Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | SANDRA OLIVEIRA PINTO | ||
Descritores: | NULIDADE DA ACUSAÇÃO NARRAÇÃO DOS FACTOS TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 02/07/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIDO | ||
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Sumário: | I- A acusação constitui uma peça fundamental do processo penal, na medida em que fixa, tendencialmente de forma definitiva, o objeto do processo, encerrando a factualidade e também a incriminação de que o acusado terá de defender-se – e que, em princípio, deverá manter-se estável até ao fim do processo. II- Assim, a acusação deve conter a narração que justifica a aplicação de uma pena ou medida de segurança ao(s) arguido(s), no sentido de que, a provar-se tudo o que da mesma consta, conduzirá inevitavelmente à respetiva condenação, sem se perder de vista que a descrição típica do crime de tráfico de estupefacientes permite múltiplas formas de execução. III- O crime de tráfico de estupefacientes previsto no artigo 21º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22.01, configura um tipo plural, com atividade típica ampla e diversificada, abrangendo desde a fase inicial do cultivo, produção, fabrico, extração ou preparação dos produtos ou substâncias até ao seu lançamento no mercado consumidor, passando pelos outros elos do circuito, mas em que todos os atos têm entre si um denominador comum, que é exatamente a sua aptidão para colocar em perigo os bens e os interesses protegidos com a incriminação. Não importa ao preenchimento deste tipo legal a intenção específica do agente, os seus motivos ou fins a que se propõe; o conhecimento do fim apenas pode interessar para efeitos de determinação da ilicitude do facto. IV- Quando do texto acusatório possa extrair-se a descrição de uma conduta enquadrável no crime imputado, não pode concluir-se pela nulidade da acusação por falta de narração de factos concretos, mesmo que – como sucede no crime de tráfico de estupefacientes – eles não correspondam à totalidade das ações que preenchem o tipo. (sumário elaborado pela relatora) | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: I – Relatório No processo nº 4/21.0SWLSB do Tribunal Central de Instrução Criminal de Lisboa (Juiz 4) foi, em 10.08.2022, proferido o seguinte despacho: “Nulidade da acusação. Nos presentes autos o Ministério Público deduziu acusação, entre outros, contra MC e MG, imputando-lhes a prática, em co-autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo disposto no artigo 21.º, n.º 1 do Decreto - Lei n.º 15/93 de 22/01, com referência às tabelas I-B, II-A, a este anexas. Estes arguidos requereram a abertura da instrução com o sustento da nulidade da acusação deduzida, por a mesma não conter a descrição dos factos cuja prática lhes seja imputada. Analisada a acusação resulta claro que o Ministério Público, apesar de efectuar uma apresentação genérica da situação, nunca imputa concretamente qualquer facto susceptível de integrar a referida incriminação em relação aos mencionados arguidos. Assim, da acusação resulta claro, como referem os arguidos MC e MG nos respectivos RAI, que a imputação criminosa deriva de meras considerações sobre a situação dos arguidos, mas não sobre algo que os mesmos tenham feito e, portanto, de que se possam defender. Independentemente da indiciação ou da relevância dos meios de prova apresentados, apenas se descreve que a arguida MC aderiu ao plano de traficar estupefacientes, sendo que, em duas situações, estava a acompanhar outro arguido (a quem são imputados a guarda, o transporte e a entrega de estupefacientes), seu marido. Também quanto ao arguido MG apenas se descreve que na habitação e outras instalações deste arguido foram utilizadas por outro co-arguido (AC) para a guarda de produtos relacionados com o tráfico de estupefacientes. Por mais ampla que possa ser a incriminação prevista no art.º 21.º do DL 15/93 de 22 de Janeiro, o simples acompanhamento de alguém que pratica os actos ali previstos, não integra a referida incriminação. Como não a integra o simples conhecimento dessa actividade. Da mesma forma, a qualidade de proprietário, comproprietário ou usuário de um local onde se encontram guardados produtos estupefacientes, não integra a mesma incriminação. Para que tal aconteça é necessário que seja imputado aos arguidos a guarda de estupefacientes, de objectos relacionados com os mesmos, a permissão efectiva ou acordo para tal guarda (que seja essencial para a referida verificação), actos de transporte ou entrega de estupefaciente, de entrega ou recebimento de dinheiro, a condução de veículos necessária a tais actos, a vigia para prevenir acções policiais, a intervenção em comunicações de transacção de estupefacientes, etc. O que não significa que as condições descritas na acusação impeçam a consideração das pessoas na situação dos requerentes da instrução como suspeitos e, conforme os meios de prova que sejam efectivamente recolhidos, lhe venham a atribuir, em concreto, actos de tráfico de estupefacientes, nomeadamente a guarda de estupefacientes e de outros objectos ou dinheiro sob a sua responsabilidade, ainda que partilhada, ou alguma simples conversa de transacção ou entrega singular quanto a estupefacientes. Mas o que não pode é deixar de se fazer tal imputação concreta. Por isso, se o Ministério Público, em honestidade, não conseguiu imputar aos arguidos requerentes da instrução algum facto concreto de tráfico de estupefacientes, independentemente da análise da indiciação ou do tipo de integração típica pretendida pelo Ministério Público, manifestamente a acusação encontra-se em violação do disposto no art.º 283.º, n.º3, b), do Código de Processo Penal, quanto a tais arguidos, por não descrever factos de onde podia resultar a responsabilidade dos mesmos quanto ao crime pelo qual foi deduzida acusação; sendo, consequentemente, nula. Em face do exposto, declaro nula a acusação deduzida contra os arguidos MC e MG. Notifique.” * Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso daquela decisão, formulando as seguintes conclusões: “1.º A Decisão recorrida declarou nula a acusação deduzida pelo Ministério Público contra os arguidos MC e MG, entendendo que «a acusação encontra-se em violação do disposto no art.º 283.º, n.º 3, b), do Código de Processo Penal, quanto a tais arguidos, por não descrever factos de onde podia resultar a responsabilidade dos mesmos quanto ao crime pelo qual foi deduzida acusação». 2.º Porém a Acusação não é nula, pois contém a narração dos factos imputados aos arguidos MC e MG. 3.º Como o crime está imputado em co-autoria material, e o resultado total deve ser imputado a todos os participantes, importa, sucintamente, referir factualidade constante da Acusação. 4.º Constam do despacho de acusação: A «Desde, pelo menos, Janeiro de 2021, data em que chegou ao conhecimento das autoridades policiais a actividade levada a cabo pelos arguidos AC e BP, que estes acordaram entre si, de forma organizada e com regularidade, e em conjunto e em comunhão de esforços, proceder à aquisição e venda de cocaína e de MDMA a terceiros, com vista à obtenção de lucro.» (nº 1 da Acusação) B O estupefaciente, as quantias monetárias e objectos procedentes da venda de cocaína e de MDMA eram guardadas nas residências dos arguidos situadas: - na Rua …, em Almada (habitação dos arguidos AC e MC), Estrada …, Lisboa (habitação do arguido MG); - na Rua …, em Lisboa (habitação do arguido BP) Mas também no interior da garagem/arrecadação nº … sita na Rua …, em Lisboa, (nº 13 da Acusação) C Os arguidos utilizaram vários cartões telefónicos, no desenvolvimento desta actividade, porém «Para comunicar com os seus clientes, os arguidos utilizavam o mesmo aparelho telefónico - (número de telefone - xxxxxx - alvo 117586040). (nºs 5 e 8 da Acusação) D As encomendas eram feitas pelos clientes para o telefone referido em C, (nos 2, 4, 6, 7 e 8 do despacho de acusação E Os arguidos AC e MC procediam às entregas e recebiam o pagamento, no local e hora previamente acordado, deslocando-se, no mínimo nos veículos automóveis de marcas: “BMW”, de matrícula …, (n.ºs 15, 21, 32, 37, 47, 56, 67, 70, 78, 91, 95, 102 da Acusação) “Peugeot”, de matrícula … (n.º 32 da Acusação) “Fiat Grand Punto”, de matrícula … (nos 51, 52, 55, 87, 103 da Acusação) “Seat Ibiza”, de matrícula … (n.ºs 107, 109 da Acusação) “Nissan Juke”, de matrícula … (n.ºs112. 138. 152. 155, 163. 164, 202 da Acusação) “Volkswagen Polo”, de cor cinzenta e matrícula … (n.ºs 115, 117, 119, 120, 121, 123, 126 da Acusação) “Kia Picanto”, de matrícula … (n.ºs 128. 131 da Acusação) “Renault Clio”, de matrícula … (n.ºs 132, 134. 145. 150, 156, 159. 172, 175, 182 184 187 190 196 201 da Acusação) F - Até «meados de Abril de 2021», «as transacções de estupefaciente eram realizadas essencialmente durante o período da tarde/noite, e da seguinte forma: b. De segunda-feira a quinta-feira: entre as 13h00 e as 19h00 eram realizadas pelo arguido AC; b. Na sexta-feira: entre as 13h00 e as 19h00, eram realizadas pelo arguido AC, e entre as 19h00 e as 23h00 eram realizadas pelo arguido BP; c. Durante o fim-de-semana (sábado e domingo): entre as 14h00 e as 20h00 eram realizadas pelo arguido BP. G - A partir de meados de Abril de 2021, verificou-se uma alteração no modus operandi utilizado pelos arguidos, sendo que: c. - O arguido AC procedia à distribuição de produto estupefaciente aos clientes, de segunda-feira a sexta-feira, habitualmente no período entre as 14h00 e as 20h00; d. - O arguido BP, procedia à distribuição de produto estupefaciente aos clientes, às quartas e quintas das 20h00 até à 00h00, na sexta-feira das 20h00 até às 02h00 e aos fins-de-semana entre as 13h00 e as 02h00.- (n.