Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
74/19.0YUSTR-X.L1-PICRS
Relator: ARMANDO MANUEL DA LUZ CORDEIRO
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÕES
CONCURSO
CONHECIMENTO SUPERVENIENTE
CÚMULO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/05/2024
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: (elaborado pelo relator):
O disposto no art. 78.º, do Código Penal (Conhecimento superveniente do concurso) não tem aplicação no regime geral das contraordenações (RGCO), relativamente às contraordenações previstas no Código de Valores Mobiliários, no Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras e na Lei do Combate ao Branqueamento de Capitais e do Financiamento.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção da Propriedade Intelectual, Concorrência, Regulação e Supervisão do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório
(…), arguido no processo de contraordenação 74/19.0YUSTR, veio recorrer do “despacho de indeferimento do requerimento por si apresentado em 21.12.2022 – requerendo a aplicação das regras do conhecimento superveniente do concurso de infrações e consequentemente a aplicação de uma coima única pela prática de 4 infrações contraordenacionais em que se encontra condenado com trânsito em julgado.
Formula pedido no sentido de se “-revogar o douto despacho recorrido, por comissão de erro de Direito quanto ao afastamento da aplicabilidade do regime previsto no art. 78º do CP ao Direito Contraordenacional geral, ex vi art. 32º do RGCO; e
-ordenar a baixa do processo à 1ª Instância para realização do cúmulo jurídico das 4 coimas aplicadas através das 4 decisões já transitadas em julgado, melhor identificadas no requerimento apresentado em 21.12.2022, nos termos requeridos pelo arguido ora recorrente no âmbito desse mesmo requerimento.
Formulou as seguintes conclusões:
1ª. O presente recurso é admissível uma vez que uma interpretação conforme à Constituição da norma contida no art. 73° nº 1 do RGCO implica interpretá-la nosentidode permitiruma integraçãode lacunas, de modo a que, através dos preceitos de Direito subsidiariamente aplicáveis – arts. 399ºe segs. do CPP – sejam também abrangidos pela possibilidade de recurso os despachos proferidos após a decisão final de mérito que colidam com os direitos de defesa do arguido, como sucede no caso sub iudice.
2ª. No caso sub iudice estão em causa os direitos de defesa do arguido inerentes à ideia do Estado de Direito (art. 2º da CRP), na medida em que a não aplicação das normas do cúmulo jurídico, também relativamente às decisões que sejam conhecidas depois da definitividade de uma delas, seria, sem qualquer razão material e em violação do princípio da igualdade (relativamente ao chamado concurso simultâneo), mais desfavorável ao arguido, posto que imporia o cumprimento de todas as coimas parcelares em cúmulo material, impossibilitando a aplicação de uma coima única, em cúmulo jurídico, cujo valore é necessariamente inferior ao da soma das coimas parcelares.
3ª. O afastamento da possibilidade de conhecimento superveniente do concurso de infrações contraordenacionais, acarretará para o arguido uma restrição grave aos seus direitos de defesa e ao seu direito de propriedade, ao ter de proceder ao pagamento da soma das coimas parcelares que será sempre de valor bem mais elevado do que o valor que resultaria de uma aplicação das regras do cúmulo jurídico de coimas.
4ª. Como tal, por da decisão recorrida decorrer a aplicação ao arguido de uma soma de coimas (em cúmulo material) de valor superior ao valor que decorreria da aplicação do disposto no art. 78º do CP ex vi at. 32º do RGCO, a decisão recorrida é, sem dúvida, recorrível.
5ª. A norma contida no art. 73° nº 1 do RGCO, quando interpretada no sentido de ser exclusivamente permitido o recurso de decisões finais de mérito é inconstitucional, por restringir as garantias de defesa do arguido inerentes ao Estado de Direito e impedir o acesso à justiça, violando assim o disposto no art. 2º, bem como nos n°s 1, 2 e 10 do art. 32° e n° 1 do art. 20° todos da CRP.
6ª. Uma interpretação conforme à Constituição da norma contida no art. 73° nº 1 do RGCO implica interpretá-la no sentido de que a mesma, em vez de permitir uma interpretação a contrario, deve antes permitir uma integração de lacuna, de modo a que, através dos preceitos de Direito subsidiariamente aplicáveis, sejam também abrangidos pela possibilidade de recurso os despachos proferidos após a decisão final de mérito que colidam com direitos fundamentais, incluindo o direito de defesa do arguido.
7ª. O art. 73º do RGCO refere-se apenas à sentença ou despacho judicial proferido nos termos do art. 64º do mesmo diploma, ou seja, às decisões que põem termo à causa, pelo que, obviamente, estão excluídas, da previsão da aludida norma todas as decisões posteriores àquelas.
8ª. Como tal necessário é concluir que, do disposto no art. 73º do RGCO não resulta a irrecorribilidade da decisão proferida em 17.10.2023, da qual se vem pois recorrer, nos termos conjugados do art. 73º a contrario do RGCO e arts. 399º e segs do CPP ex vi art. 41º nº 1 do RGCO.
9ª. O art. 19º do RGCO não define quando é que se deve considerar haver concurso de contraordenações, nem as situações em que deve operar o cúmulo jurídico das coimas.
10ª. De igual forma o art. 19º do RGCO regula o modo como opera o cúmulo jurídico, mas não trata (em nenhum sentido) a questão da superveniência. Nada diz acerca do concurso superveniente.
11ª. E, portanto, do art. 19º do RGCO, nada se retira quanto a ser ou não aplicável o cúmulo jurídico das coimas que ou quanto a ser ou não aplicável subsidiariamente o art. 78º do CP, nos casos de conhecimento superveniente do concurso de contraordenações.
12ª. Há desde já que questionar que grande razão material poderia haver para se dever fazer um cúmulo jurídico das coimas quando o concurso de contraordenações fosse conhecido no momento do julgamento de todas elas em simultâneo (chamado concurso simultâneo) e para, muito diferentemente, se dever fazer um cúmulo material das coimas quando o concurso fosse conhecido supervenientemente!?
13ª. O que é que de tão fundamental mudaria no concurso superveniente para que o cúmulo das coimas deixasse de ser um cúmulo jurídico e passasse a ser um cúmulo material? O simples facto de os mesmos ilícitos serem conhecidos pelos Tribunais em momentos diferentes, sem o arguido ser por isso responsável, poderia alguma vez justificar sanções diferentes?
14ª. Não é sequer verdade que o RGCO trate de forma exaustiva a matéria do concurso de contraordenações conhecidas antes da definitividade de qualquer dasdecisões e que seja sequerpossível aplicar-seoregime previsto no art. 19º do RGCO qua tale sem se recorrer subsidiariamente ao regime do concurso de crimes previsto no CP.
