Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2402/23.5T8VNG.L1-7
Relator: PAULO RAMOS DE FARIA
Descritores: SOCIEDADE UNIPESSOAL
MANDATO FORENSE
ÓBITO DO SÓCIO GERENTE
REPRESENTAÇÃO DA SOCIEDADE EM JUÍZO
REGULARIZAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/03/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1. O óbito do sócio de uma sociedade unipessoal não tem efeitos sobre a instância integrada pela sociedade (e não pelo seu sócio único).
2. O óbito do gerente de uma sociedade unipessoal não tem efeitos sobre o contrato de mandato forense nem sobre a procuração outorgada pela sociedade.
3. O óbito do gerente de uma sociedade unipessoal pode colocar um problema de representação da sociedade em juízo, a ser resolvido nos quadros do art.º 25.º do Cód. Proc. Civil.
4. A iniciativa da regularização da representação da sociedade em juízo, quando não exista quem a represente, é oficiosa, por força do disposto no n.º 2 do art.º 6.º do Cód. Proc. Civil.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

A. Relatório

A.A. Identificação das partes e indicação do objeto do litígio
NVRL, S.A., instaurou a presente ação declarativa, com processo comum, contra NOVIUNIPESSOAL, L.da, pedindo:
a “condenação da ré a proceder ao pagamento à autora de todos os montantes que a autora venha a pagar à sociedade Pague & Leve, S.A. (…), ou a qualquer outra entidade na qualidade de proprietária e armador do navio Cruzeiro Grande, (…) até ao montante de capital de € 300.000,00 (…), acrescido dos juros (…) que a autora venha igualmente a pagar, a que acrescem ainda os juros que sejam devidos pela ré (…)”.

Citada a contraparte, ofereceu esta a sua contestação.
Ulteriormente, foi agendada a audiência final para janeiro e fevereiro de 2025.
Perante a notícia da morte do sócio único e gerente da ré, em 25 de agosto de 2024, bem como considerando o facto de a gerente que outorgou a procuração forense junta pela ré aos autos ter renunciado à gerência, o tribunal a quo, em 30 de setembro de 2024, proferiu a seguinte decisão:
“Atento o que fica dito, declaro caducada a procuração forense outorgada (…) por NOVIUNIPESSOAL, Lda., em representação da ré (sic), já que inexiste, como refere a autora, a possibilidade do exercício de poderes de gerência ficarem, a título provisório, a carga (sic) de outros sócios, pois que não os há.
“Atento o que ficou dito, dá-se sem efeito as datas designadas para julgamento, ficando os autos a aguardar que seja junto documento que dê destino à sociedade ré, ou dissolução, ou integração daquela em património sucessório se o houver”.
Inconformada, a autora apelou desta decisão, concluindo, no essencial:
G. (…) [A] sociedade recorrida NOVIUNIPESSOAL não se extinguiu, pelo que a procuração junta aos presentes autos é válida e vincula a recorrida, inexistindo qualquer irregularidade no mandato que deva ser objeto de suprimento. (…)
K. (…) [A] “morte do mandante” não é, nem pode ser equiparada à “morte do sócio” de uma sociedade (…).
L. Independentemente do destino que será dado à recorrida NOVIUNIPESSOAL, enquanto esta não for extinta (…) mantém as suas personalidade e capacidade jurídicas intactas (…); (…)
O. A eficácia do mandato e da procuração outorgada subsistem ainda que, por qualquer razão, o anterior representante legal da sociedade deixe de o ser (…). (…)
T. (…) [C]aso se entenda que o mandato conferido não é válido e se extinguiu (…), sempre a consequência seria a notificação da recorrida para (…) constituir advogado (…).”
Foi apresentada contra-alegação, pugnando-se pela manutenção de decisão do tribunal a quo recorrida.
A.B. Questões que ao tribunal cumpre solucionar

As questões de direito a tratar – todas em torno dos efeitos processuais decorrentes do falecimento do sócio (e gerente) da ré – serão mais desenvolvidamente enunciadas no início do capítulo dedicado à análise dos factos e à aplicação da lei.
*
B. Fundamentação
B.A. Factos provados (conforme considerado pelo tribunal ‘a quo’)
1 – Em 2 de maio de 2023, com a contestação, a ré juntou aos autos procuração forense por si outorgada, por meio de uma sua gerente à data, SPJM.
2 – Em 10 de novembro de 2023, SPJM renunciou à gerência, mantendo‑se como gerente, unicamente, SCPF.
3 – Em 30 de novembro de 2023, foi registada a favor a SCPF a aquisição da quota na ré que a esta ainda não pertencia.
