Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
491/18.3SYLSB.L1-9
Relator: PAULA PENHA
Descritores: MEDIDA DA PENA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO
PENA ACESSÓRIA
REGIME DE PROVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/15/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I – O Tribunal recorrido nem sequer ponderou aplicar uma pena de multa (em alternativa à pena de prisão, conforme a previsão para o crime de perseguição contida no art.º 154º -A do Código Penal) porque considerou (e bem) que apesar do critério preferencial legal de  contido no art.º 70º do mesmo diploma, a pena de multa não realizaria de forma adequada e suficiente as finalidades punitivas da arguida - dado esta não ter reconhecido o desvalor da sua conduta, relativamente ao assistente, durante aquele período temporal de 18 meses, nem ter admitido a intenção subjacente a tal actuação para com o assistente.
Por isso, essa opção primordial (por pena de prisão em detrimento de pena de multa) já respeitou esta norma legal e já denotou preocupação do Tribunal de 1ª instância em ajustar essa espécie concreta de punição às finalidades das penas:
Função de prevenção geral negativa – como instrumentos destinados a actuar (psiquicamente) sobre a globalidade dos membros da comunidade, afastando-os da prática de crimes através das ameaças penais estatuídas pela lei, da realidade da aplicação judicial das penas e da efectividade da sua execução;
Função de prevenção geral positiva ou de integração – como instrumentos de que o Estado se serve para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força da vigência das suas normas de tutela de bens jurídicos e, assim, no ordenamento jurídico-penal, assim visando o restabelecimento da paz jurídica comunitária posta em causa pelo comportamento criminal de um arguido;.
Função de prevenção especial negativa – como instrumentos que visam a neutralização daquele tipo de conduta criminosa do arguido;
Função de prevenção especial positiva – como instrumentos que visam a re-socialização do arguido sem olvidar o princípio da inviolabilidade da dignidade da pessoa humana do arguido e de garantia do livre desenvolvimento da sua personalidade.
II – O nosso legislador atribui ao tribunal o poder-dever de suspender a execução de pena de prisão, desde que se preencham dois requisitos (cumulativos previstos no nº 1 do art.º 50º do CP):  um requisito formal que é a pena concreta aplicada não ser superior a 5 anos; e um requisito material que é, perante os concretos factores aí expressamente elencados (da personalidade do arguido, das suas condições de vida, da sua conduta anterior e posterior ao crime e das circunstâncias deste) o tribunal concluir por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento futuro do arguido.
O instituto da suspensão da execução da pena de prisão tem como filosofia subjacente: apontar ao arguido o rumo certo no sentido de, doravante, adequar o seu comportamento às exigências do direito penal, impondo-se-lhe como factor pedagógico de contestação e auto-responsabilização pelo seu comportamento posterior. Para isso, sendo necessária a capacidade de o arguido sentir essa ameaça, a exercer sobre si o efeito contentor (em caso de situação parecida) e a capacidade de vencer a vontade de delinquir.
Neste domínio da prognose social favorável o tribunal deve correr um risco prudente quanto à esperança de que o arguido sentirá a sua condenação como uma advertência e não cometerá nenhum crime no futuro. E para que esse risco prudente dê frutos (no sentido de ser obtida a pretendida a ressocialização do arguido em liberdade, com a simples ameaça da pena de prisão) o tribunal tem o poder-dever (perante as circunstâncias de cada caso concreto e segundo o regime contido nos art.ºs 50º a 54º do CP): de fixar o respectivo período de suspensão entre 1 a 5 anos; e de subordinar essa suspensão ao cumprimento de deveres por parte do arguido em liberdade e/ou à observância de regras de conduta por parte do arguido em liberdade e/ou a um regime de prova assente num plano de reinserção social executado com vigilância e apoio dos serviços de reinserção social ao arguido em liberdade.
III – Aliás, a propósito do crime de perseguição, o legislador fez questão de prever, expressamente (no art.º 154º-A, nºs 2 e 3 do CP em consonância com o nº 2 do art.º 65º do mesmo diploma) a aplicação, como penas acessórias de proibição de contacto com a vítima entre 6 meses a 3 anos e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção de condutas típicas de perseguição.
A este propósito importa salientar que – não obstante seja compreensível o desejo e a vontade do assistente/vítima/ora recorrente, almejando que a arguida não fique impune e não repita tal delito –, a verdade é que com a pena concreta aplicada de 4 meses de prisão com execução suspensa durante 12 meses (correspondentes ao triplo de duração daquela pena) e com a proibição de (qualquer) contacto com a vítima e com a sujeição a um regime prova (com acompanhamento e reintegração da arguida): a arguida não fica impune face ao crime cometido e , simultaneamente, a arguida fica ciente de que a sua não sujeição ao ambiente prisional para cumprimento efectivo dessa pena, apenas, dependerá de si própria.
Pois, durante o próximo ano, a arguida não poderá cometer qualquer crime, não poderá sequer contactar o assistente e terá de sujeitar a um regime de prova destinado a tratar e a prevenir futuras condutas típicas de perseguição por parte da arguida (nos termos e com os efeitos previsto pelos art.ºs 154º-A, n.ºs 3 e 4 e 50º a 54º do CP) .
E, caso tal não seja cumprido pela arguida, esta sujeitar-se-á à revogação da suspensão da execução da pena ou à prorrogação do período de suspensão (nos termos e com os efeitos previstos nos art.ºs 55º, 56º e 57º, nº 2, do CP).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes que integram a 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
 
RELATÓRIO
No Juízo Local Criminal de Almada – J3, processo nº 491/18.3SYLSB, foi proferida e depositada sentença a condenar a arguida, A, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de perseguição (previsto e punível pelo art.º 154º-A, nºs 1, 3 e 4, do Código Penal) na pena de 4 meses de prisão suspensa na sua execução pelo período de 1 ano, com regime de prova que passe necessariamente pelo acompanhamento e reintegração social da arguida e na pena acessória de proibição de contacto com a vítima pelo período de 1 ano.