15ª. Como o art. 19º do RGCO não define quando é que se deve considerar haver concurso de contraordenações, nem as situações em que deve operar o cúmulo jurídico das coimas, para conseguirmos saber quando é que nos encontramos perante um concurso de contraordenações temos sempre de recorrer ao regime do concurso de crimes previsto noCP e(adaptadamente) aplicá-lopara identificarmos assituações em que existe concurso de contraordenações e depois, sim, podermos aplicar o regime previsto no art. 19º do RGCO.
16ª. Portanto não procede o argumento,  aliás puramente formal, usado para afastar a aplicação subsidiária do art. 78º do CP no Direito Contraordenacional e que é que prevendo expressamente o RGCO o instituto do concurso de contraordenações e não tendo previsto expressamente o conhecimento superveniente do concurso, isso significaria que não existia qualquer lacuna e portanto não poderia aplicar-se a título subsidiário, ex vi art. 32º do RGCO, o regime previsto no art. 78º do CP. Argumento que aliás não tem qualquer razão de ser substantiva, nenhuma razão de justiça material, nenhuma racionalidade, seja em termos de gravidade dos factos, seja em termos de fins das coimas, seja com base em qualquer outra razão de política contraordenacional que sentido faça.
17ª. Já quanto à segunda linha argumentativa apontada nesse mesmo sentido, de que a aplicação subsidiária do art. 78º do CP implicaria uma reabertura do processo em momento ulterior para reapreciação do facto como contraordenação, o que a lei vedaria expressamente nos arts. 54º nº 2 e 79º nº 1 do RGCO, refira-se, em primeiro lugar, que do art. 54º nº 2do RGCO apenas resulta o dever de promoção do processo a cargo da autoridade administrativa, que tem o dever de investigar e de proferir decisão sobre os factos participados ou denunciados e, portanto, de arquivar ou de aplicar uma coima consoante conclua pela prática, ou não, de uma contraordenação, não podendo deixar de decidir – e nada mais do que isso.
18ª. E, em segundo lugar, do art. 79º nº 1 do RGCO apenas resulta a aplicabilidade no Direito Contraordenacional do Princípio ne bis in idem, ou seja, de que transitada em julgado uma decisão judicial que julgue um facto como contraordenação fica precludida a possibilidade de tais factos voltarem a ser julgados novamente como consubstanciando uma nova Contraordenação – portanto daqui também nada se retira que obste ao cúmulo jurídico das coimas seja quando for que se tenha conhecimento do concurso de contraordenações (superveniente ou não).
19ª. Certo é que não é legítimo – nem aos ilustres intérpretes das leis, nem aos Tribunais – fazer tábua rasa do regime legal que está efetivamente em vigor e que é o único a que os Tribunais devem obediência e tentar-se restringir a aplicação do regime do cúmulo jurídico das coimas ao arrepio do que resulta de uma escorreita aplicação dos normativos legais previstos, designadamente nos arts. 19º e 32º do RGCO, por um lado, e nos arts. 77º e 78º do CP, por outro.
20ª. Acresce que a opinião deste autor, por mais respeitável que seja, não só não é Lei e portanto não se substitui ao que resulta da conjugação do art. 19º com o art. 32º do RGCO e com o art. 78º do CP, como acresce que é até uma posição isolada na nossa Doutrina como o próprio reconhece, pronunciando-se em sentido inverso, de forma fundamentada, atendendo à ratio das normas em causa, autores igualmente muito reputados como MANUELFERREIRAANTUNES ou OLIVEIRA MENDES e SANTOS CABRAL.
21ª. Do acórdão do TC nº 336/2008, proferido em 19/06/2008, no Proc. nº 84/2008, que se pronunciou no sentido da não inconstitucionalidade do regime previsto no art. 25º do RGIT – atenta a natureza das infrações aí em causa, que respeitam à frustração da arrecadação de receitas tributárias e em que existe uma perfeita identidade entre a natureza da infração cometida e a da sanção aplicada – não se pode extrair qualquer conclusão quanto à não aplicação subsidiária do art. 78º do CP no Direito Contraordenacional geral, desde logo porque a regra prevista no art. 25º do RGIT é a contrária da regra prevista no art. 19º do RGCO e no art. 77º do CP.
22ª. A regra do cúmulo material das coimas no Direito Contraordenacional Tributário não depende de que seja ou não seja superveniente o conhecimento do concurso de contraordenações tributárias.
23ª. Pois o que há de específico para haver cúmulo material é as contraordenações serem tributárias e não haver conhecimento superveniente de um concurso de tais contraordenações.
24ª. Aqui chegados o que se pode concluir é que no Direito das Contraordenações em geral o cúmulo das coimas deve ser sempre
jurídico, seja o conhecimento do concurso simultâneo ou superveniente!
25ª. Tal como no Direito sectorial das contraordenações tributárias o cúmulo das coimas é sempre material, seja o conhecimento do concurso simultâneo ou superveniente!
26ª. Relevante para a apreciação da questão sub iudice é sim o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, em 28.05.2014, no Proc. nº 1848/11.6TBPRD-A.P1, disponível em www.dgsi.pt, onde se demonstra fundamentadamente como há sólidas razões para aplicar subsidiariamente o art. 78º do CP no Direito Contraordenacional.
27ª. Demonstrada a falência das únicas razões apontadas para impedir a aplicação subsidiária do art. 78º do CP ao Direito Contraordenacional, aquilo que há que fazer é aplicar corretamente a Lei, designadamente o já acima citado art. 19º do RGCO, por um lado, mas também os arts. 77º e 78º do CP ex vi art. 32º do RGCO: sendo a regra prevista no art. 19º do RGCO em tudo idêntica à regra prevista no art. 77º do CP, em coerência, fará todo o sentido a aplicação do regime previsto no art. 78º do CP ex vi art. 32º do RGCO.
28ª. Efetivamente, as normas do Código Penal que são aplicáveis no Direito Contraordenacional são todas as da Parte Geral que não forem contrárias a este RGCO, o que significa que mesmo em matérias que são reguladas no RGCO, poderá haver aplicação subsidiária do CP em pontos que não constem dessa regulação.
29ª. Nenhuma razão existe para que se realize o cúmulo jurídico quando o conhecimento das infrações for contemporâneo, mas já não se realize esse mesmo cúmulo jurídico quando o conhecimento for superveniente – não há qualquer razão que legitime essa diferenciação de tratamento.
30ª. A ratio do cúmulo jurídico, previsto no art. 19º do RGCO ou no art. 77º do CP, radica no facto de o agente cometer plúrimas infrações antes do trânsito em julgado/definitividade da decisão condenatória, ou seja, antes de receber a solene advertência que tal condenação transitada representa (se o agente comete uma nova contraordenação depois do trânsito/definitividade da condenação, ou seja, depois dessa solene advertência, já não se estará perante uma relação de concurso, com o consequente cúmulo jurídico das coimas, mas sim perante um caso de reincidência e de sucessão de coimas).
