Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1549/19.7T9SNT.L1-3
Relator: CRISTINA ALMEIDA E SOUSA
Descritores: MAUS TRATOS
OMISSÃO IMPRÓPRIA
PESSOA IDOSA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/23/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROVIDO
Sumário: Constituem formas de maus tratos, relevantes para a tipificação contida no art. 152º A do Código Penal: qualquer forma de agressão física (espancamentos, golpes, queimaduras, fracturas, administração abusiva de fármacos ou tóxicos, relações sexuais forçadas), que se reconduzem à modalidade maus tratos físicos;
os maus-tratos psicológicos ou emocionais, que se materializam em condutas que causam dano psicológico, como manipulação, ameaças, humilhações, chantagem afectiva, desprezo ou privação do poder de decisão, negação do afecto, isolamento e marginalização;
a negligência traduzida em não satisfazer as necessidades básicas (negação de alimentos, cuidados higiénicos, habitação, segurança e cuidados médicos) que se reconduz a tratamento cruel, assim como condutas de abuso económico, como sejam, impedir o uso e controlo do próprio dinheiro, exploração financeira e chantagem económica, ou permitir a exposição incontrolada a formas de auto-negligência resultantes da incapacidade de um indivíduo desempenhar tarefas de cuidado consigo próprio indispensáveis à sua sobrevivência e à satisfação de necessidades essenciais do quotidiano.
Este crime pode ser cometido por omissão imprópria, sempre que o evento antijurídico pertinente à consumação do crime, segundo a sua descrição típica, resultar do incumprimento do dever jurídico de evitar esse resultado e este depende da existência de um específico dever emergente da lei, de contrato, ou de uma específica relação de facto que o obrigue a agir, para evitar o resultado, pois só assim haverá equivalência entre o desvalor da acção e o desvalor da omissão que constitui o fundamento da punibilidade do omitente.
É o que acontece, quando idosos são acolhidos em instituições ou lares de acolhimento e de assistência, através de um contrato de prestação de serviços remunerado, pois esta relação negocial transfere para o proprietário e para a direcção técnica e os cuidadores ao serviço da instituição ou do lar, o dever de garantes da saúde física, mental, psíquica, do bem-estar emocional, da satisfação das necessidades mais básicas inerentes à própria sobrevivência, como a alimentação, a higiene, a saúde, a toma de medicação adequada, a assistência médica e hospitalar que se mostrarem necessárias, além de outros deveres de cuidado e assistência, com aqueles que, pela sua idade avançada, são mais vulneráveis e estão dependentes de terceiros.
Comete o crime de maus tratos a idosos, a arguida que sendo proprietária e em simultâneo, administradora de um lar e prestadora de cuidados aos idosos que acolheu, por inacção e desinteresse, deixa de providenciar à vítima a alimentação e a assistência médica e de enfermagem adequadas ao estado clínico da mesma, a ponto de a deixar em estado de desnutrição e desidratação, provocando-lhe, ainda, o agravamento de uma úlcera de pressão, na zona sacro, de categoria IV, com tecido necrosado e desvitalizado, com cheiro fétido e com um penso repassado e exsudado purulento em abundante quantidade.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes, na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO
Por sentença proferida em 30 de Setembro de 2021, no processo comum singular nº 1549/19.7T9SNT do Juízo Local Criminal de Sintra, Juiz 1 do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, a arguida SMGA_____ foi absolvida do crime de maus tratos, p. e p. pelo artigo 152°-A n° 1 do Código Penal.
O Mº. Pº. interpôs recurso da sentença, tendo formulado, para o efeito, as seguintes conclusões:
1. O Ministério Público não pode conformar-se com a decisão do Tribunal a quo, pois face aos elementos de prova existentes nos autos, a decisão proferida deveria ter sido no sentido de condenação da arguida pela prática do referido ilícito, e não da sua absolvição.
2. O Ministério Publico entende ter sido incorretamente considerados provados os pontos 2) e 21) dos factos provados, pelos referidos factos não se extraírem da prova produzida nos autos. 
3. O Ministério Publico entende ter sido incorretamente julgada e dada como não provada a factualidade constante das alíneas a), c), d), e), f), h), i), j) e l) dos factos não provados, já que os mesmos resultaram de toda a prova produzida nos autos.
4. No dia 24 de agosto de 2018 a ofendida apenas reagia a estímulos dolorosos, estava apirética e algaliada com ch14. N a verdade, da análise dos documentos juntos aos autos não subsistem dúvidas de que a ofendida MAR______ , deu entrada no Balcão de Urgência Geral a 24-08-2018, pelas 19:15h e que, poucas horas depois, às 01:44h, apenas reagia a estímulos dolorosos, estava apirética e foi algaliada com ch14, às 02:08h, conforme observação inserida no registo de urgência.