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Inconformado com parte desta sentença, o assistente, B, interpôs o presente recurso, pedindo que seja revogada a decisão recorrida no tocante à pena principal, substituindo-a por uma pena de 2 anos de prisão efectiva. Tendo formulado, no termo da motivação, as seguintes conclusões constantes sob a refª. 42548206(transcrição):  
«1) Entende o, ora, Assistente e recorrente que, face à factualidade dada como provada em juízo, ao caso concreto e ao Direito aplicável, a fundamentação da matéria de facto, deveria determinar a condenação da arguida em pena concreta superior e efetiva e não em pena suspensa. Isto porque,
2) a atuação da arguida, na vertente do crime de perseguição em causa, apresenta uma gravidade muito elevada. De facto,
3) o período de tempo durante o qual se prolongou a atuação criminosa da arguida, ou seja, um ano e seis meses, com vinte seis cartas e 3 vales postais enviados para o Assistente, são demonstrativos da elevada censurabilidade da conduta da arguida, bem como, do grau elevado de culpa. E, também,
4) o prolongamento no tempo da conduta da arguida, teve repercussões na vida do Assistente, levou este a sentir-se constrangido na sua liberdade de determinação, na vida privada, na sua paz e sossego, chegando inclusivamente a recear pela sua integridade física.
5) Todos estes factos foram dados por assentes na douta sentença proferida e são reveladores da gravidade, censurabilidade e grau elevado da culpa da arguida, devendo, por isso, conduzir um juízo de prognose desfavorável quanto à arguida, reforçado na falta de arrependimento e auto-censura desta última.
6) A ameaça de cumprimento de pena de prisão, enquanto última e derradeira oportunidade para a necessidade da arguida pautar a sua conduta pelo cumprimento da lei abstendo-se de praticar ilícitos criminais, no presente caso, não se verifica face a inexistência de arrependimento e auto-censura da arguida, são por si só, reveladores que esta não vai colocar termo à sua conduta criminosa.
7) Deste modo, atentas as especiais necessidades de prevenção especial e geral, deveria ter sido aplicada uma pena de prisão efetiva à Arguida pelo período de pelo menos 2 anos de prisão.
8) Assim, salvo o devido respeito por opinião contrária e ao abrigo do dever de patrocínio, existe aqui a violação dos artigos 40º, 70º, 71º e 50.º, n.º 1, todos do Código Penal, que levou à aplicação de uma pena de apenas 4 meses, suspensa por 1 ano, quando a mesma deveria ter sido de 2 anos de prisão efetiva.»
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Notificado da interposição do recurso, o Ministério Público apresentou a respectiva resposta, concluindo que deve ser considerado improcedente e ser mantida a douta sentença recorrida, nos termos constantes sob a refª. 83821 e com as seguintes conclusões (transcrição):
1) - Ao contrário do alegado pela recorrente, nenhum reparo merece a douta sentença proferida, entendendo-se que a prova produzida em audiência conjugada com os documentos constantes dos autos foi corretamente apreciada. Não se mostram violados os dispositivos legais mencionados, pelo que deverá a mesma ser mantida na integra.
2) – A prova produzida em julgamento foi apreciada livremente pelo julgador e de acordo com o princípio da livre apreciação da prova art.º 127.º, do C.P.P., mostrando-se a mesma apreciação devidamente fundamentada em sede da Douta Sentença recorrida.
3) – A matéria de facto dada como provada e não provada, alicerçada na motivação constante da douta sentença, isenta de qualquer reparo, é suficiente para impor a condenação à arguida pela prática do ilícito criminal pelo qual vinha acusada.
4) - Na determinação da medida da pena, o limite máximo fixar-se-á em salvaguarda da dignidade humana do agente em função da medida da culpa, que a delimitará por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que se façam sentir. O seu limite mínimo é dado pelo quantum da pena que em concreto ainda realize eficazmente essa proteção dos bens jurídicos.
5) - Na Douta Sentença, para efeitos das penas concretas aplicadas ao arguido, foram exaustivamente ponderados os critérios consignados no art.º 71.º, do Código Penal, pelo que considerando todos os factos provados, a pena aplicada ao arguido, é adequada à culpa, e às exigências de prevenção geral e especial que no caso concreto se fazem sentir.
6) - Ainda que a medida da pena consentida pela culpa do agente não seja suficiente para se atingir o ponto ótimo de proteção dos bens jurídicos, ela nunca pode ser ultrapassada, em respeito do princípio da culpa vigente no nosso sistema penal.
7)- O crime de perseguição é punido com pena de prisão até 3 (três) anos ou pena de multa, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal.
8) - Considerando o grau de ilicitude dos factos cometidos pelo agente, a forma de execução do crime, o dolo, a conduta anterior e posterior aos factos, as consequências do crime, o arrependimento manifestado ou não, as condições pessoais, sociais e económicas da arguida, bem como a ausência de antecedentes criminais, entendemos a pena aplicada de 4 (quatro) meses de prisão é adequada e suficiente para o caso concreto.
 9) - No que concerne à opção pela suspensão da pena de prisão, de acordo com o disposto no art.º 50.º, n.º 1, do Código Penal, o Tribunal deverá suspender a pena de prisão em medida não superior a cinco anos, desde que conclua, atenta aos critérios indicados, “que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”,
10) – No caso vertente, as finalidades de aplicação de uma pena assentam, essencialmente, na tutela dos bens jurídicos e, na medida do possível, na reintegração do agente na comunidade, pelo que não será de todo desejável integrar a arguida em meio prisional, sobretudo porque tal medida não será sequer conveniente à ressocialização daquela, parecendo-nos que a simples ameaça da pena de prisão será suficiente advertência para o não cometimento de futuros crimes.
11) – A opção do Mm.º Juiz a quo de suspender a pena pelo período de 1 (um) ano, com regime de prova que passe, necessariamente, pelo acompanhamento e reintegração social da arguida, revela-se a mais adequada ao circunstancialismo dos autos.
12) – Andou bem, em nossa opinião, a Mma. Juiz a quo ao impor a condenação, e nos termos em que o fez.
13) - Se nos presentes autos fossem impostas à arguida penas inferiores às aplicadas, ou de natureza, tais penas não realizavam de forma eficaz a proteção dos bens jurídicos que o tipo legal de crime visa salvaguardar, bem como a necessidade de demover a arguido da prática de futuros crimes, bem como a reintegração da agente na comunidade.»
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A arguida veio responder no sentido de ser considerado improcedente o recurso e mantida aquela sentença, (em suma): por ser ajustada a pena atenta a sua idade, sua inserção social e não ter antecedentes criminais, tudo nos termos constantes sob a refª. 43273868 e aqui dados por reproduzidos.
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Nesta Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de acompanhar a argumentação do Magistrado do Ministério Público junto da primeira instância, pugnando pela manutenção da pena principal aplicada na decisão recorrida, tudo nos termos constantes sob a refª. 19014781 e aqui dados por reproduzidos.
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Este parecer foi notificado e não houve resposta.