31ª. Ora, essa ratio tanto se faz sentir sendo o conhecimento das contraordenações contemporâneo, como sendo o conhecimento superveniente. Decisivo é que o cometimento das infrações contraordenacionais (tal como sucede com as criminais) tenha ocorrido antes da solene advertência, ou seja, do trânsito da primeira condenação. Mas o momento em que essas condenações por essas infrações é conhecido, se é em simultâneo ou se é superveniente, deve considerar-se irrelevante ao nível da ratio do instituto.
32ª. Por isso, tal como sucede no Direito Penal, também no Direito Contraordenacional se deve realizar, sempre, a final, um cúmulo jurídico, contemporâneo ou superveniente, desde que as infrações tenham sido praticadas antes da primeira condenação.
33ª. Não só não há quaisquer razões que permitam fazer tal diferenciação como há fortes razões, decorrentes do Princípio da Igualdade de tratamento dos cidadãos, constitucionalmente consagrado no art. 13º da CRP, que impõem a aplicação do regime previsto no art. 78º do CP ao Direito das Contraordenações geral e portanto ao caso sub iudice, de modo a que haja uma efetiva equiparação substancial dos casos de punição do concurso de crimes, quer sejam de conhecimento judicial contemporâneo, quer sejam de conhecimento judicial superveniente 34ª. Uma interpretação da norma contida no complexo normativo constituído pelos arts. 19º e 32º do RGGO e 78º do CP no sentido de que não se deve operar o cúmulo jurídico superveniente de infrações contraordenacionais, por considerar-se não ser subsidiariamente aplicável ao Direito Contraordenacional o disposto no art. 78º do CP, é inconstitucional por violação do Princípio da Igualdade consagrado no art. 13º da CRP, dado que nenhuma razão justifica que se deva tratar diferentemente aquelas situações em que o conhecimento das infraçõescontraordenacionaisocorreu contemporaneamente daquelas situações em que o conhecimento das infrações apenas ocorreu supervenientemente.
35ª. Uma interpretação da norma contida no complexo normativo constituído pelos arts. 19º e 32º do RGGO e 78º do CP conforme ao art. 13º da CRP impõe que se considere subsidiariamente aplicável no âmbito do Direito Contraordenacional o disposto no art. 78º do CP, não havendo qualquer razão para distinguir aqueles casos em que o concurso de contraordenações foi conhecido ab initio e portanto as várias contraordenações foram julgadas conjuntamente, dando origem à aplicação de uma coima única, resultante do cúmulo jurídico das coimas parcelares, e aqueles casos em que o concurso apenas foi conhecido supervenientemente.
36ª. Refira-se, por último, que na falta de uma norma como o art. 78.º do CP (que trate da questão do concurso superveniente), ficam criadas as condiçõespara que asautoridadesde investigaçãopossam ter interesse em, de forma mais ou menos velada, gerir a(s) investigação(ões) de modo a “partir” em blocos a atuação contraordenacional imputável a um mesmo arguido por vários processos e de modo a que só sejam por si proferidas novas decisões condenatórias depois de outras terem transitado em julgado, tudode modo a se tentar evitar que esse arguido possa beneficiar do regime consagrado no n.º 2 do referido artigo 19.º do RGCO.
37ª. Revogando-se a decisão recorrida e considerando-se aplicável o regime previsto no art. 78º do CP ao Direito Contraordenacional geral, ex vi art. 32º do RGCO, deve ser ordenada a baixa do processo à 1ª instância para realização do cúmulo jurídico das 4 coimas aplicadas através das 4 decisões já transitadas em julgado melhor identificadas no requerimento apresentado em21.12.2022, nos termos requeridos pelo arguido ora recorrente através do referido requerimento.
38ª. Se assim não se fizesse, estar-se-ia a retirar ao arguido o seu direito constitucional a um duplo grau de jurisdição, ou seja de poder vir a recorrer do cúmulo jurídico que venha a ser feito.
O Ministério Público respondeu ao recurso formulando as seguintes conclusões:
1.
O Direito Contraordenacional comporta no seu núcleo uma responsabilização do agente por práticas tidas como infractoras de regras e normas objectivamente consagradas, que regulam um determinado sector da vida em sociedade e que se basta – a par de uma actuação censurável por parte do agente – com a respectiva verificação daquelas.
2.
Deste modo, o que estará sempre em causa será uma «reprimenda social» dirigida ao infractor que, apesar dos encargos-excedentes advindos do pagamento de uma dada coima não vê, ainda assim e em virtude da mesma, o seu direito à liberdade ameaçado, talqualmente sucede com uma pena de multa – sempre susceptível de conversão – ou com uma pena de prisão, suspensa ou efectiva.
3.
Nessa mesma medida, o espírito da Lei não admite qualquer aplicação subsidiária no campo do ilícito de mera ordenação social das normas que regulam o conhecimento superveniente do concurso de crimes, conforme previsto no artigo 78º do Código Penal.
4.
Na verdade, o mecanismo previsto no artigo 78º do Código Penal tem como fundamento essencial razões ligadas aos princípios da culpa e da prevenção especial positiva, na justa medida em que impede, por um lado, o cumprimento quase «perpétuo» - porque sucessivo (e por aí sempre excedente a uma culpa única) – de várias penas, e aposta, por outro, num tratamento favorável do arguido, do qual se espera que, perante a aplicação de uma pena saída da moldura do concurso, com um limite expressamente estabelecido naquele mesmo Diploma, interiorize o desvalor da sua conduta e conforme para futuro a sua conduta com a normatividade jurídica vigente.
5.
Por outro lado, mesmo tendo em conta o artigo 9º do Código Civil, forçoso se torna de concluir que ao não se encontrar previsto no RGCO qualquer mecanismo análogo ao previsto no citado artigo 78º do Código Penal, tal se deve ao facto de o legislador não ter atribuído ao ilícito de mera ordenação social a mesma dignidade com que tratou a figura do crime.
6.
E, de facto, tal encontra explicação na substancial diferença axiológica entre os comportamentos em causa, num e noutro caso.
7.
Desta feita, e muito longe de se estar perante qualquer inconstitucionalidade, o que é certo é que tal escala de valores obedece ao próprio texto da Lei Fundamental.
8.
Justamente porque, em vez de se fazer equivaler sanções administrativas a crimes – encontrando-se há muito afastada a vetusta figura da «contravenção» -, se preveniu a subsistência de um Estado-Polícia que convive mal com a ideia de Democracia.
9.
Da própria letra do artigo 78º do Código Penal extrai-se que o mesmo nunca foi pensado para ser aplicado a outras jurisdições, uma vez que, falando em «crimes», estes não se confundem com «sanções».
10.
A douta decisão recorrida não tinha qualquer obrigação de inovar relativamente às posições jurisprudenciais que aderiu, não constituindo tal acto uma qualquer falta de fundamentação.
11.
Em coerência com o que se acaba de dizer, dá-se igualmente aqui por integralmente reproduzida toda a promoção do Ministério Público de 10/10/2023
12.
