e de desenvolver a sua capacidade de auto reflexão. Só cumprindo pena efectiva de prisão será forçado a motivar-se efectivamente para a mudança.
Assim, não tenho dúvidas que no caso concreto, atenta a cronologia de condenações e factos provados, os elementos disponíveis são suficientes quanto à personalidade do arguido, para defender que só resultará e é desejável o “particular efeito intimidativo das penas curtas de prisão, ditas de choque - o Sharp short shock” (LATAS, António João, in Justiça XXI - A Reforma do Sistema Penal de 2007 - Garantias e Eficácia”, Coimbra Editora, 2008, p. 90) para a efectiva consciencialização e reintegração do arguido na sociedade.
O Tribunal a quo não violou qualquer das normas ou princípios indicados pelo recorrente, pelo que sustento na íntegra o Acórdão recorrido, com o objectivo que o recorrente, no futuro, volte a fazer parte da sociedade como cidadão cumpridor da lei, usufruindo da totalidade dos seus direitos e contribuindo para o seu bem-estar e da comunidade de que faz parte. Deverá assim manter-se inalterada a pena única aplicada de prisão efetiva.».
(…)».
4. Subidos os autos a este Relação, pelo Senhor Procurador Geral Adjunto do Ministério Público junto desta Relação foi emitido parecer mediante o qual subscreveu no essencial a resposta ao recurso apresentada na primeira instância.
5. Cumprido o disposto no art.º 417º/2 do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta.
6. Realizado o exame preliminar, foi o processo remetido aos vistos e para julgamento em conferência, nos termos do preceituado no art.º 419º/3, c) do Código de Processo Penal.
II- FUNDAMENTAÇÃO
1. QUESTÕES A DECIDIR
Como é jurisprudência pacífica, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – como sejam a deteção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto emergentes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, previstos no art.º 410º/2 do Código de Processo Penal, e a verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos do art.º 379º/2 e 410º/3, do mesmo código – é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada que se delimita o objeto do recurso e se fixam os limites de cognição do tribunal superior.
O presente recurso restringe-se ao Direito e coloca-nos três questões a decidir:
1.ª Atentos os factos provados, pode considerar-se verificada causa de exclusão da ilicitude em relação ao crime de sequestro por consentimento da ofendida, ainda que tácito, nos termos dos arts. 38º e 39º, do Código Penal?
2.ª Encontram-se reunidos os pressupostos para um juízo de prognose favorável que sustente a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido/recorrente?
3.ª Em caso de resposta negativa, poderia ainda executar-se a pena de prisão em regime de permanência na habitação?
2. APRECIAÇÃO DO RECURSO
1. A decisão recorrida
É do seguinte teor o acórdão recorrido na parte relevante para a apreciação do recurso [transcrição]:
«(…)
II. Dos Factos:
A. Factos Provados:
Apreciada a prova produzida e discutida em audiência, resultaram provados os seguintes factos, com interesse para a decisão de mérito:
1. No dia 07-12-2021, por volta da hora do almoço, o arguido AA combinou por telefone encontrar-se com CC, com a qual vinha mantendo uma relação amorosa, na estação ferroviária do ..., pelas 21h00, conversa que foi escutada pela arguida BB, companheira do arguido.
2. A arguida BB decidiu seguir o arguido AA, o que veio a fazer acompanhada de três pessoas do sexo feminino, cuja identificação não se logrou apurar, confirmando o encontro do arguido com CC quando chegaram àquela estação ferroviária.
3. Logo após se encontrarem na estação ferroviária, o arguido AA e CC seguiram no veículo automóvel conduzido por aquele, de matrícula ..-AF-.., marca …, até um local ermo nas imediações do ..., em ..., no que continuaram a ser seguidos pela arguida BB e pelas pessoas que a acompanhavam.
4. Ali chegados, o arguido AA e CC envolveram-se intimamente no banco traseiro do veículo automóvel, momento em que, estando CC desnudada, a arguida BB abriu uma das portas traseiras do veículo ... e desferiu pancadas no corpo de CC com as mãos, puxou-lhe o cabelo e cortou-lho com uma máquina de barbear, que se munira em casa.
5. A arguida BB e as outras três pessoas que a acompanhavam decidiram, em comum, cortar o cabelo com uma máquina de barbear, de que a arguida se munira previamente para esse fim, como forma de a marcarem como adúltera e de a humilharem perante a comunidade cigana, em que todos se inserem.
6. Persistindo no propósito de a humilharam, a arguida BB e as outras três pessoas decidiram, em conjunto, expor CC, desnudada e com marcas de agressões, no ..., transportando-se para esse local no veículo automóvel de matrícula ..-AF-.., sem o seu consentimento.
7. Então, a arguida BB entrou para o lugar do passageiro dianteiro e as outras três pessoas para o banco traseiro, ladeando CC.
8. De seguida, o arguido AA entrou no veículo, iniciou a marcha e conduziu em direção ao ..., perante o acordo de todos de que CC ficaria marcada e de que a deixariam "M em cima, no bairro dos ciganos, à frente dos ciganos", conforme indicações que lhe eram dadas e que o arguido acolheu.
9. Durante o percurso que dista cerca 1,3km com a duração de cerca de dois minutos, a arguida BB e as outras três pessoas, num propósito a que o arguido AA aderiu, desferiram palmadas no corpo e estalos na cara de CC com as mãos, puxaram o cabelo e cortaram-lho, cuspiram-lhe para a sua cara, chamaram-lhe "puta", puxaram e retiraram a sua roupa, tendo ficado apenas com as cuecas.
10. Chegados ao ..., poucos minutos depois, a arguida e as outras três pessoas disseram para o arguido AA "apita, AA, apita", para exibirem CC à comunidade cigana, o que este fez.
11. Quando o arguido imobilizou o veículo, no ..., a arguida BB e as outras três pessoas saíram do seu interior e puxaram CC, que se encontrava apenas de cuecas, para fora do mesmo, na sequência do que esta embateu com a sua anca esquerda no chão.
12. Como consequência direta e necessária da conduta dos arguidos e das pessoas que os acompanharam, CC sofreu diversos hematomas, nomeadamente edema da hemiface esquerda, equimose da mama esquerda, equimose no abdómen, equimose do joelho esquerdo, escoriações na anca esquerda, escoriações no antebraço direito, lesões que determinaram oito dias de doença, os quatro primeiros com afetação da capacidade de trabalho geral e da capacidade de trabalho profissional, e que deixaram como sequelas área macular acastanhada na face anterior do joelho esquerdo.
13. Como consequência direta e necessária da conduta dos arguidos e das pessoas que os acompanharam, o cabelo de CC, que anteriormente era comprido pelas costas, ficou cortado pelos ombros.
14. Os arguidos BB e AA agiram em conjugação de esforços e de intentos, entre si e com as pessoas que os acompanharam, com o propósito comum de molestar CC na sua integridade física, ao desferir palmadas no corpo e estalos na cara desta, puxar o cabelo e cortar-lho, bem sabendo que o modo conjunto como atuaram lhes conferia forte superioridade física e impedia a defesa e que tal fator acrescia censura à sua conduta, o que tudo conseguiram.
15. Os arguidos BB e AA agiram em conjugação de esforços e de intentos, entre si e com as outras pessoas, com o propósito comum, e concretizado, de cercear a liberdade de CC, impedindo-a de sair do veículo automóvel até ao ..., querendo cuspi-la e expô-la desnudada perante terceiros.
16. Os arguidos BB e AA agiram de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que, atuando da forma descrita, praticavam atos proibidos e punidos por lei penal.
17. A arguida BB foi condenada:
a. Proc. 1175/17.5T9LRS, por sentença transitada em julgado em 2019/07/15, pelo crime de furto simples, no dia 2017/03/27, na pena de 120dias de multa; e
b. Proc. 777/19.0PBLSB, por sentença transitada em julgado em 2020/11/26, pelo crime de furto simples, no dia 2019/05/01, na pena de 60dias de multa, declarada extinta pelo pagamento.
18. O arguido AA foi condenado:
a. Proc. 362/08.1GDSTB, por sentença transitada em julgado em 05/05/2008, pelo crime de condução sem habilitação legal, no dia 06/04/2008, na pena de 80dias de multa, declarada extinta pelo pagamento;
b. Proc. 414/08.8PQLSB, por sentença transitada em julgado em 2008/09/22, pelo crime de condução sem habilitação legal, no dia 2012/09/22, na pena de 200dias de multa, declarada extinta por prescrição;
c. Proc. 104/09.4PALRS, por sentença transitada em julgado em 2009/12/10, pelo crime de condução sem habilitação legal, no dia 2009/07/26, na pena de 150dias de multa, substituída por trabalho a favor da comunidade, declarada extinta por prescrição
d. Proc. 514/09.7GBSXL, por sentença transitada em julgado em 2010/06/07, pelo crime de condução sem habilitação legal, no dia 2014/06/07, na pena de 220dias de multa;
e. Proc. 167/15.3GELLE, por sentença transitada em julgado em 2015/06/22, pelo crime de condução de veículo em estado de embriaguez, no dia 2015/05/09, na pena de 50dias de multa e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 3 meses, declarada extinta por cumprimento;
f. Proc. 487/15.8JAPRT, por acórdão transitado em julgado em 2017/04/19, pelo crime de coação agravada, um crime de detenção de arma proibida e um crime de introdução em lugar vedado ao público, no dia 2015/09/16, na pena de 3 anos e 8 meses de prisão, suspensa na sua execução, declarada extinta;
g. Proc. 272/16.9T9LLE, por sentença transitada em julgado em 2017/09/26, pelo crime de desobediência, no dia 2015/12/10, na pena de 60dias de multa, declarada extinta pelo pagamento;
h. Proc. 342/16.3GBCCH, por acórdão transitado em julgado em 2018/02/02, pelo crime de furto qualificado, no dia 2016/08/16, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução, declarada extinta;
i. Proc. 128/18.0PTLRS, por sentença transitada em julgado em 2018/12/13, pelo crime de violação de imposições, proibições ou interdições, no dia 2018/04/09, na pena de 180 dias de multa, substituída por trabalho a favor da comunidade, declarada extinta pelo cumprimento;
j. Proc. 5/19.8PJLRS, por sentença transitada em julgado em 2019/07/15, pelo crime de consumo de estupefacientes, no dia 2019/02/08, na pena de 100 dias de multa, substituída por trabalho a favor da comunidade, declarada extinta pelo cumprimento; e
k. Proc. 282/18.1PLLRS, por sentença transitada em julgado em 2020/02/19, pelo crime de violação de imposições, proibições ou interdições, no dia ...1.../03, na pena de 240 dias de multa, declarada extinta pelo pagamento.