5. Resultou demonstrado, em audiência de julgamento, mormente dos depoimentos da filha e da nora da ofendida, e Mar…, respetivamente, que a ofendida apresentava nódoas negras na zona inferior das pernas, designadamente nos calcanhares.
6. Resulta da diversa documentação clinica relativa às idas da ofendida ao hospital, que a mesma se encontrava desnutrida, apresentando a “(...) pele e mucosas pouco coradas e desidratadas" bem como um “deficiente estado geral e nutricional". Tal consideração resulta não só dos documentos juntos aos autos, como também dos vários depoimentos produzidos em audiência, inclusive da arguida SMGA_____ , responsável pelo lar e pela alimentação dos utentes, a quem cabia zelar pelos seus cuidados básicos, dada a sua idade avançada e o seu estado de saúde muito debilitado.
7. Quando a arguida aceitou a admissão da ofendida naquele lar, tinha conhecimento do estado clínico da ofendida e sabia que esta necessitava da administração de diversos medicamentos, da prestação de cuidados de enfermagem e de higiene, bem como alimentação da ofendida. Tal consideração resulta da prova realizada em audiência de julgamento, mormente do depoimento de ---___-. Na realidade, contando a ofendida MAR______ , com cerca de 80 anos de idade à data da sua integração no lar, é evidente que a arguida não podia deixar de saber que tinha na sua presença pessoa idosa e, nessa medida, extremamente frágil.
8. É contraintuitivo afirmar que sendo a arguida responsável pelo lar (facto provado 5), que tinha como funções, entre outras, administrar a medicação prescrita aos utentes, mudar pensos, alimentar e informar os médicos de qualquer alteração dos estado de saúde dos utentes (facto provado 15), não tivesse conhecimento do estado clínico da ofendida e que não soubesse que esta necessitava da administração de diversos medicamentos, da prestação de cuidados de enfermagem e de higiene, bem como de alimentação.
9. A arguida, como responsável do lar, conhecendo a situação da ofendida, não lhe prestou os cuidados devidos, na medida em que não adequou a alimentação à situação clínica da ofendida deixando-a chegar a um ponto de “deficiente estado geral e nutricional” e não chamou médico/enfermeiro para mudar o penso da úlcera, nem recorreu ao médico que prestava serviços ocasionais ao lar para pedir que observasse a ofendida ou que a aconselhasse quanto ao procedimento a adotar, optando, ao invés, por esperar por dois a três meses antes de lhe proporcionar uma observação por médico ou enfermeiro, deixando assim agravar aquele ferimento.
10. A arguida agiu, ao longo de meses, indiferente aos reais cuidados que a ofendida necessitava e ao constante degradar do seu estado de saúde que, tendo sido percetível para as familiares que a visitavam, não é crível que o não fosse para a arguida.
11. A testemunha AM____ , enfermeira que trocou o penso à falecida no domicilio aquando do seu regresso do hospital, descreveu o estado em que a encontrou, fazendo alusão um quadro clínico muito grave, e “que quando fez o penso encontrou ferida não compatível com bons cuidados de saúde” e ainda que o estado da úlcera “era vergonhoso” e que “as ulceras de pressão não são um dado adquirido na geriatria se os profissionais de saúde souberem o que andam a fazer”. 
12. Foi preciso deixar passar dois a três meses e chegar ao ponto de apresentar “(...) uma úlcera de pressão de categoria IV, com tecido necrosado e desvitalizado, com cheiro fétido, apresentava um penso repassado e exsudado purulento em abundante quantidade” (ponto 7 dos factos provados), para, finalmente, a arguida considerar que a ofendida já era merecedora de ser observada por um médico.
13. Ao recusar a prestar cuidados de saúde à ofendida, a arguida sabia que punha em perigo a saúde, a integridade física e mesmo a vida da ofendida, bem como sabia que causava nesta desespero, intranquilidade e receio pela sua segurança e bem estar.
14. A arguida sabia que a ausência de cuidados de saúde adequados e atempados era suscetível de ofender gravemente a saúde da ofendida, mas conformou-se com essa possibilidade e prosseguiu com a sua conduta, não providenciando pelos cuidados necessários à ofendida.
15. A arguida sabia que não possuía qualquer formação nem conhecimentos adequados e ainda assim entendeu que conseguia resolver a situação e curar a ferida que a ofendida apresentava sem recurso a ajuda médica.