Sendo certo que, havendo identidade de argumentos, não se vê em que medida o despacho recorrido possa padecer de qualquer vício ou carecer de qualquer remédio.
O Banco de Portugal respondeu também ao recurso, concluindo o seguinte:
A) O tema suscitado pelo Recorrente não é novo, os seus argumentos são conhecidos e o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa já teve o ensejo de se pronunciar sobre a matéria no douto Acórdão proferido em 24 de fevereiro de 2022, em termos que merecem plena adesão por parte do Recorrido;
B) Com efeito, nos termos do Regime Geral das Contraordenações e Coimas, não há lugar ao conhecimento superveniente de contraordenações – nem à aplicação subsidiária do regime do artigo 78.º do Código Penal, pois não existe qualquer lacuna que justifique tal aplicação;
C) Como se concluiu lapidarmente no aresto em que o Recorrido pediu vénia para se louvar, “[o] que obsta ao conhecimento superveniente do concurso é a arquitetura do RGCO que, não só não o contempla como não o admite enquanto corpo estranho e incompatível em virtude do estabelecido no n.º 2 do art. 54.º e no n.º 1 do 79.º, que estabelecem um particular regime de encerramento dos autos”;
D) Assim, ao decidir não haver lugar à realização superveniente de cúmulo jurídico de coimas aplicadas em processos autónomos, indeferindo a requerida realização de audiência para a respetiva efetivação, o douto despacho recorrido não incorreu em qualquer vício, de legalidade ou  inconstitucionalidade, pelo que, identicamente, não merece a mais leve censura.” 
Admitido o recurso, o Ministério Público nesta Relação emitiu parecer sustentando o emitido na primeira instância.
*
Requerida a audiência, a mesma realizou-se pela forma constante da respetiva ata de 20.05.2024.
*
II. Questões a decidir
O âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. os artigos 119º, n.º 1, 123º, n.º 2 e 410º, n.º 2, als. a), b) e c) do Código de Processo Penal).
Assim, atentas as conclusões do recorrente (…), há uma única questão a decidir que é a de saber se, em concreto, deve ser realizado o cúmulo jurídico de 4 coimas aplicadas através das 4 decisões já transitadas em julgado.
III. Fundamentação
Os factos
Da consulta dos autos resultam os seguintes factos com relevância para a decisão:
1. (…) alegando ter sido condenado:
a. pela prática de uma contraordenação consubstanciada na violação dos arts. 10º, 11º, 13º, 15º nº 2 al. c), 18º nºs 1 e 2 do Aviso nº 5/2008, de 1 de julho, p. e p. pelo art. 210º, alínea m) do RGICSF, e uma contraordenação consubstanciada na violação dos arts. 19º e 20º do Aviso nº 5/2008, de 1 de julho, p. e p. pelo art. 210º, alínea m) do RGICSF, pelas quais o arguido ora requerente foi condenado nas coimas parcelares de €300.000,00 e €200.000,00 e na coima única de €350.000,00, além da sanção acessória de inibição do exercício de cargos sociais e de funções de administração, direcção, gerência ou chefia em quaisquer instituições de crédito, sociedades financeiras, instituições de pagamento ou instituições de moeda electrónica pelo período de um ano, por decisão proferida em 1ª instância em 30.04.2018 – cfr. refª citius 201254 – e transitada em julgado em 6.11.2020, no âmbito do Proc. nº 182/16.0YUSTR, que correu termos pelo 1º Juízo deste Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão;
b. pela prática de cinco contraordenações consubstanciadas na violação do art. 7º do Código de Valores Mobiliários, p. e p. pelo art. 389º, n.º 1, alínea a) e art. 388º, n.º 1, alínea a), ambos do Código de Valores Mobiliários, pelas quais o arguido ora requerente foi condenado nas coimas parcelares de €70.000,00, €50.000,00, €90.000,00, €50.000,00 e €50.000,00 e na coima única de €180.000,00, por decisão proferida em 1ª instância em 9.12.2020 – cfr. refª citius 283413 – e transitada em julgado em 12.08.2021, no âmbito do Proc. nº 178/20.7YUSTR, que correu termos pelo 2º Juízo deste Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão
c. pela prática de cinco contraordenações consubstanciadas na violação do art. 29º, nº 1, da Lei nº 25/2008, de 5 de junho, p. e p. pelos arts. 53º, alínea ab), pelas quais o arguido ora requerente foi condenado nas coimas parcelares de €60.000,00, €20.000,00, €25.000,00, €25.000,00 e €25.000,00 e na coima única de €100.000,00, por decisão proferida em 1ª instância em 7.09.2020 – cfr. refª citius 270734 – e transitada em julgado em 12.10.2022, no âmbito do Proc. nº 249/17.7YUSTR, que correu termos pelo 1º Juízo deste Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão;
d. pela prática de duas contraordenações consubstanciadas na violação dos arts. 11º, n.ºs 1, 2 e 3, 13º, n.ºs 1 e 2, 15º n.ºs 1 e 2 e 18º nº 2, als. b) e d) do Aviso nº 5/2008, de 1 de julho, p. e p. pelo art. 210º, alínea m) do RGICSF, uma contraordenação consubstanciada na violação do art. 116º-F, alíneas a), c), h) (nas suas subalíneas i) e v) e j) do RGICSF), na redação vigente à data da prática dos factos (atual art. 116.º-Z do RGICSF), p.e p. pelo art. 211º, alínea n) do RGICSF (atual alínea v) do n.º 1 do artigo 211.º do RGICSF, uma contraordenação p. e p. pela então alínea l) do art. 211º do RGICSF, três contraordenações p. e p. pela então alínea o) do art. 211º do RGICSF, pelas quais o arguido ora requerente foi condenado nas coimas parcelares de €350.000,00, €450.000,00, €800.000,00, €1.750.000,00, €750.000,00, €1.000.000,00 e €1.000.000,00 e na coima única de €3.500.000,00, além da sanção acessória de inibição do exercício de cargos sociais e de funções de administração, direcção, gerência ou chefia em quaisquer instituições de crédito, sociedades financeiras, instituições de pagamento ou instituições de moeda electrónica pelo período de cinco anos, por decisão proferida em 1ª instância em 30.09.2021 – cfr. refª citius 318824 – e transitada em julgado em 28.07.2022, no âmbito do presente processo (Proc. nº 74.19.0YUSTR);
requereu a “realização do cúmulo jurídico das infrações acima identificadas junto deste Tribunal, nos termos do disposto no art. 471º nº 2 do CPP ex vi art. 41º do RGCO, por ser este o Tribunal competente para o efeito, por ter sido este o Tribunal que proferiu a última das quatro condenações em causa, em 30.09.2021 – cfr. refª citius 318824”.
Mais requereu “que este Tribunal designe dia para a realização de audiência para o efeito do disposto no nº 2 do art. 78º do CP, aplicável ex vi art. 32º do RGCO”.