19. O processo de desenvolvimento de BB decorreu na família de origem, aparentemente com uma dinâmica estável e sem dificuldades económicas significativas, cujos proventos resultavam da venda ambulante dos progenitores. Frequentou o ensino escolar, percurso que abandonou aos 12 anos de idade, com o 1º ano de escolaridade concluído, para contrair matrimónio conforme tradição cultural do seu grupo de pertença.
20. O arguido AA, cresceu numa estrutura familiar marcada pelos consumos etílicos do progenitor, que se repercutia na dinâmica relacional dos pais e contribuía para a carência financeira familiar. A subsistência era assegurada com algumas dificuldades, pelos rendimentos provenientes da atividade laboral do pai no ramo da construção civil. Concluiu o 4º ano de escolaridade, percurso que abandonou para contrair matrimónio, aos 16 anos de idade, de acordo com as tradições da sua comunidade, com a sua companheira, coarguida, que à data tinha 12 anos de idade.
21. Da relação conjugal que os arguidos estabeleceram nasceram quatro filhos, atualmente com idades compreendidas entre os 16 e os 2 anos de idade. Ficaram a residir, numa primeira fase, com a avó paterna do companheiro, no ..., no ..., até irem para ..., para uma habitação pertença de familiares da arguida. Por opção, uns tempos depois, vieram residir para uma habitação autoconstruída, no ..., em ..., acabando no âmbito de um programa de realojamento por serem realojados no ..., há cerca de três anos, numa habitação camarária, onde ainda permanecem. A dinâmica familiar era estável e funcional.
22. Os sintomas depressivos que a arguida já evidenciava, com a surdez temporário de um dos filhos do casal, que requereu uma intervenção cirúrgica, fez sobressair a instabilidade da arguida ao nível da saúde mental (depressão com crises de ansiedade e pânico), ficando esta desde então, sujeita a intervenção clínica e terapêutica especializada, conforme informação clínica aferida, datada de 2021 e fevereiro de 2022.
23. A arguida, em termos laborais, regista apenas uma breve experiência de trabalho, há cerca de quatro anos, em ... e em ..., na apanha de fruta. Tem norteado o seu quotidiano para a gestão do lar e processo educativo dos filhos. Ainda que esteja inscrita no Centro de Emprego, a sua baixa escolaridade e a ausência de experiência profissional, tem condicionado a sua integração laboral e contribuído para uma situação financeira fragilizada.
24. No plano laboral, o arguido dedicou-se à venda ambulante com a avó materna, na ..., até há cerca de quinze anos. Posteriormente, regista experiências laborais em trabalhos sazonais (apanha de fruta) em ... e em algumas regiões de Portugal, sem vínculo contratual, tendo no decurso da pandemia exercido funções no setor da caixilharia, de forma precária, dos quais retirava 25,00 euros diários. Desde então e ainda que estivesse inscrito no Centro de Emprego, não detinha ocupação laborai estruturada, alegando ter efetuado trabalhos diversificados e de cariz temporário, auferindo rendimentos incertos.
25. A sua subsistência do respetivo agregado familiar tem sido assegurada ao longo destes anos, com os apoios sócias atribuídos, nomeadamente, o rendimento social de inserção social, o abono de família para crianças e jovens, apoio do banco alimentar e com os parcos rendimentos que o arguido retirava dos trabalhos esporádicos que efetuava.
26. O arguido AA refere ter vivenciado, no passado, consumos de haxixe em contexto de convívio com o grupo de amigos, dos quais refere estar abstémio, não se visualizando de momento, necessidades de qualquer intervenção clínica nesta área da saúde.
27. Atualmente, os arguidos residem juntos com os filhos de ambos, na mesma habitação camarária. A arguida continua desempregada, mantendo as mesmas condições de saúde anteriormente referidas. Em termos económicos, AA aufere apoios sociais, que totalizam €935,00 mensais, aos quais acumula o apoio do banco alimentar e dos parcos rendimentos que refere auferir dos trabalhos que alega efetuar de cariz temporário. As despesas prendem-se com as questões de saúde mental da companheira e coarguida no presente processo, com a renda da habitação, e nas demais despesas relativas à subsistência e consumíveis domésticos. Recentemente, o arguido efetuou um curso de primeiros socorros, com a duração de 25 horas, através do Centro de Emprego, no qual auferiu um apoio económico de 80,00euros para a alimentação.
28. O arguido evidencia limitações ao nível do reconhecimento do desvalor dos bens jurídicos, das noções de dano e de vítima. Relativamente aos anteriores contactos com a justiça penal, o arguido enquadra-os quer nas relações interpessoais estabelecidas, quer nas más decisões que foi tendo ao longo da sua vida.
29. A arguida BB aceitou intervenção clínica e terapêutica, na área da saúde mental, submetendo-se a tratamento médico especializado, caso se mostre necessário e em face do resultado das consultas médicas.
30. Face às lesões descritas sofridas, a ofendida foi dirigida para os serviços de urgência do ..., tendo recebido tratamento médico.
31. O ... prestou serviços da sua especialidade à ofendida no valor total de €256,67 (duzentos e cinquenta e seis euros e sessenta e sete cêntimos), que se encontram titulados pela fatura nº 23000040, datado de 03/01/2023.
B. Factos não provados:
Da audiência de discussão e julgamento, não resultaram provados, com interesse para a decisão da causa, os seguintes factos:
a. Nas circunstâncias descritas no facto provado 4., a arguida disse a CC "eu vou-te por ao público, eu vou-te levar ao bairro".
b. A arguida BB e as outras pessoas puxaram CC para o exterior do veículo automóvel e continuaram a bater-lhe no corpo.
c. Os arguidos, AA e BB, e as pessoas que acompanhavam esta, colocaram CC no interior do veículo automóvel, sem o respetivo consentimento.
d. Nessa altura, apercebendo-se de que CC trazia o seu telemóvel, a arguida BB, num propósito partilhado com o arguido, retirou-lhe e perscrutou tal objeto, que guardaram.
e. CC foi empurrada para fora do veículo ainda em andamento e rebolou pelo chão.
f. A arguida BB e as pessoas que a acompanhavam desferiram pontapés no corpo de CC, conduta que cessaram apenas com a intervenção de terceiros.
g. Os arguidos abandonaram o local na posse do telemóvel de CC, no qual usava o cartão de telefone n.º …, da operadora NOS.
h. Os arguidos BB e AA agiram em conjugação de esforços e de intentos, entre si e com as pessoas que os acompanharam, com a intenção, conseguida, de fazer seu o telemóvel de CC, não obstante saberem que não lhes pertencia e que agiam contra a vontade da mesma, servindo-se de violência física que sabiam idónea a intimidá-lo e a impedi-la de reagir.
(…)
Do crime de sequestro:
O crime de sequestro, previsto e punido pelo artigo 158.º, n.º 1 e n.º 2, alínea b), in fine, do Código Penal, estatui que, cita-se:
“1 - Quem detiver, prender, mantiver presa ou detida outra pessoa ou de qualquer forma a privar da liberdade é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
2- O agente é punido com pena de prisão de dois a dez anos se a privação da liberdade: (...)
b) For precedida ou acompanhada de ofensa à integridade física grave, tortura ou outro tratamento cruel, degradante ou desumano;
No crime de sequestro, definido nos termos legais em evidência, o valor protegido pela norma incriminatória é a chamada liberdade ambulatória, isto é, a capacidade de cada um se fixar ou movimentar livremente no espaço físico contra a ilícita restrição, por qualquer forma ou medida temporal, desse direito (ver neste sentido Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 1/04/1987, in BMJ, 366, a pág. 245, e de de 25/05/1994, in C.J., Acs. STJ, II, tomo 2, pág. 230).
O crime de sequestro protege fundamentalmente a liberdade individual, sendo essa liberdade a física, ou seja, o direito de não ser aprisionado, encarcerado ou de qualquer modo fisicamente confinado a determinado espaço.
A previsão legal do crime de sequestro é destinada a abranger todos os possíveis atos ilegítimos e censuráveis restritivos do direito ambulatório de outrem.
Assim sucedendo, o crime de sequestro consuma-se no momento em que o sujeito passivo fica ilegalmente privado da sua liberdade ambulatória (sendo assim irrelevante, senão para a definição dos limites da culpa, o tempo de perduração da privação de liberdade).
Trata-se, noutro prisma, de um crime permanente, pelo que a execução perdura enquanto persiste a resolução criminosa do agente e ao ofendido não é restituída plena liberdade ambulatória (cfr. Acórdão do STJ, de 24/05/1995, C.J. Acs. STJ, III, tomo 2, a pág. 210). Ou seja, o que verdadeiramente subsiste e se prolonga no crime permanente é a conduta do agente que, em cada momento, se reproduz e persiste no crime, abstendo-se de pôr termo à situação que criou.
Além disso o crime de sequestro é de execução não vinculada, no sentido de que o agente não precisa de praticar atos de uma espécie determinada, bastando que leve a cabo uma atividade que possa considerar-se meio adequado para privar outrem do seu “ius ambulandi” (Ac. STJ de 21/06/1995, C.J, Acs STJ, III, tomo 3, a pág. 183 e Ac. RE de 19/03/2002, CJ, XXVII, tomo 2, a pág. 280).
Já no tange à agravação do crime, a mesma poderá ocorrer em situações diversas, no âmbito das quais ocorra uma especial censura do agente, seja pela intensidade e complemento agravativo da sua ação, seja pela natureza da vítima ou das repercussões das consequências na esfera desta última.
Neste contexto, por referência à al. b) do nº 2 do artigo 158º do Código Penal, o crime de sequestro é agravado quando a privação da liberdade for precedida ou acompanhada de tortura ou outro tratamento cruel, degradante ou desumano.
A respeito deste último segmento, “tortura ou outro tratamento cruel, degradante ou desumano”, importa ter considerar o disposto no n.º 3 do artigo 243º do Código Penal, segundo o qual “considera-se tortura, tratamento cruel, degradante ou desumano o acto que consista em infligir sofrimento físico ou psicológico aquele, cansaço físico ou psicológico grave ou no emprego de produtos químicos, drogas ou outros meios, naturais ou artificiais, com intenção de perturbar a capacidade de determinação ou a livre manifestação de vontade da vítima”.
O Supremo Tribunal de Justiça pronunciou-se sobre situações semelhantes, tendo decidido no seu acórdão de 28 de Maio de 1999, proc. 209/98, que “tratamento cruel é aquele que causa angústia, aplicação e sofrimento ao atingido' e “tratamento desumano é o que demonstra falta de compaixão'.
