Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2011/08-2
Relator: FERNANDO BENTO
Descritores: SOCIEDADES COMERCIAIS
MANDATO JUDICIAL
CESSAÇÃO DE FUNÇÕES EM CARGO SOCIAL
Data do Acordão: 09/25/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO CÍVEL
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário:
A eficácia quer do mandato, quer da procuração outorgada subsiste ainda que, por qualquer razão, cesse funções como Administrador, quem outorgou a procuração.
Decisão Texto Integral:
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PROCESSO Nº 2011/08-2
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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
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RELATÓRIO
No Tribunal Judicial de … foi requerida, em, 01-02-2008, pelo “A”, contra “B”, um procedimento cautelar de entrega judicial e cancelamento de registo de determinado imóvel, nos termos do disposto no art. 21 ° do DL na 149/95 de 24/6 com a redacção que lhe foi dada pelo DL nº 265/97 de 2/10.
Com o requerimento inicial, subscrito pelo Sr. “C”, juntou uma procuração forense outorgada em 21-02-2006 a favor dele e de outro em que outorgaram os “D” e “E”, com poderes para o acto no qual representaram o “A”.
Dispensada a prévia audição da requerida, foi decretada a providência requerida. Notificada a requerida, deduziu ela oposição à providência, além do mais, suscitando uma questão prévia da falta de poderes dos outorgantes na procuração para representar o requerente desde 15-01-2008, pelo que haveria irregularidade do mandato.
Convidado o requerente a apresentar procuração emitida pelos seus actuais representantes legais, através de notificação ao Sr. Advogado subscritor do requerimento inicial, não o fez, mantendo a sua posição quanto à regularidade da procuração.
Por isso, em despacho de 02-06-2008, foi julgada procedente a questão prévia suscitada e determinada a ineficácia de toda a actuação desenvolvida pelo “C” que foi ainda condenado nas custas.

Inconformado, interpôs recurso de apelação, pugnando pela revogação de tal despacho em alegações que finaliza com a seguinte síntese conclusiva:
a) A procuração junta aos presentes autos é válida e vincula o Requerente;
b) Não existe pois, qualquer irregularidade no mandato que deva ser suprida;
c) À data da outorga da procuração (21.02.2006) os Srs. “D” e “E” eram membros do Conselho de Administração do Banco recorrente.
d) A forma de obrigar a Sociedade, à data da outorga da procuração, era, em uma das hipóteses, pela assinatura de dois membros do Conselho de Administração do recorrente;
e) Apesar das diversas vicissitudes dos órgãos societários do ora recorrente, em momento algum a procuração em causa foi revogada, nem expressa, nem tacitamente;
f) O regime plasmado no Código Civil é claro quando prevê apenas como causas de caducidade do mandato a morte, a interdição e a inabilitação do mandante;
g) A equiparação, por extensão, de qualquer uma destas três hipóteses às alterações, normais e frequentes, dos órgãos de Sociedades Comerciais não se nos vislumbra aplicável.
h) Neste sentido, o AC da RP de 22.01.1991: "I - Só a extinção da sociedade, como facto equivalente à extinção por morte de um indivíduo, faz caducar o mandato nos termos do art. 1174°, al. A) do Cód. Civil. II - O falecimento do sócio gerente que, em nome da sociedade, conferiu poderes forenses, não sendo enquadrável nas causas de extinção da procuração previstas no art. 265° do Cód. Civil, é irrelevante para o efeito da extinção do mandato." - in BMJ, 403-485;
i) Quando nem a morte de quem, em nome da sociedade, vinculando-a, confere o mandato, o faz caducar, pela mesma ordem de razão, a saída dos órgãos societários da sociedade também não o fará;
j) Não existe qualquer irregularidade no patrocínio judiciário;
k) E por conseguinte, deve ter-se por correcta a representação do Banco, ora recorrente;
l) No caso em apreço, não existe falta de procuração, nem insuficiência, nem irregularidade;
m) O disposto no art. 40° nº 2 do CPC não é aplicável por, precisamente, não existir, no caso em apreço, falta, insuficiência ou irregularidade do mandato judicial.
n) A procuração junta aos autos deve ser aceite como boa, por falta de qualquer dos vícios de forma elencados no nº 1 do art. 40° do CPC e por consequência, o mandato deve ser considerado regular.
Acresce ainda que,
o) A notificação imposta para a respectiva regularização da procuração a coberto do nº 2 do art. 40° do CPC deve ser efectuada, quer na pessoa do mandatário, quer na pessoa do mandante, o que não se verificou nos presentes autos;
p) Não tendo pois, o Banco recorrente sido notificado para o devido efeito.
q) Pelo que, estamos perante uma nulidade processual, padecendo a douta sentença recorrida do vício de violação da Lei.