O Direito
Como já acima se referiu, há apenas uma única questão a apreciar, a de saber se o presente procedimento contraordenacional admite a realização do cúmulo jurídico pedido pelo condenado. Ou seja, simplificando, se há lugar à aplicação de coima única nos casos de cúmulo superveniente, tal como previsto no art. 78.º, do Código Penal (CP).
Estabelece o invocado art. 78.º, CP, inserido na SECÇÃO III, Punição do concurso de crimes e do crime continuado, do CAPÍTULO IV, Escolha e medida da pena, do TÍTULO II, do Livro I, que:
“1 ‐ Se, depois de uma condenação transitada em julgado, se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes, são aplicáveis as regras do artigo anterior, sendo a pena que já tiver sido cumprida descontada no cumprimento da pena única aplicada ao concurso de crimes.
2 ‐ O disposto no número anterior só é aplicável relativamente aos crimes cuja condenação transitou em julgado.
3 ‐ As penas acessórias e as medidas de segurança aplicadas na sentença anterior mantêm‐se, salvo quando se mostrarem desnecessárias em vista da nova decisão; se forem aplicáveis apenas ao crime que falta apreciar, só são decretadas se ainda forem necessárias em face da decisão anterior.”
Convém, desde já, referir que os factos alegados pelo recorrente, bem como os constantes da certidão que acompanha o recurso são manifestamente insuficientes para que, em concreto, se possa decidir pela realização da audiência de julgamento do cúmulo jurídico.
Mesmo que se entendesse que é aplicável o regime previsto no art. 78,º. do CP haveria, previamente, que averiguar as concretas datas de cometimento das contraordenações pelas quais foi condenado a fim de apurar se ocorreu o trânsito em julgado por alguma delas antes ou depois do cometimento das restantes ou de algumas dessas contraordenações.
O recurso, melhor, a decisão a proferir não visa uma abstração, mas sim a definição da concreta situação constante dos autos, limitada pelo objeto do recurso.
Vejamos.
Tal como a Banco de Portugal faz notar na sua resposta, esta questão foi já apreciada no âmbito deste processo, nos autos principais (págs. 559 e segs. e 792 e segs), embora com âmbito totalmente não coincidente, pela invocação de outras contraordenações já transitadas em julgado.
Nesse acórdão, de 24.2.2022, com total propriedade e atualidade, afirma-se, além do mais, após pertinentes citações doutrinais, que O que obsta ao conhecimento superveniente do concurso é a arquitetura do RGCO que, não só não o contempla como não o admite enquanto corpo estranho e incompatível em virtude do estabelecido no n.º 2 do art. 54.º e no n.º 1 do 79.º, que estabelecem um particular regime de encerramento dos autos” (p. 560 e 795).
O que então foi afirmado, mantem total atualidade e não há motivos para alterar tal decisão.
Vejamos, porquê.
As contraordenações pelas quais o recorrente foi condenado respeitam a diversos regimes jurídicos.
Nenhum desses regimes (o RGICSF - Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras; o Código de Valores Mobiliários; e a Lei nº 25/2008, de 5 de junho - Lei do Combate ao Branqueamento de Capitais e do Financiamento ao terrorismo, entretanto revogado pela Lei 83/2017, de 18 de agosto), contém uma norma expressa a regular a matéria em causa, ou seja, o conhecimento superveniente do concurso para efeitos de condenação em coima única.
O RGICSF (Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo DL n.º 298/92, de 31 de dezembro) não contém qualquer norma quanto ao concurso de contraordenações, ou de coimas, ou de cúmulo jurídico, prevendo-se, unicamente, a situação do concurso de infração criminais e contraordenacionais, no art. 208.º.
O art. 232.º, contudo, estipula que “Às infrações previstas no presente capítulo é subsidiariamente aplicável, em tudo que não contrarie as disposições dele constantes, o regime geral dos ilícitos de mera ordenação social”.
O Código de Valores Mobiliários (aprovado pelo DL n.º 486/99, de 13 de novembro) também não prevê o concurso de infrações ou o cúmulo de contraordenações, ou de coimas.
Regula, igualmente, unicamente as situações em que  o mesmo facto constituir simultaneamente crime e contraordenação (art. 420.º) estipulando, contudo e relevantemente, no n. 3 do art. 420.º que “Quando o mesmo facto der origem a uma pluralidade de infrações e de processos da competência de entidades diferentes, as sanções já cumpridas ou executadas em algum desses processos podem ser tidas em conta na decisão de processos ulteriores para efeitos de determinação das respetivas sanções, incluindo o desconto da sanção já cumprida e executada, se a natureza das sanções aplicadas for idêntica.”
O art. 407.º, estipula que “Salvo quando de outro modo se estabeleça neste Código, aplica-se às contraordenações nele previstas e aos processos às mesmas respeitantes o regime geral dos ilícitos de mera ordenação social”.
Finalmente, a Lei do Combate ao Branqueamento de Capitais e do Financiamento (Lei nº 25/2008, de 5 de junho) também não continha qualquer norma especial sobre o concurso superveniente. Estipulando, no art. 52.º, que “Às infrações previstas no presente capítulo é subsidiariamente aplicável o regime geral das contraordenações”.
O regime atualmente em vigor (Medidas de Combate ao Branqueamento de Capitais e ao Financiamento do terrorismo), prevê, no art. 182.º, a aplicação subsidiária de diversos regimes, atendendo à matéria ou à competência das entidades responsáveis pelo procedimento. 
Assim, por força das regras de direito subsidiário indicadas, há que averiguar o que dispõe o regime geral dos ilícitos de mera ordenação social, também designado de regime geral das contraordenações. Ou seja, o regime previsto no DL n.º 433/82, de 27 de outubro (RGCO).
Como é pacífico, o RGCO apenas trata da matéria do concurso de infrações e do cúmulo das coimas nos arts. 19.º, 20.º (sem interesse para o caso) e 36º.  
Estabelece o art. 19.º que:
1 - Quem tiver praticado várias contraordenações é punido com uma coima cujo limite máximo resulta da soma das coimas concretamente aplicadas às infrações em concurso.
2 - A coima aplicável não pode exceder o dobro do limite máximo mais elevado das contraordenações em concurso.
3 - A coima a aplicar não pode ser inferior à mais elevada das coimas concretamente aplicadas às várias contraordenações.
Estabelece o art. 36.º que
“1 - Em caso de concurso de contraordenações será competente a autoridade a quem, segundo os preceitos anteriores, incumba processar qualquer das contraordenações.
2 - O disposto no número anterior aplica-se também aos casos em que um mesmo facto torna várias pessoas passíveis de sofrerem uma coima.
Os conflitos de competência serão resolvidos de acordo com o disposto no art. 37.º.