ºs 10 e 11, da Acusação) H «A actividade desenvolvida pelos arguidos e os encontros que tinham com os seus clientes tendentes à entrega de cocaína e de MDMA, foram objecto de várias vigilâncias policiais, algumas das quais realizadas, em tempo real, com acompanhamento das intercepções telefónicas», designadamente, como descritas na Acusação, aqui dadas por integralmente reproduzidas, nos dias: 04.01.2021, (nos 15 a 26 da Acusação) 08.01.2021, (nos 27 a 31 da Acusação) - 05.02.2021 (nos 32 a 55 da Acusação) - 10.02.2021 (nos 56 a 66 da Acusação) 11.02.2021 (nos 67 a 69 da Acusação) 12.02.2021 (nos 70 a 79 da Acusação) 05.03.2021 (nos 80 a 89 da Acusação) - 22.03.2021 (nos 90 a 94da Acusação) 15.04.2021 (nos 95 a 101 da Acusação) 06.05.2021 (nos 102 a 106 da Acusação) 16.06.2021 (nos 107 a 114 da Acusação) 12.07.2021 (nos 115 a 127 da Acusação) 21.07.2021 (nos 128 a 131 da Acusação) 20.08.2021 (nos 132 a 144 da Acusação) 01.10.2021 (nos 145 a 155 da Acusação) - Novembro de 2021 - (nos 167 a 170 da Acusação) 07.12.2021 (nos 156 a 166 da Acusação) 11.12.2021 (nos 171 a 183 da Acusação) - 19.01.2022 (nos 184 a 193 da Acusação) 02.03.2022 (nos 194 a 204 da Acusação) I No dia 02.03.2022, … A Pelas 19h35, o arguido AC na viatura “Renault Clio” de matrícula … e o arguido BP, fazendo-se transportar na sua viatura de marca e modelo “Nissan Juke” de matrícula … encontraram-se na Av. a … junto à …, na via destinada à paragem de autocarro. B O arguido AC entregou ao arguido BP o telemóvel com o cartão telefónico com o n.º xxxxxx e recebeu deste, diversas notas que perfaziam a quantia monetária de €150,00 (cento e cinquenta euros). C «Nesse momento, estes arguidos foram abordados e revistados por Agentes da P.S.P. D Na posse do arguido AC foi encontrada e apreendida a quantia monetária de €700,00 (setecentos euros) E No interior da viatura de marca e modelo “Renault Clio”, de matrícula … foram encontrados e apreendidos: - Uma bolsa de pequenas dimensões de marca “ORIGINAL LANYARDS”, de cor castanho e preto, contendo no seu interior: - 21 (vinte e uma) embalagens de Cocaína (cloridrato), com o peso líquido de 19,976gramas, produto este que apresentava um grau de pureza de 43,3%, sendo o equivalente a 43 doses de consumo (cfr. exame toxicológico de fls. 1937, cujo teor aqui se considera reproduzido); - Um telemóvel de marca “SAMSUNG”, modelo A50 de cor azul (IMEI-…. e IMEI-….); - Um porta-chaves, com: - Um comando de garagem que permitia o acesso à garagem sita na Rua … - Lisboa; - Uma chave da arrecadação n.º … da Rua … Lisboa); - Duas chaves - pertencente ao armário localizado no interior da arrecadação, onde se encontrava a cocaína. F Na mesma altura, na posse do arguido BP foram encontradas e apreendidas: - 4 (quatro) embalagens de Cocaína (cloridrato), com o peso líquido de 3,567 gramas, produto este que apresentava um grau de pureza de 73,3%, sendo o equivalente a 13 doses de consumo (cfr. exame toxicológico de 1945-1946, cujo teor aqui se considera reproduzido). G No interior da viatura conduzida pelo arguido BP, de marca e modelo “Nissan Juke”, de matrícula …, foram encontrados e apreendidos: - Um Telemóvel de marca “HUAWEI”, de cor verde (IMEI-…. e IMEI-…..); - Um Telemóvel de marca “NOKIA”, de cor preto (IMEI …. e IME1-….), telemóvel utilizado pelos arguidos para serem contactados pelos clientes para marcarem encontros tendentes à aquisição de estupefaciente, correspondente ao CÓDIGO/ALVO - 117586050; (…) Dissimulado por baixo do volante: - 2 Meias contendo no interior: - 40 (quarenta) embalagens de Cocaína (cloridrato), com o peso líquido de 38,266 gramas, produto este que apresentava um grau de pureza de 34,0%, sendo o equivalente a 65 doses de consumo; - 8 (oito) embalagens de MDMA com o peso líquido de 7,830 gramas, produto este que apresentava um grau de pureza de 80,9%, sendo o equivalente a 63 doses de consumo. (cfr. exame toxicológico de 1945-1946, cujo teor aqui se considera reproduzido) H De seguida, os Agentes policiais deram cumprimento aos mandados de busca emitidos nos autos. I Pelas 20h10 na residência do arguido BP, sita na Rua …, em Lisboa, foram encontrados e apreendidos: No móvel da cozinha: - 1 (uma) embalagem de cocaína (cloridrato) com o peso líquido de 9.603 gramas produto este que apresentava um grau de pureza de 47,7%. sendo o equivalente a 22 doses de consumo (cfr. exame toxicológico de fls. 1939, cujo teor aqui se considera reproduzido), que se encontrava oculta num frasco de vidro com arroz. Numa divisão que serve como closet: - a quantia monetária de €4.580,00 (quatro mil quinhentos e oitenta euros), em notas de 50, 20, 10 e 5 euros, que se encontravam nos diversos bolsos de um casaco que pertencente ao arguido BP. - A quantia monetária encontrava-se dividida em molhos de 50€. J As embalagens de cocaína apreendidas aos arguidos neste dia 02.03.2022 eram em tudo semelhantes às entregues pelos arguidos, nos dias acima referidos, aos indivíduos, conforme descrito. K Os arguidos agiram em conjugação de esforços e vontades entre si, em execução de plano comum para a distribuição e venda de cocaína e de MDMA a consumidores para obtenção de lucro. L Os arguidos conheciam as características e natureza estupefaciente dos produtos apreendidos, destinando-os à venda a terceiros, mediante contrapartida monetária. M Os arguidos sabiam que a aquisição, detenção e comercialização de produtos estupefacientes é criminalmente punida por lei. N As balanças de precisão, os sacos de plástico, o rolo de sacos de plástico, as colheres e a faca apreendidas eram utilizados pelos arguidos para pesar, embalar e dosear as substâncias que transacionavam. O As quantias monetárias e objectos apreendidos aos arguidos tinham sido obtidos com os proventos resultantes de transacções de cocaína e de MDMA. P O Redrate apreendido era utilizado pelos arguidos no “corte” da cocaína que comercializavam com vista a aumentar o número de doses obtidas, aumentando, assim, o seu peso e o consequente lucro obtido com a sua comercialização. Q Os telemóveis e cartões telefónicos apreendidos aos arguidos eram por estes usados nos contactos necessários à comercialização dos referidos produtos e tinham sido adquiridos com proventos daí resultantes. R As viaturas apreendidas eram usadas pelos arguidos no transporte da cocaína e do MDMA que transaccionavam. S Agiram, assim, os arguidos, deforma livre, voluntária e conscientemente, e em concertação de esforços e intentos, bem sabendo que a sua conduta era criminalmente punida por lei» (n.ºs 202 a 213.215 a 217, 220 a 228 da Acusação) Factos imputados na Acusação aos arguidos MC e MG. 5.º «Esta actividade levada a cabo pelos arguidos AC e BP era do conhecimento da arguida MC, que aderiu ao plano referido, fazendo-o seu, sendo que por vezes acompanhava o arguido AC nos encontros tendentes à transacção de cocaína e de MDMA (o que sucedeu nos dias 15.04.2021 e 19.01.2022) (n.º 12 da Acusação) 6.º No dia 15.04.2021, pelas 13h05, o arguido AC, fazendo-se acompanhar pela arguida MC, procedeu a uma venda de estupefaciente (n.ºs 95 a 97 da Acusação) 7.º No dia 02.03.2022 … A Pelas 16h04, fazendo uso do aparelho telefónico utilizado nos agendamentos das transacções, o arguido AC estabeleceu conversação telefónica com o arguido MG informando-o de que se deslocaria à arrecadação n.º … da Rua … em Lisboa, sob o pretexto de lá deixar uma “máquina de barbear”. B Assim, pelas 17h15 deste dia, fazendo-se transportar no veículo de marca e modelo “Renault Clio”, de matrícula …, o arguido AC acedeu a esta arrecadação, tendo dali saído. cerca de 5 m depois. (n.ºs 194 a 196 da Acusação) C Assim, pelas 19h45, na residência sita na Rua …, em Almada e habitação do arguido AC, onde se encontrava a sua esposa, a arguida MC, foram encontrados e apreendidos: Em cima da bancada a cozinha: - 01 (um) telemóvel de marca “Iphone”, modelo 10, com o IME1…, com a respectiva capa de protecção; Numa mesa de apoio, no hall de entrada: - 01 (uma) chave da viatura de marca “MERCEDES”, modelo C63, com a matrícula …; No quarto do R/C: - Na mesa-de-cabeceira: j. - 58 (cinquenta e oito) embalagens de Cocaína (cloridrato), com o peso líquido de 54,442 gramas, produto este que apresentava um grau de pureza de 23,0%, sendo o equivalente a 62 doses de consumo (cfr. exame toxicológico de fls. 1935, cujo teor aqui se considera reproduzido); k. - Vários pedaços de sacos plásticos translucido, próprios para o embalamento de produto estupefaciente; -No closet da suite do 1. 0 andar (quarto dos arguidos AC e MC): Dentro de uma gaveta: c. - a quantia monetária de €7.000,00 (sete mil euros), subdividido em 2 notas de 100€, 28 notas de 50€ e 270 notas de €20, todas do Banco Central Europeu; d. - a quantia monetária de €2.000,00 (dois mil euros), subdividido em 1 notas de 100€, 5 notas de 50€, 82 notas de €20 e 1 nota de €10, todas do Banco Central Europeu; Dentro de uma gaveta: - a quantia monetária de €300.00 (trezentos euros), subdividido em 15 notas de €20, todas do Banco Central Europeu; Numa prateleira: a quantia monetária de €500.00 (Quinhentos euros), subdividido em 23 notas de €20 e 4 notas de €10, todas do Banco Central Europeu; D Pelas 19h40 na residência sita na Estrada …, em Lisboa, habitação do arguido MG e utilizada pelo arguido AC, foram encontrados e apreendidos: Na sala de estar: Em cima do sofá: - um telemóvel de marca Iphone, modelo 12 mini, com os imeis … e …; No quarto do arguido MG: No interior de uma gaveta da cómoda: - a quantia monetária de €1.895,00 (mil oitocentos e noventa e cinco euros) em notas emitidas pelo BCE; Em cima da cómoda: - 2 (duas) chaves da viatura Mercedes, de matrícula …; - 1 (um) comando da garagem, sita na Rua …, em Lisboa; - 1 (uma) chave da arrecadação, sita na Rua …, em Lisboa. E No interior do estabelecimento comercial denominado “Barbearia …” pertencente ao arguido MG, sita na Avenida …, em Lisboa, foram encontrados e apreendidos: No balcão: Dentro de uma capa: - 1 (um) documento do Millenium BCP com indicação do NIB e IBAN de MG; (...) F «Na garagem e arrecadação n.