Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1124/21.6PARGR.L1-3
Relator: CRISTINA ALMEIDA E SOUSA
Descritores: ABERTURA DE INSTRUÇÃO
REQUERIMENTO
REQUISITOS
DOLO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/21/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: 1. É legalmente inadmissível a instrução cujo requerimento da sua abertura não contenha a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, pois, os elementos objetivos e os elementos subjetivos do crime imputado.
2. De acordo com a norma incriminadora contida no art. 365º nº 1 do CP, são elementos constitutivos do crime de denúncia caluniosa, do ponto de vista objectivo, um comportamento exterior que se traduza em denunciar ou lançar suspeita, por qualquer meio, com recurso à linguagem oral ou escrita, de factos, susceptíveis de criar, ou reforçar a suspeita da prática de um acto ilícito, um sujeito passivo, uma pessoa determinada concretamente identificada (ou identificável) a cuja autoria é atribuída a acção qualificável como crime, o objecto da conduta que é integrado por factos idóneos para provocarem perseguição criminal, os destinatários da acção: a denúncia ou a suspeita serão feitas perante autoridade policial, judiciária ou publicamente.
3. O nexo de imputação subjectiva é feito exclusivamente com base no dolo, revelado pela consciência da falsidade da imputação e pela intenção de que seja instaurado procedimento criminal contra o sujeito passivo.
4. E, dolo qualificado por duas exigências cumulativas: por um lado, o agente terá de actuar “com consciência da falsidade da imputação”; por outro lado e complementarmente, terá de o fazer “com intenção de que contra ela se instaure procedimento” (Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, Coimbra Editora 2001, pág. 548 § 66).
5. Ora, os factos 1 a 18 do requerimento de abertura da instrução preenchem de pleno os elementos constitutivos, objectivos e subjectivos do crime de denúncia caluniosa, p. e p. pelo art. 365º nº 1 do Código Penal.
6. Todos esses factos são perfeitamente aptos à decisão de submeter o processo a julgamento.
7. Ponto é que deles venham a resultar indícios geradores de uma probabilidade séria de, em fase do julgamento e discussão da causa, determinarem a condenação dos arguidos pelos crimes imputados.
8. Mas só a realização da instrução poderá esclarecer se os factos alegados no requerimento de abertura da instrução resultam ou não indiciados.
9. A decisão recorrida ao considerar a omissão na narração dos factos potencialmente subsumíveis ao crime de denúncia caluniosa, como fundamento da rejeição da instrução fez, salvo melhor opinião, uma interpretação que não tem correspondência, nem na letra do art. 287º nº 2 do CPP, nem no texto do requerimento de abertura da instrução e, por isso, não pode manter-se.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO
Por decisão proferida em ... de ... de 2024, no âmbito da instrução nº 1124/21.6... do Juízo de Instrução Criminal de ... do Tribunal Judicial da Comarca dos Açores foi rejeitado o requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente AA, por inadmissibilidade legal (art. 287º/ 3 in fine do CPP).
O assistente interpôs recurso desta decisão, tendo, para o efeito, formulado as seguintes conclusões:
I. O requerimento de abertura de instrução apresentado pelo recorrente cumpre com todos os requisitos legais, nomeadamente aqueles constantes do n.º 2 do artigo 287.º do CPP, pelo que o mesmo deveria ter sido admitido pelo Tribunal recorrido.
II. Ao rejeitar liminarmente o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo recorrente, o Tribunal recorrido violou o disposto no artigo 287.º, n.º 3, do CPP, porquanto a instrução não só é admissível no presente caso, como foi requerida por quem tem legitimidade para o fazer, o assistente/recorrente face a uma decisão de arquivamento por parte do Ministério Público, de forma tempestiva, alegando a matéria de facto e de direito que justifica a prolacção de despacho de pronúncia a final e, também, a prova, já produzida e a produzir em sede de instrução, que fundamenta tal pronúncia.
Termos em que, com o douto suprimento de V.ªs Exas., deverá ser revogado o douto despacho proferido pelo Juízo de Instrução Criminal de ..., sendo determinada a admissão do requerimento de abertura de instrução, prosseguindo-se os ulteriores termos até prolação de despacho de pronúncia.
Admitido o recurso, o Mº. Pº. apresentou a sua resposta, na qual, concluiu:
1. O presente Recurso tem por objeto o despacho de rejeição do requerimento para abertura de instrução (adiante RAI) por motivo de inadmissibilidade legal, nos termos do disposto no artigo 287º/3 in fine do Código de Processo Penal.
2. O Meritíssimo Juiz de Instrução criminal, rejeição do RAI porquanto:
3. “Em suma, no RAI – para além do ónus de narrar os factos a imputar ao arguido e de indicar a norma incriminadora (equivalendo, verdadeira e materialmente, a uma acusação - o assistente tem (ainda) o ónus processual de aduzir as razões de facto e de direito da discordância da decisão do Ministério Público, nela as projetando de forma a permitir ao juiz de instrução criminal escrutiná-la, o que no caso dos autos, falhou.” Itálico nosso.
4. O assistente, ora recorrente vem requerer a abertura de instrução, por não concordar com o despacho de arquivamento do Magistrado do Ministério Público de ........2024 quanto ao crime de denuncia caluniosa p.p. artigo 365º/1 do Código penal, requerendo a pronuncia do arguido BB.
5. O presente RAI, no que ao caso interessa, visa a comprovação judicial da decisão do Ministério Público de arquivar o inquérito, na parte respeitante ao arguido BB [arts. 286º/ 1 e 287º/ 1/ b), ambos do Código de Processo Penal (CPP)].
6. Ora, para demonstrar o desacerto da decisão de arquivar, em parte, com que culminou o concreto processo, o assistente tem que pôr em causa o juízo indiciário determinante do exercício da acção penal, mediante a apresentação do requerimento que terá de conter uma ou mais razões por onde se vislumbre o desacerto de o não sujeitar a julgamento.
7. O requerimento de abertura de instrução não se pode limitar a contestar a atuação do Ministério Publico, mas, ao invés, deve atacar os fundamentos fácticos colhidos no inquérito em que aquela se fundou (i), ou os meios de prova em que tais factos estão arrimados (ii) ou mesmo o procedimento (latu senso) concretamente adoptado pelo Ministério Público que culminou na prolação do despacho de arquivamento.
8. A discordância há-de ser composta por um conjunto de razões vinculadas ao inquérito, que resulte ser desacertada a decisão de não acusar tomada com base nos elementos que existiam. Ou, então, se tomada sem determinados elementos, desde que a inexistência destes no processo não se compreenda, ante a sua intrínseca, evidente e notória necessidade, em ordem à decisão a tomar sobre o arquivamento, tornando a em face de tal omissão e por força desta injustificada.
9. O objeto da comprovação tem que ser concreta e especificadamente enunciado ou definido no/pelo requerimento do sujeito processual nela interessado, por força da conjugação do n.° 2 do artigo 287.° com o n.° 4 do artigo 288.° ambos do CPP.
10. Assim, sem exposição de razões de discordância com a natureza e recortes definidos obstaculiza-se a concretização da atividade de comprovação judicial da decisão em arquivar (não pronunciar).