16. Tal opção da arguida, recusando-se a prestar à ofendida a assistência que estava perfeitamente apta prestar, independentemente dos custos a ela inerentes atenta a posição da família, é demonstrativa desrespeito pela condição e dignidade humana da ofendida. Porque podia tê-lo feito e não quis.
17. A arguida tinha plena consciência que colocava em risco a saúde, a integridade física e a vida da ofendida ao proceder da maneira como procedeu e escolheu fazê-lo, mostrando desrespeito pela ofendida, que se encontrava aos seus cuidados, escolhendo conscientemente não lhe prestar a assistência que podia e devia prestar, a coberto de “(...) não querer preocupar a família". 
18. A falta de cuidados adequados e atempados, obrigou a ofendida a passar por um doloroso evoluir da úlcera de pressão.
19. As declarações da arguida ao tribunal não deixam dúvidas de que a mesma sabia que a sua conduta era punida e proibida por lei. A decisão de omitir a real condição de saúde da ofendida é sintomática da consciência que a arguida tinha da censurabilidade da sua conduta.
20. A arguida adotou perante o tribunal um constante discurso de desculpabilização e uma postura de vitimização.
21. Apesar de saber que a omissão de cuidados a alguém que estava aos seus cuidados era proibida e punida por lei, a arguida conformou-se com a omissão de cuidados atempados e adequados e com as consequências possíveis resultantes dessa omissão.
22. Sendo o crime de maus tratos um crime de resultado, o mesmo pode ser cometido por acção ou por omissão.
23. Resultando demonstrado, que a arguida não providenciou pelos cuidados atempados e adequados de que carecia a ofendida, (sendo que, quanto a estes cumpre realçar que, ao contrário do expendido na douta sentença em crise, não era necessário que fosse demonstrado nos autos que a ofendida foi sujeita, por parte da arguida, a um qualquer tratamento desumano ou cruel - como de facto não resulta dos autos - antes bastando, para o preenchimento do tipo, o não assegurar e o não providenciar pelos cuidados médicos de que a mesma patentemente necessitava), é por demais evidente que a arguida incorreu na prática do referido ilícito.
24. O bem-estar e a saúde (e a vida) da ofendida foram lesados pelas condutas omissivas da arguida, as quais revestem acentuada gravidade e especial censurabilidade, considerando o lapso temporal por que perduraram e as consequências que tiveram, tendo posto inequivocamente em causa o tratamento digno de que toda e qualquer pessoa é merecedora, ofendendo, por isso, também a sua dignidade pessoal.
25. É manifesto que a arguida incorreu na prática, em autoria material, do crime de maus tratos contra MAR______ , que se encontrava particularmente indefesa em face da sua idade e do seu estado de saúde, ilícito que lhe vinha imputado na acusação pública e que é punido nos termos do disposto no artigo 152°-A, n° 1, alínea a) do Código Penal e pelo qual a mesma deve ser, em conformidade, condenada.
26. Face ao exposto, impõe-se a revogação da sentença recorrida e a sua substituição por outra que condene a arguida pela prática do crime que lhe vem imputado, previsto e punível pelo artigo 152°-A n° 1, alínea a) do Código Penal.
Termos em que deverá ser concedido provimento ao presente recurso e, consequentemente, deverá a douta sentença ser revogada e substituída por outra que se coadune com a pretensão supra exposta. 
Admitido o recurso, a arguida apresentou resposta, na qual concluiu o seguinte: 
A. Alega o Recorrente que o Tribunal a quo não valorou, nem ponderou devidamente a prova produzida em julgamento, sendo que:
i. os factos descritos sobre o ponto 2) e ponto 21) não poderiam ter sido dados provados, nos termos em que o foram, por não terem suporte probatório e até por existir prova em contrário; ii. Que os pontos a), c), d), e), f), h), i), j) e l) dos factos não provados, deveriam ter
sido dados como provados;
B. No que respeita aos pontos dados como provados 2) e 21), a recorrida concorda com a motivação do Ministério Público.
C. No demais, a Recorrida concorda, com a douta sentença proferida nos autos, uma vez que está de acordo com a prova produzida, tendo sido realizada uma adequada apreciação da matéria de facto, de harmonia com os princípios que norteiam a valoração da prova, nomeadamente princípios da imediação e livre apreciação, tendo sido feita correcta aplicação do Direito ao caso concreto, estando devidamente fundamentada a decisão, pelo que se deverá manter na ordem jurídica.