4 – Em 25 de agosto de 2024, SCPF faleceu.
5 – Em 30 de setembro de 2024, o tribunal a quo proferiu o seguinte despacho:
«A fls. 300 v. veio a Ré informar os autos do falecimento do seu único sócio e gerente da sociedade Ré e referir que a sociedade não está em condições de nomear novo gerente.
 A Autora entende que nada obsta que outros sócios a representem. // Vejamos:
Compulsados os autos verifico que a procuração forense outorgada nos autos o foi pela então sócia e gerente SPJM.
Do teor da certidão do Registo Comercial junta a fls.301 resulta que SPJM a 30/11/2023 transmitiu a sua quota à própria sociedade, a qual passou a ter por único sócio SCPF, entretanto falecido e nos estado de solteiro, cfr. Certidão de fls. 301v.
Nesta data decorre claro que a gerência da sociedade Ré já não cabe à outorgante da procuração forense junta aos autos – SPJM, sendo, que nem sócia é da mesma.
De harmonia com o disposto no art.º 252.º, 1, do CSC a sociedade é administrada e representada por um ou mais gerentes.
Em face do estabelecido na supra mencionada norma legal, parece pacífico que SPJM já não é a legal representante da Ré.
Assim sendo, claro nos parece igualmente, o mandato conferido pela Ré através da sua  anterior sócia e gerente aos advogados, se extinguirá. // Vejamos:
Dispõe o art. 1157.º do CC que o “Mandato é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta da outra”. E, de harmonia com o disposto no art.º 1158.º, 1, o mandato em causa é oneroso, já que os mandatários praticam-no no exercício da profissão de advogados, sendo que para tal, a mandante outorgou-lhe uma procuração, atribuindo-lhes poderes representativos, cfr. art.º 1178.º, 1, e 262.ºdo CC.
No entanto, estabelece o art.º 265.º, 1, do CC que entre outras, a procuração extingue-se quando cessa a relação jurídica que lhe serve de base.
Ora, no caso dos autos e atento a que houve uma renúncia à gerência da sociedade, já não sendo a outorgante da procuração inicial a legal representante da sociedade Ré, sendo que já nem sócia é, parece claro que a procuração outorgada por esta ao advogado signatário da petição inicial, se extinguirá uma vez que a relação jurídica em causa nestes autos e que serviu de base à outorga da referida procuração cessou.
De facto, como se escreve no Ac. De 08/02/2022, ‘O falecimento de um sócio pode, em tese, dar origem à chamada triple option: ou a sociedade se dissolve; ou amortiza ou adquire a quota do falecido aos herdeiros; ou continua a sua existência integrando como seus sócios os herdeiros do falecido’.
No caso, desconhece-se, neste momento quem são os sucessores do falecido, e sequer se existem, já que aquele faleceu no estado de solteiro, pelo que se desconhece-se da sorte da sociedade Ré.
Atento o que fica dito, declaro caducada a procuração forense outorgada a fls. 132 por NOVIUNIPESSOAL, Lda., em representação da Ré, já que inexiste, como refere a Autora, a possibilidade do exercício de poderes de gerência ficarem, a título provisório, a carga de outros sócios, pois que não os há.
Atento o que ficou dito, dá-se sem efeito as datas designadas para julgamento, ficando os autos a aguardar que seja junto documento que dê destino à sociedade Ré, ou dissolução, ou integração daquela em património sucessório se o houver».
B.B. Análise dos factos e aplicação da lei
São as seguintes as questões de direito parcelares a abordar:
1. Efeitos da morte do sócio único
2. Efeitos sobre a representação da sociedade em juízo
3. Efeitos sobre o patrocínio forense
4. Conclusão
5. Responsabilidade pelas custas
Efeitos da morte do sócio único
Pelo Decreto-Lei n.º 257/96, de 31 de dezembro, foi introduzido no Código das Sociedades Comerciais o regime das sociedades unipessoais por quotas (arts. 270.º-A a 270.º‑G). Estabelece o art.º 270.º-G do Cód. Soc. Comerciais que [à]s sociedades unipessoais por quotas aplicam-se as normas que regulam as sociedades por quotas, salvo as que pressupõem a pluralidade de sócios.
Resulta da ressalva final desta norma – e da natureza da sociedade unipessoal – que a este tipo de sociedades não é aplicável o disposto nos arts. 225.º e 226.º do Cód. Soc. Comerciais (transmissão da quota por morte). Este regime pressupõe a pluralidade de sócios.