º … da Rua …, em Lisboa, pertencente ao arguido MG e utilizada pelo arguido AC, foram encontrados e apreendidos: Na arrecadação: Dentro de um armário, parte inferior: - 1 (uma) embalagem de Cocaína (cloridrato), com o peso líquido de 363,600 gramas, produto este que apresentava um grau de pureza de 73,4%, sendo o equivalente a 1334 doses de consumo (cfr. exame toxicológico de 1951-1952, cujo teor aqui se considera reproduzido); Dentro de um armário, parte superior: - 1 (uma) balança de precisão com resíduos de cocaína, da marca/modelo KOOLTECH, (cfr. exame toxicológico de 1951-1952, cujo teor aqui se considera reproduzido); - 1 (uma) balança de precisão, da marca/modelo BECKEN; - 3 (três) embalagens de REDRATE, contendo no interior várias carteiras de pó — Produto habitualmente utilizado para o "corte " da Cocaína; - Vários sacos de plástico transparente, sem “pontas”, usados no embalamento de estupefaciente, contendo resíduos de cocaína (cfr. exame toxicológico de 1951-1952, cujo teor aqui se considera reproduzido); - 1 (um) rolo de sacos de plásticos transparentes; - 2 (duas colheres) usadas para a dosagem do produto estupefaciente e -1 (uma) faca usada para a dosagem de produto estupefaciente. Na estante: - a quantia monetária de €1000,00 (mil) euros em notas de 20 euros do Banco Central Europeu. G «Pelas 21h15 deste dia, na bagageira da Viatura de marca “MERCEDES BENZ”, modelo “CLASSE C”, com a matrícula …utilizada pelo arguido AC e cujas duas chaves foram apreendidas em cima da cómoda, no quarto do arguido MG, foram encontrados, e apreendidos: - Documentos manuscritos, com inscrições alusivas a pagamentos de produto estupefaciente. 8.º Factos imputados a todos os arguidos: A Os arguidos agiram em conjugação de esforços e vontades entre si, em execução de plano comum para a distribuição e venda de cocaína e de MDMA a consumidores para obtenção de lucro. B Os arguidos conheciam as características e natureza estupefaciente dos produtos apreendidos, destinando-os à venda a terceiros, mediante contrapartida monetária. C Os arguidos sabiam que a aquisição, detenção e comercialização de produtos estupefacientes é criminalmente punida por lei. D As balanças de precisão, os sacos de plástico, o rolo de sacos de plástico, as colheres e a faca apreendidas eram utilizados pelos arguidos para pesar, embalar e dosear as substâncias que transacionavam. E As quantias monetárias e objectos apreendidos aos arguidos tinham sido obtidos com os proventos resultantes de transacções de cocaína e de MDMA. F O Redrate apreendido era utilizado pelos arguidos no “corte” da cocaína que comercializavam com vista a aumentar o número de doses obtidas, aumentando, assim, o seu peso e o consequente lucro obtido com a sua comercialização. G Os telemóveis e cartões telefónicos apreendidos aos arguidos eram por estes usados nos contactos necessários à comercialização dos referidos produtos e tinham sido adquiridos com proventos daí resultantes. H As viaturas apreendidas eram usadas pelos arguidos no transporte da cocaína e do MDMA que transaccionavam. I Agiram, assim, os arguidos, de forma livre, voluntária e conscientemente, e em concertação de esforços e intentos, bem sabendo que a sua conduta era criminalmente punida por lei» (n.ºs 221 a 228 da Acusação) 9.º Salvo o devido respeito, a acusação obedece aos requisitos legalmente exigíveis pela lei de processo, pois, 10.º Encontram-se narrados os factos que fundamentam a aplicação aos arguidos de uma pena, incluindo o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que os agentes neles tiveram 11.º Está imputada aos arguidos a prática, em co-autoria material, de: - Um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo disposto no artigo 21.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22/01, com referência às tabelas I-B, II-A, a este anexas. 12.º A mera detenção por quem, sem para tal se encontrar autorizado, de cocaína integra a prática deste crime. 13.º Os arguidos AC e MC, BP guardavam as substâncias estupefacientes, quantias monetárias e objectos procedentes da venda de cocaína e de MDMA não só no interior das suas residências. 14.º O arguido MG igualmente guardava os referidos produtos não só na sua residência, mas também no interior da garagem/arrecadação no … sita na Rua…, em Lisboa, que pertence ao n.º … da Avenida …, em Lisboa, prédio onde funciona o seu estabelecimento comercial “BARBEARIA …”, sendo apreendido, na sua residência no dia 02.03.2022 no seu quarto, em cima da cómoda: i. - 1 (um) comando da garagem, sita na Rua …, em Lisboa; ii. - 1 (uma) chave da arrecadação, sita na Rua …, em Lisboa» (nº 212 da Acusação) 15.º No mesmo dia 02.03.2022, na busca realizada na arrecadação n.º … da Rua…, em Lisboa, pertencente ao arguido MG foram encontrados e apreendidos: Dentro de um armário, parte inferior (uma) embalagem de Cocaína (cloridrato), com o peso líquido de 363,600 gramas, produto este que apresentava um grau de pureza de 73,4%, sendo o equivalente a 1334 doses de consumo (cfr. exame toxicológico de 1951-1952, cujo teor aqui se considera reproduzido); Dentro de um armário, parte superior: 1 (uma) balança de precisão com resíduos de cocaína. da marca/modelo KOOLTECH, (cfr. exame toxicológico de 1951-1952, cujo teor aqui se considera reproduzido); 1 (uma) balança de precisão. da marca/modelo BECKEN; 3 (três) embalagens de REDRATE. contendo no interior várias carteiras de pó - Produto habitualmente utilizado para o “corte” da Cocaína; Vários sacos de plástico transparente, sem “pontas”, usados no embalamento de estupefaciente, contendo resíduos de cocaína (cfr. exame toxicológico de 1951-1952, cujo teor aqui se considera reproduzido); 1 (um) rolo de sacos de plásticos transparentes: 2 (duas colheres) usadas para a dosagem do produto estupefaciente e 1 (uma) faca usada para a dosagem de produto estupefaciente. Na estante a quantia monetária de €1000,00 (mil) euros em notas de 20 euros do Banco Central Europeu.» (no 216 da Acusação) 16.º No mesmo dia 02.03.2022, na residência dos Arguidos AC e MC, onde esta se encontrava, foram apreendidas 58 (cinquenta e oito) embalagens de Cocaína equivalente a 62 doses de consumo e no closet do quarto do casal, foi apreendida a quantia monetária de €9.800,00 (nove mil e oitocentos) euros. 17.º No mesmo dia 02.03.2022, no interior do estabelecimento comercial denominado “Barbearia …” pertencente ao arguido MG, sita na Avenida…, em Lisboa, foram encontrados e apreendidos», para além do mais, no balcão, dentro de uma capa: - 1 (um) documento do Millenium BCP com indicação do NIB e IBAN de MG» (no 215 da Acusação) 18.º Assim, a acusação deduzida nos autos obedece aos requisitos legalmente exigíveis pela lei de processo pelo que não pode ser considerada nula. 19.º Ao considerar a Acusação nula a douta decisão impugnada, fez errada interpretação, desrespeitando o consignado no art.º 283.º do Código de Processo Penal, todo seu nº 3, mais concretamente alínea b). 20.º Deve, pois, ser revogada, sendo substituído por outra que considere que a Acusação não padece de Nulidade. 21.º Os factos imputados consubstanciam, a prática pelos arguidos MC e MG de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo disposto no artigo 21.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22/01, com referência às tabelas I-B, II-A, a este anexas, em co-autoria material com os Arguidos: AC BP DP e RS 22.º Os indícios são suficientes para os arguidos MC e MG serem pronunciados pela prática do imputado crime. 23.º Quanto à arguida MC a mesma vivia e encontrava-se na casa de Almada onde a cocaína foi apreendida, sendo certo que, pelo menos numa ocasião, esteve presente quando o seu companheiro, com quem compartilhava casa e cama procedeu a uma transacção. 24.º Por outro lado, os €9.800,00 (nove mil e oitocentos) euros aprendidos no quarto que compartilhavam, os carros em que o mesmo se deslocava de alta cilindrada, de matrículas recentes não são consentâneos com quem «faz biscates na construção civil». 25.º Quanto ao arguido MG a cocaína e os instrumentos utilizados para preparar, dividir e embalar o produto estupefaciente foram apreendidos na arrecadação do seu estabelecimento comercial de que tinha a disponibilidade e usava possuindo chaves. 26.º Este arguido deixava o seu padrasto aceder à arrecadação, mas a disponibilidade do espaço era sua, pois, pelo menos uma das vezes que o arguido AC foi ao espaço contactou-o previamente. 27.º O douto despacho recorrido fez errada interpretação do art.º 283.º do C.P.P., designadamente do n.º 3 al. b).. 28.º Efectivamente, o despacho de acusação não padece de nulidade. 29.º A prova dos factos imputados é bastante, consubstanciando os factos o imputado crime. 30.º Assim, deve ser revogado o despacho recorrido e substituído por outro que entenda: - não padecer a Acusação de Nulidade; - determinar o prosseguimento dos Autos; - determinar a prolação de despacho de pronúncia. 31.