Colhidos os vistos, foram os autos submetidos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir
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Para o efeito, importa atentar ao teor da sentença da Exmª. Juiz da 1ª instância (transcrição):
« SENTENÇA
I – RELATÓRIO:
O Ministério Público, em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, requereu o julgamento de:
A, filha de ... e ..., nascida a 02-08-1956, em Angola, com Nacionalidade Portuguesa, casada, residente na Rua ...,
Imputando-lhe a prática, em autoria material, forma consumada, de um crime de Perseguição, p. e p. pelo artigo 154.º-A, n.ºs 1, 3 e 4, do Código Penal.
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A arguida não apresentou contestação nem arrolou testemunhas.
Procedeu-se a julgamento, com observância do formalismo legal.
Não se verificam quaisquer questões prévias ou incidentais, de que cumpra conhecer, que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
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II – DECISÃO QUANTO À MATÉRIA DE FACTO:
A) FACTOS PROVADOS:
Da prova produzida, e com interesse para a boa decisão da causa, resultaram assentes os seguintes factos:
 
1. Desde, pelo menos, Junho de 2018 e até, pelo menos, Dezembro de 2019, que a arguida tem remetido cartas e vales postais dirigidas a B, solicitando que este se encontrasse consigo na estação de comboios de Entrecampos, por baixo do viaduto, para resolver questões que tem pendentes e para que este lhe ligasse para o seu contacto telefónico, chegando a remeter vales postais para o efeito;
2. Refere-se a título de exemplo as seguintes expressões constantes nas referidas cartas:
I. - “Vê se apareces no próximo dia 24, domingo, às 12 horas na estação de Entrecampos por baixo do viaducto onde nos encontramos no dia 25 de Janeiro de 2015, para eu te puder ajudar”;
II. - “Faz por te encontrares comigo dia 30 de Dezembro às 12h na estação de Entrecampos por baixo do aqueduto no sítio onde nos encontramos no dia 25 de Janeiro de 2015 para resolver o que tens que resolver comigo”;
III.- “Quero que me devolvas as coisas que levaste da minha casa telefona-me ou envia mensagem para o n.º 9...”;
IV. - “Para me responderes a esta carta envio envelope em que podes escrever a que dias e horas te posso ir visitar. Trás que dizer também aos guardas prisionais que autorizas-me a que te vá visitar. Tens portanto que pôr o meu nome na lista das pessoas que te podem ir visitar”
V. - “não te conhecia essa faceta de bigamia, pois tu até parecias que tinhas dificuldade em lidar com uma só mulher”
VI. - “disseste que querias ser africano. E não estás a agir de acordo com a energia dessa vontade para aquilo que um homem branco pode receber”.
3. Foram enviadas pela arguida, pelo menos, 26 cartas a B;
4. Mais foram enviados pela arguida 3 vales postais a B;
5. Como consequência directa e necessária das condutas supra descritas, B passou a sentir-se constrangido na sua liberdade de determinação, na vida privada, na sua paz e sossego, chegando inclusivamente a recear pela sua integridade física;
6. Ao agir da forma descrita, ao enviar cartas de forma reiterada, a arguida sabia que perturbava B na sua paz e sossego, bem como lhe causava inquietação, resultado esse que pretendeu e logrou atingir, bem sabendo que a sua conduta era adequada a obter esse resultado;
7. A arguida agiu livre, deliberada e conscientemente bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal, tendo capacidade para se determinar de acordo com esse conhecimento.
8. A arguida não tem rendimentos.
9. Vive sozinha, em casa própria, pela qual paga 500,00€ a título de empréstimo bancário, o qual a arguida não se encontra a cumprir.
10. A arguida não tem antecedentes criminais.

B) FACTOS NÃO PROVADOS:
Da prova produzida, e com interesse para a boa decisão da causa, não ficaram por provar quaisquer factos.
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C) MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO:
A prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade: o juiz lança-se à procura do “realmente acontecido” conhecendo, por um lado, os limites que o próprio objecto impõe à sua tentativa de o “agarrar” e, por outro, os limites que a ordem jurídica lhe marca - derivados da(s) finalidade(s) do processo (cfr. Cristina Libano Monteiro, Perigosidade de inimputáveis e «in dubio pro reo», Coimbra, 1997, pág. 13), formando a sua convicção, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, (im)parcialidade, serenidade, “olhares de súplica” para alguns dos presentes, "linguagem silenciosa e do comportamento", coerência de raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, porventura, transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos (Ricci Bitti/Bruna Zani, A comunicação como processo social, editorial Estampa, Lisboa, 1997).
No caso dos autos, o Tribunal formou a sua convicção tendo por base as declarações da arguida e do assistente, bem como o depoimento da testemunha C, tudo conjugado com a extensa prova documental junta aos autos e ponderada de acordo com as regras da experiência comum e da normalidade da vida.
Na verdade, admitindo o envio das cartas e vales postais constantes dos autos, a arguida assegurou que as mesmas surgiram num contexto de rutura de relacionamento amoroso, ainda que breve, que havia mantido com o arguido e durante o qual foi sujeita a internamento compulsivo, pelo período de cerca de 3 meses, período durante o qual, aproveitando a sua ausência, o arguido lhe retirou todos os seus pertences e documentos pessoais, que se encontravam na residência da ofendida e que, à data, partilhavam.
O assistente negou totalmente a versão da arguida, atestando nunca ter mantido com a mesma qualquer relacionamento amoroso, não conhecer a arguida e apenas ter tido conhecimento da mesma por força de processo crime de furto qualificado, precisamente à residência da ofendida, e onde foi condenado numa pena de prisão efectiva. Atestou, assim, que na sequência desse processo e julgamento, a arguida obteve a sua morada e começou, então, a remeter vales postais e dezenas de cartas, tanto por via postal como colocando-as diretamente na sua caixa do correio, bem como ainda lhe enviou cartas para o estabelecimento prisional, onde cumpria a pena efectiva, solicitando que o mesmo a adicionasse à sua lista de visitas, para que o pudesse encontrar na prisão.