11. Igualmente, um requerimento que se concretize apenas na apresentação de urna versão diversa para os acontecimentos sem estar alicerçada em nada mais, designadamente, em um qualquer aspeto crítico com raízes no inquérito, também não satisfaz as exigências legais.
12. Assim, se o RAI apresentado pela assistente não tem aptidão para fundar e firmar as finalidades da instrução, deve ser rejeitado, pois que, o mesmo é dizer, com e em tais condições não pode haver lugar á instrução e esta será legalmente inadmissível.
13. A rejeição do requerimento para abertura de instrução que se revele inapto para alcançar a finalidade dessa fase processual, não viola qualquer direito de defesa ou o direito à tutela jurisdicional efectiva, consagrados nos artigos 32.º e 20.º da Constituição da República Portuguesa.
14. No seu requerimento o assistente limita-se a pôr em causa a atuação do Ministério Público, mas não a demonstrar a sua discordância, as razões de facto e de direito- face aos fundamentos invocados para o arquivamento do inquérito.
Face ao exposto, o Ministério Público entende que se deve negar provimento ao recurso ora interposto, devendo manter-se a douta decisão nos seus exatos termos.
Remetido o processo a este Tribunal, na vista a que se refere o art. 416º do CPP, o Exmo. Sr. Procurador Geral da República Adjunto emitiu parecer, nos seguintes termos:
«O Recorrente defende que o requerimento de abertura de instrução preenche todos os requisitos legais, devendo, por isso, o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que determine a abertura da instrução requerida.
«O Ministério Público na 1.ª Instância respondeu ao recurso, apreciando todos os argumentos invocados pelo Recorrente, concluindo pela sua improcedência e manutenção do despacho recorrido.
«Concordamos com os termos da resposta ao recurso, nada mais se nos oferecendo acrescentar, em face das razões ali expressas bem como das que foram avançadas no despacho recorrido.
«Pelo exposto, emitimos parecer no sentido de que o recurso não merece provimento.»
Cumprido o disposto no art. 417º nº 2 do CPP, não houve resposta.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, nos termos e para os efeitos previstos nos arts. 418º e 419º nº 3 al. c) do CPP, cumpre, então, decidir.
II - FUNDAMENTAÇÃO
2.1. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO E IDENTIFICAÇÃO DAS QUESTÕES A DECIDIR:
De acordo com o preceituado nos arts. 402º; 403º e 412º nº 1 do CPP, o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação.
Além destas, o tribunal está obrigado a decidir todas as questões de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afectem o recorrente, nos termos dos arts. 379º nº 2 e 410º nº 3 do CPP e dos vícios previstos no art. 410º nº 2 do CPP, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito (Acórdão do Plenário das Secções do STJ nº 7/95 de 19.10.1995, in Diário da República, I.ª Série-A, de 28.12.1995 e o AUJ nº 10/2005, de 20.10.2005, DR, Série I-A, de 07.12.2005).
Umas e outras definem, pois, o objecto do recurso e os limites dos poderes de apreciação e decisão do Tribunal Superior (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do CPP, à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, 2011, págs. 1059-1061).
Das disposições conjugadas dos arts. 368º e 369º por remissão do art. 424º nº 2, todos do Código do Processo Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso pela seguinte ordem:
Em primeiro lugar das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão;
Em segundo lugar, das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pela impugnação alargada, se deduzida, nos termos do art. 412º do CPP, a que se seguem os vícios enumerados no art. 410º nº 2 do mesmo diploma, quando a decisão recorrida seja uma sentença ou um acórdão;
Finalmente, as questões relativas à matéria de Direito.
De acordo com este iter sequencial, no confronto com as conclusões, a única questão a apreciar é a de saber se o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo recorrente cumpre com todos os requisitos legais, nomeadamente aqueles constantes do n.º 2 do artigo 287.º do CPP, por ter sido requerida por quem tem legitimidade para o fazer, o assistente/recorrente face a uma decisão de arquivamento por parte do Ministério Público, de forma tempestiva, alegando a matéria de facto e de direito que justifica a prolacção de despacho de pronúncia a final e, também, a prova, já produzida e a produzir em sede de instrução, que fundamenta tal pronúncia, pelo que o mesmo deveria ter sido admitido pelo Tribunal recorrido.
2.2. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A matéria de facto relevante para a apreciação do presente recurso é a seguinte:
Por despacho proferido no dia ... de ... de 2024, o Mº. Pº. determinou o arquivamento, entre o mais, do NUIPC 552/22.4..., no qual o assistente AA imputava a BB, factos susceptíveis de integrarem, a prática do crime de difamação e do crime de denúncia caluniosa, respetivamente previstos e punidos pelos artigos 180.º, n.º 1 e 365.º, n.º 1, do Código Penal (despacho com a referência Citius 57615236);
O texto dessa parte do despacho de arquivamento é o seguinte (transcrição parcial):
AA desejou procedimento criminal contra o seu irmão BB, imputando-lhe factos suscetíveis de integrarem, numa perspetiva abstrata, a prática do crime de difamação e do crime de denúncia caluniosa, respetivamente previstos e punidos pelos artigos 180.º, n.º 1 e 365.º, n.º 1, do Código Penal, relatando que, no decurso da audiência de discussão e julgamento ocorrida no dia ... de ... de 2022, no âmbito do predito processo n.º 1190/21.4..., BB verbalizou que havia presenciado, por duas vezes, ameaças com armas de fogo, praticadas por AA contra o seu irmão CC, sem concretizar datas concretas. Adiu por fim que, posteriormente a esta audiência, uma patrulha da Esquadra da PSP de ... deslocou-se à residência da sua mãe, por conta do NUIPC 8/22.5... e o suspeito terá dito aos agentes que depois de finalizada a audiência de julgamento, AA o terá ameaçado, passando o dedo pelo pescoço, como a querer dizer que lhe ia cortar o pescoço e que já por duas vezes havia sido ameaçado com armas de fogo. Adiu que tomou conhecimento destes factos, na sequência de um processo disciplinar instaurado na PSP, instituição onde presta funções.
Procedeu-se à inquirição de AA, o qual declarou, em súmula que durante audiência de julgamento referente ao processo 1090/21.4... em que a sua mãe era ofendida e seu irmão CC arguido, durante a sua intervenção como interveniente processual, o seu irmão BB disse que havia presenciado, pelo menos duas vezes, ameaças com arma de fogo, praticadas pelo ofendido ao irmão de ambos, de nome CC. Em plena audiência, o suspeito foi intimado pelo Advogado para que indicasse, no meio dos presentes, quem havia ameaçado e prontamente, o suspeito apontou o dedo na direção do aqui ofendido. O ofendido refere que o seu irmão BB, com essas falsas afirmações, pretendeu denegrir a sua imagem, colocando-o numa situação problemática no seu meio profissional como Agente da PSP. Adiu que, nesse mesmo dia, mais tarde, junto da casa da mãe do ofendido, o seu irmão BB contou aos agentes da PSP que o ofendido o teria ameaçado com uma arma de fogo sem referir pormenores como o local a data. Asseverou que tais factos não correspondem à verdade, porque refere que tudo o que foi dito da sua pessoa em nada corresponde à verdade. Por fim declarou que lhe foi instaurado um processo disciplinar no seu serviço pelos factos de que foi indiciado (cfr. fls. 183).