º O recurso deve ser julgado procedente e revogada a douta decisão recorrida. Julgando o recurso procedente Vossas Ex.as, farão, como sempre, A COSTUMADA JUSTIÇA!” Por existirem outros arguidos sujeitos a medida de coação privativa da liberdade, foi determinada a separação de processos, e o recurso admitido, com subida imediata, nos autos e efeito devolutivo. Os arguidos MC e MG apresentaram resposta, pugnando pela improcedência do recurso, sem formularem conclusões. * Uma vez remetido a este Tribunal, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, nos seguintes termos: “Nada obstando ao conhecimento do recurso, emite-se parecer no sentido da sua procedência, pois que se concorda com os fundamentos de facto e de Direito contidos nas alegações de recurso apresentada pelo MºPº da 1ª instância. Afigura-se-nos que a acusação deduzida contém todos os elementos essenciais constitutivos da descrição factual do crime e a imputação individualizada a cada um dos arguidos. Substância estupefaciente, quantias monetárias e objectos relacionados com a partição e pesagem da cocaína foram encontrados na residência da arguida MC e de seu filho arguido MG. Esta arguida MC, no dia 15.4.2021 terá acompanhado o seu marido arguido AC, quando este se encontrou com EA, que adquiriu substância estupefaciente. Quando se efectuou a transacção ambos se encontravam no interior da mesma viatura automóvel. Igualmente tais objectos foram encontrados na arrecadação e garagem do arguido MG, instalações a que o arguido e co-autor AC tinha acesso, onde se apurou que este acedeu no dia 12.7.2021 (na garagem) e no dia 2.3.2022 (na arrecadação), o que fez porque tal lhe foi permitido pelo MG. Pratica actos de execução, e é portanto co-autor e não encobridor, aquele que, numa actuação concertada com outros agentes da infracção, permite a guarda de produto estupefaciente, de quantias monetárias e de objectos relacionados com o tráfico, em espaço fechado por si controlado. Assim, afigura-se-nos que os arguidos MC e MG tomaram igualmente parte directa na execução do crime por que foram acusados, sendo certo que, para cometer integralmente o facto punível, não precisam de executar todos os factos correspondentes ao preceito incriminador. Subscreve-se por isso as alegações do MºPº da primeira instância e consequentemente se pugna pela procedência do recurso. no sentido da improcedência do recurso.” Proferido despacho liminar e colhidos os “vistos”, teve lugar a conferência. * II – Objeto do recurso De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do Supremo Tribunal de Justiça de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso, designadamente a verificação da existência dos vícios indicados no nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal. No caso, a questão trazida à apreciação deste Tribunal prende-se, em exclusivo, com a avaliação da factualidade descrita (ou não) na acusação deduzida relativamente aos arguidos MC e MG, de molde a concluir se a mesma é, ou não, suscetível de integrar o crime de tráfico de estupefacientes que lhes foi imputado e, por consequência, se tal acusação se mostra, ou não, ferida de nulidade. * III – Fundamentação Fixado o objeto do recurso e estando já transcritas, quer a decisão impugnada, quer as conclusões do recurso interposto, importa apreciar. A acusação constitui uma peça fundamental do processo penal, na medida em que fixa, tendencialmente de forma definitiva, o objeto do processo, encerrando a factualidade e também a incriminação de que o acusado terá de defender-se – e que, em princípio, deverá manter-se estável até ao fim do processo. Tendo em conta o teor da decisão recorrida, a questão a discutir no presente recurso prende-se com os requisitos de perfeição formal da acusação, não estando, pois, em causa a suficiência dos indícios que a sustentam (que não chegou a ser discutida pelo Tribunal a quo). Assim , no que respeita aos aspetos formais da acusação, de acordo com o previsto no artigo 283º, nº 3 do Código de Processo Penal, “A acusação contém, sob pena de nulidade: a) As indicações tendentes à identificação do arguido; b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada; c) As circunstâncias relevantes para a atenuação especial da pena que deve ser aplicada ao arguido ou para a dispensa da pena em que este deve ser condenado; d) A indicação das disposições legais aplicáveis; e) O rol com o máximo de 20 testemunhas, com a respetiva identificação, discriminando-se as que só devam depor sobre os aspetos referidos no n.º 2 do artigo 128.º, as quais não podem exceder o número de cinco; f) A indicação dos peritos e consultores técnicos a serem ouvidos em julgamento, com a respectiva identificação; g) A indicação de outras provas a produzir ou a requerer; h) A indicação do relatório social ou de informação dos serviços de reinserção social, quando o arguido seja menor, salvo quando não se mostre ainda junto e seja prescindível em função do superior interesse do menor; i) A data e assinatura.” (sublinhado nosso) De todos os requisitos enunciados, o mais importante (e também o mais delicado) é, sem dúvida, a narração dos factos suscetíveis de fundamentar a aplicação de uma pena ou medida de segurança ao arguido. Pronunciando-se sobre as exigências processuais reportadas à narração dos factos na acusação (e na pronúncia), considerou o Tribunal Constitucional, no Acórdão nº 674/99[1], que “estas mesmas exigências – no que se reporta à necessidade de uma narração dos factos penalmente censuráveis - podem ser mesmo vistas, para além do mais, como uma decorrência lógica do princípio da vinculação temática, já que só desse modo a acusação pode conter os limites fácticos a que fica adstrito o tribunal no decurso do processo (cfr. António Barreiros, Manual de Processo Penal, Universidade Lusíada, 1989, pág. 424). Ou seja, a narração dos factos que constituem os elementos do crime deve ser suficientemente clara e perceptível não apenas, por um lado, para que o arguido possa saber, com precisão, do que vem acusado, mas igualmente, por outro lado, para que o objecto do processo fique claramente definido e fixado. Significa isto que a acusação – e a pronúncia – deve conter, ainda que de forma sintética, a descrição dos factos de que o arguido é acusado, efectuada «descriminada e precisamente com relação a cada um dos actos constitutivos do crime», pelo que se hão-de mencionar «todos os elementos da infracção» e quais «os factos que o arguido realizou» (Luís Osório, Comentário ao Código de Processo Penal, 4º vol., Coimbra Editora, 1933, nota VII ao artigo 359º, pág. 494, e nota VIII ao artigo 366º, pág. 531), sendo perante este quadro e esta factualidade que o mesmo arguido deve elaborar a sua estratégia de defesa e que a acusação define e fixa o objecto do processo, limitando a actividade cognitiva e decisória do tribunal (cfr. Figueiredo Dias, ob. cit., págs. 144). Como sublinha António Leones Dantas (Os factos como matriz do objecto do processo, Revista do Ministério Público, nº 70, ano 18º, Abril/Junho 1997, págs. 111 e segs.), é essencial a descrição dos factos «que integram todos os elementos de algum crime», já que, «para que a acusação desempenhe a sua função processual – delimitando a factualidade de que o arguido é acusado – mostra-se necessário que a descrição nela feita evidencie de uma maneira precisa e imediatamente inteligível aquilo que é imputado ao arguido»; sendo este «o destinatário da acusação», «impõe-se que a entenda, para que face a ela possa organizar a sua defesa».” Explica, a propósito, João Conde Correia[2]: “§ 22 A narração dos factos é o ponto fulcral ou o coração (Gerhard Zuberbier, 1991, p. 87) da acusação (…). O facto, o acontecimento histórico, aquele «pedaço de vida», embora já irremediavelmente contaminado por uma determinada conceção jurídica (Michele Taruffo, 1992, pp. 74 e ss.), deve assim ser descrito do ponto de vista naturalístico, evitando conceitos conclusivos e qualificativos. Os juízos de valor e os conceitos de direito devem ser banidos do texto da acusação (João Conde Correia, 2007a, p. 112). (…) § 23 A narração há de ser lógica e cronológica e compreender os factos que sustentam a aplicação de uma pena (o seu quantum incluído) ou de uma medida de segurança ao arguido. Tudo o mais, ou seja, tudo aquilo que extravasa essa função processual, é supérfluo, devendo ser evitado. A acusação deve limitar-se apenas ao essencial. O relato deve ser, tanto quanto seja possível, conciso, uma redação coerente, compreensível, sem repetições, saltos lógicos ou figuras de estilo. Na velhinha síntese de Adélio Pereira André, «a acusação há de ser concisa, clara, rigorosa». Ela «não é nenhum “conto”. Nada, pois, de “floreados”, por belos que possam parecer literariamente» (1983, p. 20). De todo o modo, embora deva ser composta por frases curtas, gramaticalmente compostas por sujeito, predicado e complemento e conter uma mensagem clara e acessível a todos, a acusação não pode ser tão reduzida que não contenha informação nenhuma, impossibilitando a defesa do arguido (Raimund Brunner, 2006, p. 30).” Como assinala, ainda, este autor, “§ 24 Nesta tarefa de identificar e separar aquilo que é importante daquilo que é desnecessário, o tipo legal de crime em causa assume especial relevo. «Os tipos (…) são, de certa maneira, os óculos através dos quais o juiz, no posterior decurso da audiência, observa tudo. Aquilo que não pode ser visto através desses óculos é, para ele, irrelevante» (Joachim Hruschka, 1965, p. 23/4). A indicação dos elementos objetivo e subjetivo do tipo legal de crime constitui mesmo o núcleo essencial da descrição dos factos imprescindíveis à validade da acusação. Se faltar algum deles, a conduta descrita não constitui crime e a acusação não pode ser recebida (art.º 311.º/3/d). «Não basta a componente objetiva do comportamento do arguido, importa também que esse comportamento seja culpável e para tanto que o arguido tenha agido com vontade de praticar o ato ilícito e conscientemente desobedecido ao comando legal que lhe proibia a prática dos atos valorados pela norma como objetivamente ilícitos» (Germano Marques da Silva, 1994, p. 92). Por outras palavras, é imprescindível que se indique o dolo e a consciência da ilicitude (João Conde Correia, 2007a, p. 114). Tanto mais que, na fórmula do STJ, «a falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º» [ac. STJ/FJ 1/2015, 20.11.2014 (Artur Rodrigues da Costa)]. § 25 A indicação dos factos tem de ser exaustiva, devendo esgotar o objeto do processo. Por força dos princípios da indivisibilidade e da consunção «não será objeto do processo só o que consta do despacho de acusação (…) mas antes tudo o que, para além do factualismo versado naquele despacho, lá devesse constar e não conste» (Marques Ferreira, 1991, p. 223; no mesmo sentido, João Conde Correia, 2007a, p. 114; Maria João Antunes, 2016, p. 73). Será o caso paradigmático dos crimes de execução continuada (v.g. tráfico de estupefacientes: art.