Transpondo as considerações supra para o caso dos autos, provou-se que os arguidos persistiram no propósito de humilharem CC, além de desferirem palmadas no corpo e estalos na cara desta, puxarem o cabelo e cortarem-lho, cuspirem-lhe para a sua cara, chamarem-lhe “puta”, puxarem e retirarem a sua roupa.
Assim, perante o acordo dos arguidos e das outras três pessoas de que CC ficaria marcada e de que a deixariam "lá em cima, no bairro dos ciganos, à frente dos ciganos", esta foi impedida de sair do veículo automóvel, onde todos se encontravam, e transportada até ao ..., sem o seu consentimento.
O percurso percorrido desde o local ermo, nas imediações do ..., em ..., até ao local onde CC foi retirada do veículo, dista cerca de 1,3km com a duração de cerca de dois minutos. Neste contexto, CC foi impedida de sair do interior do veículo automóvel e, assim, privada da sua liberdade de se locomover ou de deambular, pelo que o crime de sequestro consumou-se, tendo estado privada da sua liberdade ambulatória, cerca de dois minutos.
Por outro lado, perante os factos a ter em consideração para o agravamento do crime de sequestro, entende-se que os demais comportamentos assumidos pelos arguidos para com a ofendida, ao cuspir na sua cara, chamar-lhe de "puta", puxar e retirar a sua roupa, tendo ficado apenas com as cuecas, não constituem tratamento cruel, degradante ou desumano, nos termos supra expendidos.
Neste contexto, importa salientar que a subsequente exposição de CC, que se encontrava marcada pelas agressões - que integram, nos termos supra expostos, o crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 143.º, n.º 1, e 145.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea h), primeiro segmento, do Código Penal - , tendo ficado apenas com as cuecas, de modo a humilha-la perante a comunidade cigana, consubstancia a finalidade da execução dos crimes perpetrados anteriormente pelos arguidos, não sendo circunstância agravativa do crime de sequestro, que terminara no momento imediatamente anterior.
Os arguidos BB e AA agiram em conjugação de esforços e de intentos, entre si e com as outras pessoas, com o propósito comum, e concretizado, de cercear a liberdade de CC, impedindo-a de sair do veículo automóvel até ao ....
Como ensina Figueiredo Dia, ob. cit, p. 795, no que respeita à execução conjunta, o domínio do facto deve assentar numa repartição de tarefas, sendo indispensável que do contributo objetivo dependa o se e o como da realização típica e não apenas que o agente se limite a oferecer ou pôr à disposição os meios de realização. Ademais, sendo todos coautores dos crimes, os arguidos tomaram conhecimento dessa situação anti-jurídica, e a ela aderiram plenamente, tomando assim parte na sua execução (ride Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de setembro de 1993, in dgsi.pt).
Assim, encontram-se preenchidos os elementos objetivo e subjetivo do crime, tendo os arguidos agido com dolo direto (artigo 14º, nº 1, do Código Penal).
Não existem causas que justifiquem a conduta dos arguidos, afastando assim o desvalor da ação e do resultado produzido, nos termos previstos no artigo 31º do Código Penal, bem como causas de exclusão da respetiva culpa, concluindo-se assim pela existência de um juízo de censura dirigido pelo mau uso do seu livre arbítrio, atendendo a que podiam e deviam ter dirigido a sua conduta no sentido do lícito.
Nestes termos e pelos argumentos aduzidos, fica demonstrado e provado que os factos praticados pelos arguidos se subsumem à previsão do crime de sequestro, em coautoria e na forma consumada, previsto e punido pelo artigo 158.º, n.º 1, do Código Penal, absolvendo-se da agravação prevista no n.º 2, alínea b), in fine.
(…)
2. Escolha e medida da pena:
Estabelecida a responsabilidade criminal dos arguidos, com o respetivo enquadramento jurídico-penais das suas condutas, cumpre, ora, dar resposta punitiva adequada, com a determinação da natureza e medida da sanção a aplicar.
O crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 143º, nº 1, 145º, nº 1, al. a, e 2, com referência aos artigos 132º, nº 2, al. h), todos do Código Penal, é punido com pena de prisão de um mês a quatro anos.
O crime de sequestro, previsto e punido pelo artigo 158.º, n.º 1 e n.º 2, alínea b), in fine, do Código Penal, é punido com pena de prisão de um mês a três anos ou com pena de multa.
Na escolha da pena, devem considerar-se as finalidades das penas, nomeadamente a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, não podendo nunca a pena ultrapassar a medida da culpa (artigo 40º, nº 1 e 2 do Código Penal). Toda a pena tem, como suporte axiológico-normativo, uma culpa concreta, pelo que não há pena sem culpa - nulla poena sine culpa.
As penas só são necessárias na medida em que protegem bens jurídicos: é o princípio da necessidade (vide artigo 18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa). A necessidade de protecção de bens jurídicos (prevenção geral) traduz-se “na tutela das expectativas da comunidade na manutenção (ou mesmo reforço) da vigência da norma infringida”, vide Figueiredo Dias, in Consequências Jurídicas do Crime, 1993, pág. 228) e decorre do princípio político-criminal básico da necessidade da pena consagrado no artigo 18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa.
Como escreve a este propósito a Prof.® Maria Fernanda Palma, “A proteção de bens jurídicos implica a utilização da pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos (prevenção geral negativa), incentivar a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos (prevenção geral positiva). A proteção de bens jurídicos significa ainda prevenção especial como dissuasão do próprio delinquente eventual” - cfr. autora citada, in Casos e Materiais de Direito Penal, 2.ª edição, Almedina, 2002, a p. 32. Nesse sentido vide também o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30/11/2000, ASSTJ, n.º 45, p. 89.
Aplicando-se, em alternativa pena privativa e pena não privativa da liberdade, como sucede in casu, deve dar-se preferência a esta, desde que realize de forma adequada e suficiente as finalidades supra referidas (artigo 70º, nº 1 do mesmo diploma legal). Atentas as conhecidas desvantagens advenientes da privação da liberdade, deve subtrair-se à disponibilidade de cada pessoa o mínimo dos seus direitos, liberdades e garantias, permitindo a realização livre, tanto quanto possível, da personalidade de cada um.
As exigências de prevenção geral ou de integração positiva, que se reconduzem à necessidade de assegurar a satisfação das exigências da consciência jurídica coletiva e de reposição da norma jurídica violada, consideram-se elevadas, considerando que a proteção dos bens jurídicos violados não ser de reduzida monta, antes pelo contrário, especialmente quando, como no caso, tem a intervenção de outros agentes. Assim, importa, face à ocorrência de tais comportamentos, às características do meio social em causa e havendo necessidade de sancionar, e severamente, os comportamentos desviantes que rompem de forma profunda os compromissos ético-sociais, de modo a reprimir de forma eficaz estas condutas e de consciencializar para o desvalor das mesmas.
Por outro lado, quanto às exigências de prevenção especial, importa considerar que qualquer dos arguidos, BB e AA, contava, à data dos factos, com antecedentes criminais, tendo sido aplicadas a ambos penas de multa, além de impostas penas de prisão suspensas na execução ao arguido, após o que praticaram os factos sub judice.
Assim, no que respeita ao crime de sequestro, entende-se que a preferência de princípio concedida pelo Código à pena pecuniária não mais se justifica, sendo manifestamente insuficiente para salvaguardar eficazmente as exigências de prevenção que o caso requer, impondo-se optar, quanto a ambos os arguidos, pela pena de prisão.
Seguidamente cumpre determinar a medida concreta da pena a aplicar à arguida, que se encontra em função das exigências de prevenção geral e da culpa, que definirão os limites mínimo e máximo, respetivamente, sendo assim criada a moldura dentro da qual se hão-de fazer sentir as exigências de prevenção especial ou de ressocialização, atendendo a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, possam ser consideradas contra ou a seu favor, nos termos do disposto nos nº 1 e 2 do artigo 71 º do Código Penal. Ainda que não taxativamente, a lei elenca os fatores de determinação concreta da pena, os quais, fundamentalmente, estão relacionados com a execução do facto (alíneas a), b) e c) do n.º 2), a personalidade do agente (alíneas d) e f) do n.º 2) e, por último, os fatores relativos à conduta do agente anterior ou posterior ao facto.
Como circunstâncias que depõem contra os arguidos, importa considerar a ilicitude com que atuaram, que se reputa como elevada, traduzida na insensibilidade às condutas devidas, em conjugação de esforços e de intentos, entre si e com as pessoas que os acompanharam, o modo de execução de cada um dos comportamentos assumidos contra a ofendida, atento o teor de violência e agressividade empregue nas sucessivas pancadas chapadas desferidas, puxões do seu cabelo, que lhe cortaram pelos ombros com uma máquina de barbear, que a arguida se munira previamente em casa e trazia consigo, bem assim o lapso de tempo em que esteve impedida de sair do veículo automóvel, onde foi transportada, e a distância percorrida enquanto se encontrava privada da sua liberdade, a que acresce a forte intensidade do dolo, porque direto e intenso, e os contornos de gravidade das consequências, evidenciadas na lesões físicas sofridas e sequelas psicológicas, que não são apagadas facilmente pelo decurso do tempo.
No que respeita as exigências de prevenção especial, importa salientar que os arguidos estabeleceram nasceram quatro filhos, atualmente com idades compreendidas entre os 16 e os 2 anos de idade. Ficaram a residir, numa primeira fase, com a avó paterna do companheiro, no ..., no ..., até irem para ..., para uma habitação pertença de familiares da arguida. Por opção, uns tempos depois, vieram residir para uma habitação autoconstruída, no ..., em ..., acabando no âmbito de um programa de realojamento por serem realojados no ..., há cerca de três anos, numa habitação camarária, onde ainda permanecem. A dinâmica familiar era estável e funcional.
A arguida evidenciava sintomas depressivos, com a surdez temporário de um dos filhos do casal, que requereu uma intervenção cirúrgica, que fez sobressair a instabilidade ao nível da saúde mental (depressão com crises de ansiedade e pânico), ficando esta desde então, sujeita a intervenção clínica e terapêutica especializada, conforme informação clínica aferida, datada de 2021 e fevereiro de 2022. A arguida aceitou intervenção clínica e terapêutica, na área da saúde mental, submetendo-se a tratamento médico especializado, caso se mostre necessário e em face do resultado das consultas médicas.