A versão do assistente é suportada pela prova documental junta aos autos, nomeadamente todas as cartas e os vales postais constantes do apenso I – de onde adveio também o período temporal em que a arguida procedeu ao envio das cartas - , de onde resulta, sem qualquer dúvida, o envio de dezenas de cartas onde a arguida solicita encontros com o arguido (a título de exemplo, fls. 14, 15, 19, 20 a 23) profere ameaças (fls. 16, 17, 36) e tece considerações sugere a existência de uma relação amorosa entre ambos (fls. 40 “não te conhecia essa faceta de bigamia, pois tu até parecias que tinhas dificuldade em lidar com uma só mulher”, fls. 47 “disseste que querias ser africano. E não estás a agir de acordo com a energia dessa vontade para aquilo que um homem branco pode receber”) sendo ainda compatível com o depoimento da testemunha C, esposa do arguido e que atestou a recepção de dezenas de cartas, “trinta pelo menos” e, ainda, que algumas das cartas eram enviadas pelos CTT e outras colocadas directamente pela arguida na caixa de correio, o que lhe provocava, bem como ao assistente, uma sensação de medo e inquietação constantes.
Nestes termos, tudo ponderado, o Tribunal não teve dúvidas de que os factos ocorreram como descritos na acusação e, nessa medida, deu como como provados os factos 1 a 5.
O elemento volitivo resultou da conjugação objectiva entre os factos dados como provados e as regras da experiência comum pois que, face àqueles,outra não pode ter sido a intenção da arguida.
A situação pessoal e económica da arguida resultou das suas declarações.
A ausência de antecedentes criminais da arguida resulta do CRC junto a fls. 244.
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III – O DIREITO:
Enquadramento Jurídico-Penal
Do crime de Perseguição:
A arguida vem acusada da prática de um crime perseguição, previsto e punido pelo art.º 154.ºA, n.º 1, do Código Penal.
De acordo com o disposto no citado artigo pratica tal crime “1 - Quem, de modo reiterado, perseguir ou assediar outra pessoa, por qualquer meio, directa ou indirectamente, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, (...)”.
Assim, o crime de “perseguição” tem como elementos constitutivos:
- A ação do agente, consubstanciada na perseguição ou assédio da vítima, por qualquer meio (direto ou indireto)
- A adequação da ação a provocar na vítima medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação
- A reiteração da ação.
Exige-se ainda o dolo do agente, em qualquer das suas modalidades.
A “perseguição” (ou “stalking”) é um padrão de comportamentos persistentes, que se traduz em formas diversas de comunicação, contacto, vigilância e monitorização de uma pessoa-alvo.
 Tais comportamentos podem consistir em ações rotineiras e aparentemente inofensivas (como, por exemplo, oferecer presentes constantemente, telefonar insistentemente), ou mesmo em ações inequivocamente intimidatórias (como, por exemplo, seguir a vítima constantemente - a pé ou em veículo automóvel -, enviar repetidas mensagens de telemóvel com conteúdo persecutório e/ou “ameaçador”, enviar correspondência escrita de idêntico conteúdo, etc.); ou seja, muito embora os comportamentos do agente possam até ser considerados inócuos e corriqueiros, quando isolados do contexto global e complexivo em que ocorrem, os mesmos constituem o crime em análise se forem praticados com persistência, de forma intimidatória e causando justificado “desconforto” na vítima, e, além disso, se forem cometidos de forma a provocar na vítima medo ou inquietação, ou de forma a prejudicar a liberdade de movimentos e de determinação da vítima.
A “perseguição” consiste, pois, na importunação de alguém que é alvo, por parte de outrem, de um interesse e atenção continuados, persistentes e indesejados (vigilância, perseguição física, envio de mensagens, telefonemas, etc.), os quais são suscetíveis de gerar medo, inquietação ou prejuízo relevante na pessoa-alvo.
Exige-se ainda o dolo do agente, em qualquer das suas modalidades.
Como refere Carla Alexandra dos Santos Paiva, in http://app.parlamento.pt, o Stalking, definido como um síndrome comportamental decorrente de uma patologia das relações interpessoais e da comunicação, inclui uma série de acções repetidas ao longo do tempo, partilha características de vigilância e controlo, procura de contactos e comunicação e é percebido pela vítima como capaz de despertar, e efectivamente despertando (arousing), ansiedade e medo.
A perseguição consiste, pois, num conjunto de comportamentos de assédio persistente, indesejados pelo alvo desses comportamentos.
Podem diferir no grau de intrusividade, envolvendo desde acções mais discretas como telefonar constantemente ou vigiar, assediar pela internet, até actos altamente intimidatórios como perseguição na rua, invasão da propriedade e ameaça de agressão física.
O elemento angústia e o temor diferenciam o Stalking de qualquer outro tipo de comportamento, derivado das relações quotidianas entre seres humanos e este comportamento pode prolongar-se no tempo, por meses, anos ou décadas.
Ainda segundo a mesma autora, o Stalking refere-se a uma constelação de condutas motivadas por:
-Intenção de iniciar uma relação sentimental especial;
-Satisfazer um desejo sexual;
-Retomar uma relacão já terminada;
-Vingar-se de alguém que lhe causou dano de algum modo;
-Iniciar uma perseguição aberta que terminara posteriormente num ataque sexual a vítima (e.g. parafilias).
Diz-se no douto Acórdão da Relação de Lisboa de 16/10/2018, disponível em www.dgsi.pt: “I- Este novo tipo de crime, agora previsto no art.º 154º-A, nº.1 do Código penal, tem como seus elementos constitutivos: - objectivamente, a acção do agente, consubstanciada na perseguição ou assédio da vítima, por qualquer meio, directo ou indirecto; a adequação da acção a provocar naquela medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação; e a reiteração da acção; e, - subjectivamente, o dolo, em qualquer das modalidades referidas no art.º 14º do C.P., constituído pelo conhecimento dos elementos objectivos do tipo e pela vontade de agir por forma a preenchê-los.
II- Em traços gerais, podemos enunciar que o stalking designa um curso de condutas intrusivas e persistentes, prolongadas indeterminadamente no tempo, que podem ser compreendidas como atos persecutórios não queridos e perturbadores para a vítima. As condutas persecutórias materializam-se, portanto, em diversas “formas de comunicação, vigilância e contacto, exercidas sobre alguém que é alvo de um interesse e atenção continuados e indesejados. Diz-nos a experiência que o stalking envolve uma campanha de condutas que têm tendência a escalar em frequência e severidade ao longo do tempo”.