º 21.º Rjtcesp). Se esses factos não forem incluídos na acusação, jamais poderão ser depois considerados, integrando uma espécie de arquivamento implícito (supra, § 35 da anotação ao art.º 277.º). Os direitos de defesa do arguido não podem ser prejudicados pelo simples facto de o MP não ter investigado como devia ou, apesar de ter investigado, não ter considerado no devido momento (acusação) os factos que apurou. O cumprimento desta tarefa não se esgota com a indicação dos elementos objetivos e subjetivos do tipo legal de crime base. É necessário incluir os factos integrantes de eventuais agravantes (v.g. reincidência: art.º 75.º CP), atenuantes (v.g. art.º 72.º CP), de penas acessórias (v.g. proibição de conduzir veículos com motor: art.º 69.º CP) ou, mesmo, de outras consequências jurídicas do crime (v.g. perda de instrumentos, produtos e vantagens: art.ºs 109.º e ss. CP). § 26 Para além de enunciar o critério essencial à narração - «factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança» - o legislador concretizou determinadas coordenadas adjuvantes dessa missão. A narração deve incluir, «se possível, o lugar, o tempo e a motivação da prática dos factos, o grau de participação que a gente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada». As coordenadas, geográfica e histórica, são muito importantes. São elas que, geralmente, permitem individualizar aquele acontecimento histórico e diferenciá-lo de outro. O lugar é, em regra, o critério determinante da competência do tribunal (art.º 19.º/1) e o decurso de um certo lapso de tempo pode influir na punição (prescrição - art.º 118.º e ss. do CP, tempestividade da queixa - art.º 115.º/1 CP) ou sobre a medida da pena (atenuação especial da pena - art.º 72.º/2/d CP). A indicação do lugar e do tempo favorece, ainda, a tarefa da defesa. É mais fácil organizar a defesa contra um facto situado algures no tempo e no espaço. A motivação, o grau de participação e quaisquer outras circunstâncias relevantes para a determinação da sanção são, também, importantes coordenadas a considerar (João Conde Correia, 2007a, p. 116). § 27 A narração não deverá, assim, ser vaga quanto a elementos essenciais, como sejam o tempo e o lugar da prática dos factos (Mattocia c. Itália, n.º 23969/94, § 71, de 25.7.2000). Para que a acusação seja válida «não basta fazer uma afirmação conclusiva e genérica, concretizando-se um ou dois factos, há que descrevê-los; há que dizer quais os factos que justificam o comportamento reiterado ou contínuo, sob pena de se violar claramente o direito de defesa do arguido consagrado no art.º 32.º da CRP». Em suma, «na narração dos factos há que descrever o circunstancialismo de tempo, de modo e lugar capazes de caracterizar o crime (...) e não de forma conclusiva e genérica» (Artur Guimarães Ribeiro, 2006, p. 107; Vinício Ribeiro, 2011, p. 767; Eduardo Maia Costa, 2016, p. 950). (…) § 29 No caso da prova indiciária é, todavia, necessário narrar na acusação os «indícios» que permitem inferir o facto sub judicio. Apesar de não fundamentarem a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança ao arguido, também eles devem ser narrados na acusação e depois ser provados em julgamento. Com efeito, é pressuposto da prova indiciária «a demonstração do facto base ou indício que, num segundo momento faz despoletar no raciocínio do julgador uma regra da experiência, ou da ciência, que permite, num terceiro momento, inferir outro facto que será o facto sob julgamento» [ac. STJ, 7.4.2011 (Santos Cabral)]. Para que tenha valor probatório, ela «tem como requisito de teor formal o facto de da sentença deverem constar os factos-base e a sua prova» [ac. STJ, 26.1.2011 (Armindo Monteiro); na doutrina, Patrícia Silva Pereira, 2016, pp. 128/9]. Os indícios determinantes da condenação não podem passar como factos inócuos até aparecer subitamente na sentença como prova fatal, mediante uma inferência nunca antes realizada e sem possibilidade de contraditório pelo arguido (Francisco Pastor Alcoy, 2003, p. 163).” Em face do que fica dito quanto às características que deve revestir a narração dos factos a incluir na acusação, com as finalidades acima assinaladas, importa considerar o tipo de crime em causa, de modo a aferir se a descrição efetuada nos presentes autos cumpre, ou não, o necessário à respetiva validade. Ora, neste processo, o Ministério Público acusou todos os arguidos[3] da prática, em coautoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo disposto no artigo 21º, nº 1 do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro, com referência às tabelas I-B e II-A ao mesmo anexas. A disposição em apreço, recordamos, pune com pena de prisão de 4 a 12 anos, “Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40.º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III”. Em face desta descrição, considera Pedro Patto[4] que: “Estamos perante uma configuração típica de largo espectro, de tal modo que qualquer contacto ou proximidade com o produto estupefaciente permite, por si só, integrar por inteiro a tipicidade (é o que salienta, p. exemplo, o Ac. do STJ de 6.10.04, proc. N.º 04P1875, in www.dgsi.pt). As várias condutas (entre si numa relação de progressão, que vai do cultivo, ao fabrico, ao transporte e à venda) que integram o tipo são alternativas, de tal maneira que é indiferente que para a prática do crime se realize uma ou outra (é o que salienta, por exemplo, o Ac. do STJ de 29.10.08, proc. N.º 08P2691, in www.dgsi.pt).” Escreve, ainda, Pedro Patto[5], a propósito da qualificação de condutas como autoria ou cumplicidade, que “deve salientar-se que a descrição ampla do tipo de crime de tráfico de estupefacientes, que reflete um propósito de mais intensa e severa punição, tende a esbater tal distinção. Há condutas que, em relação a outros crimes, poderiam ser qualificadas como de cumplicidade e que essa descrição ampla do tipo equipara à autoria. (…) Para Luis Huidabro[6] (op. cit., pp. 165 e 166), um conceito extensivo e unitário de autor, para que parece apontar a descrição típica do crime de tráfico de estupefacientes, que não deixa espaço à distinção entre autoria e participação, seria contrário aos princípios do Estado de Direito e, por isso, impõe-se uma interpretação restritiva dessa descrição, de modo a evitar o tratamento indiferenciado das várias formas, mais ou menos decisivas ou acessórias, de intervenção no tráfico de estupefacientes. Afigura-se-me que se impõe, na verdade, esse tratamento diferenciado, na determinação da medida concreta da pena, mesmo quando a descrição do tipo conduz à qualificação como autoria de condutas que noutros âmbitos seriam qualificadas como cumplicidade. De qualquer modo, não está de modo algum excluída a figura da cumplicidade no âmbito do tráfico de estupefacientes, como tem sido orientação da jurisprudência. Qualquer tipo de intervenção no tráfico de estupefacientes (no limite, qualquer tipo de contacto com produtos estupefacientes) não configura necessariamente a autoria do crime. A respeito da co-autoria, a jurisprudência vem salientando a tese geralmente seguida de que a actividade do co-autor pode ser parcial, não tem de abranger todos os actos praticados em ordem à obtenção do resultado pretendido, desde que se verifique a consciência de cooperação no resultado comum (assim, por exemplo, os Acs. do STJ de 10.7.03, proc. N.º 03P3399; de 22.7.03, proc. N.º 03P3364; de 13.6.04, proc. N.º 04P1407; e o AC. do TRP de 5.11.08, proc. N.º 0814979, todos in www.dgsi.pt). A esta luz, e invocando geralmente a teoria clássica do “domínio do facto”, a jurisprudência portuguesa tem considerado co-autores: quem estava encarregue de prevenir a aproximação das autoridades policiais ao local, sendo certo que as transacções só se efectuavam depois de essa pessoa fazer um sinal gestual com a mão de que tudo estava controlado (Ac. do STJ de 9.2.94, in CJ-STJ, II, 1, p. 223); quem acede a acompanhar outros, num táxi, ao local combinado para receber heroína e transportar droga, enquanto outros dois seguem num carro particular, de onde vão telefonando assiduamente para essa pessoa, para ver se tudo decorre como combinado (Ac. do STJ de 22.7.03, proc. N.º 03P3364, in www.dgsi.pt) quem vigia e controla a fila da consumidores, enquanto outros vendem, e, por vezes, também vende, alternando com esses outros (Ac. do STJ de 27.6.02, proc. N.º 02P3211, in www.dgsi.pt); quem, a troco de mil euros, acompanhou o condutor de uma aeronave que transportou 270 kg de haxixe, carregou os fardos em questão e os retirou da aeronave, assim como o condutor de um automóvel que também transportou esse haxixe, só se apercebendo que se tratava desse produto depois de iniciar a condução e sem que se tenha provado o recebimento de contrapartidas (Ac. do STJ de 22.3.07, proc. N.º 0694808, in www.dgsi.pt); quem aluga um veículo utilizado para transportar droga (Ac. do STJ de 10.7.03, proc. N.º 03P3319, in www.dgsi.pt); quem recolhe e entrega dinheiro das vendas (Ac. do STJ de 26.2.04, proc. N.º 04P267, in www.dgsi.pt); ou a mulher que procedia, embora com subalternização ao marido, à preparação para venda da droga anteriormente adquirida (Ac. do STJ de 18.12.91, in BMJ N.