DD foi inquirido e declarou que esteve presente na aludida audiência de discussão e julgamento ocorrida no dia ........2022, no Tribunal de .... Não foi ouvido como testemunha, mas esteve presente na plateia. Nesse julgamento, recorda-se do BB ter dito, enquanto prestava declarações como testemunha, se confirmava uma alegação do CC de que o AA já tinha ameaçado o CC como uma arma, tendo o BB respondido ao advogado que confirmava e que o AA tinha ameaçado, não uma, mas duas vezes o CC com uma arma. No entanto, referiu que essa alegação não correspondia à verdade, tendo até ficado incrédulo com essa alegação, e com o facto de tal expressão ter sido proferida em plena audiência de julgamento (cfr. fls. 297).
Foram, ainda, inquiridos os agentes da PSP EE, FF e GG, que se deslocaram ao local e lavraram o expediente relativo ao NUIPC 8/22.5... Referiram em uníssono aqueles agentes, do que se recordam da situação, que quando chegaram ao local, os intervenientes encontravam-se no exterior da residência, nomeadamente o Sr. HH (único interveniente que o depoente conhecia), o BB e CC. Constataram que não estavam perante uma situação de desavenças. A PSP foi chamada ao local para tomar conta da ocorrência, nomeadamente de que outros irmãos dos ali intervenientes, que não se encontravam no local, haviam trocado de fechadura e instalado um sistema de alarme na residência, sem o consentimento dos intervenientes ali presentes. Os intervenientes explicaram aos agentes a história, nomeadamente que o CC sempre residiu naquela residência, e na sequência de um processo de violência doméstica, o CC foi sujeito a uma medida de coação de afastamento da residência. Que esse processo havia sido arquivado e as medidas de coação declaradas extintas. Nesse seguimento, o CC terá tentado regressar à sua residência e constatou que terceiros haviam trocado as fechaduras. O CC terá ficado a pernoitar no logradouro da casa.
Acrescentaram os senhores Agentes que, pelo CC mais foi dito que, em data próxima ao Natal, tentou entrar na residência, devido à forte chuva, e acionou o sistema de alarme, tendo sido detido pela PSP. Mais referiram aqueles Agentes Principais GG, II e EE que o BB lhes transmitiu que naquela manhã havia decorrido uma audiência de julgamento no Tribunal da ... e que, à saída, o Agente AA terá verbalizado ao BB: “tu de hoje não passas”, ao mesmo tempo que efetuou um gesto junto ao pescoço a simular que lhe cortaria o pescoço.
Confirmaram os agentes inquiridos que o BB também lhes transmitiu que, no passado já tinha sido alvo de ameaças por parte do Agente AA, nomeadamente com uma arma de fogo. Por fim, e para tanto questionados, referiram recordar-se que o denunciado estava bastante perturbado com toda a situação e que tinha medo, de facto, do Sr. Agente AA, nomeadamente que o mesmo fizesse algo contra si (cfr. fls. 350, 359 e 260).
Constituído arguido e interrogado nessa qualidade, BB negou a prática dos factos (cfr. fls. 241).
Ora, no caso vertente, o crime denunciado e do qual AA era suspeito tratar-se-ia do crime de ameaça agravado.
Da análise da queixa apresentada no NUIPC 8/22.5... conclui-se que o arguido BB não apresentou a queixa de forma leviana, antes tendo demonstrado aos Agentes da PSP medo e inquietação pelos factos por si relatados e que alegou ter sido vítima.
A circunstância da queixa apresentada ter sido arquivada não permite por si só concluir pela falsidade dos factos descritos na mesma. A ação penal está dependente, a mais das vezes, da notícia do crime trazida por simples cidadãos, por aqueles que se consideram ofendidos, por pessoas que consideram violados os seus direitos, como aqui acontece.
O facto de se não conseguir indícios para a acusação, ou mesmo não serem comprovados os factos denunciados, não implica, por si só, que o aqui arguido BB tenha agido com o dolo, na forma como acima se indicou.
Como se deixou expresso, de forma cristalina, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21/04/2010 (processo n.º 1/09.3YGLSB.S2), “I - Toda a participação ou queixa criminal contém, em regra, objetivamente, uma ofensa à honra, por comunicar a prática de factos configuradores de um comportamento criminoso. A denúncia de um crime, quando identificado o seu autor ou o suspeito de o ter cometido, objetivamente, atinge a honra do denunciado. Apesar disso, é evidente que ninguém pode ser impedido de participar um facto delituoso. II - Ao direito à honra do denunciado contrapõe-se o direito à denúncia como via necessária de acesso à justiça e aos tribunais para defesa dos interesses legalmente protegidos do denunciante, direito constitucionalmente consagrado – art. 20.º da CRP. Num Estado de direito é impensável, pois, impedir quem quer que seja de participar um facto delituoso, com a justificação de que em consequência da participação ir-se-á lesar a honra do participado. III - A lei substantiva penal prevê expressamente, aliás, situações em que a lesão de um determinado bem ou interesse penalmente tutelado é considerada, em concreto, lícita. São os casos previstos pelas normas que regulam as causas de justificação. Quando alguém tem de agir numa das situações tipicizadas nessas causas de justificação não comete crime, por não ser considerada ilícita a lesão do bem ou interesse em causa, dado que o legislador, apreciando a situação de conflito, indicou um interesse como prevalente, cuja tutela quer ver salvaguardada.
Só assim se pode encontrar uma solução para as hipóteses de conflito e simultaneamente dar realização a uma exigência de justiça. Há uma ideia, a ideia de proporção entre os interesses em conflito, que paira e domina sobre as normas que disciplinam as causas de justificação. O legislador entende que os interesses em conflito devem ser ponderados entre si, já que a desproporção ou as soluções por ela ditadas repugnam à própria essência do direito, que é proportio hominis ad hominem e, portanto, justiça nas relações intersubjectivas. IV - Daí que as causas de justificação expressamente previstas possam e devam estender-se, por aplicação analógica ou apelando para um princípio geral de direito. É que as normas penais não estão sob a alçada do princípio da proibição da aplicação por analogia legis ou por analogia juris, na medida em que não são normas restritivas da liberdade como as normas incriminatórias, nem são normas excepcionais.
Elas gravitam em torno da ideia de que, em caso de conflito de interesses, um deles deve sempre prevalecer, pois seria absurdo consentir no sacrifício de ambos. V - Trata-se evidentemente do princípio da ponderação de interesses, o qual se acha sempre subjacente a todas as situações de conflito, constituindo o fundamento último da justificação do facto. VI -Ora, como o STJ vem decidindo, o direito de denúncia prevalece sobre o direito à honra, visto que como garantia de estabilidade, da segurança e da paz social no Estado de direito deve assegurar-se ao cidadão a possibilidade quase irrestrita de denunciar factos que entende criminosos.