Ainda a este propósito, de referir o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 11/2/2019 www.dgsi.pt “III - O crime de perseguição (art.º 154.º-A n.º1 do C. Penal) é um crime de perigo concreto – não sendo necessária a efectiva lesão do bem jurídico, mas a adequação da conduta a provocar aquela lesão (sendo idónea a prejudicar a liberdade de determinação da vítima ou a provocar-lhe medo) – de mera actividade e de execução livre – a conduta punida pode ser levada a cabo por qualquer meio, directa ou indirectamente, embora seja necessária a reiteração da conduta, uma vez que a respectiva ratio reside na protecção da liberdade de autodeterminação individual, sem prejuízo de reflexamente tutelar outros bens jurídicos como a salvaguarda da privacidade/intimidade – e doloso, do ponto de vista subjectivo, o que significa que o agente tem que ter vontade e consciência de estar a praticar o facto tido como ilícito e punido penalmente.”
Ora, à luz de tudo o que vem de dizer-se e tendo em atenção os elementos típicos do crime pelo qual a arguida vem acusada, temos por certo que os factos dados como provados preenchem, inequivocamente, todos os elementos, objetivos e subjetivos, do tipo legal de crime p. e p. pelo artigo 154º-A, nº 1, do Código Penal.
A conduta da arguida reveste-se das notas características do chamado stalking, isto é, uma perseguição prolongada no tempo, insistente e obsessiva, causadora de angústia e temor.
Na verdade, a intensidade da conduta da arguida é de tal forma evidente, tanto pela quantidade de missivas enviadas, como pelo tempo em que perdurou o envio das mesmas, que, s.m.o, preenche indiscutivelmente os elementos objectivos do tipo de crime que é imputado à arguida uma vez que a sua conduta não foi uma conduta ocasional ou isolada.
Na verdade, e mesmo sem obter resposta a qualquer das cartas que enviou, a arguida insistiu em manter a sua conduta por mais de um ano, bem sabendo que o assistente não o desejava e que, dessa forma, lhe provocava receio e inquietação, prejudicando também a sua liberdade de determinação.
Assim, a arguida terá de ser condenada pelo crime de perseguição de que se mostra acusada.
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Da medida concreta das penas:
Verificado que está o preenchimento do crime de perseguição, ponderemos agora a medida concreta da pena a aplicar à arguida.
O crime de perseguição é punido com pena de prisão até 3 (três) anos ou pena de multa, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal.
Assim, e em primeiro lugar, o Tribunal terá de decidir entre a aplicação de uma pena de multa ou de uma pena de prisão.
Os critérios concedidos pelo legislador para a determinação da medida da pena, encontram-se previstos no art.ºs 40º, 70º e 71º do Código Penal. É com base nestas disposições legais que ao juiz cabe “uma dupla (ou tripla) tarefa, dentro do quadro condicionante que lhe é oferecido pelo legislador. Determinar, por um lado, a moldura penal abstracta cabida aos factos dados como provados no processo. Em seguida, encontrar, dentro desta moldura penal, o quantum concreto da pena em que o arguido deve ser condenado. Ao lado destas operações – ou em seguida a elas – escolher a espécie ou o tipo de pena a aplicar concretamente, sempre que o legislador tenha posto mais do que uma à disposição do juiz” 1.
Ora, a medida concreta da pena a aplicar acha-se, antes de mais, em função da culpa do agente, das exigências de prevenção especial, ligadas à reinserção social e aos fins de prevenção geral, pugnando pela defesa da sociedade com consequente contenção de criminalidade.
A estes motores de determinação da medida da pena acrescem todos os outros que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente de modo a proporcionar uma dupla função à pena a aplicar: por um lado, a mesma tem de ser justa e adequada ao caso concreto, por outro lado, tem de ser suficiente para desmotivar a generalidade das pessoas de seguirem ou enveredarem por comportamentos semelhantes.
Importa, porém, considerar, como alerta Figueiredo Dias, que “através do requisito de que sejam levadas em conta as exigências de prevenção, dá-se lugar à necessidade comunitária da punição do caso concreto e, consequentemente, à realização in casu das finalidades da pena. Através do requisito de que seja tomada em consideração a culpa do agente, dá-se tradução à exigência de que a vertente pessoal do crime – ligada ao mandamento incondicional de respeito pela eminente dignidade da pessoa do agente – limite de forma inultrapassável as exigências de prevenção”. 2
Dispõe o art.º 70º do Código Penal que o tribunal deve dar preferência à pena não privativa da liberdade sempre que “esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da prevenção”.
No caso, a arguida não tem antecedentes criminais.
Não obstante, a arguida não reconheceu o desvalor da sua conduta, não admitiu a intenção para o envio das cartas e vales, não se mostra acompanhada do ponto vista familiar e encontra-se aposentada compulsivamente, ou seja, sem inserção profissional.
1 vd. Jorge Figueiredo Dias, in As Consequências Jurídicas do Crime, Editorial Notícias, 1993, pág. 193.
2 Ob. citada, pág. 215.
 Há ainda que considerar a elevadíssima ilicitude da conduta da arguida, que perdurou pelo menos durante um ano e meio e a completa ausência de arrependimento ou de capacidade de auto-censura pois que a arguida não foi capaz de assumir os seus erros.
Assim, tudo ponderado, o Tribunal entende que apenas a aplicação de uma pena de prisão é suficiente para salvaguardar as finalidades da punição.
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Posto isto, determinemos a medida concreta da pena a aplicar.
Atento o disposto pelo art.º 71º do Código Penal, esta far-se-á em função da culpa do agente e das exigências de prevenção geral (protecção dos bens jurídicos) e especial (reintegração do agente na sociedade) e atendendo a todas as circunstâncias que, não integrando o tipo de crime, depõem a favor ou contra o agente.
Sendo a finalidade primordial da pena a prevenção geral positiva ou de integração, a verdade é que nunca a defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva, pode pôr em causa a própria dignidade humana do agente, salvaguardada pelo princípio da culpa.
Assim, ainda que a medida da pena consentida pela culpa do agente não seja suficiente para se atingir o ponto óptimo de protecção dos bens jurídicos, ela nunca pode ser ultrapassada, em respeito do princípio da culpa vigente no nosso sistema penal.
Destarte, partindo das molduras penais aplicáveis ao caso concreto e consubstanciadoras da moldura da prevenção, iremos definir um mínimo imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias e um máximo consentido pela culpa do agente. O espaço contido entre esse mínimo imprescindível à prevenção geral positiva e esse máximo consentido pela culpa, configurará o espaço possível de resposta às necessidades de reintegração do agente.
Balizado por esse mínimo e esse máximo, tenta o Tribunal definir o ponto óptimo da medida da pena, utilizando como orientação os objectivos próprios da prevenção especial positiva.