º 412, p. 214). Na jurisprudência espanhola (ver Luis Huidabro, op. cit., p. 168) têm sido considerados co-autores: quem procede ao tipo de vigilância atrás descrito, quem atrai clientes, quem procura um lugar para colocar a droga, quem esconde a droga num veículo, assim como o mediador ou intermediário numa qualquer operação de venda. A jurisprudência portuguesa considerou cúmplices: a companheira de outro arguido que se limita a contar o dinheiro produto das vendas (Ac. do STJ de 22.7.03, proc. N.º 03P3364, in www.dgsi.pt); quem colabora na recepção da droga pelo “traficante” com a intenção de obter uma porção para seu consumo (Acs. do STJ de 7.6.95, proc. N.º 046334, in www.dgsi.pt; e de 25.10.90, in BMJ n.º 400, p. 345); ou quem atende chamadas e anota os locais de encontro e os recados relacionados com o tráfico e acompanha, por vezes, o “traficante” nas entregas, assim lhe proporcionando uma protecção acrescida (Ac. do TRP de 9.2.09, proc. N.º 0847917, in www.dgsi.pt). Na jurisprudência espanhola (ver Luis Huidabro, op. cit., p.180), têm sido considerados cúmplices: quem autoriza reuniões relacionadas com o tráfico no seu domicílio para não serem levantadas suspeitas, quem oculta uma pequena quantidade de droga traficada pela filha, quem indica aos compradores o local onde a droga se vende, quem efectua operações auxiliares numa descarga de droga, quem tem a função de mensageiro, de tradutor ou de condutor de um automóvel, ou quem pratica actos auxiliares, esporádicos e de escassa utilidade. E. Maia Costa (in “O direito penal…”, cit., pp. 93 e 94) considera que não integra a prática de um crime de tráfico de estupefacientes, mas um crime de favorecimento pessoal, previsto e punido pelo art.º 367.º, n.º 1, do Código Penal (não punível nos termos do n.º 5 desse mesmo artigo), a conduta de familiares do arguido que escondem um produto estupefaciente visando proteger esse arguido, e não para difundir ou ceder a droga, e vindo a polícia a apreender esse produto em poder deles (ver, também neste sentido, Vítor Paiva[7], op. cit., p. 142). O bem jurídico protegido (a saúde pública) não justificará, nestes casos, a punição como crime de tráfico de estupefacientes. Afigura-se-me, porém, que a descrição do tipo abrange este tipo de situações. A amplitude dessa descrição, tal como trata como consumação e autoria situações que no âmbito de outros crimes poderiam configurar simples tentativa ou cumplicidade, também leva a incluir situações que no âmbito de outros crimes configurariam um auxílio material ao criminoso. E não pode dizer-se que a protecção do bem jurídico não justifica, nestes casos, a punição. Ainda que os familiares ou “protectores” do proprietário da droga não pretendam difundi-la, o perigo dessa difusão por outros só estaria afastado se a destruíssem (caso em que, na verdade, já não se justificaria a punição).” Assim, em resumo de tudo o que se deixou exposto, pode dizer-se que a acusação deve conter a narração que justifica a aplicação de uma pena ou medida de segurança ao(s) arguido(s), no sentido de que, a provar-se tudo o que da mesma consta, conduzirá inevitavelmente à respetiva condenação, sem se perder de vista que a descrição típica do crime de tráfico de estupefacientes permite múltiplas formas de execução. Como exemplarmente se expõe no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007[8], que citamos por todos os que se vêm debruçando, de modo uniforme, sobre o tema: «A previsão legal do artigo 21º do DL 15/93, de 22-01, a exemplo do “antecessor” artigo 27º do Decreto-Lei nº 480/83, de 13-12, contem a descrição da respectiva factualidade típica, de maneira alargada, contendo o tipo fundamental, matricial. Trata-se de um tipo plural, com actividade típica ampla e diversificada, abrangendo desde a fase inicial do cultivo, produção, fabrico, extracção ou preparação dos produtos ou substâncias até ao seu lançamento no mercado consumidor, passando pelos outros elos do circuito, mas em que todos os actos têm entre si um denominador comum, que é exactamente a sua aptidão para colocar em perigo os bens e os interesses protegidos com a incriminação. Não importa ao preenchimento deste tipo legal a intenção específica do agente, os seus motivos ou fins a que se propõe; o conhecimento do fim apenas pode interessar para efeitos de determinação da ilicitude do facto. O tráfico de estupefacientes tem sido englobado na categoria do “crime exaurido”, “crime de empreendimento” ou “crime excutido”, que se vem caracterizando como um ilícito penal que fica perfeito com o preenchimento de um único acto conducente ao resultado previsto no tipo. A consumação verifica-se com a comissão de um só acto de execução, ainda que sem se chegar à realização completa e integral do tipo legal pretendido pelo agente.” Assim, para apreciação da questão trazida aos autos, importa ter presente o teor da acusação deduzida pelo Ministério Público, no que se refere aos arguidos aqui em causa. Da mesma consta (transcrevemos): “1. Desde, pelo menos, Janeiro de 2021, data em que chegou ao conhecimento das autoridades policiais a actividade levada a cabo pelos arguidos AC e BP, que estes acordaram entre si, de forma organizada e com regularidade, e em conjunto e em comunhão de esforços, proceder à aquisição e venda de cocaína e de MDMA a terceiros, com vista à obtenção de lucro. 2. Para tanto, elaboraram um plano que consistia em proceder à distribuição de cocaína e de MDMA a indivíduos que os contactavam telefonicamente com esse propósito, 3. deslocando-se, em viaturas, para ir ao encontro dos clientes/consumidores para lhes entregar as embalagens de estupefaciente encomendadas, na zona de Lisboa. 4. A maioria das transacções/vendas/entregas dos referidos produtos eram realizadas pelo arguido AC, sendo antecedidas de breves contactos telefónicos com os seus clientes, nas quais agendavam encontros pessoais para concretizarem as transacções de estupefaciente e o pagamento das mesmas. (…) 12. Esta actividade levada a cabo pelos arguidos AC e BP era do conhecimento da arguida MC, que aderiu ao plano referido, fazendo-o seu, sendo que por vezes acompanhava o arguido AC nos encontros tendentes à transacção de cocaína e de MDMA (o que sucedeu nos dias 15.04.2021 e 19.01.2022). 13. No decorrer da referida actividade, os arguidos guardavam as aludidas substâncias e quantias monetárias e objectos procedentes da venda de cocaína e de MDMA não só no interior das suas residências, sitas, respectivamente, na Rua …, em Almada (habitação dos arguidos AC e MC), Estrada …, Lisboa (habitação do arguido MG), Rua …, em Lisboa (habitação do arguido BP) como também no interior da garagem/arrecadação n.º… sita na Rua …, em Lisboa, para que não fossem surpreendidos na posse de relevantes quantidades de cocaína e de MDMA e relacionados com a actividade de tráfico de estupefacientes. (…) 95. No dia 15.04.2021, pelas 13h05, o arguido AC, fazendo-se acompanhar pela arguida MC, saiu da sua residência sita na Rua …, em Almada, na viatura “BMW série 5”, de matrícula … e deslocou-se à Rua …, na mesma cidade, para ir ao encontro de EA (utilizador do cartão telefónico com o n.º xxxxxx), conforme combinado, para lhe entregar cocaína. 96. Ali chegado, EA saiu do n.º … da Rua … e dirigiu-se à viatura conduzida por AC. 97. Após, pela janela do condutor, EA recebeu do arguido AC embalagens de cocaína, tendo-lhe entregue, em troca, a respectiva quantia monetária. 98. Após esta transação, o arguido AC, seguiu em direcção à Avenida …, em Lisboa, onde veio a parar a viatura junto ao n.º … (junto à barbearia denominada “…”). 99. Neste local, a arguida MC saiu da viatura e deslocou-se para o referido estabelecimento. 100. De seguida, pelas 13h33, o arguido AC reiniciou a marcha do veículo e dirigiu-o até à Rua …, onde acedeu a uma garagem localizada no nº … desta artéria. 101. Volvidos cerca de cinco minutos, pelas 13h38, o arguido AC abandonou a referida garagem, na viatura “BMW Série 5”, de matrícula …, e deslocou-se novamente para o n.º … da Avenida …, onde recolheu a sua esposa a arguida MC, tendo seguido em direcção à Praça …. (…) 120. Pelas 13h30 [do dia 12.07.2021], o arguido AC entrou na residência sita na Estrada …, em Lisboa, dali saindo, cerca de 10 minutos depois, transportando na mão um saco de plástico de grandes dimensões que guardou no veículo de matrícula … de marca e modelo “VW Polo”. 121. De seguida, o arguido AC reiniciou marcha no aludido veículo e encaminhou-se para a Rua …, acedendo à garagem localizada no nº … da referida artéria. 122. Esta garagem pertence ao n.º … da Avenida …, em Lisboa, prédio onde funciona a “Barbearia …”, pertencente ao seu enteado, o arguido MG. 123. Volvidos cerca de cinco minutos, o arguido AC abandonou a referida garagem (na viatura de marca VW Polo, de cor cinzenta e matrícula …) tomando a direcção da Rua …. (…) 184. No dia 19.01.2022, pelas 12h20, o arguido AC, conduzindo a viatura “Renault Clio”, de matrícula …, na companhia da arguida MC, deslocou-se e entrou na residência do arguido BP, sita na Rua …, Lisboa, onde permaneceu, por cerca de 5 minutos, enquanto que a arguida permaneceu no interior do veículo. 185. Após, sair daquela habitação e aceder ao interior da sua viatura, o arguido AC abandonou o local, na companhia da sua esposa, a arguida MC. 186. Depois de abandonar o local, os arguidos deslocaram-se à habitação sita na Estrada …, em Lisboa, residência do filho da arguida MC, o arguido MG, tendo ali permanecido por vários minutos. 187. Pelas 13h00, os arguidos AC e MC abandonaram a habitação e regressam à viatura Renault Clio (…), tendo iniciado marcha em direcção ao centro da cidade de Lisboa, mais concretamente, em direcção à Praça …. 188. Posteriormente, AC deixou a arguida MC junto ao estabelecimento comercial denominado “…”, onde esta saiu, apeada, tendo seguido a sua marcha, no interior da viatura. (…) 195. Pelas 16h04, fazendo uso do aparelho telefónico acima referido, o arguido AC estabeleceu conversação telefónica com o arguido MG informando-o de que se deslocaria à arrecadação n.