Atualmente, os arguidos residem juntos com os filhos de ambos, na mesma habitação camarária. A arguida continua desempregada, mantendo as mesmas condições de saúde anteriormente referidas. Em termos económicos, AA aufere apoios sociais, que totalizando €935,00 mensais, aos quais acumula o apoio do banco alimentar e dos parcos rendimentos que refere auferir dos trabalhos que alega efetuar de cariz temporário. As despesas prendem-se com as questões de saúde mental da companheira e coarguida no presente processo, com a renda da habitação, e nas demais despesas relativas à subsistência e consumíveis domésticos. Recentemente, o arguido efetuou um curso de primeiros socorros, com a duração de 25 horas, através do Centro de Emprego, no qual auferiu um apoio económico de 80,00 euros para a alimentação.
Relativamente aos antecedentes criminais, a arguida BB conta com duas condenações pela prática, no dia 2017/03/27 e 2019/05/01, de dois crimes de furto, tendo sido aplicadas duas penas de multa por decisões transitadas em julgado, respetivamente, em 2019/07/15 e 2020/11/26.
Por sua vez, o arguido AA conta com condenações pela prática de quatro crimes de condução sem habilitação legal, um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, um crime de desobediência e dois crime de violação de imposições, proibições ou interdições, tendo nestes sido aplicadas penas de multa, a que acresce a prática de um crime de coação agravada, um crime de detenção de arma proibida e um crime de introdução em lugar vedado ao público, em que lhe foi imposta, no processo 487/15.8JAPRT, por acórdão transitado em julgado em 2017/04/19, a pena de 3 anos e 8 meses de prisão, suspensa na sua execução, e um crime de furto qualificado, no processo 342/16.3GBCCH, por acórdão transitado em julgado em 2018/02/02, a pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução. Estas sucessivas condenações e as respetivas penas, considerando a prática pelo arguido dos factos sub judice, não se revelaram suficientes para adotar uma postura conforme ao direito e às regras em sociedade.
Assim, sopesadas todas estas circunstâncias supra mencionadas, o Tribunal considera como adequada e suficiente a condenação de cada um dos arguidos, BB e AA, pela prática, como coautores materiais, em concurso real e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 143.º, n.º 1, e 145.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea h), 1.º segmento, do Código Penal, mediante a aplicação da pena de um ano e quatro meses de prisão e de um crime de sequestro, previsto e punido pelo artigo 158.º, n.º 1, do Código Penal, mediante a aplicação da pena de dez meses de prisão.
3. Cúmulo das penas:
Nos termos do artigo 77º, nº 1 do Código Penal, quando o agente tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles, é condenado em pena única.
De acordo com o disposto no nº 2 do mesmo preceito legal, a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar vinte e cinco anos tratando-se de prisão e novecentos dias tratando-se de pena de multa, e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.
Como entende o Supremo Tribunal de Justiça, face ao disposto no artigo 77º do Código Penal (cf., por todos, os acórdãos de 11 de janeiro de 2001, Processo n.º 3095/00-5, de 4 de março de 2004, Processo n.º 3293/04-5, e de 12 de julho de 2005, todos in www.dgsi.pt), a pena única a estabelecer em cúmulo deve ser encontrada numa moldura penal abstrata, balizada pela maior das penas parcelares abrangidas e a soma destas, e na medida dessa pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, com respeito pela pena unitária.
Conforme salienta Figueiredo Dias, esse critério consiste em apurar se “numa avaliação da personalidade - unitária - do agentê, o seu percurso de delinquência “é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo uma «carreira») criminosa” e não a uma “pluriocasionalidade que não radica na personalidade (..., in Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Editorial de Notícias, p. 291.
Considerando que, no caso sub judice, foram aplicadas a cada um dos arguidos, BB e AA, duas penas de prisão, sendo uma de um ano e quatro meses e outra de dez meses, a moldura abstrata da pena única a aplicar a ambos tem 2 (dois) anos e 2 (dois) meses como limite máximo e 1 (um) ano e 4 (quatro) meses como limite mínimo.
Na medida desta pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do arguido, de acordo com os argumentos supra expendidos respeitantes aos mesmos, que ora se consideram reproduzidos.
Face ao supra exposto, entende-se como adequada e proporcional condenar cada um dos arguidos, BB e AA, na pena única de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de prisão.
4. Da substituição da pena:
Considerando a aplicação de uma pena de prisão, ao Tribunal cumpre ponderar a aplicação de uma pena de substituição e fixação desta, finalmente, se for caso disso.
O Código Penal não fornece um critério ou cláusula geral de escolha das penas de substituição - tanto assim que, como referem Leal-Henriques e Simas Santos (in Código Penal Anotado, p. 405), a propósito desta questão, “a Comissão de Revisão (...) não chegou a definir um critério de preferência entre as penas de substituição: ficariam em situação de igualdade, menos, como foi ressalvado em Comissão, a prisão por dias livres e o regime de semidetenção, cabendo depois ao juiz optar por aquela que melhor se adeqúe aos objectivos de prevenção especial.”.
Concede-se, todavia, que as penas de substituição possam ser agrupadas em penas de substituição de carácter não institucional ou não detentivo, por serem cumpridas em liberdade (as penas de suspensão de execução da prisão, de multa de substituição, de prestação de trabalho a favor da comunidade) e penas de substituição de carácter institucional ou detentivo, por serem cumpridas intramuros (o regime de permanência na habitação e a prisão efetiva), sendo dada preferência às primeiras sobre as segundas, por estas implicarem sempre a privação da liberdade do arguido.
Face à ausência de critério estabelecido na lei, na ponderação e fixação de uma pena de substituição, o tribunal deve aplicar a pena de substituição que melhor realiza as finalidades da punição (cfr. artigo 40º, nº 1, do Código Penal), dando preferência a uma pena substitutiva não privativa da liberdade, considerando nomeadamente as circunstâncias da prevenção especial de ressocialização - neste Figueiredo Dias, in As Consequências Jurídicas do Crime, pp. 364 e 365, e Odete Maria de Oliveira, in Jornadas de Direito Criminal, Revisão do Código Penal, p. 73, edição do CEJ, ambos defendendo não existir, em abstrato, uma hierarquia legal de penas de substituição, devendo antes o Tribunal apurar, em concreto, entre as penas de substituição, a que melhor realiza as das exigências de prevenção especial de socialização que na hipótese se façam sentir e da forma mais adequada.
Cotejadas as penas de substituição de carácter não institucional ou não detentivo, conclui- se que, in casu, a substituição da pena de prisão apenas é formalmente possível pela substituição por trabalho a favor da comunidade e pela suspensão da execução da pena de prisão.
No que respeita a substituição da pena de prisão por prestação de trabalho a favor da comunidade, entende-se ser de afastar considerando não terem sido provados factos que permitam concluir pela adequação e suficiência desta concreta pena substitutiva (artigo 58º do Código Penal).
Por sua vez, a suspensão da execução da pena de prisão, não superior a cinco anos, deve ser determinada em função das concretas necessidades de socialização, que se aferem a partir da personalidade e condições pessoais do arguido, características e gravidade do facto e duração da pena (cfr. artigo 50º, nº 1, do Código Penal).
O instituto da suspensão da execução da pena de prisão tem subjacente a ideia de que a simples censura do facto e a ameaça da prisão pode ser suficiente para a plena satisfação das necessidades da punição; ameaça cuja duração pode perdurar por mais ou menos tempo, que a lei fixa entre o mínimo de um ano e o máximo de cinco - artigo 50º, nº 5, do Código Penal. Assim, o mesmo é afirmar que quanto maior for a necessidade de socialização do arguido, mais longo deverá ser, obviamente, o período de suspensão.
Revertendo ao caso concreto, as condições sociais e pessoais referentes à arguida BB, nos termos supra explanados, que ademais aceitou intervenção clínica e terapêutica, na área da saúde mental, tendo em vista submeter-se a tratamento médico especializado, caso se mostre necessário e em face do resultado das consultas médicas, o Tribunal compõe um juízo de prognose favorável, afigurando-se que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, razão pela qual entende que o instituto da suspensão da execução de pena de prisão satisfaz as necessidades da punição, por esta se traduzir numa condenação condicional (artigo 50º, nº 1, do Código Penal).
Termos em que a execução da pena de prisão deve ser suspensa pelo período de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses (cfr. artigo 50º, nº 5, do Código Penal).
O artigo 50º, nº 2 e 3, do Código Penal prevê a possibilidade de o tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordinar a execução da pena de prisão suspensa, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determinar que a suspensão seja acompanhada de regime de prova.
Por sua vez, o artigo 53º, nº 1, do Código Penal dispõe que o tribunal pode determinar que a suspensão seja acompanhada de regime de prova, se o considerar conveniente e adequado a promover a reintegração do condenado na sociedade, devendo assentar “num plano de reinserção social, executado com vigilância e apoio, durante o tempo de duração da suspensão, dos serviços de reinserção social’ - cfr. nº 2 da mesma disposição legal - a desenvolver nos termos do disposto no artigo 54º do mesmo diploma legal.
Assim, o Tribunal entende conveniente e adequado à reintegração da arguida BB na comunidade, que a referida suspensão seja acompanhada de regime de prova, devendo o plano que vier a ser formulado, apresentar-se vocacionado para a reeducação e interiorização, por este de modelos comportamentais mais conformes com o direito.
Finalmente, de acordo com o previsto no nº 3 o artigo 52º ex vi nº 3 do artigo 54º, ambos do Código Penal, tal regime de prova deverá, ainda, ficar sujeito à regra de conduta de frequência periódica de consultas e de tratamento médico, na área da saúde mental, enquanto tal se mostrar necessário e enquanto o for, em face do que resultar das consultas médicas.
Esta regra de conduta, imposta à arguida BB, que expressamente aceitou, não representa uma obrigação cujo cumprimento não é razoavelmente de lhe exigir, atentas as circunstâncias descritas nos factos provados. Para tanto, e de acordo com o previsto no nº 4 do artigo 51º ex vi nº 4 do artigo 52º, ambos do Código Penal, determina-se que os serviços de reinserção social apoiem e fiscalizem o condenado no cumprimento da regra de conduta imposta.
Por sua vez, dos factos provados resulta à saciedade que, ao arguido AA, têm sido concedidas todas as oportunidades de se ressocializar, atentas as oito penas de multa e as duas pena de prisão impostas, a primeira de 3 anos e 8 meses de prisão, suspensa na sua execução, pela prática de um crime de coação agravada, um crime de detenção de arma proibida e um crime de introdução em lugar vedado ao público, por acórdão transitado em julgado em 2017/04/19 (termo a 2020/12/19), e a última de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução, pela prática de um crime de furto qualificado, por acórdão transitado em julgado em 2018/02/02 (termo a 2020/08/02).