Assim, aquando da determinação da medida concreta da pena, o tribunal tem sempre em consideração o grau de ilicitude dos factos cometidos pelo agente, a forma de execução do crime, o dolo, a conduta anterior e posterior aos factos, as consequências do crime, o arrependimento manifestado ou não, as condições pessoais, sociais e económicas do arguido, bem como os seus antecedentes criminais.
 Destarte, haverá que ter em consideração que a arguida:
- Agiu com dolo directo;
- Apresenta conduta revestida de uma ilicitude elevada, atentos os bens jurídicos protegidos com a incriminação e o tempo em que a mesma perdurou (cerca de um ano e seis meses).
- Não tem antecedentes criminais;
- As necessidades de prevenção geral, que são elevadas, e as necessidades de prevenção especial que são medianas, uma vez que o arguido não tem antecedentes criminais, mas não demonstrou qualquer capacidade de auto-censura.
Por tudo isto, entende-se por adequado e proporcional aplicar à arguida a pena de 4 (quatro) meses de prisão.
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Da suspensão da pena de prisão:
Nos termos do art.º 50.º, n.º 1, do Código Penal, o Tribunal deverá suspender a pena de prisão em medida não superior a cinco anos, desde que conclua, atenta aos critérios indicados, “que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
Na verdade, a pena privativa da liberdade surge sempre como a última “ratio” do nosso sistema punitivo sem que isso pressuponha, como se torna claro nos referidos preceitos, que não existem casos em que só essa pena é adequada a satisfazer os fins das penas.
Aliás, “determinar se as medidas não institucionais são suficientes para promover a recuperação social do delinquente e dar satisfação às exigências de reprovação e de prevenção do crime não é uma operação abstracta ou atitude puramente intelectual, mas fruto de uma avaliação das circunstâncias de cada situação concreta. Só caso a caso, processo a processo, mediante uma apreciação dos elementos de prova disponíveis, se legitimará uma escolha entre as penas detentivas e não detentivas. Pelo que competirá em última instância aos tribunais a selecção rigorosa dos delinquentes que hão-de ser sujeitos a umas e outras.” (neste sentido, Conselheiro ROBALO CORDEIRO, Escolha e Medida da Pena, Jornadas de Direito Criminal, CEJ, pág. 237 e ss.).
 Ora, in casu, não pode o Tribunal deixar de considerar que, uma vez que as finalidades de aplicação de uma pena residem, essencialmente, na tutela dos bens jurídicos e, na medida do possível, na reintegração do agente na comunidade, não será de todo desejável integrar a arguida em meio prisional, sobretudo porque tal medida não será sequer conveniente à ressocialização daquela, confiando o Tribunal que a ameaça da pena de prisão será suficiente advertência para o não cometimento de futuros crimes.
Nestes termos, parece-nos ser adequado suspender a pena pelo período de 1 (um) ano, com regime de prova que passe, necessariamente, pelo acompanhamento e reintegração social da arguida.

Da pena acessória:
Nos termos previstos pelo art.º 154.º A, n.ºs 3 e 4 do Código Penal, 3 -nos casos previstos no n.º 1, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima pelo período de 6 meses a 3 anos e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção de condutas típicas da perseguição. 4- A pena acessória de proibição de contactos com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado através de meios técnicos de controlo à distância.
Assim sendo, face a todo o exposto, é de aplicar a pena de acessória de proibição de contacto da arguida com a vítima/assistente, pelo período de 1 (um) ano.
* * *
IV – DECISÃO:
Por todo o exposto, julgo a acusação do Ministério Público procedente por provada e, em consequência:
- Condeno a arguida A pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso real, de um crime de perseguição, previsto e punido pelo art.º 154.ºA, n.º 1 do Código Penal, na pena de 4 (quatro) meses de prisão suspensa na sua execução pelo período de 1 (um) ano, com regime de prova que passe, necessariamente, pelo acompanhamento e reintegração social da arguida.
- Condeno a arguida na pena acessória de proibição de contacto com a vítima pelo período de 1 (um) ano.
- Vai ainda a arguida condenado no pagamento das custas do processo, na parte crime, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC (sem prejuízo do benefício do apoio judiciário).
Oportunamente, remeta boletins ao registo criminal – artigo 5º, n.º 1, alínea a) e n.º 3 do DL 57/98 de 18/08.
Oportunamente, comunique à DGRSP para elaboração do plano de acompanhamento da arguida.
Deposite de imediato e notifique…»
*
FUNDAMENTAÇÃO
Âmbito do recurso e questão a decidir
Dispõe o art.º 412º, nº 1, do Código de Processo Penal que «a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido».
O objeto do recurso define-se, pois, pelas conclusões que o recorrente extraiu da motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso - como pacificamente decorre da doutrina, destacando-se os Conselheiros Simas Santos e Leal-Henriques no “Código de Processo Penal Anotado”, 2.ª ed., Vol. II, pág. 801 e Germano Marques da Silva em “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª ed., pág. 335 e da jurisprudência fixada pelo acórdão do Plenário da Secção Criminal do STJ n.º 7/95, de 19.10, in D.R. I-A Série de 28.12.1995 e com os acórdãos do STJ de 12.09.2007 no proc. n.º 07P2583 e de 29.01.2015 no proc. n.º 91/14.7YFLSB. S1 ambos em www.dgsi.pt.
No caso em apreço, a única questão a apreciar é saber se:
A pena principal (de 4 meses de prisão suspensa na sua execução por 12 meses) deve ser aumentada para 2 anos de prisão e sem suspensão da sua execução?

O assistente vem peticionar esta alteração da pena principal aplicada à arguida, argumentando, por um lado, a elevada gravidade dos factos e da culpa desta e, por outro lado, a sua falta de arrependimento e de auto-censura revelam que não irá por termo à sua conduta criminosa.
Por seu lado, a arguida e o Ministério Público junto da 1ª instância e deste Tribunal superior consideram ajustadas quer a medida quer a suspensão da execução da pena principal que foi aplicada à arguida pelo Tribunal de 1ª instância.
Desde já, se adianta que, também, as consideramos ajustadas, não se vislumbrando que tenham sido violados os invocados (pelo assistente) art.ºs 40º, 50º, nº 1, 70º e 71º do Código Penal (doravante com a abreviatura CP) ou quaisquer outros deste ou de outro diploma.