Finalmente, o RGCO também estipula que “Em tudo o que não for contrário à presente lei aplicar-se-ão subsidiariamente, no que respeita à fixação do regime substantivo das contraordenações, as normas do Código Penal” (art. 32.º) e “Sempre que o contrário não resulte deste diploma, são aplicáveis, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal” (art. 41.º, n. 1).
Atendendo a este panorama legal, e quanto à questão em apreciação, têm sido, essencialmente, formadas duas correntes doutrinárias e jurisprudências, antagónicas, quanto à aplicação do regime resultante do art. 78.º, CP. Isto é, quanto à punição do concurso superveniente de contraordenações.
Quer a decisão em recurso quer as alegações dão conta destas posições pelo que se torna desnecessário descrevê-las, limitando-nos a fazer o elenco das mesmas.
Assim, manifestando o entendimento que ao abrigo do RGCO – aplicável a este procedimento, como já vimos – deve aplicar-se uma coima única a todas as contraordenações transitadas em julgado, ainda que o conhecimento do concurso seja superveniente encontramos na doutrina, os citados, Simas Santos e Lopes de Sousa (Contraordenações – Anotações ao Regime Geral, 5ª Ed., 1990); e Oliveira Mendes e Santos Cabral (Notas ao Regime Geral das Contraordenações e Coimas, Almedina, 2009) e na jurisprudência os também referidos Ac. RP de 28 de maio de 2014 (Proc. 1848/11.6TBPRD-A.P1, rel. Desemb. Alves Duarte).
Mais recentemente, também Nuno Brandão, como referido pelo recorrente em audiência, assumiu este entendimento[1]. Segundo este autor, coerentemente, quer no caso de conexão de processos, quer no da realização de cúmulo por conhecimento superveniente do concurso, é irrelevante a diferente natureza das contraordenações[2].
Apreciando, unicamente, infrações previstas no RGIT, o Supremo Tribunal Administrativo tem pendido à aplicação do regime previsto no art. 78.º, do CP, por todos, o acórdão STA de 14.6.2012; desfavoravelmente, no entanto, os acórdãos STA de 6.11.2019 (processos 1528/2017 e 256/2018) e 8.01.202[3] (processo 198/2018), atendendo ao regime especial do art. 25.º, do RGIT (disponíveis in www.dgsi.pt).
Em sentido contrário manifestam-se Paulo Pinto de Albuquerque, in "Comentário do Regime Geral das Contra-Ordenações", 2ª ed. act., 2022, p. 119 e segs. (anotações 12 a 16), com indicação de outra jurisprudência e doutrina; António Beça Pereira, "Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas", 2ª edição, 1996, p. 70,  e os citados acórdãos Ac. do TRPorto de 09/05/1990, Proc. 310176 e Ac. do STJ de 12/04/1989, Ac. Relação de Coimbra de 15 de março de 2019, Acs. da Relação de Évora de 24 de outubro de 2019 (Proc. nº 1817/18.5T8EVR.E1), e de 22 de outubro de 2020 (Proc. 1171/19.8T8STR.E1), bem como da Relação de Guimarães de 5 de março de 2020, todos disponíveis in www.dgsi.pt. Podemos, ainda, acrescentar o Ac. do Tribunal da Relação de Évora de 27.01.2022[4] (proc. 1046/2020).
Também Germano Marques da Silva (embora em concreto se ocupasse do RGIT e da infração continuada, mas com entendimento universal aos restantes regimes e à questão aqui em apreciação), entende não se estar perante lacuna:
“Não obstante não considerarmos existir impedimento conceptual à consagração de um regime de contraordenação continuada, consideramos que nem o RGCO nem o RGIT o consagram nem que haja lacuna no RGIT a dever ser integrada por recurso ao Código Penal.
(…)
O regime punitivo das contraordenações consta exaustivamente do RGCO e o RGIT contém algumas especialidades. Ambos os diplomas regulam exaustivamente quer a sanção principal (coima), quer as sanções acessórias aplicáveis, o regime de determinação da medida da coima e os pressupostos das sanções acessórias e o regime do concurso de infracções pelo que se deve considerar não existir qualquer lacuna a dever ser integrada por aplicação subsidiária do Código Penal (art. 32º do RGCO). Acresce como mais um argumento a favor da ausência de lacuna a circunstância de quer o RGCO quer o RGIT disciplinarem expressamente o regime de punição do concurso de contraordenações e seria estranho que tendo-o feito expressamente não tenham contemplado também o regime idêntico ou paralelo ao do nº 2 do art. 32º do Código Penal que é também um dos casos de punição de concurso de infracções (infracção continuada)[5]” (são nossos os destaques).
Pela nossa parte, concordamos com o recorrente quando alega que “(…) o referido art. 19º do RGCO não define quando é que se deve considerar haver concurso de contraordenações, nem as situações em que deve operar o cúmulo jurídico das coimas.
De igual forma o art. 19º do RGCO regula o modo como opera o cúmulo jurídico, mas não trata (em nenhum sentido) a questão da superveniência. Nada diz acerca do concurso superveniente.”
Já não podemos concordar, ressalvado o devido respeito, quando alega que o que importa é apurar se há razões materiais para que o concurso superveniente passe a ser um cúmulo material e deixe de ser um cúmulo jurídico apenas pela circunstância da superveniência do conhecimento do concurso.
Primeiramente há que realçar que cabe ao legislador e não ao aplicador apurar se há ou não razões materiais para estabelecer determinados regimes ou diferentes regimes de acordo com diferentes circunstâncias. Para além de eventualmente apreciar se o regime a aplicar respeita a constituição, aos tribunais cabe, unicamente, atenta a separação de poderes, e no caso concreto, decidir se o regime subsidiário (como já vimos) deve e/ou pode ser aplicado nos casos de concurso superveniente das contraordenações elencadas pelo recorrente. Se se entender que sim, apenas há que aplicar o regime previsto para o direito criminal e não criar um regime para aplicar ao direito contraordenacional.
Questiona o recorrente se “O simples facto de os mesmos ilícitos serem conhecidos pelos Tribunais em momentos diferentes, sem o arguido ser por isso responsável, poderia alguma vez justificar sanções diferentes?”
Esta questão encerra, a nosso ver, uma importante afirmação e que, entendemos, inquina todo o percurso lógico da tese do recorrente. A questão não se coloca apenas no conhecimento do concurso superveniente por parte dos tribunais. A questão tem de ser equacionada, por se tratar da aplicação universal do regime criminal ao direito das contraordenações, com respeito a todas as entidade e tribunais com competência para aplicar coimas.
No direito criminal apenas os tribunais podem aplicar penas (e sanções acessórias), no direito das contraordenações já assim não sucede. A competência para aplicação das coimas é deferida a uma imensidade, já dificilmente elencável, de entidades administrativas, fiscais e reguladoras e, em caso de impugnação, aos tribunais judiciais e aos tribunais administrativos e fiscais[6].