Estas sucessivas condenações e as respetivas penas revelaram-se manifestamente insuficientes para o arguido, a quem se reconhecem francas fragilidades ao nível do reconhecimento do desvalor dos diversos bens jurídicos e da consciência crítica, adotar uma postura conforme ao direito e às regras em sociedade, uma vez que, volvido menos de um ano desde o termo do período de suspensão mais longo, verificado em 2020/12/19, o arguido praticou os factos sub judice, pelo que se conclui que o arguido não interiorizou as sucessivas penas que lhe foram aplicadas.
Torna-se por demais evidente que a suspensão da execução da pena de prisão não é de aplicar, porquanto a simples censura do facto e a ameaça da prisão não realizaram de forma adequada e suficiente as finalidades da punição que no caso se impõem, uma vez que o arguido AA não interiorizou o desvalor das suas condutas. Não se logra formular um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento futuro do arguido, face ao passado criminal do arguido.
De facto, o arguido transcorreu, num passado próximo, todas as penas de substituição de carácter não detentivo, tendo sido concedidas várias oportunidades de enveredar por uma vivência sem prática de novos factos penalmente ilícitos, o que não sucedeu. Aliás, o arguido evidencia limitações ao nível do reconhecimento do desvalor dos bens jurídicos, das noções de dano e de vítima e, relativamente aos anteriores contactos com a justiça penal, enquadra-os quer nas relações interpessoais estabelecidas, quer nas más decisões que foi tendo ao longo da sua vida.
Assim, as concretas e prementes necessidades de socialização, que se aferem a partir da personalidade e condições pessoais do arguido, natureza e gravidade de cada um dos factos e duração da pena, nos termos supra expostos, são incompatíveis com as finalidades da execução da pena de prisão em regime de permanência na habitação (cfr. artigo 43º do Código Penal). O quadro descrito de modo algum permite sustentar um juízo de suficiência e adequação deste regime.
Ponderados todas estas circunstâncias, o Tribunal Coletivo conclui pela necessidade de cumprimento efetivo de pena de prisão, por nenhuma outra pena ser apta a satisfazer de forma adequada e suficiente as necessidades preventivas, que se fazem sentir e se impõem.
5. Perdão de penas:
No passado dia 1 de setembro de 2023, entrou em vigor a Lei 38-A/2023, de 02/08, que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude.
Nos termos de disposto no artigo 2º desta Lei, estão abrangidas pela presente lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.º.
Revertendo ao caso dos presentes autos, verifica-se que a arguida BB, nascida a 0812-1991, praticou o crime de ofensa à integridade física qualificada, bem assim o crime de sequestro até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, tendo, então, idade compreendida entre 16 e 30 anos de idade à data da prática dos factos.
De acordo com o expressamente excecionado no artigo 7º, nº 1, al. iii) e iv), desta Lei, o crime de ofensa à integridade física qualificada e o crime de sequestro não são suscetíveis de perdão.
Termos em que não há lugar à aplicação lei da clemência (Diário da República n.º 149/2023, 1º Suplemento, Série I de 2023-08-02, pp. 2 a 7).
(…)».
*
2.2 DO CRIME DE SEQUESTRO – CONSENTIMENTO DA VÍTIMA
Vem o recorrente condenado pela prática de um crime de sequestro previsto e punido pelo disposto no art.º 158º/1 e 2, b), parte final, do Código Penal, nos termos do qual:
«1 - Quem detiver, prender, mantiver presa ou detida outra pessoa ou de qualquer forma a privar da liberdade é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.».
Alega o recorrente que:
«(…) a privação da liberdade de movimentos terá durado cerca de 2 minutos, o tempo estritamente necessário para percorrer a distância de 1,3km, do local ermo até ao ....
Suscita-se, pois, a questão de saber se a privação da liberdade da ofendida, nos moldes dados como provados, é de molde a integrar o crime de sequestro.
Dos factos provados conclui-se que a ofendida é surpreendida num local ermo (por definição, lugar despovoado, inóspito, que causa medo e insegurança), após as 21h de uma noite de Dezembro.
Consabidamente, que a ofendida não pretendia ser agredida como foi.
Mas, teria querido ser deixada, sozinha, naquele local? Ou queria ter sido transportada para uma zona mais segura, ainda que na companhia dos agressores?
É, ou não, de presumir o consentimento da ofendida em ser transportada daquele local ermo, durante 1,3km, percurso que durou 2 minutos?
As regras da experiência dizem-nos que nenhuma pessoa teria querido ser deixada sozinha num local ermo, numa noite de Dezembro.
Concluímos, pois, que será se presumir o consentimento da ofendida em ser transportada daquele local, para onde seguiu livremente na companhia do recorrente, e tripulando o sobredito veículo.».
Assim, sem questionar os factos dados como provados por qualquer das vias de impugnação admissíveis – vícios da decisão condenatória previstos no art.º 410º do Código de Processo Penal ou impugnação ampla da matéria de facto, prevista sob o art.º 412º/3 e 4, do Código de Processo Penal -, vem o recorrente invocar como causa de exclusão da ilicitude da conduta integradora do crime de sequestro por que vem condenado, o consentimento tácito ou presumido da vítima CC para o transporte do local ermo onde se encontrava para o ... onde foi deixada.
Todavia, sem qualquer fundamento.
O consentimento exclui a ilicitude do facto quando se referir a interesses jurídicos livremente disponíveis e o facto não ofender os bons costumes, podendo ser expresso ou presumido, equiparando-se neste último caso ao consentimento efetivo – arts. 38º e 39º/1, do Código Penal.
Segundo o preceituado no nº 2 do art.º 39º do Código Penal, há consentimento presumido quando a situação em que o agente atua permitir razoavelmente supor que o titular do interesse juridicamente protegido teria eficazmente consentido no facto, se conhecesse as circunstâncias em que este é praticado.
Pois bem.
Tal como assinala o Ministério Público na resposta ao recurso e é por demais evidente, os factos tal como se encontram provados afastam qualquer ponderação da possibilidade de, na situação em que se encontrava, CC, ter consentido no facto – transporte numa viatura durante 1,3Kms, e cerca de 2 minutos, desde um local ermo até um Bairro – se conhecesse as circunstâncias em que estava a ser praticado, presumindo o seu consentimento nesse facto, excluindo-se a ilicitude da lesão, assim, sofrida no bem jurídico liberdade de movimentos.
Na verdade, aí consta de forma expressa que o transporte da vítima foi feito «sem o seu consentimento» – 6. - e que «[n]o percurso que dista cerca de 1,3Km com a duração de cerca de 2 minutos» continuou a ser agredida, conforme propósito formulado inicialmente pela arguida e as três mulheres que a acompanharam, ao qual aderiu depois o arguido, sendo propósito de todos humilharem-na e exporem-na, desnudada e com marcas de agressões, no referido Bairro, para onde a transportavam e onde a pretendiam deixar – 6., 8., 9., 14. e 15..
Para infirmar estes factos, dizendo que houve consentimento da vítima para a deslocação efetuada, ainda que presumido, teria o recorrente de impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto, mormente estes concretos factos.
Não o tendo feito, tendo presentes esses mesmos factos, não se prefigura qualquer situação de facto integradora de causa de exclusão da ilicitude, mormente por consentimento tácito ou presumido da vítima quanto ao transporte do local ermo onde se encontrava até ao Bairro para onde foi levada.
Efetivamente, da dinâmica dessa descrição factual resulta desde logo o conhecimento por parte da ofendida CC das circunstâncias em que estava a ser transportada sem possibilidade de abandonar a viatura onde foi confinada, com um propósito de humilhação, denunciado nas agressões e verbalizações realizadas pelos arguidos e suas acompanhantes – 8. a 11. -, de forma a serem conhecidas pela mesma, assim como a expressa falta de consentimento para tal.
De resto, se alguma dúvida pudesse persistir quanto a preferir ser deixada no local ermo onde inicialmente se encontrava a ser levada «para exposição» num bairro habitacional, nua e marcada como adúltera com o cabelo rapado, para ser vista pela restante comunidade cigana, a própria erradicou-a no seu depoimento assim extratado na motivação quanto aos factos:
«Afirmou que lhe cortaram o cabelo todo com uma máquina de barbear, ficando acima das orelhas. Afirmou que as outras duas mulheres, que estavam sentadas consigo no banco traseiro, rasgaram-lhe a sua roupa toda, tendo uma delas tapado a boca, dizendo-lhe para não falar. Afirmou ainda que preferia ter sido deixada no descampado.» (negrito nosso).
Ou seja: é a própria ofendida quem expressamente contraria o pressuposto do consentimento presumido invocado no recurso de que, numa noite de dezembro, preferiria ter ido para o Bairro, a ficar no local ermo.
Cai, pois, o recurso nesta parte, que se julgará improcedente.
3. DA SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
Foi o arguido condenado numa pena única de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de prisão pela prática em coautoria e concurso efetivo, de um crime de ofensa à integridade física qualificada e um crime de sequestro.
Não questionando a medida da pena concreta de prisão encontrada pelo Tribunal recorrido, pretende o arguido a reversão da decisão recorrida na parte em que afasta a suspensão da sua execução.
Vejamos brevemente os critérios a considerar para esse efeito.
1. O regime jurídico da suspensão da execução da pena de prisão
Nos termos do disposto no art.º 70º do Código Penal, «Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.».
Este o grande critério eleito pelo legislador para a escolha da pena: prevalência das penas não privativas da liberdade sobre as que têm por efeito a privação da liberdade.
As penas de substituição, como é o caso da suspensão da execução da pena de prisão, inserem-se assim num movimento de luta contra a pena de prisão, especialmente as penas curtas de prisão, e as penas de prisão aplicáveis à pequena e média criminalidade.
Com o regime previsto nos arts. 50º a 57º, do Código Penal e nos arts. 492º a 495º, do Código de Processo Penal, a suspensão da execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos deve ter lugar, nos termos do disposto no nº1 do art.º 50º, sempre que, «(…) atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, for de concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.».
Assim, para sua aplicação postula-se não só a verificação do requisito objetivo de a condenação ser em pena de prisão não superior a 5 anos, como também de requisitos subjetivos, determinados por finalidades de política criminal reconduzíveis às finalidades da pena inscritas no art.º 40º/1 do Código Penal, de proteção de bens jurídicos e de reintegração do agente na sociedade.