Da factualidade apurada nos autos e da respectiva subsunção ao direito aplicável [nos termos supra-transcritos e incontroversos] resulta (em traços largos) que, ao longo de 18 meses, a arguida enviou ao assistente 26 cartas e 3 vales postais, nos quais lhe propunha encontros, telefonemas, mensagens, visitas e lhe fazia afirmações acerca de bens dela e da pessoa dele. Com tal actuação, a arguida quis e conseguiu perturbar/constranger a liberdade pessoal do assistente, apesar de ela saber que tal era proibido e punido pela lei penal. Tendo assim a arguida cometido, em autoria material e na forma consumada, um crime de perseguição previsto no art.º 154º - A, nº 1, do CP e pelo qual foi condenada.
Pois bem, tendo em conta o disposto no art.º 154º-A, nºs 1, 3 e 4, em conjugação com os art.ºs 41º, nº 1, 47º, nº 1 e 2, e 65º, nº 2, todos do CP, este crime é punível:
- com pena de prisão de 1 mês até 3 anos ou com pena de multa de 10 a 360 dias com taxa diária entre € 5 a € 500;
e
- com penas acessórias de proibição de contacto com a vítima pelo período de 6 meses a 3 anos e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção de condutas típicas de perseguição.
No caso em apreço, a Exmª Juiz de 1ª instância decidiu [nos termos supra-transcritos e incontroversos] condenar a arguida na pena acessória de proibição de contacto com a vítima/assistente pelo período de 1 ano e em pena principal de prisão (em detrimento da possível pena de multa).
Apenas sendo controversa a aplicação de 4 meses de prisão, suspensa na sua execução por 12 meses, porque a vítima/ assistente/ora recorrente pretende a aplicação de uma pena de prisão de 2 anos e efectiva.

Ora, perante a factualidade apurada e com vista à punição da arguida, o Tribunal recorrido nem sequer ponderou aplicar uma pena de multa (em alternativa à pena de prisão).
Isto porque considerou (e bem) que apesar do critério preferencial legal de  contido no art.º 70º do CP (intitulado «Critério de escolha da pena», segundo o qual: “Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”) relativamente à pena de multa, esta não realizaria de forma adequada e suficiente as finalidades punitivas da arguida - dado esta não ter reconhecido o desvalor da sua conduta, relativamente ao assistente, durante aquele período temporal de 18 meses, nem ter admitido a intenção subjacente ao envio das respectivas cartas e vales para o assistente.
Por isso, essa opção primordial (por pena de prisão em detrimento de pena de multa) já respeitou esta norma legal e já denotou preocupação do Tribunal de 1ª instância em ajustar essa espécie concreta de punição às finalidades das penas.

A propósito das finalidades das penas importa atentar aos demais e seguintes preceitos legais:
Sob o título «As consequências jurídicas do facto», o art.º 40º, n.ºs 1 e 2, do CP consigna que: “1 - A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”. “2 - Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa».
Com o título «Determinação da medida da pena», o art.º 71º do CP consiga o seguinte:
1 - A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
2 - Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência;
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
3 - Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena.
Desta forma, o legislador penal pretendeu legitimar a finalidade das penas em consonância com o princípio constitucional consagrado no art.º 18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa (segundo o qual: “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos caos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”).
E colhendo quer os ensinamentos doutrinais de Figueiredo Dias (em “Direito Penal – Parte Geral”, Tomo I, 2.ª Edição, Coimbra Editora, pág. 78-85 e em “Direito Penal –Questões fundamentais – A doutrina geral do crime”, Universidade de Coimbra – Faculdade de Direito, 1996, págs. 84-121), quer os ensinamentos jurisprudenciais do STJ (no acórdão do STJ de 16-01-2008, no processo n.º 4565/07 e no acórdão do STJ de 25/5/2016, no processo nº 101/14.8GBALD.C1.S1, ambos em dgsi.pt):
. As penas como instrumentos de prevenção geral são instrumentos político-criminais destinados a actuar (psiquicamente) sobre a globalidade dos membros da comunidade, afastando-os da prática de crimes através das ameaças penais estatuídas pela lei, da realidade da aplicação judicial das penas e da efectividade da sua execução, desempenhando uma função (de prevenção) geral negativa.
Também tendo uma função (de prevenção) geral positiva ou de integração, como forma de que o Estado se serve para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força da vigência das suas normas de tutela de bens jurídicos e, assim, no ordenamento jurídico-penal. E como instrumento por excelência destinado a revelar, perante a comunidade, a inquebrantabilidade da ordem jurídica, pese embora todas as suas violações que tenham tido lugar.
Sendo este o ponto de partida como a finalidade primária das penas: o restabelecimento da paz jurídica comunitária posta em causa pelo comportamento criminal do arguido.
. O ponto de chegada das penas está: nas exigências de prevenção especial, mais concretamente, da prevenção especial positiva (re-socialização do arguido) e da prevenção especial negativa (neutralização daquele tipo de conduta criminosa pelo arguido).
Mas, tudo isto, sempre sem olvidar o princípio da culpa inerente ao nosso Estado de Direito Democrático: em caso algum pode haver pena sem culpa ou acima da culpa (ultrapassar a medida da culpa).
Significando isto que a concepção retributiva da pena não pode nunca atentar contra o princípio da inviolabilidade da dignidade da pessoa humana do arguido e de garantia do livre desenvolvimento da sua personalidade. A culpa é condição necessária, mas não suficiente, da aplicação da pena e, assim se obtendo uma correcta incidência da ideia de prevenção especial positiva ou de socialização.
Assim, o princípio da culpa no nosso sistema penal serve com incondicional proibição de excesso, como limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações ou exigências preventivas – quer sejam de prevenção geral positiva de integração e/ou de prevenção geral negativa de intimidação, quer sejam de prevenção especial positiva de socialização e/ou de prevenção especial negativa de segurança ou de neutralização.
Deste modo e perante cada caso concreto, a pena deve ser encontrada pelo Juiz dentro de uma moldura de prevenção geral positiva e negativa (que são, respectivamente, o limite máximo e o limite mínimo desta “moldura” de pena -  pois a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores) e ponderando as circunstâncias do caso concreto, bem como o nível e premência das necessidades especiais que se lhe apresentem de prevenção especial positiva e negativa (que são, respectivamente, a re-socialização do arguido e a prevenção da sua reincidência – tais como as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento, os seus antecedentes criminais), ao mesmo tempo que também estas lhe transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente (sem ultrapassar a medida da culpa concreta), o juiz fixará o quantum da pena.
No caso concreto, a protecção do bem jurídico do assistente/vítima que foi afectado (na sua liberdade pessoal) pela conduta criminosa da arguida (durante aqueles cerca de 18 meses) e que teme voltar a ser afectado no futuro pela mesma, não pode, por si só, justificar (como pretende a vítima/assistente/aqui recorrente) a sujeição da arguida ao meio prisional através do cumprimento de uma pena de prisão efectiva.