Esta simples constatação da pluralidade de aplicadores no direito contraordenacional em contraponto com a unidade no direito criminal representa uma circunstância relevante, e decisiva, para impedir que o art. 78.º do CP possa ser aplicado no direito das contraordenações. Pelo menos tal como se encontra, sem intervenção do legislador.
A aplicação do regime do art. 78.º do CP, pretendida pelo recorrente, não pode ser condicionada a circunstâncias ou pressupostos que nele não existem. Ou seja, e exemplificativamente, tal regime não pode ser aplicado apenas quando a decisão caiba aos tribunais (judiciais), mas também quando seja, ou ainda seja, das autoridades administrativas; tal regime não pode ser aplicado apenas quando as contraordenações tiverem a mesma natureza ou provirem da mesma autoridade, mas sim a todas as contraordenações, de todos os tipos de contraordenações, o que implicaria a necessidade de apurar todas as contraordenações cometidas pelo condenado (as estradais, fiscais, laborais, ambientais, às regulatórias, às dos mais variados sectores…).
O art. 78.º, do CP não faz quaisquer destas distinções (e não tinha de o fazer atento o seu âmbito de aplicação).
Parece-nos evidente que a aplicação do art. 78.º do CP ao direito das contraordenações pressupõe a adoção de determinados mecanismos e procedimentos que o legislador não criou e que existem e são fundamentais no direito criminal, como é o registo criminal: não existe um equivalente no direito das contraordenações, mas sim, e apenas, alguns sistemas de registo sectoriais. 
Outras circunstâncias permitem a conclusão de que o art. 78.º do CP não pode ser aplicado no domínio do direito das contraordenações.
Referimo-nos à atribuição da competência para a realização da audiência de cúmulo prevista no direito criminal. Em cada regime jurídico em que é prevista a prática de factos puníveis com uma coima o legislador determina a entidade competente para tal punição. Apenas exemplificativamente e no caso das únicas contraordenações que o recorrente indica ter sido condenado está prevista a competência do Banco de Portugal (art. 213.º, do RGICSF); do conselho de administração da CMVM (art. 408.º do CVM ); do Banco de Portugal, da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários ou do Instituto de Seguros de Portugal, ou até da Comissão de Aplicação de Coimas em Matéria Económica e de Publicidade, nos termos do  art. 56.º, da Lei do Combate ao Branqueamento de Capitais e do Financiamento ao terrorismo.
Não se encontra prevista qualquer regra de conflito de competências, já que o disposto no art. 37.º, do RGCO, respeita, unicamente, ao conflito de competência cumulativa de várias autoridades, o que não é, manifestamente, aqui o caso.
Esta multiplicidade de entidades competentes para a aplicação de coima única na sequência do conhecimento superveniente do concurso, que não apenas os tribunais (judiciais), demonstra a inaplicabilidade do regime previsto no art. 78.º, do CP que atribui essa competência aos tribunais judiciais, circunscrevendo a questão à determinação do processo competente (e ainda à da composição o tribunal). 
Nuno Brandão, no indicado estudo, também coerentemente, quer no caso de conexão de processos, quer no da realização de cúmulo por conhecimento superveniente do concurso, defende a extensão da competência à autoridade competente para a aplicação da coima única, no caso de diferente natureza das infrações[7]. Esta solução, coerente com o pensamento do autor, levaria, a nosso ver, e ressalvado o devido respeito, à alteração de competências não desejadas nem queridas pelo legislador nem permitidas sem lei expressa quer quanto às autoridades administrativas[8], quer quanto aos tribunais competentes para conhecerem do recurso dessas decisões[9].
Por resolver, com a aplicação do disposto no art. 78.º, do CP, ficaria também a não despicienda questão do destino da coima (cf., exemplificativamente, o disposto no art. 406.º, ns. 2 e 3, do CVM).
Também o art. 174.º, n. 5, do CVM, fornece indicações de que o legislador reconhece claramente, para efeitos punitivos, as diferenças entre o direito criminal – em que o leque de crimes é total – e o regime contraordenacional, em que apenas são consideradas as contraordenações “para cujo processamento seja competente a mesma autoridade setorial.” Regime idêntico consta do art. 415.º, n. 5, do CVM.
O que agora fica dito serve, unicamente, para demonstrar que o regime previsto no art. 78.º, do CP, para o direito criminal, não é passível de aplicação no direito das contraordenações, para as contraordenações em apreço. Nem com as devidas adaptações (que não podem ser criações ex novo pelos tribunais). Não significa que, assim querendo o legislador, regime equivalente não possa ser criado.
Ou seja, as razões materiais para a inexistência de regime equivalente não são inultrapassáveis de iure condendo (ou constituendo). Criam, contudo, complexidade e morosidade que, seguramente, o legislador não deseja e que, a nosso, ver não pretende com os regimes atualmente em vigor.
Por estas razões, entendemos que a inexistência expressa da figura do concurso superveniente no direito das contraordenações resulta da intenção do legislador em não pretender a sua aplicação.
Isto é, não se trata, a nosso ver, de uma omissão, a carecer de aplicação dos regimes subsidiários indicados, mas sim de uma opção consciente de política legislativa, justificada pela diferente natureza do direito criminal e do direito contraordenacional, em especial, pela diferente natureza da pena e da coima.
Entre a questão em apreço e a aplicação do regime previsto no art. 19.º do RGCO há uma diferença substancial por estarem em causa infrações ainda em apreciação, isto é, sem que exista decisão já transitada em julgado, das situações em que se pretende destruir a eficácia do caso julgado, com a aplicação do disposto no art. 78.º, do CP. Se a destruição do caso julgado encontra justificação no âmbito do direito penal, pela natureza das sanções, não encontra tal justificação no âmbito do direito contraordenacional. 
De resto, mesmo no regime do direito penal o legislador sentiu a necessidade de diferenciar as situações: o art. 77.º estabelece as “regras da punição do concurso”, sendo, no essencial, equivalente ao art. 19.º, do RGCO, e no art. 78.º passou a estabelecer as regras respeitantes ao “Conhecimento superveniente do concurso”, sem paralelo no RGCO, cremos que por vontade do legislador.
Entendemos, pois, que não existe lacuna a ser integrada pelo disposto no art. 78.º, do Código Penal.
Aliás, o art. 420.º, n. 3, do CVM, fornece-nos a indicação de que o legislador afastou, conscientemente, no caso, a figura do concurso superveniente do regime das contraordenações, ao estipular que:
 “Quando o mesmo facto der origem a uma pluralidade de infrações e de processos da competência de entidades diferentes, as sanções já cumpridas ou executadas em algum desses processos podem ser tidas em conta na decisão de processos ulteriores para efeitos de determinação das respetivas sanções, incluindo o desconto da sanção já cumprida e executada, se a natureza das sanções aplicadas for idêntica”. (são nossos os destaques).