“Quase irrestrita” por a limitação maior consistir em a denúncia não ser feita dolosamente (com a consciência da sua falsidade) e do teor dos seus termos, os quais devem limitar-se à narração dos factos, sem emissão de quaisquer juízos de valor ou lançamento de epítetos sobre o denunciado. VII - No caso dos autos inexiste prova indiciária de que o arguido agiu com consciência da falsidade das imputações constantes da participação que apresentou contra a assistente e das declarações que prestou no âmbito do respectivo inquérito criminal. Por outro lado, o texto da participação e o conteúdo das declarações prestadas não contêm asserções nem juízos de valor desnecessários ou desproporcionados. VIII - Nesta conformidade, impõe-se concluir que, quer a denúncia apresentada quer as declarações prestadas pelo arguido, conquanto objectivamente lesivas da honra e consideração da assistente, se devem ter por justificadas nos termos do art. 31.º, n.ºs 1 e 2, al. b), do CP.”
Ora, e assim sendo, temos que não se vislumbra o preenchimento do crime em tela, pois, em rigor, não existe qualquer indício de que o arguido tenha agido com a consciência que as imputações feitas ao aqui denunciante eram falsas.
Destarte, não se tendo recolhido elementos suscetíveis de preencher os elementos objetivos e subjetivos do crime de denúncia caluniosa, sem necessidade de outras considerações, determino o arquivamento dos presentes autos, nesta parte, nos termos do disposto no artigo 277.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, quanto ao crime de denúncia caluniosa.
Sem prejuízo, notifique o assistente AA, e a sua Ilustre Causídica, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 285.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, para, em dez dias, querendo, vir aos autos deduzir acusação particular, com a indicação, nos termos do n.º 2 do mesmo preceito legal, de que, no entendimento do Ministério Público, no decurso do inquérito não foram colhidos indícios suficientes da prática de factos constitutivos do crime de difamação, p. e p. pelo artigo 180.º, n.º 1, do Código Penal, pelo arguido, à luz do critério imposto pelo artigo 283.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, nomeadamente a permitir sustentar o elemento subjetivo (dolo) exigível, o que determina a improbabilidade de fazer esperar, a final, a aplicação de uma pena (despacho com a referência Citius 57615236);
O assistente requereu a instrução, nos seguintes termos (transcrição integral):
AA, assistente melhor identificado nos autos, requer a abertura de instrução, o que faz ao abrigo do disposto na alínea b) do n.° 1 do artigo 287.° do CPP e com os seguintes fundamentos:
A Digníssima Magistrada do Ministério Público proferiu decisão de arquivamento dos autos, designadamente no que concerne ao factos a que se referem
O inquérito n.° 552/22.4..., por considerar que não existem indícios do arguido BB ter praticado os factos a ele imputados e que integrariam a prática de um crime de denúncia caluniosa, previsto e punido nos termos do disposto no n° 1 do artigo 365.° do Código Penal.
Ora, com o devido respeito, o assistente não se pode conformar com esta decisão, porquanto constam dos autos indícios suficientes da prática dos factos pelo arguido e as diligências instrutórias infra requeridas irão reforçar estes indícios de modo a ser proferido despacho de pronúncia.
Termos em que, com o douto suprimento de V.a Exa., deverá ser determinada a abertura da instrução porquanto:
BB (doravante BB), nascido a .../.../1971, natural da freguesia de ..., concelho de ..., portador do cartão de cidadão n.° 9644907, filho de JJ e de KK, residente na ..., concelho da ..., praticou os seguintes factos:
1 O assistente e o arguido são irmãos.
2º O arguido BB, no dia .../.../2022, declarou, como testemunha ouvida na audiência de julgamento realizada no âmbito do processo n° 1090/21.4... no Tribunal Judicial da ..., que tinha presenciado o aqui assistente a ameaçar CC (irmão de ambos) com arma de fogo, o que teria acontecido por duas vezes.
3º Tais afirmações não correspondem à verdade.
4º O arguido BB, no mesmo dia, já depois das 1lh30m, na ..., freguesia de ..., concelho de ..., junto à morada com o n° 1, dirigiu-se aos agentes da PSP que ali se tinham deslocado para tomar conta de uma ocorrência, a saber os agentes FF (matrícula n.° 158117), GG (matrícula n.° 156030) e EE (matrícula n.° 148594), e disse-lhes que o ora assistente, naquele mesmo dia, entre as 10h30m e as llh30m, quando ambos se encontravam a abandonar o Tribunal Judicial da ..., lhe tinha dirigido a seguinte frase: “Tu de hoje não passas!” ao mesmo tempo que passava a mão direita junto ao pescoço, simulando uma degolação.
5º BB mais declarou aos agentes ali presentes que a ameaça que lhe tinha sido dirigida lhe causava medo e inquietação, sentindo-se privado da liberdade, uma vez que acreditava que o seu irmão (o aqui assistente) era capaz de concretizar o seu intento.
6º BB disse igualmente aos agentes que, em situações passadas, o aqui assistente chegou a munir-se de uma arma de fogo, carregando a mesma e apontando na sua direcção, dizendo que lhe dava um tiro.
7º Mais referiu BB que só não relatava mais factos porque tinha medo do que lhe pudesse acontecer, visto que o seu irmão é Chefe da PSP.
8º Ora, os factos que o arguido BB imputou ao ora assistente AA, são passíveis de integrarem a prática de um crime de ameaça agravada previsto e punido nos termos do disposto no n.° 1 do artigo 153.° e na alínea a) do n.° 1 do artigo 155.°, ambos do Código Penal (doravante CP).
9º Na sequência dos factos que lhe foram relatados pelo arguido BB, a agente FF elaborou o auto de notícia que deu azo ao inquérito n.° 8/22.5..., apenso ao presente inquérito, cfr. fls 2 e seguintes.
10º O aqui assistente foi constituído arguido nos presentes autos e inquirido como tal, conforme resulta do teor de fls. 231 e seguintes.
11º O mesmo auto de notícia foi comunicado ao Comando Regional da PSP que, por sua vez, determinou a instauração de processo disciplinar contra o aqui assistente cm face dos factos comunicados pelo arguido BB, o qual correu termos no Núcleo de Deontologia e Disciplina do Comando Regional da PSP dos Açores sob o n.° ……….
12º O aqui assistente foi também confrontado no âmbito deste processo disciplinar com a imputação dos factos acima descrita feita pelo arguido BB, vendo-se, novamente, na posição negar a prática dos mesmos.
13º A pendência do processo disciplinar acima referido, que teve como único objecto a averiguação dos factos imputados ao assistente pelo arguido BB, determinou a suspensão da promoção do assistente, a qual perdura até à presente data.
14º O arguido BB, quando confrontado com a imputação de factos feita por si ao assistente AA nos termos acima descritos em 2,° a 7.°, afirma que “(...) não apresentou queixa, até porque esses factos não aconteceram. (...) em momento nenhum viu o seu irmão AA fazer qualquer gesto (sinal de degolação), nem ouviu nenhuma ameaça por parte deste.”.
15° O arguido BB praticou os factos acima descritos de forma livre, deliberada e consciente, com o escopo de que contra o aqui assistente fosse instaurado procedimento, o que aconteceu de forma dupla, uma vez que foi instaurado processo-crime e processo disciplinar contra o aqui assistente.