A nossa criminologia reconhece que “aquele que sofre uma pena de prisão é desinserido profissional e familiarmente, sofre contágio prisional, fica estigmatizado com o labéu de ter estado na prisão e não é compensado, muitas vezes, com uma efectiva socialização” – conforme tão expressivamente refere a Exmª Profª. Drª. Anabela Miranda Rodrigues, comentário ao acórdão do STJ de 21/3/1990 publicado em RPCC, 2, 1991, pág. 255. 
Daí o surgimento do instituto da suspensão da execução da pena de prisão cuja filosofia é: “apontar ao arguido o rumo certo no sentido de, doravante, adequar o seu comportamento às exigências do direito penal, impondo-se-lhe como factor pedagógico de contestação e auto-responsabilização pelo seu comportamento posterior. Para isso, sendo necessária a capacidade de o arguido sentir essa ameaça, a exercer sobre si o efeito contentor, em caso de situação parecida, e a capacidade de vencer a vontade de delinquir” – conforme as exemplares palavras do Exmº Juiz Conselheiro Sousa Guedes no acórdão do STJ de 8/5/1997 no processo 96P1293.
Assim, o nosso legislador atribui ao tribunal o poder-dever de suspender a execução de pena de prisão, desde que se preencham dois requisitos (cumulativos) previstos no nº 1 do art.º 50º do CP:
- um requisito formal que é a pena concreta aplicada não ser superior a 5 anos;
- e um requisito material que é, perante os concretos factores aí expressamente elencados (da personalidade do arguido, das suas condições de vida, da sua conduta anterior e posterior ao crime e das circunstâncias deste) o tribunal concluir por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento futuro do arguido.
Sendo que, neste domínio da prognose social favorável (fazendo minhas as palavras dos Exmos Juízes Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques em Código Penal Anotado, vol. I, 4ª ed., 2014, págs. 711-712) está: “a esperança de que o arguido sentirá a sua condenação como uma advertência e não cometerá nenhum crime no futuro. O tribunal deve correr um risco prudente, uma vez que a esperança não é seguramente certeza”.
E para que esse risco prudente dê frutos (no sentido de ser obtida a pretendida a ressocialização do arguido em liberdade, com a simples ameaça da pena de prisão) o tribunal tem o poder-dever (perante as circunstâncias de cada caso concreto e segundo o regime contido nos art.ºs 50º a 54º do CP):
de fixar o respectivo período de suspensão entre 1 a 5 anos;
e
de subordinar essa suspensão ao cumprimento de deveres por parte do arguido em liberdade e/ou à observância de regras de conduta por parte do arguido em liberdade e/ou a um regime de prova assente num plano de reinserção social executado com vigilância e apoio dos serviços de reinserção social ao arguido em liberdade.
Aliás, a propósito do crime em apreço, o legislador fez questão de prever, expressamente (no art.º 154º-A, n.ºs 2 e 3 do CP em consonância com o nº 2 do art.º 65º do mesmo diploma) a aplicação, como penas acessórias de proibição de contacto com a vítima entre 6 meses a 3 anos e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção de condutas típicas de perseguição.
Ora, regressando ao caso em apreço e avaliando a concreta (e indiscutível) factualidade deste caso, à luz de todos estes critérios e princípios legais e constitucionais, afigura-se-nos perfeitamente equilibrada/ajustada [e, por isso, aqui se valida], a concreta medida de 4 meses de prisão – pois, uma pena de prisão em medida superior (nomeadamente, de 2 anos pretendida pelo assistente/recorrente), manifestamente, que seria desajustada tendo em conta, nomeadamente, o teor das cartas e vales enviados pela arguida ao assistente, a  idade da arguida e  a primo delinquência. 
Para além disso, também se nos afigura perfeitamente equilibrada/ajustada [e, por isso, também aqui se valida] a suspensão da execução dessa pena de prisão durante 12 meses com sujeição a um regime de prova com acompanhamento e reintegração social da arguida, para além (da incontroversa)  pena acessória de proibição de contacto com a vítima pelo período de 12 meses – pois, uma pena efectiva de prisão (pretendida pelo assistente/vítima/recorrente) seria desajustada à natureza do crime, à idade da arguida, à inexistência de antecedentes criminais e às demais circunstâncias do caso concreto e não cumpriria, adequadamente, as sobreditas necessidades de prevenção especial.
A este propósito importa salientar que – não obstante seja compreensível o desejo e a vontade do assistente/vítima/ora recorrente, almejando que a arguida não fique impune e não repita tal delito –, a verdade é que com a pena concreta aplicada de 4 meses de prisão com execução suspensa durante 12 meses (correspondentes ao triplo de duração daquela pena) e com a proibição de (qualquer) contacto com a vítima e com a sujeição a um regime prova (com acompanhamento e reintegração da arguida): a arguida não fica impune face ao crime cometido e , simultaneamente, a arguida fica ciente de que a sua não sujeição ao ambiente prisional para cumprimento efectivo dessa pena, apenas, dependerá de si própria.
Pois, durante o próximo ano, a arguida não poderá cometer qualquer crime, não poderá sequer contactar o assistente e terá de sujeitar a um regime de prova destinado a tratar e a prevenir futuras condutas típicas de perseguição por parte da arguida (nos termos e com os efeitos previsto pelos art.ºs 154º-A, n.ºs 3 e 4 e 50º a 54º do CP).
E, caso tal não seja cumprido pela arguida, esta sujeitar-se-á à revogação da suspensão da execução da pena ou à prorrogação do período de suspensão (nos termos e com os efeitos previstos nos art.ºs 55º, 56º e 57º, nº 2, do CP).
Em suma, não merece qualquer censura a (única impugnada) punição principal da arguida.
                                                          
DECISÃO

Nestes termos, acordam, em conferência, os Juízes que integram a 9.ª Secção Criminal desta Relação, em negar provimento ao recurso interposto pelo assistente, B, mantendo-se inalterada a pena principal aplicada à arguida, A.
Custas a cargo da assistente, sem prejuízo do seu benefício de apoio judiciário.
Notifique.
D.n.  
*
Lisboa, 15 de dezembro de 2022 
(Este acórdão contém assinatura digital electrónica)
Paula de Sousa Novais Penha
Carlos da Cunha Coutinho
Raquel Correia de Lima