Conclui, pedindo a revogação da decisão e a sua substituição por outra que julgue válido tudo o praticado pelo Mandatário do Banco, ora recorrente, face à regularidade do mandato, com a consequente revogação da condenação em custas.

A requerida não contra-alegou.
Remetido o processo a esta Relação, após o despacho preliminar, foram corridos vistos.
Nada continua a obstar ao conhecimento da apelação.
FUNDAMENTAÇÃO
Os factos relevantes constam do relatório que antecede.
Como flúi das conclusões apresentadas, a questão a apreciar é tão só saber se a cessação de funções de administradores de sociedades é impeditiva da utilização de procuração forense por ele outorgada para a posterior propositura de acções (ou procedimentos cautelares) com o fundamento de haver sido emitida por quem, à data da referida utilização, já não detinha poderes de representação.
O despacho recorrido entendeu que sim, logo, haveria irregularidade da procuração que, não tendo sido sanada no prazo para tal fixado, determinou a ineficácia de tudo o que foi praticado pelo ilustre advogado que a invocou.
Mas não tem razão.
Não estando em causa qualquer revogação da procuração pelo mandante /representado nem renúncia do mandatário /procurador, a questão que importa dilucidar é saber se a cessação de funções de administradores pelos subscritores da procuração fez cessar a relação jurídica que serviu de base à sua emissão, pois que a procuração se extingue quando cessa a relação jurídica que lhe serve de base (art. 265° nº 1 e 2 CC).
A resposta não pode deixar de ser negativa.
A relação jurídica que serviu de base à procuração não é a relação societária entre o administrador e a sociedade, mas o contrato de mandato celebrado entre o “A” e o ilustre advogado subscritor do requerimento inicial do procedimento cautelar.
Com efeito, o mandato é um contrato, a procuração é um acto unilateral.
Enquanto aquele é um contrato pelo qual alguém se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta de outrem (art. 1157° CC), a procuração é o acto pelo qual alguém atribui a outrem poderes representativos (art. 262° nº 1 CC); o mandato impõe a obrigação de celebrar actos jurídicos por conta de outrem; a procuração confere o poder de os celebrar em nome de outrem. O mandato e a procuração podem coexistir ou andar dissociados: aquele sem esta, esta sem aquele; daí o mandato com representação e o mandato sem representação.
O que, efectivamente, origina os poderes existentes no mandatário não é a procuração, mas o acordo de vontades; a procuração é o meio ou instrumento para exercer o mandato perante terceiros.
O poder negocial é conferido ao mandatário pelo mandante através do mandato; a procuração apenas representa a exteriorização desses poderes (STJ, Ac. de 16.04.1996, Col. Jur. Acs. STJ, Ano IV, T. II, pág. 22); Ac. Rel. Porto de 27-04-2006, acessível na INTERNET através de httl://www.dgsi.pt).
A outorga de uma procuração a favor de alguém confere-lhe, assim, poderes de representação, para que o procurador, em nome do outorgante, possa celebrar determinado negócio ou negócios jurídicos, ou possa praticar actos jurídicos, legitimando-o perante terceiros como representante do outorgante e para que os efeitos da sua actuação se produzam directa e imediatamente na esfera jurídica do representado; por outras palavras, para que possa executar o mandato.
Logo, com acto unilateral e instrumental relativamente ao mandato, a procuração não pode titular este nem pode ser considerada como mandato.
O mandato é um contrato (não um acto unilateral) que impõe a obrigação de celebrar actos jurídicos por conta de outrem; o que há de típico no mandato é a cooperação dos dois sujeitos sob a forma de actos jurídicos que um deles, o mandatário, realiza por conta do outro, o mandante, enquanto que a procuração confere o poder de os celebrar em nome de outrem.
Com o mandato constitui-se um vínculo, através do qual o mandatário se vincula à prática de um ou mais actos jurídicos; a procuração não tem esse efeito de obrigar o representante a uma actividade de gestão: este fica simplesmente legitimado perante terceiros e autorizado ao desenvolvimento da gestão (Cfr. Ac. STJ 14-11-2006).
Assim, a relação jurídica que serviu de base à outorga da procuração foi o contrato de mandato celebrado entre o “A” e os Ilustres Advogados, “C” e “F”.