16° Fê-lo, bem sabendo que as imputações que fez sobre o assistente eram falsas e em circunstâncias tais que necessariamente dariam azo à instauração de processo-crime contra o assistente, o que aconteceu.
17° Fê-lo consciente de que a sua conduta era ilícita, o que não o demoveu de praticar os factos acima descritos.
18º O arguido BB procedeu deste modo também com o intuito conseguido de provocar embaraço pessoal e profissional ao aqui assistente, que, enquanto cidadão e profissional da Polícia de Segurança Pública, viu a sua honra e bom nome postos em causa pela conduta do arguido BB, o que muito consternou o assistente.
19º De facto, o assistente, desde ... até à presente data que vive triste e preocupado com os efeitos que os factos praticados pelo arguido BB têm tido na reputação e bom nome do assistente.
18º Em face do acima exposto, BB cometeu, em autoria material e na forma consumada, um crime de denúncia caluniosa, previsto e punido pelo disposto no n.° 1 do artigo 365.° do Código Penal.
Termos em que se requer a abertura de instrução e que, a final, com o douto suprimento de V.a Exa.. seja proferido despacho de pronúncia.
Requer-se que sejam levados a cabo os seguintes actos de instrução:
a) Que seja determinada a junção aos presentes autos da gravação do depoimento prestado pelo arguido BB na audiência de julgamento do processo n.° 1090/21.4... e respectiva transcrição;
b) Que seja determinada a junção aos presentes autos do auto de declarações prestadas pelo arguido BB no âmbito do processo disciplinar n.° …… que corre termos no Núcleo de Deontologia e Disciplina do Comando Regional da PSP d…., bem como da decisão final que foi proferida neste processo,
c) Que seja determinada a tomada de declarações ao ora assistente.
Com o acto de instrução acima requerido sob a alínea a) pretende-se provar os factos alegados supra em 2.°.
Com o acto de instrução acima requerido sob a alínea b) pretende-se provar os factos alegados supra em 14.°.
Com as declarações do assistente pretende-se provar todos os factos acima alegados.
PROVA;
Requer-se a prestação de declarações por parte do assistente AA. DOCUMENTAL:
A constante dos autos, designadamente;
a) Auto de inquirição de fls. 121 e seguintes dos autos principais;
b)Termo de constituição de arguido de fls. 231 e seguintes dos autos principais;
c) Auto de notícia de fls. 2 e seguintes do apenso n.° 8/22.S...;
d) Ofício do Núcleo de Deontologia e Disciplinar do Comando Regional …. da PSP de fls. 6 do apenso n.° 8/22.S...
Toda a documentação que vier a ser junta aos autos na sequência do acima requerido.
TESTEMUNHAL:
•Agente da PSP FF (matrícula n.° ….), melhor identificada a fls. 359 dos autos, a notificar na Esquadra da PSP, sita à ...° 201, ...;
•Agente da PSP GG (matrícula n.° …..), a notificar na Esquadra da PSP, sita à ...° 201, ...;
•Agente da PSP EE (matrícula n.° …..), melhor identificada a fls. 350 dos autos, a notificar na Esquadra da PSP, sita à ...° 201, ...,
•José Manuel Rodrigues Vieira, identificado a fls. 181 dos autos principais (1124/21.6...), a notificar na ...° 5, freguesia de ..., concelho da ....
A decisão recorrida tem o seguinte teor (transcrição integral):
Despacho liminar (da rejeição do requerimento para abertura da instrução (rai), apresentado por AA, na veste de assistente, por motivo de inadmissibilidade legal)
*
AA vem requerer a abertura de instrução, na veste de assistente, inconformado que se mostra com o despacho de arquivamento do Ministério Público de ........2024 quanto ao crime de denúncia caluniosa, p. e p. pelo art. 365º/ 1 do CP, pugnando pela pronúncia do arguido BB.
O RAI é tempestivo [foi apresentado no terceiro dia útil após o termo do prazo por referência à data da notificação do último assistente/ arguido do cit. despacho de arquivamento (cfr. art. 287º/ 6 do CPP)] e assiste legitimidade e interesse em agir ao assistente.
Todavia, analisado o RAI, considero que não é admissível por nele não se conter, minimamente, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à não acusação (art. 287º/ 2 do CPP).
Com efeito, a propósito do arquivamento, o assistente – sem prejuízo da necessidade de narrar os factos, na sua perspetiva indiciados, que integram os elementos típicos, ilícitos e culposos da norma incriminadora – limita-se a afirmar, no início do RAI, que não se pode conformar com a decisão, porquanto constam dos autos indícios suficientes da prática dos factos de modo a ser proferido o despacho de pronúncia (indícios estes que sairão ainda reforçados com os atos de instrução).
Num tal quadro, o assistente é omisso, pois, quanto à exigível argumentação relativa ao desacerto da decisão do Ministério Público.
Ora, esta fase processual facultativa da instrução tem por escopo, à luz do disposto no art. 290º/ 1, a finalidade a que alude o art. 286º/ 1, ambos do CPP, qual seja, no que à questão releva, a comprovação judicial da decisão de arquivamento do inquérito, sendo por isso, também, o objeto da instrução.
Nesta conformidade, a atividade do juiz de instrução criminal dirige-se ao acerto ou desacerto da decisão do Ministério Público, sendo imperioso aferir nesta tarefa, afinal de contas, em que medida (na ótica da assistente) aquele falhou na sua missão.
Isto é, a cit. discordância em sentido normativo constitui um pressuposto para que o juiz de instrução criminal possa levar a cabo tal comprovação.
Ora, no caso vertente, centrando o assistente a sua discordância na circunstância de existirem elementos do processo que importam a indiciação dos factos, não explica, de seu turno, se e por que razão terão sido desconsiderados pela digna titular dos autos.
E essa discordância vocacionada para os elementos de prova do inquérito – em falta, portanto – mostrar-se-ia essencial para aferir se, efetivamente, os factos se devem reputar, ou não, como suficientemente indiciados.
Dito de outra forma, não basta ao assistente requerer a abertura da instrução para que se possa ter por juridicamente afirmada e completada tal discordância; é necessário que na concretude do RAI se expressem as razões de facto (desde logo por ser esse o caso) da discordância (ex: o facto X não foi considerado indiciado, mas resulta do elemento do processo Y que, como tal, foi mal valorado; ou resulta por inferência da conjugação do facto W com regras da experiência comum; ou resulta da maior preponderância que se deverá dar ao elemento Z que, por tal, anula ou restringe aqueloutros atendidos, etc.).
E, no caso dos autos, não havendo fundamentada sindicância do despacho de arquivamento [afinal de contas, por que razão a decisão do Ministério Público é desacertada face à prova recolhida nos autos que, no entender do assistente, aponta em sentido contrário], o juiz de instrução criminal está impedido de prosseguir tal finalidade com tal objeto, isto é, do controlo externo da legalidade da atuação do Ministério Público.