Desta norma resulta, a nosso ver e ressalvado o devido respeito por outra opinião, que o legislador, sabedor da possibilidade de existência de concurso de infrações, previu, não a realização de um cúmulo jurídico, mas sim o, eventual, desconto da sanção já cumprida e executada. Se assim acorre nos casos em que o concurso já é conhecido, e levou à aplicação de sanções, igualmente ocorrerá (a não realização de cúmulo jurídico das diferentes sanções) nos casos de conhecimento superveniente.
Esta norma é privativa do CVM, mas indicativa da vontade do legislador nesta matéria.
Esta opção legislativa atenta a diferente natureza, exemplarmente exposta no acórdão do Tribunal Constitucional n. 336/2008[10] (reafirmada, p. ex., no Ac. 252/2016), também citado na decisão em recurso, permitem concluir pela desnecessidade da figura do concurso superveniente no âmbito do direito das contraordenações e da compatibilidade constitucional desta opção. 
Resulta desta jurisprudência constitucional a importante advertência de que “Estas diferenças não são nada despiciendas e deverão obstar a qualquer tentação de exportação imponderada dos princípios constitucionais penais em matéria de penas criminais para a área do ilícito de mera ordenação social”. E, ainda, que “Independentemente de qual seja a melhor opção legislativa para a punição do concurso de contra-ordenações, é seguro que as razões que justificam a solução do cúmulo jurídico em Direito Penal não são transponíveis qua tale para o direito de mera ordenação social”.
Em conclusão, o legislador, podendo, não previu a figura do concurso superveniente de infrações no direito das contraordenações. Esta falta de previsão é justificada pela diferente natureza das sanções criminais (em que tal figura está expressamente prevista) e das sanções contraordenacionais (onde são previstas formas especiais de punição nos casos do concurso, superveniente ou não, de infrações). A aplicação, subsidiária, do regime previsto no art. 78.º, do CP, às contraordenações em causa é irrealizável sem intervenção legislativa, essencialmente pela ausência de um registo unificado das condenações, comparável ao Registo Criminal; por falta de norma que regule qual a autoridade ou tribunal com competência para a aplicação da coima única; pela falta de regulação do destino da coima. 
Razões pelas quais, inexiste, também, a imputada violação da constituição com a não realização de cúmulo jurídico para aplicação de coima única no caso do conhecimento superveniente do concurso.

IV. Decisão.
Em face do exposto, deliberam os Juízes deste Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso e manter a decisão recorrida que indeferiu o requerimento do condenado (…) para a aplicação das regras do conhecimento superveniente do concurso de infrações e consequentemente a aplicação de uma coima única pela prática de 4 infrações contraordenacionais em que se encontra condenado com trânsito em julgado.
Custas pelo Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC’s.

Lisboa, 5/06/2024
A.M. Luz Cordeiro
Carlos M. G. de Melo Marinho
José Paulo Abrantes Registo (vencido, com a declaração de voto que segue)
*
DECLARAÇÃO DE VOTO
Entendo que o regime jurídico constante do art. 19.º, n.º 1 a 3, do DL n.º 433/82, de 27-10, na redacção introduzida pelo DL n.º 244/95, de 14-09, impõe a realização de cúmulo jurídico, quer as contra-ordenações sejam apreciadas e decididas no âmbito de um único processo, quer sejam julgadas no âmbito de diferentes processos, desde que se mostrem respeitados os requisitos do concurso de infracções.
Uma interpretação restritiva deste dispositivo pode conduzir a um indesejável tratamento jurídico desigual de situações de facto idênticas, por motivos de natureza exclusivamente adjectiva, consoante os ilícitos de mera ordenação social sejam apreciados num único ou em diferentes processos.
A idêntica solução se chega caso se considere que o Regime Geral das Contra-ordenações sofre, a este respeito, de uma lacuna, que, nesse caso, deverá de ser suprida pelo regime jurídico constante do art. 78.º do CP (conhecimento superveniente do concurso de infracções), aplicável por força do disposto no art. 32.º do DL n.º 433/82, de 27-10. 
Acresce que não se vislumbram razões de cunho substantivo que impeçam ou que desaconselhem a realização da operação de cúmulo jurídico em caso de concurso de infracções, quando as contra-ordenações sejam apreciadas e decididas no âmbito de diferentes processos contra-ordenacionais, a realizar pelo tribunal da última condenação, sendo disso o caso.
_______________________________________________________
[1] Punição do concurso de contra-ordenações e conexão processual in Revista do Ministério Público, 176, Out/Dez 2023, pp. 89-104.
[2] Ob. Cit. P. 97.
[3] Neste acórdão lê-se designadamente, no que concordamos, que “aliás, nem se veria bem como poderia ser possível que após a conversão em definitivas das decisões administrativas que aplicaram as coimas, por ausência de impugnação, incumbissem ao tribunal as operações necessárias à realização do cúmulo jurídico das coimas, em vez de tais operações incumbirem à autoridade administrativa que as aplicou”.
[4] Disponível in https://bd.datajuris.pt/#/recordText/399307?baseDados=1 e com o seguinte sumário, no que agora importa: “I - Encontrando-se a matéria do concurso de contraordenações que dão a lugar a cúmulo jurídico prevista no art. 19.º do DL n.º 433/82, de 27-10, no qual não se mostra referida quer a situação do cúmulo por arrastamento, quer a situação do cúmulo de contraordenações que se encontrem em concurso, mas cujo conhecimento venha a ser superveniente, inexiste lacuna na lei, pelo que não há base legal para a aplicação do disposto no art. 78.º do Código Penal.
II – (…).
III – (…).
[5] Contraordenações Tributárias, 2016, Ebook do CEJ, p. 16, disponível in https://cej.justica.gov.pt/LinkClick.aspx?fileticket=4fm1UQCyl5A%3d&portalid=30
[6] De acordo com a al. l) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF (na redação resultante da Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro), compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a “Impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo e do ilícito de mera ordenação social por violação de normas tributárias”.
[7] O que, como o autor nota, embora sem preocupações, “trata-se de solução que propicia o surgimento de conflitos positivos de competência” -p. 98
[8] Pensemos, p. ex., nas competências atribuídas à CMVM nos arts.359.º, e 360.º, n. 1, al. e), 408.º, do CMV, que, segundo esta solução seriam, por extensão, atribuídas e executadas pela ANACOM, ou pela Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária. De resto, a ser adequada esta solução, seria dificilmente compreensível p. ex., o disposto no art. 364.º, n. 2, do mesmo diploma (existente em muitos outros regimes): “A CMVM participa às entidades competentes as infrações de que tome conhecimento e cuja instrução e sanção não se enquadrem na sua competência.“ (são nossos os destaques).
[9] Pense-se, p. ex., no concurso entre contraordenações fiscais, em que o recurso compete aos tribunais administrativos e fiscais, contraordenações ambientais, de competência, em recurso, dos tribunais comuns, juízos criminais, e contraordenações previstas no CMV em que a competência para o recurso é do tribunal da concorrência, regulação e supervisão.
[10] https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20080336.html