A proteção dos bens jurídicos consubstancia-se na denominada prevenção geral, ou seja, na utilização da pena como instrumento para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força da vigência das normas que regulam a vida em sociedade, as quais se fundam na tutela de bens jurídicos que lhe são essenciais, compondo o ordenamento jurídico-penal.
Na vertente da prevenção geral positiva ou de integração, atender-se-á, assim, sobretudo ao sentimento geral que o crime causa na comunidade, tendo em conta diversos índices, como a frequência e o espaço em que o mesmo ocorre, assim como o alarme e intranquilidade pública gerados; sob o prisma da prevenção geral negativa, acomoda-se o efeito colateral da aplicação das penas, de intimidação da generalidade das pessoas, demovendo-as do ataque aos bens jurídicos protegidos com a norma violada.
Por seu lado, a finalidade de reintegração do agente na sociedade, ou seja, o seu retorno à comunidade afetada pela conduta, reconduz-se à chamada prevenção especial, isto é, à ideia de que a pena é um instrumento de atuação preventiva sobre a pessoa do agente, com o fim de evitar que, no futuro, ele cometa novos crimes; visa-se deste modo a ressocialização do delinquente (prevenção especial positiva) e a dissuasão da prática de futuros crimes (prevenção especial negativa), atendendo-se a diversas variáveis como por exemplo a conduta, a idade, a vida familiar e profissional e os antecedentes do agente.
Como ensina Figueiredo Dias, [1] «(…) são finalidades exclusivamente preventivas, de prevenção especial e de prevenção geral, não finalidades de compensação da culpa, que justificam (e impõem) a preferência por uma pena alternativa ou por uma pena de substituição e a sua efetiva aplicação.
Bem se compreende que assim seja: sendo a função exercida pela culpa, em todo o processo de determinação da pena, a de limite inultrapassável do quantum exato daquela ela nada tem a ver com a questão da escolha da espécie de pena. (…)».
Acrescenta o mesmo autor que é inteiramente distinta a função que, no contexto da escolha da pena, exercem as exigências de prevenção geral e de prevenção especial.
Na escolha da pena adequada ao caso há-de ser dada prevalência às finalidades que se reportam à integração do agente na sociedade por serem estas sobretudo que justificam, na perspetiva político-criminal, todo o movimento de luta contra a pena de prisão.
Só deve, assim, optar-se por uma pena de substituição se, à luz das exigências de prevenção especial positiva, pudermos concluir pelo afastamento futuro do delinquente da prática de novos crimes, através da sua capacidade de se reintegrar socialmente; as exigências de prevenção geral funcionarão aqui como limite à atuação das exigências de prevenção especial de socialização, acautelando o conteúdo mínimo indispensável à defesa do ordenamento jurídico.
Deste modo, acompanhando mais uma vez o Professor Figueiredo Dias, «(…) desde que impostas ou aconselhadas à luz de exigências de socialização, a pena alternativa ou a pena de substituição só não serão aplicadas se a execução da pena de prisão se mostrar indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafáctica das expetativas comunitárias».[2]
De igual modo, Paulo Pinto de Albuquerque[3] aponta para que «A escolha das penas é determinada apenas por considerações de natureza preventiva, uma vez que as “finalidades da punição” são exclusivamente preventivas (…). O tribunal deve, pois, ponderar, apenas as necessidades de prevenção geral e especial que o caso concreto suscite (…). A articulação entre estas necessidades deve ser feita do seguinte modo: em princípio, o tribunal deve optar pela pena alternativa ou de substituição mais conforme com as necessidades de prevenção especial de socialização, salvo se as necessidades de prevenção geral (rectius, a defesa da ordem jurídica) impuserem a aplicação da pena de prisão (…). Esta regra vale quer para a escolha entre penas alternativas quer para a escolha de penas substitutivas».
É, pois, ponto assente que, à semelhança do que acontece com a escolha entre a pena de prisão e a pena alternativa de multa, também a substituição daquela por qualquer das penas de substituição, nomeadamente a suspensão da sua execução, depende unicamente de considerações de prevenção geral e especial, único critério a atender.
Daí que, a suspensão da execução da pena de prisão, não deixando de constituir uma pena, porque decorrência de uma condenação registada em termos de antecedente criminal, acaba por ser também uma medida de correção, enquanto busca a reparação do delito ou a execução de «prestações socialmente úteis»; aproxima-se das medidas de ajuda social sempre que associada a instruções que «afetam o comportamento futuro do condenado»; e tem uma coloração sociopedagógica ativa, pelo «estímulo ao condenado para que seja ele mesmo quem com as suas próprias forças possa durante o regime de prova reintegrar-se na sociedade».[4]
O pressuposto material da decisão de suspender a execução da pena é, assim, a existência de um juízo de prognose favorável, centrado na pessoa do arguido e no seu comportamento futuro.
A suspensão da execução da pena de prisão tem, pois, um sentido pedagógico e reeducativo, norteado pelo desiderato de afastar o delinquente da senda do crime, tendo em conta as concretas condições do caso.
É, por isso, necessário que o tribunal se convença, face à personalidade revelada pelo arguido - grau de impulsividade, capacidade de autocontrolo e autocensura, empatia com o sofrimento das vítimas -, ao seu comportamento anterior - condenações sofridas - e posterior aos factos - arrependimento e reparação do dano -, às condições da sua vida - profissionais, familiares e sociais -, à natureza e circunstâncias do crime - motivos e fins -, que o facto cometido não está de acordo com a sua personalidade, tendo sido um simples acidente de percurso, esporádico, e que a ameaça da pena, como medida com reflexos sobre o seu comportamento futuro, evitará a repetição de comportamentos delituosos, afastando-o da criminalidade.
Para decidir sobre a suspensão da execução da pena, o tribunal começará, pois, por um juízo de prognose sobre o comportamento futuro do agente, decidindo depois em conformidade com o que resultar dessa previsão, só devendo formular juízo positivo quando concluir à vista dos apontados elementos, reportados ao momento da decisão, que essa é a medida adequada a afastar o delinquente da criminalidade.
Depois, como escreve Figueiredo Dias «Apesar da conclusão do tribunal por um prognóstico favorável - à luz, consequentemente, de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização -, a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada se a ela se opuserem as necessidades de reprovação e prevenção do crime. Estão aqui em questão não quaisquer considerações de culpa, mas exclusivamente considerações de prevenção geral sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. Só por essas exigências se limita - mas por elas se limita sempre - o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto ora em análise.». [5]
Em síntese: exige-se que o tribunal, ponderando todas as referidas circunstâncias, esteja em condições de formular um juízo de prognose favorável, não podendo a suspensão, no entanto, beliscar as expectativas comunitárias e abalar a estabilidade do ordenamento jurídico-penal, uma vez que a comunidade deve rever-se nas decisões dos tribunais.
2.3.2 Do caso em mãos
Com referência a esta específica questão na ponderação da possibilidade de aplicação ao recorrente da suspensão da execução da pena ou outra pena de substituição, depois de ajuizar positivamente da suspensão da execução da pena aplicada à arguida, discorreu o Tribunal a quo o seguinte em relação ao arguido recorrente:
«(…)
Cotejadas as penas de substituição de carácter não institucional ou não detentivo, conclui-se que, in casu, a substituição da pena de prisão apenas é formalmente possível pela substituição por trabalho a favor da comunidade e pela suspensão da execução da pena de prisão.
No que respeita a substituição da pena de prisão por prestação de trabalho a favor da comunidade, entende-se ser de afastar considerando não terem sido provados factos que permitam concluir pela adequação e suficiência desta concreta pena substitutiva (artigo 58º do Código Penal).
Por sua vez, a suspensão da execução da pena de prisão, não superior a cinco anos, deve ser determinada em função das concretas necessidades de socialização, que se aferem a partir da personalidade e condições pessoais do arguido, características e gravidade do facto e duração da pena (cfr. artigo 50º, nº 1, do Código Penal).
O instituto da suspensão da execução da pena de prisão tem subjacente a ideia de que a simples censura do facto e a ameaça da prisão pode ser suficiente para a plena satisfação das necessidades da punição; ameaça cuja duração pode perdurar por mais ou menos tempo, que a lei fixa entre o mínimo de um ano e o máximo de cinco - artigo 50º, nº 5, do Código Penal. Assim, o mesmo é afirmar que quanto maior for a necessidade de socialização do arguido, mais longo deverá ser, obviamente, o período de suspensão.
(…)
Por sua vez, dos factos provados resulta à saciedade que, ao arguido AA, têm sido concedidas todas as oportunidades de se ressocializar, atentas as oito penas de multa e as duas pena de prisão impostas, a primeira de 3 anos e 8 meses de prisão, suspensa na sua execução, pela prática de um crime de coação agravada, um crime de detenção de arma proibida e um crime de introdução em lugar vedado ao público, por acórdão transitado em julgado em 2017/04/19 (termo a 2020/12/19), e a última de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução, pela prática de um crime de furto qualificado, por acórdão transitado em julgado em 2018/02/02 (termo a 2020/08/02).
Estas sucessivas condenações e as respetivas penas revelaram-se manifestamente insuficientes para o arguido, a quem se reconhecem francas fragilidades ao nível do reconhecimento do desvalor dos diversos bens jurídicos e da consciência crítica, adotar uma postura conforme ao direito e às regras em sociedade, uma vez que, volvido menos de um ano desde o termo do período de suspensão mais longo, verificado em 2020/12/19, o arguido praticou os factos sub judice, pelo que se conclui que o arguido não interiorizou as sucessivas penas que lhe foram aplicadas.
Torna-se por demais evidente que a suspensão da execução da pena de prisão não é de aplicar, porquanto a simples censura do facto e a ameaça da prisão não realizaram de forma adequada e suficiente as finalidades da punição que no caso se impõem, uma vez que o arguido AA não interiorizou o desvalor das suas condutas. Não se logra formular um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento futuro do arguido, face ao passado criminal do arguido.
De facto, o arguido transcorreu, num passado próximo, todas as penas de substituição de carácter não detentivo, tendo sido concedidas várias oportunidades de enveredar por uma vivência sem prática de novos factos penalmente ilícitos, o que não sucedeu. Aliás, o arguido evidencia limitações ao nível do reconhecimento do desvalor dos bens jurídicos, das noções de dano e de vítima e, relativamente aos anteriores contactos com a justiça penal, enquadra-os quer nas relações interpessoais estabelecidas, quer nas más decisões que foi tendo ao longo da sua vida.
Assim, as concretas e prementes necessidades de socialização, que se aferem a partir da personalidade e condições pessoais do arguido, natureza e gravidade de cada um dos factos e duração da pena, nos termos supra expostos, são incompatíveis com as finalidades da execução da pena de prisão em regime de permanência na habitação (cfr. artigo 43º do Código Penal). O quadro descrito de modo algum permite sustentar um juízo de suficiência e adequação deste regime.