Em caso de morte do sócio único, vale, sim, imediatamente, o regime da transmissão de direitos previsto no Código Civil respeitante ao “chamamento de uma ou mais pessoas à titularidade das relações jurídicas patrimoniais de uma pessoa falecida e a consequente devolução dos bens que a esta pertenciam” – art.º 2024.º e segs. do Cód. Civil. Sendo vários os chamados à sucessão mortis causa, releva, ainda, subsequentemente, o disposto no art.º 222.º e segs. do Cód. Soc. Comerciais (direitos e obrigações inerentes a quota indivisa).
Afigura-se-nos, pois, assentar num equívoco a convocação na decisão apelada da, assim apelidada, triple option (art.º 225.º do Cód. Soc. Comerciais). Por força da unipessoalidade na detenção da totalidade das participações sociais, em caso de morte do sócio único, inexiste outro caminho que não seja a simples vocação sucessória – sendo que, por exemplo, uma eventual dissolução voluntária resultará já de uma ulterior decisão do sucessor.
A sociedade parte na ação não é o objeto mediato da relação material controvertida, mas sim um seu sujeito – no caso, o sujeito passivo. Este objeto também não é, no vaso, integrado pelas respetivas participações sociais. O mesmo é dizer que a transmissão das participações sociais na pendência da instância, seja inter vivos, seja mortis causa, não constitui uma transmissão “da coisa ou direito em litígio” (art. 356.º do Cód. Proc. Civil).
Da personificação do ente coletivo resulta que o óbito do titular das participações sociais na pendência da causa (na qual não seja demandante nem demandado) mais não é do que o óbito de um terceiro, relativamente à instância processual, por ele não integrada. Podemos, pois, concluir que a morte do sócio único não tem nenhuma repercussão sobre a instância processual.
1. Efeitos sobre a representação da sociedade em juízo
Convém sublinhar que na decisão apelada se entrecruzam duas questões distintas, devendo estas ser apartadas. Referimo-nos à representação da sociedade em juízo (art.º 25.º do Cód. Proc. Civil) e à regularidade do mandato forense (art.º 48.º do Cód. Proc. Civil).
Por um lado, perante a morte de uma pessoa física relacionada com o ente coletivo, podemos enfrentar um problema de representação da sociedade em juízo (e fora dele). Por força do n.º 1 do art.º 25.º do Cód. Proc. Civil, “as sociedades são representadas por quem a lei, os estatutos ou o pacto social designarem”. Acrescenta o seu n.º 2 que, “[s]endo demandada (…) sociedade que não tenha quem a represente (…), o juiz da causa designa representante especial, salvo se a lei estabelecer outra forma de assegurar a respetiva representação em juízo”.
No entanto, em rigor, apenas releva aqui a morte do gerente, e não a morte do sócio único. São estas qualidades diferentes, podendo caber a pessoas diferentes (art.º 270.º-E, n.º 1, do Cód. Soc. Comerciais).
Assim, se, no caso dos autos tiver falecido uma pessoa relacionada com a ré, apenas haverá inicialmente que apurar se era, ou não, gerente da sociedade – e já não, num primeiro momento, se era o detentor das participações sociais. Apenas no caso de o falecido ser o gerente (único), será o óbito processualmente relevante.
Num segundo momento, constatando-se que o gerente falecido era também o sócio único, esta coincidência já assumirá relevância sucedânea, não por força da titularidade das participações sociais, mas sim por força do deferimento da gerência ope legis previsto no art.º 253.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil. Haverá, então, que respeitar o regime previsto no art.º 25.º do Cód. Proc. Civil, acima referido, referente à representação em juízo da sociedade (que não tenha quem a represente).
2. Efeitos sobre o patrocínio forense
Por outro lado, como segundo e distinto problema a enfrentar, podemos questionar-nos sobre os efeitos do óbito do gerente sobre os contratos em que a sociedade seja parte, quer de natureza estritamente patrimonial, como os contratos de fornecimentos de bens e serviços, quer de natureza intuitu personae, como os contratos de trabalho ou de mandato. Na resposta a dar a esta questão, e no que para o caso releva, recuperamos aqui o que acima adiantámos – a morte do sócio único não tem nenhuma repercussão sobre a instância processual – e acrescentamos agora que a morte do gerente também a não tem, em matéria de subsistência do contrato de mandato forense (art. 40.º e segs. do Cód. Proc. Civil).
Conforme se sintetiza no Ac. do TRE de 25-09-2008 (2011/08-2), num aresto desenvolvido sobre a cessação das funções de administrador, mas que se aplica sem ressalvas ao termo das funções de gerente, incluindo por morte:
“I – Outorgada procuração forense por administradores de sociedades que, entretanto, cessaram tais funções, tal instrumento mantém-se válido e regular, nada impedindo a sua posterior utilização para legitimar o patrocínio do(s) advogado(s) a favor de quem ela foi outorgada.