Como refere Pedro Soares de Albergaria a este respeito, «(…) sempre que o requerente (…) não descreva, por súmula, as razões, de facto e de direito, de discordância relativamente à (…) não acusação (…) em termos tais que impede o tribunal de proceder ao escrutínio da decisão prolatada no final do inquérito (…), que é o fim a que se dirige a instrução (art. 286º/ 1), escrutínio aquele que, não se olvide, é sempre “em alguma medida vinculado” (cf. art. 288º/ 4), então, dizíamos, a decisão terá de ser a de rejeição do requerimento para a abertura da instrução, por inadmissibilidade legal dela (art. 287º/ 3) (…)» (in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, T. III, Almedina, 2021, em anotação ao art. 287º do CPP, §19).
Em suma, no RAI - para além do ónus de narrar os factos a imputar ao arguido e de indicar a norma incriminadora (equivalendo, verdadeira e materialmente, a uma acusação) - o assistente tem (ainda) o ónus processual de aduzir as razões de facto e de direito de discordância da decisão do Ministério Público, nela as projetando de forma a permitir ao juiz de instrução criminal escrutiná-la, o que, no caso dos autos, falhou.
Em face do exposto, rejeito liminarmente o requerimento para a abertura da instrução por motivo de inadmissibilidade legal (art. 287º/ 3 in fine do CPP).
Custas a cargo do assistente, fixando a taxa de justiça pelo mínimo legal (art. 515º/ 1/ a) do CPP).
Notifique (decisão com a referência Citius 58168411).
2.3. APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO
Quanto à rejeição da instrução com fundamento na inadmissibilidade legal da instrução.
Nos termos do art. 286º do CPP, a instrução destina-se à comprovação judicial da decisão proferida pelo Mº.Pº., no final do inquérito, no sentido de submeter ou não a causa a julgamento.
A instrução não visa a demonstração dos factos integradores do crime, mas apenas a comprovação judicial decisão proferida pelo Mº. Pº., no final do inquérito, de deduzir acusação ou de arquivar em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (artigo 286º n° 1 do CPP) não se impondo «a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final». (…). «Na pronúncia o juiz não julga a causa; verifica se se justifica que com as provas recolhidas no inquérito e na instrução o arguido seja submetido a julgamento para ser julgado pelos factos da acusação» (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Editorial Verbo, 1994, vol. III , páginas 179 a 182).
Neste contexto, o grau de «possibilidade razoável» de condenação mencionado nos arts. 283º nº 2 e 308º nº 2 do CPP, tem de ser interpretado como «uma possibilidade mais positiva que negativa: o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido ou, os indícios são os suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição» (Acs. da Relação de Coimbra de 28.06.2017, proc. 1772/15.3T9LRA.C1. No mesmo sentido, Ac. da Relação do Porto de 07.12.2016, proc. 866/14.7PDVNG.P1; Acs. da Relação de Coimbra de 23.05.2018, proc. 80/16.7GBFVN.C1 e de 26.06.2019, proc. 303/18.8JALRA.C1; Ac. da Relação de Guimarães de 27.05.2019, processo 134/17.2T9TMC.G1; Ac. da Relação de Lisboa de 04.07.2019, proc. 324/17.8PASNT.L1, in http://www.dgsi.pt).
Pese embora o requerimento de abertura de instrução não esteja sujeito a formalismos especiais, a verdade é que, por imperativo do art. 287º nº 2 do Código de Processo Penal, tem de conter, ainda que, por súmula, as razões de facto e de direito em que se estriba a discordância em relação à decisão tomada no final do inquérito. Sobretudo se essa decisão tiver sido, como foi, no caso vertente, de arquivamento. Até porque, além disso, são-lhe aplicáveis as normas contidas no art. 283º nº 3 als. b) e c) do mesmo diploma, por remissão do citado art. 287º nº 2.
Assim, a acusação deve conter e a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, designadamente, no que tange às circunstâncias de tempo, modo e lugar, em que os factos integradores do crime foram cometidos, à motivação da sua prática e grau de participação do agente, bem como todas as demais circunstâncias relevantes para a determinação da sanção e a indicação das disposições legais aplicáveis, nos termos das als. c) e b) do nº 3 do art. 283º do CPP, respectivamente.
Esta imposição legal é feita com a cominação expressa da nulidade para a omissão destes requisitos, a qual, por força das disposições conjugadas dos arts. 118º e 119º nº 1 do citado código é insanável e de conhecimento oficioso.
Porque é a acusação que delimita o objecto do processo e os poderes de cognição do Tribunal, de harmonia com o princípio do acusatório, o legislador comina com a sanção da nulidade, a omissão da descrição dos elementos constitutivos - objectivos e subjectivos - do crime imputado ao arguido.
Ora, o mesmo raciocínio terá de fazer-se para o requerimento de abertura da instrução.
É que, caso a decisão instrutória venha a ser de pronúncia, será ela que delimitará o objecto específico do processo com a correspondente vinculação temática do Tribunal, na fase da discussão e julgamento da causa, reflexo, justamente, da estrutura acusatória do processo penal.
O requerimento de abertura da instrução formulado pelo assistente constitui, substancialmente, uma acusação alternativa ao arquivamento ou à acusação decididos pelo Ministério Público, já que é através desse requerimento que é formulada a pretensão de sujeição do arguido a julgamento por factos geradores de responsabilidade criminal.
Acusação essa que, «dada a divergência com a posição assumida pelo Mº. Pº. – vai necessariamente ser sujeita a comprovação judicial» e que, tal como sucede com acusação em sentido formal estrito, condiciona e limita a actividade de investigação do juiz e a própria decisão instrutória (Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal, vol. III, Verbo, 1994, pág. 125), porquanto, nos termos do art. 309º do Código de Processo Penal, a decisão instrutória que pronuncie o arguido por factos que constituam uma alteração substancial dos descritos no requerimento de abertura da instrução, é nula.
«[S]e o assistente requer instrução sem a mínima delimitação do campo factual sobre que há-de versar, a instrução será a todos os títulos inexequível. O juiz ficará sem saber que factos é que o assistente gostaria de ver acusados. Aquilo que não está na acusação e no entendimento do assistente lá devia estar pode ser mesmo muito vasto. O juiz de instrução “não prossegue” uma investigação, nem se limitará a apreciar o arquivamento do MP, a partir da matéria indiciária do inquérito. O juiz de instrução responde ou não a uma pretensão. Aliás, um requerimento de instrução sem factos, subsequente a um despacho de arquivamento, libertaria o juiz de instrução de qualquer vinculação temática.
«Teríamos um processo já na fase da instrução sem qualquer delimitação do seu objecto, por mais imperfeita que fosse, o que não se compaginará com uma fase que em primeira linha não é de investigação, antes dominada pelo contraditório.» (Souto de Moura, Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal, Centro de Estudos Judiciários, Livraria Almedina, Coimbra, 1991, página 120).
É, pois, o assistente quem tem de tomar posição expressa, clara e especificada sobre quais são os factos que pretende ver imputados ao arguido e as disposições legais aplicáveis, em sintonia com tais características do processo penal e princípios constitucionais aplicáveis.
Mas não é apenas para garantir o cabal cumprimento do princípio do acusatório que a lei impõe esta concretização factual.