Não foi, como suposto na decisão recorrida, a relação ou contrato de administração existente entre os outorgantes da procuração na qualidade de membros do Conselho de Administração e o “A”; tal relação apenas os legitimava a celebrar, em representação do “A” o contrato de mandato e a outorgar os poderes representativos, na data em que tal negócio e tal procuração tiveram lugar.
A eficácia quer do mandato, quer da procuração outorgada subsistia ainda que, por qualquer razão, cessasse a relação ou contrato de administração.
Com efeito, produzindo os respectivos efeitos para o futuro na esfera jurídica do representado (por expressa manifestação de vontade de quem na altura o representava e vinculava), não se compreende que a sua sorte ficasse dependente da manutenção dessa representação; como entendeu a Relação de Lisboa em 11-03 -1999, "a relação de mandato formalizada por procuração outorgada a favor de terceiros por um sócio gerente de sociedade comercial não se extingue com a posterior renúncia deste sócio à gerência da referida sociedade (mandante)".
É que a representação subjacente à relação ou contrato de administração não é uma representação em sentido técnico-jurídico, mas sim numa representação orgânica.
Segundo esta, "considera-se que a pessoa colectiva, como um ente abstracto, embora juridicamente real, não tem uma existência físico-psíquica, e, por isso, só pode agir no mundo do direito na medida em que pessoas físicas ponham ao serviço dela a sua vontade actuante. ( ... )
O órgão faz parte integrante da pessoa colectiva, do seu modo de ser. A vontade do órgão é atribuída à pessoa colectiva: é a vontade da pessoa colectiva. Não se trata de pessoas físicas que agem para o ente colectivo, mas é o próprio ente que quer e age. (... ) Deste modo a vontade do órgão não substitui a vontade da pessoa colectiva. A vontade do órgão, expressa pelas pessoas físicas nele providas no exercício das suas funções, é atribuída, em si mesma à pessoa colectiva, vale como vontade desta" (Cfr. Luís Brito Correia, Os Administradores das Sociedades Anónimas, 1993, p. 202).
Significa isto que a vontade manifestada na procuração, como autora e agente, é a do “A” a quem é imputada a vontade manifestada pelos elementos do Conselho de Administração nela intervenientes: nessa procuração eles não "representavam" o “A” eles "eram" o “A”; não ocorria qualquer fenómeno de "substituição de vontades", típica da representação.
Por isso, é que a validade, regularidade e eficácia da procuração eram independentes da duração do "mandato" dos administradores que a outorgaram: parafraseando uma afirmação muito divulgada, a propósito da permanência das instituições e da efemeridade dos respectivos cargos, o “A”, como sociedade anónima fica, os titulares dos seus órgãos passam ...
Entendimento diverso conduziria a resultados absurdos: pense-se, por exemplo, num contrato de eficácia diferida no tempo: será possível sustentar a sua caducidade por os administradores que nele intervieram haverem deixado de o ser?
Ou, num litígio que se arrastasse nos tribunais ao longo de vários anos: seria curial exigir novas procurações, sempre que mudasse a composição dos órgãos sociais, maxime, o conselho de administração?
Em conclusão: a apelação não pode deixar de proceder, impondo-se a revogação do despacho recorrido.
Por via disso, encontra-se prejudicada a apreciação da questão da omissão de notificação do mandante para a regularização da procuração.

Em síntese:
I - Outorgada procuração forense por administradores de sociedades que entretanto cessaram tais funções, tal instrumento mantém-se válido e regular, nada impedindo a sua posterior utilização para legitimar o patrocínio do(s) advogado(s) a favor de quem ela foi outorgada.
II - Com efeito, a relação que lhe serve de base não é o contrato de administração entre o titular do órgão e a sociedade, mas o contrato de mandato e só cessando este é que se extingue a procuração.
III - Enquanto o mandato é um contrato pelo qual alguém se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta de outrem, a procuração é o acto unilateral pelo qual alguém atribui a outrem poderes representativos, legitimando-o à prática de actos em seu nome e para produzirem efeitos na sua esfera jurídica.
IV - A procuração é assim um meio ou instrumento de execução do mandato.
V - Por força da representação orgânica, a vontade manifestada pelos administradores é a vontade da sociedade e não a deles próprios, como representantes da sociedade; logo, tal vontade subsiste válida, eficaz e regular, ainda que eles cessem, por qualquer motivo, as respectivas funções.
ACÓRDÃO
Nesta conformidade, acorda-se nesta Relação em julgar procedente a apelação e em revogar o despacho recorrido, devendo seguir os autos na 1ª instância a tramitação adequada.
Custas pela requerida.
Évora e Tribunal da Relação 25/09/2008