II – Com efeito, a relação que lhe serve de base não é o contrato de administração entre o titular do órgão e a sociedade, mas o contrato de mandato e só cessando este é que se extingue a procuração.
III – Enquanto o mandato é um contrato pelo qual alguém se obriga a praticar um ou mais atos jurídicos por conta de outrem, a procuração é o ato unilateral pelo qual alguém atribui a outrem poderes representativos, legitimando-o à prática de atos em seu nome e para produzirem efeitos na sua esfera jurídica.
IV – A procuração é assim um meio ou instrumento de execução do mandato.
V – Por força da representação orgânica, a vontade manifestada pelos administradores é a vontade da sociedade e não a deles próprios, como representantes da sociedade; logo, tal vontade subsiste válida, eficaz e regular, ainda que eles cessem, por qualquer motivo, as respetivas funções”.
Deste raciocínio se estrai, ainda, serem absolutamente improcedentes as considerações desenvolvidas pelo tribunal a quo em torno da anterior renúncia da gerente que, em representação da sociedade, havia outorgado o mantado forense e constituído procuradores os atuais patronos da ré. A este respeito, na decisão recorrida pode ler-se:
“No entanto, estabelece o art.º 265.º, 1, do CC que entre outras, a procuração extingue-se quando cessa a relação jurídica que lhe serve de base.
“Ora, no caso dos autos e atento a que houve uma renúncia à gerência da sociedade, já não sendo a outorgante da procuração inicial a legal representante da sociedade Ré, sendo que já nem sócia é, parece claro que a procuração outorgada por esta ao advogado signatário da petição inicial, se extinguirá uma vez que a relação jurídica em causa nestes autos e que serviu de base à outorga da referida procuração cessou”.
O raciocínio desenvolvido pelo tribunal a quo assenta num manifesto equívoco. A relação jurídica que serviu de base à outorga da procuração não foi a relação de gerência ou representação orgânica da sociedade – intercedente entre esta e a gerente que renunciou. A relação jurídica que serviu de base à outorga da procuração foi, sim, o contrato de mandato forense (arts. 4.º, n.º 2, e 5.º da Lei n.º 10/2024, de 19 de janeiro, e 67.º do EOA) – ou mandatos (art. 1160.º do Cód. Civil). Ora, este contrato – entre a mandante sociedade e os mandatários advogados – não cessou, designadamente, por caducidade, não se mostrando preenchida nenhuma das alíneas previstas no art. 1174.º do Cód. Civil.
3. Conclusão
Decorre do raciocínio expendido que a decisão impugnada não pode ser mantida: nem o contrato de mandato forense, nem a procuração outorgada estão extintos. A instância deve prosseguir os seus termos.
Antes, porém, e se, depois de notificada a ré para o efeito, não for indicado quem atualmente a representa em juízo, haverá que dar cumprimento ao disposto no n.º 2 do art.º 25.º do Cód. Proc. Civil. Neste contexto – e considerando o conteúdo do contrato de sociedade, se for junto aos autos –, haverá que nomear um representante ad litem à ré – eventualmente o cabeça de casal da herança aberta por óbito de SCPF ou o administrador (ou curador) do acervo hereditário, se a herança se mantiver jacente (arts. 2047.º e 2048.º do Cód. Proc. Civil).
Esta iniciativa do tribunal é oficiosa, sem prejuízo do respeito pelo contraditório devido, por força do disposto no n.º 2 do art. 6.º do Cód. Proc. Civil – assim, cfr. o Ac. do TRP de 16‑04‑2012 (909/10.3TTVCT.P1).
4. Responsabilidade pelas custas
A responsabilidade pelas custas (da causa e da apelação) cabe à apelada, NOVIUNIPESSOAL, por ter ficado vencida (art.º 527.º do Cód. Proc. Civil).
C. Dispositivo
C.A. Do mérito do recurso
Em face do exposto, na procedência da apelação, acorda-se em revogar o despacho recorrido e determina-se o prosseguimento do processo perante tribunal a quo, sendo regularizada a representação da sociedade ré em juízo, nos termos previstos no n.º 2 do art.º 25.º do Cód. Proc. Civil, e seguindo-se os demais termos processuais.
C.B. Das custas
Custas a cargo da ré apelada.
*
Notifique.

Lisboa 3/12/2024
Paulo Ramos de Faria
Diogo Ravara
Edgar Taborda Lopes