Trata-se, ainda, de garantir o princípio do contraditório e de assegurar as garantias de defesa do arguido (art. 32º nºs 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa). Se este não conhece, ou não tem como saber, por omissão da descrição das circunstâncias de tempo, modo e lugar e respectivo grau de participação que uma determinada conduta tipificada como crime lhe é imputada e as correspondentes normas legais que a qualificam como tal, fica, do mesmo modo, impedido de preparar a sua defesa e indicar os meios de prova que entender pertinentes, quer para a sua defesa, quer para o esclarecimento dos factos e o apuramento da verdade. (Frederico Isasca, in “Alteração Substancial dos Factos e a sua relevância no processo penal português”, Almedina, 1992, pág. 54; Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, I, Coimbra, 1974, pág. 145; Anabela Rodrigues, “O inquérito no Novo Código de Processo Penal, in Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal, Almedina, 1988, p. 77, Mouraz Lopes, in Garantia Judiciária no Processo Penal, do Juiz e da Instrução, Coimbra Editora, 2000, fls. 69).
E o que é certo é que é das reais possibilidades de exercício do direito de defesa e ao contraditório que depende o cabal cumprimento dos princípios constitucionais a um processo justo e equitativo (art. 20º nº 4 da CRP) e da presunção de inocência do arguido (art. 32º nºs 1 e 5 da CRP) (Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, I, Coimbra Editora, 2005, p. 192).
Ora, ninguém pode defender-se daquilo que não conhece.
A rejeição do requerimento de abertura da instrução só pode ter lugar, de acordo com o que estabelece o art. 287º nº 3 do CPP, por extemporaneidade, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.
A «inadmissibilidade legal» da instrução ocorrerá sempre que a instrução seja requerida em outras formas de processo que não a do comum e a do abreviado, concretamente, nas formas de processo sumário e sumaríssimo (artigo 286º nº 3 do CPP), ou se for requerida por outras pessoas não o arguido ou o assistente, ou se, ainda que requerida por estes, se o fizerem fora dos limites definidos pelo art. 287º nº 1 als. a) e b), como aconteceria no caso de arquivamento pelo Ministério Público, ser o arguido o requerente da abertura de instrução (artigo 287º nº 1 alínea a) do CPP), ou seja, em situações de ilegitimidade processual, ou de o arguido requerer a abertura de instrução relativamente a factos que não alterem substancialmente a acusação do Ministério Público, isto é, nos casos em que o assistente deduz acusação (artigo 284º do CPP), ou noutros casos, em que existe um obstáculo legal que impede a realização da instrução como também sucede, quando o assistente venha requerer a abertura de instrução relativamente a crimes particulares (artigo 285º do CPP), ou quando o assistente a requeira, em caso de acusação pelo Ministério Público, em relação a factos circunstanciais que não impliquem alteração substancial da acusação pública (artigo 284º do CPP) (cfr. Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ nº 7/2005, DR, 1ª Série A de 04.11.2005).
Mas a instrução também será legalmente inadmissível se e quando o requerimento do assistente não configurar uma verdadeira acusação, ou seja, se não contiver a identificação do arguido, ou não descrever os factos componentes do crime imputado ou se aos factos descritos não corresponder qualquer infração criminal (falta de tipicidade), porque então faltará o próprio objecto do processo (cfr., nesse sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 3ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, pág. 750, em nota 2 ao art. 286º, Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, vol. III, 1994, p. 175, Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 9ª edição, Almedina, Coimbra, 1998, pág. 540).
Por isso que uma instrução levada a cabo na sequência de um requerimento sem factos, por falta de objecto, será nula e legalmente inadmissível.
«A estrutura acusatória do processo penal português, garantia de defesa que consubstancia uma concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de direito democrático, assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, impõe que o objecto do processo seja fixado com o rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura da instrução. (…)».
«Dada a posição do requerimento para abertura da instrução pelo assistente, existe, como se deixou mencionado, uma semelhança substancial entre tal requerimento e a acusação. Daí que o artigo 287º, nº 2, remeta para o artigo 283º, nº 3, alíneas b) e c), ambos do Código de Processo Penal, ao prescrever os elementos que devem constar do requerimento para a abertura da instrução.
Assim, o assistente tem de fazer constar do requerimento para abertura da instrução todos os elementos mencionados nas alíneas referidas do nº 3 do artigo 283º do Código de Processo Penal. Tal exigência decorre, como se deixou demonstrado, de princípios fundamentais do processo penal, nomeadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória. É, portanto, uma solução suficientemente justificada e, por isso, legitimada. (…) De resto, a exigência feita agora ao assistente na elaboração do requerimento para abertura de instrução é a mesma que é feita ao Ministério Público no momento em que acusa.» (Ac. do TC nº 358/2004, de 19/05, in DR II, de 28/06/04).
«Ao determinar que “o requerimento [de abertura de instrução] não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à [...] não acusação”, o n.º 2 do artigo 287.º do CPP está a definir um pressuposto de admissibilidade, por parte do tribunal, do acto praticado pelo assistente no processo que, para além de ser – como qualquer outro pressuposto processual – um meio de funcionalização do sistema no seu conjunto, é, pelo seu teor, necessário, face às exigências decorrentes dos princípios fundamentais da Constituição em matéria de processo penal. Face à legitimidade (digamos assim) “reforçada” de que dispõe, portanto, o legislador ordinário para fixar esse pressuposto – exigindo o seu cumprimento por parte do assistente – não se afigura excessiva ou desproporcionada a norma sob juízo, aplicada pela decisão recorrida: a Constituição não impõe um convite ao aperfeiçoamento do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente, que, fora dos casos previstos no n.º 3 do artigo 287.º do CPP, não cumpra os requisitos exigidos pelo n.º 2 do mesmo preceito (Ac. do TC nº 636/2011, de 20 de Dezembro de 2011, DR, II Série, de 26/11/2012).
A não descrição dos «factos, ou descrever factos que não constituem crime, não pode deixar de conduzir […] à inadmissibilidade legal do RAI [requerimento para abertura da instrução] do assistente por falta de requisitos legais» (Vinício Ribeiro, em «Código de Processo Penal – Notas e Comentários», Coimbra Editora, 2.ª edição, 2011, pág. 794. No mesmo sentido, Acs. da Relação de Évora de 13.07.2017, proc. n.º 203/14.0T9ENT.E1; da Relação de Guimarães de 11.07.2017, proc. 649/16.0T9BRG.G1, da Relação de Lisboa de 18.09.2018, proc. 1910/17.1T9SNT.L1; Acs. do STJ de 12.03.2009, proc. n.º 3168-08; de 13.1.2011, proc. 3/10.0YGLSB.S1, de 07.02.2018, proc. 29/16.7TRLSB.S1. e de 11.09.2019, proc. 47/17.8YGLSB, in http://www.dgsi.pt).
«Nestas circunstâncias (não descrição de factos ou a descrição de factos que não constituem crime) não se pode dizer que a rejeição da instrução assenta num mero formalismo processual ou “numa antecipação ilegítima do juízo de prognose que se relega para o final da fase de instrução”, do que se trata é de obstar à prática de uma fase processual inútil, que redundaria, necessariamente, numa decisão de não pronúncia, por falta de um pressuposto essencial: a narração de factos que integrem a prática de um ilícito penal, que fundamentem a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança.