Ponderados todas estas circunstâncias, o Tribunal Coletivo conclui pela necessidade de cumprimento efetivo de pena de prisão, por nenhuma outra pena ser apta a satisfazer de forma adequada e suficiente as necessidades preventivas, que se fazem sentir e se impõem.
(…)».
O recorrente põe em causa a necessidade do cumprimento efetivo da pena, considerando ainda poder realizar-se um juízo de prognose favorável quanto à sua conduta futura.
Mas, manifestamente, não pode.
Vejamos os seus argumentos.
Primeiro.
Argumenta o recorrente que a gravidade objetiva dos factos deve ser analisada à luz do contexto cultural em que os factos ocorreram, considerando que todos os intervenientes são de etnia cigana, para a qual um relacionamento extraconjugal assume uma relevância diferente daquela que é a importância para a restante comunidade.
Assim, o «vexame, a vergonha e a exposição a uma traição é maior para a mulher cigana, pois a comunidade é muito menos tolerante a este tipo de condutas, e impõe consequências muito mais danosas.».
Ora, parece aqui o recorrente introduzir na ponderação da aplicação da pena de substituição, fatores atinentes à ilicitude e à culpa associadas à conduta, os quais, como se disse na exposição precedente, se circunscrevem à determinação da medida da pena.
Na verdade, nesta sede, de ponderação da sua substituição por pena não detentiva, valem essencialmente considerações preventivas, que não se relacionam diretamente com a menor ou maior gravidade dos factos praticados.
O que pode relevar é o modo como ocorreram os factos, a motivação e as finalidades subjacentes – não a sua gravidade objetiva -, na medida em que permitirem extrair ilações quanto à personalidade revelada pelo arguido e aferir do merecimento de uma oportunidade de não ser privado da liberdade, por bastar a ameaça da pena para evitar futuros comportamentos delituosos.
Reposicionada a questão nestes termos, impõe-se a sua reformulação:
Podem as exigências de prevenção geral e especial implicadas no juízo de substituição da pena de prisão considerar-se menores pelo facto de a conduta ilícita - agressão e exposição pública da mulher como adúltera – se inserir no costume cultural da comunidade ou etnia a que pertencem agressores e vítima?
Manifestamente não.
Desde logo, parece olvidar a defesa que todos os cidadãos, independentemente das respetivas etnias e conceções culturais, estão sujeitos à mesma lei, vigente num Estado de Direito fundado na dignidade da pessoa humana e regido por valores, princípios e regras comunitariamente tidos consensualmente como fundamentais – arts. 1º e 2º da Constituição da República Portuguesa.
Numa outra perspetiva, também ela constitucionalmente acolhida sob os princípios da universalidade e da igualdade, consagrados nos arts. 12º e 13º da Constituição da República Portuguesa, todos os cidadãos gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres consignados na Constituição – art.º 12º/1 -, têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei – art.º 13º/1.
Mais: «Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.» (negrito nosso) - art.º 12º/2 da Constituição da República Portuguesa.
O princípio da proibição da discriminação mostra-se também ínsito no art.º 14º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH), nos termos do qual «O gozo dos direitos e liberdades reconhecidos na presente Convenção deve ser assegurado sem quaisquer distinções, tais como as fundadas no sexo, raça, cor, língua, religião, opiniões políticas ou outras, a origem nacional ou social, a pertença a uma minoria nacional, a riqueza, o nascimento ou qualquer outra situação.».
Ainda sob o art.º 1º do Protocolo 12 à Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais se consigna expressamente:
«1. O gozo de todo e qualquer direito previsto na lei deve ser garantido sem discriminação alguma em razão, nomeadamente, de sexo, raça, cor, língua, religião, convicções políticas ou outras, pertença a uma minoria nacional, riqueza, nascimento ou outra situação. 2. Ninguém pode ser objeto de discriminação por parte de qual quer autoridade pública com base, nomeadamente, nas razões enunciadas no número 1 do presente artigo.».
Em face da questão colocada no recurso, vale plenamente a vertente negativa do princípio da igualdade, no sentido de que se vedam privilégios e discriminações sem qualquer justificação objetiva.
Parece, de resto, o recorrente usar, diga-se, de forma deslocada e subversiva, o argumento da discriminação positiva – vertente positiva do princípio da igualdade – ao invocar a pertença à etnia cigana como justificação para uma menor gravidade da conduta ilícita que reconhece ter adotado.
Isto porque, nessa vertente do princípio da igualdade, do que se trata essencialmente é de conferir, em concreto, tratamento igual a situações semelhantes e tratamento desigual a situações objetiva e substancialmente desiguais [6], e não de negar o próprio princípio da igualdade no seu núcleo fundamental, resultado em que redundaria aquela tese.
Nesta medida, o Tribunal, enquanto poder público diretamente vinculado pelo princípio da igualdade, jamais poderia diferenciar positivamente um cidadão autor de um crime em razão da sua etnia e dos seus costumes.
Assim como seria violador do princípio da igualdade, considerar como fator agravativo da situação penal do recorrente o facto de pertencer à etnia cigana [7], também o é atenuar essa mesma situação em razão desse fator.
De tal forma que, considerar, como pretendido no recurso, como uma espécie de atenuante da gravidade da conduta adotada pelo arguido/recorrente, ou, no nosso reposicionamento, como fator favorável na avaliação das exigências de prevenção geral e especial, o facto de pertencer a uma etnia que é menos tolerante ao relacionamento extraconjugal, leia-se, da mulher, constituiria do mesmo passo, conceder-lhe um benefício injustificado em razão da sua etnia, e prejudicar a ofendida precisamente em razão da pertença a essa mesma etnia, considerando nessa base menos grave a conduta agressora de que foi vítima.
Como se escreve no acórdão da Relação de Évora de 11/11/2007, relatado por Gomes de Sousa no processo 1894/07-1[8]:
«A circunstância de a arguida ser de etnia cigana é irrelevante na determinação da medida da pena. Se não pode, por obediência a princípios humanistas e aos princípios que enformam o edifico constitucional e processual penal, ver a sua situação agravada por tal facto, também daí não resulta a existência de um estado de quase impunidade ou uma licença para delinquir com a garantia da suavidade nas penas por pertença a um grupo étnico. O próprio argumento em si é associal ou, se se preferir, inviabilizador de uma alegação de pretensão de integração ou inserção social e justificador da prática de ilícitos criminais e, enquanto tal, uma forma pouco subtil de perverter o ordenamento jurídico-penal.» (negrito nosso).
Tudo para concluir pela irrelevância da etnia a que pertencem arguido e ofendida, e respetivas referências culturais, do ponto de vista da avaliação das exigências de prevenção geral e especial, e nestas, da personalidade do arguido e previsibilidade do seu comportamento futuro, assim como da salvaguarda do mínimo de tutela do ordenamento jurídico vigente, para efeitos da definição da pena aplicável.
Dito isto, a argumentação assim aduzida, conduz-nos, inversamente, a reforçar os fundamentos do decidido afastamento da suspensão da execução da pena de prisão em que foi o arguido condenado.
Com efeito, a julgar pela mesma, o arguido sentir-se-á menos responsável pelo ocorrido pelo facto de se ter limitado a dar execução a um costume típico da sua etnia em relação às mulheres adúlteras, alheio inclusivamente ao facto de ser ele o adúltero, pois que era ele quem mantinha com outra mulher, a coarguida, uma relação análoga à dos cônjuges e manteve com a ofendida relacionamento extraconjugal -, já para não falar no facto de tudo ter ocorrido quando se encontrava em pleno encontro amoroso com essa mulher, encontro que promoveu e em que participou livremente.
A significar que, se nestas concretas circunstâncias, não foi o arguido capaz de um juízo crítico que o tivesse, pelo menos, afastado dos factos perpetrados pela sua companheira e suas acompanhantes, antes tendo neles participado ativamente, não será de esperar que o faça futuramente.
Por outro lado, a gravidade dos factos cometidos e suas consequências exige a efetiva aplicação da pena detentiva como forma de sinalizar junto da comunidade a valia das normas violadas, independentemente da etnia à qual pertenças os agentes e as vítimas, reforçando os efeitos geral preventivas da pena.
Segundo.
Admitindo o recorrente contar com um passado criminal assinalável, aduz que se reconduz esmagadoramente a crimes rodoviários, ou decorrentes da prática desses crimes; a exceção é constituída por factos praticados no ano 2015, de detenção de arma proibida, introdução em lugar vedado ao público e coação agravada, e no ano 2016, de furto qualificado, punidos, em ambos os casos com penas de prisão suspensas, todas já extintas há vários anos.
A resolução criminosa seria diferente da adotada nos factos em juízo, pois aqui teria agido com o propósito de fazer aquilo que achava que a comunidade a que pertence esperava dele, de tolerar o comportamento da companheira para com a ofendida.
Reclama, assim, em seu favor o facto de ter adotado uma postura totalmente passiva quanto às condutas criminosas, não tendo participado ativamente nas agressões, nem delineado qualquer plano prévio, pois foi tão surpreendido quanto a ofendida.
Ora, o passado criminal do arguido é revelador precisamente de uma personalidade avessa ao dever-ser ético jurídico em relação a bens jurídicos de diversa natureza, que vão desde o património – furto qualificado - à segurança da vida em sociedade – condução em estado de embriaguez e sem habilitação legal, detenção de ama proibida -, passando pela autonomia intencional do Estado – desobediência e violação de imposições, proibições ou interdições -, acabando nos bens jurídicos pessoais, como é o caso, do crime de introdução em lugar vedado ao público, que protege o direito à reserva da vida privada, e do crime de coação agravada, que tutela precisamente o direito à liberdade, tal como sucede no crime aqui em causa, de sequestro.
Depois, ao contrário do referido pelo recorrente, as penas de prisão suspensas na execução não haviam sido extintas há vários anos à data dos factos, ocorridos em 07/12/2021.
Como expressamente referido na decisão recorrida a este propósito:
«(…) duas penas de prisão impostas, a primeira de 3 anos e 8 meses de prisão, suspensa na sua execução, pela prática de um crime de coação agravada, um crime de detenção de arma proibida e um crime de introdução em lugar vedado ao público, por acórdão transitado em julgado em 2017/04/19 (termo a 2020/12/19), e a última de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução, pela prática de um crime de furto qualificado, por acórdão transitado em julgado em 2018/02/02 (termo a 2020/08/02).