º … da Rua …, em Lisboa, sob o pretexto de lá deixar uma “máquina de barbear”. 196. Assim, pelas 17h15 deste dia, fazendo-se transportar no veículo de marca e modelo “Renault Clio”, de matrícula …, o arguido AC acedeu a esta arrecadação, tendo dali saído, cerca de 5 m depois. (…) 205. Nesse momento [pelas 19h35 do dia 02.03.2022], estes arguidos [AC e BP] foram abordados e revistados por Agentes da P.S.P. 206. Na posse do arguido AC foi encontrada e apreendida: -Na mão direita: -A quantia monetária de €150,00 (cento e cinquenta euros) em notas emitidas pelo Banco Central Europeu; No interior do bolso da camisa que trajava: -A quantia monetária de €500,00 (quinhentos euros) em notas emitidas pelo Banco Central Europeu; No interior do bolso da frente das calças que trajava: - A quantia monetária de €50,00 (cinquenta euros) em notas emitidas pelo Banco Central Europeu. 207. No interior da viatura de marca e modelo “Renault Clio”, de matrícula … foram encontrados e apreendidos: No interior da viatura: Uma bolsa de pequenas dimensões de marca “Original Lanyards”, de cor castanho e preto, contendo no seu interior: i. - 21 (vinte e uma) embalagens de Cocaína (cloridrato), com o peso líquido de 19,976gramas, produto este que apresentava um grau de pureza de 43,3%, sendo o equivalente a 43 doses de consumo (cfr. exame toxicológico de fls.1937, cujo teor aqui se considera reproduzido); - Um telemóvel de marca “Samsung”, modelo A50 de cor azul (IMEI-1 … e IMEI-2 …); - Um porta-chaves, com: - Um comando de garagem que permitia o acesso à garagem sita na Rua … Lisboa; - Uma chave da arrecadação n.º … da Rua … Lisboa); - Duas chaves – pertencente ao armário localizado no interior da arrecadação, onde se encontrava a cocaína. (…) 211. Assim, pelas 19h45 [de 02.03.2022], na residência sita na Rua …, em Almada e habitação do arguido AC, onde se encontrava a sua esposa, a arguida MC, foram encontrados e apreendidos: Em cima da bancada a cozinha: - 01 (um) telemóvel de marca “Iphone”, modelo 10, com o IMEI …, com a respectiva capa de protecção; Numa mesa de apoio, no hall de entrada: - 01 (uma) chave da viatura de marca “Mercedes”, modelo C63, com a matrícula …; No quarto do R/C: - Na mesa-de-cabeceira: a. - 58 (cinquenta e oito) embalagens de Cocaína (cloridrato), com o peso líquido de 54,442 gramas, produto este que apresentava um grau de pureza de 23,0%, sendo o equivalente a 62 doses de consumo (cfr. exame toxicológico de fls.1935, cujo teor aqui se considera reproduzido); b. - Vários pedaços de sacos plásticos translucido, próprios para o embalamento de produto estupefaciente; No closet da suite do 1.º andar (quarto dos arguidos AC e MC): Dentro de uma gaveta: c. - a quantia monetária de €7.000,00 (sete mil euros), subdividido em 2 notas de 100€, 28 notas de 50€ e 270 notas de €20, todas do Banco Central Europeu; d. - a quantia monetária de €2.000,00 (dois mil euros), subdividido em 1 notas de 100€, 5 notas de 50€, 82 notas de €20 e 1 nota de €10, todas do Banco Central Europeu; Dentro de uma gaveta - a quantia monetária de €300,00 (trezentos euros), subdividido em 15 notas de €20, todas do Banco Central Europeu; Numa prateleira: e. - a quantia monetária de €500,00 (Quinhentos euros), subdividido em 23 notas de €20 e 4 notas de €10, todas do Banco Central Europeu; 212. Pelas 19h40, na residência sita na Estrada …, em Lisboa, habitação do arguido MG e utilizada pelo arguido AC, foram encontrados e apreendidos: Na sala de estar: Em cima do sofá: a. - um telemóvel de marca Iphone, modelo 12 mini, com os imeis … e …; No quarto do arguido MG: No interior de uma gaveta da cómoda: i. - a quantia monetária de €1.895,00 (mil oitocentos e noventa e cinco euros) em notas emitidas pelo BCE; Em cima da cómoda: ii. - 2 (duas) chaves da viatura Mercedes, de matrícula …; iii. - 1 (um) comando da garagem, sita na Rua … em Lisboa; iv. - 1 (uma) chave da arrecadação, sita na Rua … em Lisboa. (…) 215. No interior do estabelecimento comercial denominado “…” pertencente ao arguido MG, sita na Avenida … em Lisboa, foram encontrados e apreendidos: No balcão: Dentro de uma capa: i. - 1 (um) documento do Millenium BCP com indicação do NIB e IBAN de MG; ii. - 1(um) documento comprovativo da declaração de início/reinício de actividade, em nome de MG; iii. - 1(um) contrato de prestação de serviço da EDP em nome de MG (com contacto e-mail de AC). Talões impressos do sistema de facturação: iv. - 1(um) extrato do estabelecimento “…” de valores dos operadores de 01/01/2022 até 02/03/2022; (Folha de suporte n.º1) v. - 1(um) extrato do estabelecimento “…” de valores dos operadores de 01/01/2021 até 02/03/2022; vi. - 1(uma) fatura simplificada do estabelecimento “…”; 216. Na garagem e arrecadação n.º … da Rua …, em Lisboa, pertencente ao arguido MG e utilizada pelo arguido AC, foram encontrados e apreendidos: Na arrecadação: Dentro de um armário, parte inferior: i. - 1 (uma) embalagem de Cocaína (cloridrato), com o peso líquido de 363,600 gramas, produto este que apresentava um grau de pureza de 73,4%, sendo o equivalente a 1334 doses de consumo (cfr. exame toxicológico de 1951-1952, cujo teor aqui se considera reproduzido); Dentro de um armário, parte superior: b. 1 (uma) balança de precisão com resíduos de cocaína, da marca/modelo Kooltech, (cfr. exame toxicológico de 1951-1952, cujo teor aqui se considera reproduzido); c. 1 (uma) balança de precisão, da marca/modelo Becken; d. 3 (três) embalagens de Redrate, contendo no interior várias carteiras de pó – Produto habitualmente utilizado para o “corte” da Cocaína; e. Vários sacos de plástico transparente, sem “pontas”, usados no embalamento de estupefaciente, contendo resíduos de cocaína (cfr. exame toxicológico de 1951-1952, cujo teor aqui se considera reproduzido); f. 1 (um) rolo de sacos de plásticos transparentes; g. 2 (duas colheres) usadas para a dosagem do produto estupefaciente e h. 1 (uma) faca usada para a dosagem de produto estupefaciente. Na estante: i. - a quantia monetária de €1000,00 (mil) euros em notas de 20 euros do Banco Central Europeu. (…) 220. As embalagens de cocaína apreendidas aos arguidos neste dia 02.03.2022 eram em tudo semelhantes às entregues pelos arguidos, nos dias acima referidos, aos indivíduos, conforme descrito. 221. Os arguidos agiram em conjugação de esforços e vontades entre si, em execução de plano comum para a distribuição e venda de cocaína e de MDMA a consumidores para obtenção de lucro. 222. Os arguidos conheciam as características e natureza estupefaciente dos produtos apreendidos, destinando-os à venda a terceiros, mediante contrapartida monetária. 223. Os arguidos sabiam que a aquisição, detenção e comercialização de produtos estupefacientes é criminalmente punida por lei. 224. As balanças de precisão, os sacos de plástico, o rolo de sacos de plástico, as colheres e a faca apreendidas eram utilizados pelos arguidos para pesar, embalar e dosear as substâncias que transacionavam. 225. As quantias monetárias e objectos apreendidos aos arguidos tinham sido obtidos com os proventos resultantes de transacções de cocaína e de MDMA. 225.O Redrate apreendido era utilizado pelos arguidos no “corte” da cocaína que comercializavam com vista a aumentar o número de doses obtidas, aumentando, assim, o seu peso e o consequente lucro obtido com a sua comercialização. 226. Os telemóveis e cartões telefónicos apreendidos aos arguidos eram por estes usados nos contactos necessários à comercialização dos referidos produtos e tinham sido adquiridos com proventos daí resultantes. 227. As viaturas apreendidas eram usadas pelos arguidos no transporte da cocaína e do MDMA que transaccionavam. 228. Agiram, assim, os arguidos, de forma livre, voluntária e conscientemente, e em concertação de esforços e intentos, bem sabendo que a sua conduta era criminalmente punida por lei.” Posto isto, mantendo presente que, como resulta do que acima se deixou dito, “os «factos» que constituem o «objecto do processo» têm que ter a concretude suficiente para poderem ser contraditados e deles se poder defender o arguido e, sequentemente, a serem sujeitos a prova idónea[9]”[10]. Sendo que, neste sentido, se subscreve, também, o sustentado no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 21.05.2018[11], no qual se lê: “Do que vem de se expor, decorre a imperatividade de a acusação conter a descrição, de forma escorreita, clara e inequívoca, de todos os factos de que o arguido é acusado, sem imprecisões ou referências vagas. Como refere Maia Costa[12], «a narração dos factos deverá ser tanto quanto possível concreta, em termos de tempo e lugar e, havendo vários agentes, quanto à intervenção particular de cada um, sendo irrelevantes imputações genéricas ou coletivas, a não ser como enquadramento de factos devidamente individualizados». Em caso de pluralidade de agentes, a acusação deve proceder à imputação da factualidade típica a cada um dos arguidos, de forma a conter os factos que fundamentam a aplicação da respetiva pena. Tratando-se de coautoria, a acusação deve descrever, com maior ou menor individualização, em função do que se revelar possível, a participação de cada agente e imputar a todos uma atuação conjunta, que dá execução a um acordo, expresso ou tácito.” Há, agora, que proceder à análise da acima transcrita acusação, na medida em que a mesma se reporta aos arguidos aqui em causa. Tem de dizer-se, porque inevitável, que a acusação não é uma peça escorreita, nem está redigida de forma clara ou isenta de excessos: amiúde se confundem factos com elementos de prova, não faltando sequer o relatório toxicológico que se dá como reproduzido. Não é, pois, uma peça «enxuta», e isso dificulta, naturalmente, a sua análise e apreciação. Ainda assim, em meio a todos os factos inócuos ou vagos, vemos que na mesma se refere que: A. A arguida MC: - é casada com o arguido AC (identificado em múltiplos atos de venda/cedência de estupefacientes, que também transportou e guardou); - acompanhou aquele arguido, pelo menos, numa ocasião em que este procedeu à entrega de cocaína a um consumidor (em 15.04.2021, pelas 13h05, na Rua A…, em Almada); - tinha conhecimento da atividade desenvolvida por AC e BP e «aderiu ao plano» destes arguidos; - na residência partilhada por esta arguida e por AC foi apreendida cocaína com o peso líquido de 54,442 gramas, com um grau de pureza de 23,0%, e €9.800,00 em numerário (quantia que se encontrava no closet do quarto do casal); B. O arguido MG: - assentiu a que o arguido AC guardasse estupefacientes e outros artigos relacionados com o tráfico de estupefacientes na sua arrecadação, onde foi apreendida cocaína com o peso líquido de 363,600 gramas, com um grau de pureza de 73,4%, duas balanças de precisão, três embalagens de «Redrate» e utensílios utilizados no acondicionamento de estupefacientes; E, quanto a ambos os arguidos – como quanto aos demais, que não estão aqui em causa – também se disse que: «agiram em conjugação de esforços e vontades entre si, em execução de plano comum para distribuição e venda de cocaína e MDMA a consumidores», que «conheciam as características e natureza estupefaciente dos produtos apreendidos, destinando-os à venda a terceiros», que «sabiam que a aquisição, detenção e comercialização de produtos estupefacientes é criminalmente punida por lei», e, finalmente, que agiram «de forma livre, voluntária e conscientemente, e em concertação de esforços e intentos, bem sabendo que a sua conduta era criminalmente punida por lei». Não ajuda à clareza da exposição que se tenha recorrido a frases estereotipadas, mas não pode recusar-se que as mesmas tenham conteúdo factual, quando relacionadas com os atos concretos que se identificaram. No caso do arguido MG, o facto de se ter dito que proporcionou ao arguido AC o uso da sua arrecadação para a guarda de estupefacientes e utensílios associados à atividade de distribuição de droga, aliado à afirmação de que sabia da atividade que ali era desenvolvida e que quis participar na mesma, já é bastante para se considerar tal conduta abrangida na descrição típica do crime de tráfico de estupefacientes, com as características que acima se deixaram descritas. Também no que se refere à arguida MC, dizer-se que acompanhou o arguido AC, pelo menos, numa entrega de droga, e que na sua residência era guardada cocaína destinada à venda a terceiros, bem como elevadas quantias em dinheiro provenientes dessa venda, associado à afirmação de que a arguida conhecia aquela atividade, que quis nela participar e da mesma auferir proventos, corresponde, também, a uma forma de participação no crime de tráfico de estupefacientes. Em consequência, pese embora se deva reconhecer que não está descrita extensa atividade no que se refere a estes dois arguidos, ainda assim, estão referidos atos concretos que são suscetíveis de integrar o ilícito criminal tido em vista. Ou seja, a imputação concreta não está ausente. Pode acontecer que os autos não contenham «indícios suficientes» da prática de tais factos por estes arguidos – nomeadamente no que se refere ao conhecimento da atividade e vontade de participar na mesma – mas essa apreciação só poderá fazer-se no quadro da instrução que foi requerida e que supõe a atividade de comprovação da decisão de acusar, a desenvolver pelo Juiz de Instrução, o que ainda não foi feito. Note-se que, tal como sustenta João Conde Correia[13], “§ 57 A falta das indicações tendentes à identificação do arguido, da narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, da indicação das disposições legais aplicáveis, do rol de testemunhas, dos peritos e consultores técnicos a serem ouvidos em julgamento, da indicação de outras provas a produzir ou a requerer, da indicação do relatório social ou de informação dos serviços de reinserção social, quando o arguido seja menor ou da data e da assinatura constitui nulidade. Os efeitos precários que o ato processual penal inválido provocar podem ser destruídos e a legalidade adjetiva reposta [art.º 122.º; ac. RG, 2.7.2018 (Fernando Pina); ac. RE, 10.4.2018 (Gomes de Sousa); ac. RP, 7.2.2018 (Francisco Mota Ribeiro); ac. RG, 20.1.2014 (João Lee Ferreira)]. Em causa está uma invalidade atípica (Rodrigo Santiago, 1995, p. 138; Idem, 2010, p. 1127; Eduardo Maia Costa, 2016, p. 951; supra §§ 55 e 56 da anotação ao art.119.º), uma vez que embora deva ser arguida, pode ser, igualmente, conhecida, ex officio, no momento aqui é recebida acusação. As regras para a sua arguição e conhecimento diferem do regime geral. Podendo o juiz conhecer a invalidade da acusação (art. 311.º/2/a/3/a/b/c), também os demais interessados a podem suscitar. (…) § 61 Tratamento processual diferente merecem aqueles casos em que os factos descritos na acusação, apesar de esgotarem o objeto do inquérito, são insuficientes para fundamentar a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança ao(s) arguido(s). Em vez de um vício da narração, que torna a acusação inválida (n.º 3/b e art.º 311.º/3/b), está em causa uma conduta que não constitui crime (art.º 311.º/3/d), conduzindo ao arquivamento definitivo do processo. Na primeira situação, trata-se de um error in procedendo, que poderá ser corrigido mediante a renovação da acusação (art.º 122.º/2); na segunda situação, trata-se de um error in iudicando, uma vez que os factos indiciados são do ponto de vista jurídico-penal irrelevantes: o MP narrou-os corretamente, mas errou no seu valor jurídico.” E coisa diversa, ainda, é a acusação poder vir a ser julgada improcedente, por falta de prova que a sustente. Não obstante, quando do texto acusatório possa extrair-se a descrição de uma conduta enquadrável no crime imputado, não pode concluir-se pela nulidade da acusação por falta de narração de factos concretos, mesmo que – como sucede no crime de tráfico de estupefacientes – eles não correspondam à totalidade das ações que preenchem o tipo. Em suma, tem de concluir-se pela procedência do recurso interposto pelo Ministério Público, devendo a decisão recorrida ser substituída por outra que, declarando aberta a instrução, proceda à análise dos indícios recolhidos, em ordem a pronunciar, ou não, os arguidos pelo crime por que foram acusados. * IV – Decisão Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente o recurso, revogando a decisão recorrida, que deve ser substituída por outra que declare aberta a instrução, seguindo-se os ulteriores termos inerentes a tal fase processual. Sem custas. * Lisboa, 07 de fevereiro de 2023 Sandra Oliveira Pinto Mafalda Sequinho dos Santos Capitolina Fernandes Rosa _______________________________________________________ [1] De 15.12.1999, Relator: Conselheiro Luís Nunes de Almeida, acessível em www.tribunalconstitucional.pt. [2] Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo III, Almedina, 2021, págs. 1148-1152. [3] Além dos arguidos MC e MG, também os arguidos AC, BP, DP e RS. [4] In Comentário das Leis Penais Extravagantes, org. Paulo Pinto de Albuquerque/José Branco, Vol. 2, Universidade Católica Editora, 2011, pág. 487. [5] Ob. cit., págs. 492-494. [6] Luis Fernando Rey Huidabro, El Delito de Tráfico de Drogas – Aspectos Penales e Processales, Valência, Tirant la Blanch, 1999. [7] Vítor Paiva, “Breves notas sobre a penalização do pequeno tráfico de estupefacientes”, RMP, n.º 99. [8] No processo nº 07P3406, Relator: Conselheiro Raul Borges, acessível em www.dgsi.pt. [9] Assim, concluiu o STJ no Ac. de 17-06-2004 (04P908 - Santos Carvalho): «Não são “factos” susceptíveis de sustentar uma condenação penal as imputações genéricas, em que não se indica o lugar, nem o tempo, nem a motivação, nem o grau de participação, nem as circunstâncias relevantes, mas um conjunto fáctico não concretizado (“procediam à venda de produtos estupefacientes”, “essas vendas eram feitas por todos e qualquer um dos arguidos”, “a um número indeterminado de pessoas consumidoras de heroína e cocaína”, utilizavam também “correios”, “utilizavam também crianças”, etc.). As afirmações genéricas, contidas no elenco desses “factos” provados do acórdão recorrido, não são susceptíveis de contradita, pois não se sabe em que locais os citados arguidos venderam os estupefacientes, quando o fizeram, a quem, o que foi efectivamente vendido, se era mesmo heroína ou cocaína, etc. Por isso, a aceitação dessas afirmações como “factos” inviabiliza o direito de defesa que aos mesmos assiste e, assim, constitui uma grave ofensa aos direitos constitucionais previstos no art.º 32º da Constituição.». Ou no Ac. de 2-07-2008 (07P3861 - Raul Borges): «Esta imprecisão da matéria de facto provada colide com o direito ao contraditório, enquanto parte integrante do direito de defesa do arguido, constitucionalmente consagrado, traduzindo aquela uma mera imputação genérica, que a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem entendido ser insusceptível de sustentar uma condenação penal – cf. Acs. de 06-05-2004, Proc. n.º 908/04 - 5.ª, de 04-05-2005, Proc. n.º 889/05, de 07-12-2005, Proc. n.º 2945/05, de 06-07-2006, Proc. n.º 1924/06 - 5.ª, de 14-09-2006, Proc. n.º 2421/06 - 5.ª, de 24-01-2007, Proc. n.º 3647/06 - 3.ª, de 21-02-2007, Procs. n.ºs 4341/06 - 3.ª e 3932/06 - 3.ª, de 16-05-2007, Proc. n.º 1239/07 - 3.ª, de 15-11-2007 Proc. n.º 3236/07 - 5.ª, e de 02-04-2008, Proc. n.º 4197/07 - 3.ª.». [10] Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 09.01.2017, no processo nº 628/11.3TABCL.G1, Relatora: Desembargadora Ausenda Gonçalves, disponível em www.dgsi.pt. [11] No processo nº 272/15.6GCBGC.G1, Relator: Desembargador Jorge Bispo, acessível em www.dgsi.pt. [12] Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, pág. 992. [13] Op. cit., págs. 1163-1164. |