«E isto nada colide com o disposto no art. 20º da CRP, pois que o acesso ao direito e aos tribunais não é incompatível com o estabelecimento de regras processuais que visem o exercício efetivo desse direito – no caso, e em última análise, submeter o arguido a julgamento – como seja o ónus do requerente da instrução fundamentar o pedido com a alegação dos factos que integram o ilícito ou ilícitos relativamente aos quais pretende que a mesma seja realizada, ónus que não limita de modo desproporcionado e arbitrário esse direito, antes visa garantir outros direitos fundamentais do direito processual penal, como sejam a estrutura acusatória do processo penal e o direito de defesa do arguido, que só poderá ser eficazmente exercido desde que a acusação/RAI contenha, de modo claro e objetivo, os factos que integram o ilícito ou ilícitos pelos quais se pretende que o arguido seja pronunciado» (Ac. da Relação de Évora de 24.11.2020, proc. 307/18.0JAFAR-A.E1, in http://www.dgsi.pt).
Assim será legalmente inadmissível a instrução cujo requerimento da sua abertura não contenha a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, pois, os elementos objetivos e os elementos subjetivos do crime imputado.
Mas não é o que sucede, no caso vertente, porque, ao contrário do afirmado na decisão recorrida, o requerimento de abertura da instrução contém uma descrição cronológica e lógica de factos que são adequados ao preenchimento do crime de denúncia caluniosa.
De acordo com a norma incriminadora contida no art. 365º nº 1 do CP, são elementos constitutivos do crime de denúncia caluniosa, do ponto de vista objectivo, um comportamento objectivo que se traduza em denunciar ou lançar suspeita, por qualquer meio, com recurso à linguagem oral ou escrita, de factos, susceptíveis de criar, reforçar a suspeita da prática de um acto ilícito, um sujeito passivo, uma pessoa determinada concretamente identificada (ou identificável) a cuja autoria é atribuída a acção qualificável como crime, o objecto da conduta que é integrado por factos idóneos para provocarem perseguição criminal, os destinatários da acção: a denúncia ou a suspeita serão feitas perante autoridade ou publicamente (Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo III, Coimbra Editora 2001, pág. 530 e ss).
O nexo de imputação subjectiva é feito exclusivamente com base no dolo, revelado pela consciência da falsidade da imputação e pela intenção de que seja instaurado procedimento criminal contra o sujeito passivo.
E, dolo qualificado por duas exigências cumulativas: por um lado, o agente terá de actuar “com consciência da falsidade da imputação”; por outro lado e complementarmente, terá de o fazer “com intenção de que contra ela se instaure procedimento” (Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, Coimbra Editora 2001, pág. 548 § 66).
A consciência da falsidade significa que, no momento da acção o agente conhece ou tem como segura a falsidade dos factos objecto da denúncia ou suspeita.
Quanto à segunda exigência, «Não resulta linear nem óbvio o significado do segundo e específico momento subjectivo, a intenção (“de que contra ela se instaure procedimento”). Segura e líquida apenas a exclusão do dolo eventual. A partir daqui multiplicam-se os desencontros e as soluções. Em consonância com os ensinamentos da dogmática geral da infracção criminal (...) também aqui nada parece impor uma solução rígida e fechada.
(...)
Com a doutrina hoje dominante, cremos dever reconhecer ao conceito uma extensão mais alargada, no essencial sobreponível ao âmbito do que no direito alemão se designa por dolo directo, que abrange também o chamado dolo necessário. Assim, para haver intenção, no sentido e para efeitos do crime de Denúncia caluniosa, será bastante que o agente represente a instauração do procedimento como consequência necessária, segura ou inevitável da sua conduta. (...) “A intenção no sentido do § 164 não é o mesmo que o motivo determinante da acção. Basta, pelo contrário, que o agente queira que se instaure o procedimento contra o denunciado, mesmo que ele prossiga outros fins”... A instauração do procedimento pode, assim, configurar um procedimento concorrente com outros ou apenas um fim intermédio e instrumental em relação a um fim último e decisivo. Pode mesmo não corresponder à vontade do agente nem ser ele por ele querida, já que pode antecipar a sua verificação (necessária ou segura) como uma contrariedade e, por isso, com desagrado e com pena.
Na síntese de Herdegen (…): “quando o agente sabe ou tem como seguro que o resultado (a saber: o procedimento) terá lugar, não precisa de querer alcançá-lo. Ele pode ser-lhe pura e simplesmente indiferente ou encará-lo mesmo como coisa indesejável”.
(...)
A intenção tem de se reportar apenas à instauração (ou continuação) do procedimento e não ao seu desfecho, nomeadamente ao seu desfecho negativo ou desfavorável para a pessoa objecto da denúncia ou suspeita. Comete a infracção quem realiza o facto com a intenção de que o processo venha a ser instaurado, mesmo que não tenha razões para acreditar na condenação»
«Em conclusão, o elemento subjectivo do crime de denúncia caluniosa impõe que o agente saiba e queira a falsidade da imputação, devendo o dolo (intenção de que contra outrem se instaure procedimento) revestir duas das três formas previstas no art. 14º do Código Penal, dolo directo ou necessário, sendo de excluir a punibilidade a título de dolo eventual». (Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, Coimbra Editora 2001, págs. 550, § 70).
Ora, os factos 1 a 18 do requerimento de abertura da instrução preenchem de pleno os elementos constitutivos, objectivos e subjectivos do crime de denúncia caluniosa, p. e p. pelo art. 365º nº 1 do Código Pneal.
Todos esses factos são perfeitamente aptos à decisão de submeter o processo a julgamento.
Ponto é que deles venham a resultar indícios geradores de uma probabilidade séria de, em fase do julgamento e discussão da causa, determinarem a condenação dos arguidos pelos crimes imputados.
Mas só a realização da instrução poderá esclarecer se os factos alegados no requerimento de abertura da instrução resultam ou não indiciados.
A decisão recorrida ao considerar a omissão na narração dos factos potencialmente subsumíveis ao crime de denúncia caluniosa, como fundamento da rejeição da instrução fez, salvo melhor opinião, uma interpretação que não tem correspondência, nem na letra do art. 287º nº 2 do CPP, nem no texto do requerimento de abertura da instrução e, por isso, não pode manter-se.
O presente recurso é, pois, procedente e merece provimento.

III – DISPOSITIVO
Termos em que decidem, neste Tribunal da Relação de Lisboa:
Em conceder provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra que declare aberta a instrução e daí retire todas as consequências legais.
Sem Custas.
Notifique.
*
Acórdão elaborado pela primeira signatária em processador de texto que o reviu integralmente (art. 94º nº 2 do CPP), sendo assinado pela própria e pelos Juízes Adjuntos.
*
Tribunal da Relação de Lisboa, 21 de Maio de 2025
Cristina Almeida e Sousa
Mário Pedro M.A. Seixas Meireles
Francisco Henriques