Estas sucessivas condenações e as respetivas penas revelaram-se manifestamente insuficientes para o arguido, a quem se reconhecem francas fragilidades ao nível do reconhecimento do desvalor dos diversos bens jurídicos e da consciência crítica, adotar uma postura conforme ao direito e às regras em sociedade, uma vez que, volvido menos de um ano desde o termo do período de suspensão mais longo, verificado em 2020/12/19, o arguido praticou os factos sub judice, pelo que se conclui que o arguido não interiorizou as sucessivas penas que lhe foram aplicadas.
(…)».
Por outro lado, e mais uma vez, o facto de achar ser-lhe favorável o facto de ter atuado como se esperava dele, tolerando o comportamento da companheira para com a ofendida, é já, por si, revelador da falta de sentido autocrítico que permita minimamente confiar no que será a sua conduta futura.
Por fim, contrariamente ao pretendido, os factos provados não sustentam a sua afirmação de que teria adotado uma postura totalmente passiva quanto às condutas criminosas, não tendo participado ativamente nas agressões; basta atentar nos factos provados sob os pontos 8. a 11., 14. e 15..
Acresce que o facto de ter promovido e participado ativamente no encontro amoroso com a ofendida – marcado entre ambos na rede social Facebook -, com quem manteria relação extraconjugal, tornava ainda mais exigível, mais não fosse por força de um dever geral de solidariedade e compaixão, evitar na medida do que lhe fosse possível as agressões de vária índole que sobre a mesma foram perpetradas, diga-se, sem que fizesse qualquer esforço para as impedir, antes se associando em atos e intentos às suas agressoras; assumiria, de resto, um papel fundamental na condução do veículo no interior do qual foi a ofendida privada da liberdade e agredida, usando a buzina para chamar os habitantes do bairro que, sabia, veriam a ofendida desamparada na rua, desnudada, de cabelo rapado e com marcas de agressão.
Neste quadro, assoma irrelevante o facto invocado pelo recorrente de não ter delineado qualquer plano prévio e ter sido surpreendido pela arguida, pois que rapidamente se decidiu a ele aderir, ainda que sobre si recaísse, por via das circunstâncias indicadas, um especial dever de evitar a sua prossecução; não vemos, pois, o que de favorável se pode extrair de todo este circunstancialismo para a aferição da personalidade do arguido e prognose quanto ao seu comportamento futuro.
Terceiro.
Argumenta, por fim, o recorrente que nunca sofreu uma pena de prisão efetiva, o que, no caso concreto, é manifestamente excessivo.
Diremos quanto a este argumento, desde logo, o evidente: há sempre uma primeira vez para tudo.
E chegou a primeira vez para o recorrente.
Como vimos, a pena efetiva de prisão mostra-se necessária in casu ante a falência ostensiva das anteriores, múltiplas, tentativas de a evitar, inexistindo qualquer possibilidade de um prognóstico favorável quanto à sua conduta futura.
Concluindo: nenhum dos argumentos aduzidos no recurso constitui fundamento para a pretendida suspensão da execução da pena de prisão aplicada.
Acresce que nos parece acertada a análise feita pelo Tribunal recorrido, não podendo alcançar-se outra conclusão que não a aí extraída de ser inviável um juízo de prognose favorável quanto à conduta futura do recorrente; além disso, operar a suspensão da execução da pena de prisão em que o arguido está condenado, poria de forma evidente em causa exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico e dos bens jurídicos protegidos.
Improcede, por isso, o recurso nesta parte.
*
4. DO REGIME DE PERMANÊCIA NA HABITAÇÃO
Veio ainda o recorrente peticionar subsidiariamente a aplicação do regime de permanência na habitação com recurso a meios de controlo por vigilância eletrónica.
Invoca as potencialidades deste regime para realizar a tutela do bem jurídico protegido pela norma que pune o crime em causa, assim satisfazendo as exigências de prevenção geral, e facilitar a ressocialização, sem estender, de forma gravosa, as consequências da punição ao seu agregado, assim se evitando as consequências perversas da prisão continuada, não deixando de, com sentido pedagógico, constituir forte sinal de reprovação para o crime em causa.
Volta a invocar o contexto cultural em que os factos foram praticados e o facto de nunca ter entrado em meio prisional, argumentos estes em relação aos quais cremos ter já ficado tudo dito.
Mas vejamos da aplicabilidade do pretendido regime de permanência na habitação.
Nos termos do preceituado no art.º 43º do Código Penal:
«1 - Sempre que o tribunal concluir que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da execução da pena de prisão e o condenado nisso consentir, são executadas em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância:
a) A pena de prisão efetiva não superior a dois anos;
(…)
2 - O regime de permanência na habitação consiste na obrigação de o condenado permanecer na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, pelo tempo de duração da pena de prisão, sem prejuízo das ausências autorizadas.
(…)» (negrito nosso).
Constituem finalidades da execução da pena de prisão, segundo o art.º 42º do Código Penal «(…) a defesa da sociedade e prevenindo a prática de crimes, deve orientar-se no sentido da reintegração social do recluso, preparando-o para conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes.».
Está, assim, em causa definir o regime de cumprimento da pena de prisão aplicada,[9] se intramuros no estabelecimento prisional, se em casa, para o que releva essencialmente perceber se, cumprida em RPH a pena de prisão aplicada realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da execução da pena de prisão, de defesa da sociedade (prevenção geral) e de prevenção da prática de crimes, com foco na reintegração social do recluso (prevenção especial).
Valendo-se de toda a argumentação expendida para afastar a suspensão da execução da pena de prisão, conclui-se na decisão recorrida o seguinte a este propósito:
«(…)
Assim, as concretas e prementes necessidades de socialização, que se aferem a partir da personalidade e condições pessoais do arguido, natureza e gravidade de cada um dos factos e duração da pena, nos termos supra expostos, são incompatíveis com as finalidades da execução da pena de prisão em regime de permanência na habitação (cfr. artigo 43º do Código Penal). O quadro descrito de modo algum permite sustentar um juízo de suficiência e adequação deste regime.
(…)».
Conclusão que nos parece acertada, considerando as elevadas exigências preventivas que o caso convoca e o particular histórico pessoal do arguido, conforme considerações acabadas de fazer.
Como é salientado na decisão recorrida, as anteriores condenações do arguido, em número de onze, todas em penas não detentivas, uma delas por crime de coação agravada, da mesma natureza de um dos que mereceram condenação nestes autos – sequestro -, este, cometido menos de um ano depois de findo o período de suspensão da execução daqueloutra, fazem elevar em tal medida as exigências de prevenção especial e geral, que tornam incompatível o cumprimento no domicílio da pena de prisão aplicada, com as necessidades de proteção da comunidade e dos bens jurídicos, assim como as necessidades de reeducação do arguido para o direito.
O arguido já revelou não ter interiorizado a gravidade da sua conduta, que minimiza e desvaloriza com o respetivo contexto cultural e a pretensa passividade assumida, como que branqueando o que foi a sua adesão ativa ao plano delineado pela sua companheira e demais acompanhantes, e papel essencial no cometimento dos crimes que vitimaram CC, sem que se divise um sinal de arrependimento ou sentido autocrítico.
A permanência na habitação em cumprimento da pena de prisão, significa no caso a permanência junto da coarguida – sua companheira, também ela condenada, mas em pena de prisão suspensa na execução -, e na comunidade a que pertencem todos, incluindo a ofendida -, transmitindo a essa comunidade e ao arguido a ideia de menor gravidade e relevância dos crimes cometidos.
É, pois, de prever que qualquer outra pena ou forma de execução fará com que o arguido continue a desvalorizar as condenações que lhe são impostas, fomentando no mesmo um sentimento de impunidade face às suas condutas, em sentido contrário ao pretendido afastamento de práticas criminosas.
Ante a patente ineficácia da dezena de penas até agora aplicada, todas não privativas de liberdade, mesmo contendo já as duas últimas a ameaça da pena de prisão, que não funcionou como suficiente contra motivação da repetição criminosa, não podemos, pois, deixar de concluir pela insuficiência do regime de permanência na habitação para alcançar tal desiderato.
Em suma: a execução em regime de permanência na habitação da pena de prisão aplicada não iria satisfazer a finalidade primordial de restabelecer a confiança comunitária na validade das normas violadas e na eficácia do sistema jurídico-penal, bem como, neste quadro, não será de esperar que essa forma de cumprimento da pena de prisão afaste o arguido da repetição criminosa.
Com a agravante de transmitir ao recorrente, que já revelou forte renitência na interiorização do dever-ser ético-jurídico, um sentimento de impunidade e desvalorização dos factos que o trouxeram ao processo.
Somos assim concordantes com o Tribunal a quo, devendo a pena aplicada ao arguido AA ser cumprida em meio prisional.
Improcede também aqui o recurso.
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III- DISPOSITIVO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam as Juízas do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar totalmente improcedente o recurso do arguido AA e, consequentemente, negam provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida nos seus precisos termos.
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Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quantia correspondente a 3 (três) unidades de conta - arts. 513º/1 do Código de Processo Penal, 8º/9 do Regulamento das Custas Processuais, e Tabela III anexa a este último diploma.
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Notifique.
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Lisboa, 04 de junho de 2024

Ana Cláudia Nogueira
Alda Tomé Casimiro
Luísa Alvoeiro
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[1] In ob. cit. na nota anterior, págs. 331 e 332
 
[2] In ob. cit., pág. 333.
 
[3] In Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da CEDH, 2ª ed. atualizada, UCE, 2010, pág. 266.
 
[4] Vide Jescheck, in Tratado de Derecho Penal, versão espanhola, Vol. II, págs. 1152 e 1153.
 
[5] In ob. e loc. cit. na nota anterior.
 
[6] Como ensinam Jorge Miranda e Rui Medeiros, o sentido positivo do princípio da igualdade, implica, além do mais, o tratamento das situações como existem mas também como devem existir, acrescentando assim uma componente ativa ao princípio e fazendo da igualdade perante a lei uma verdadeira igualdade através da lei - in CONSTITUIÇÃO PORTUGUESA ANOTADA, TOMO I, 2ªEdição, Coimbra Editora, págs. 222 e sg..
 
[7] Por exemplo, o caso Paraskeva Todorova v. Bulgaria (n.º. 37193/07), acessível em https://hudoc.echr.coe.int/eng-press#{%22itemid%22:[%22003-3082087-3410307%22]}.
 
[8] Acessível em www.dgsi.pt .
 
[9] Neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da CEDH, 5ª ed. Atualizada UCE, 2022, pág. 316, nota 2.