Senão vejamos,
D. Entende o Recorrente que a al. a) dos factos não provados deveria ter sido considerado provado com base da documentação clínica dos autos.
E. Ora, não poderia o Tribunal considerar como provado que a ofendida no dia 24 de Agosto de 2018, quando deu entrada nas urgências já apenas reagia a estímulos dolorosos e foi algaliada, quando a prova é em sentido oposto: a ofendida quando deu entrada nas urgências e mesmo na primeira hora do dia seguinte reagia à mobilização (e não apenas a estímulos dolorosos) e só foi algaliada já depois, no dia 25 pelas 02.08 (não no dia 24 de Agosto), na sequência de não ter urinado cfr. registo da observação das 01.24 do dia 25/08/2018, de fls 87 e ss.
F. Portanto, deve manter-se como não provado que no dia 24/08/2018 a ofendida apenas reagia a estímulos dolorosos, estava apirética e algaliada com ch14. Adiante,
1. Bem andou o Tribunal ao dar não como provada a al. c), porquanto não poderia o Tribunal valorar o depoimento de testemunhas contra a prova resultante da documentação clínica de fls 87 e ss., referente ao primeiro internamento da ofendida, em que após avaliação médica, não foram verificadas quaisquer manchas nas pernas ou pulsos da ofendida.
2. Acresce que, contrariamente à interpretação do Recorrente, nunca as testemunhas se referiram a nódoas negras nos pulsos ou nas pernas, nem a qualquer mancha nos pulsos: a testemunha (passagem 8.30 do depoimento) apenas referiu ter visto “mancha roxa” na zona dos calcanhares, e a testemunha Maria …referiu não se tratarem de nódoas negras (passagem de 17.24 a 17.30).
G. No que respeita à al. d), entende o Recorrente que o Tribunal a quo deveria ter dado como provado que a ofendida se encontrava desnutrida, por falta de hidratação - o que certamente resulta de lapso conceptual, pois a desnutrição deve-se à falta de nutrientes e não à falta de água.
H. Em qualquer caso, tratando-se a desidratação de um problema médico, julgamos que não é o suficiente ler-se que a pele está desidratada para se concluir necessariamente que a pessoa estava desidratada, pois qualquer diagnóstico deve ser feito pelo médico, com a análise do historial médico e quadro clínico, ainda para mais atendendo ao quadro clínico complexo da ofendida, a que acresce o facto de a desidratação da pele se pode dever a efeitos externos, que nada têm a ver com a ingestão de água (por exemplo, a exposição a sistemas de aquecimento, ar condicionado, temperaturas elevadas no verão, outras patologias, diarreia, etc.).
Vejamos,
I. A arguida explicou nas passagens 41.00 e seguintes do seu depoimento, que voltou a chamar o INEM para que a ofendida fosse transportada às urgências no dia 28/08/2018, tendo igualmente relatado que nessa ocasião se encontrava desidratada devido a um episódio de diarreia; no diário clínico, de 29/08/2018, pelas 00.06, a fls 82, o médico constata a desidratação da pele e mucosas “por falta de colaboração não percebo se doente se encontra orientada ou não”, e no diário clínico de fls 75 referente a 11/09/2018, pelas 21,58, quando a ofendida já se encontrava aos cuidados dos familiares (visto que após a alta hospital do dia 7/09/2018 já não mais regressou ao lar, de acordo com as declarações da filha, a testemunha A…, nos minutos 12:50 a 13.00), o hospital constatou que ofendida tinha a pele e mucosas desidratadas.
J. Portanto, ponderava a informação clinica, e considerando ainda que após a alta hospitalar onde recebeu cuidados de hidratação e enquanto se encontrava aos cuidados dos seus familiares, a ofendida também apresentava a pele desidratada, não podemos concluir que a desidratação da ofendida se devia à falta de ingestão de água no lar ou à falta de cuidados em geral, por outro lado, a desidratação constatada no dia 28 foi explicada pela arguida com o episódio de diarreia da ofendida que entre outros, motivou novamente a sua deslocação às urgências.
K. Entende também o Recorrente que a al. d) deveria ter sido dado como provada, por se ter observado no dia 28/08/2018, pelas 17.20, que a ofendida apresentava um deficiente estado nutricional.
L. A desnutrição caracteriza-se pela falta de um ou mais nutrientes e pode ter muitas causas, que não passam apenas pela alimentação, pode dever-se a um distúrbio alimentar, ou ao facto de a pessoa estar doente e ter uma necessidade calórica excessivamente elevada ou não ser possível a sua alimentação em termos normais.
M. Aliás, é a própria filha da ofendida a testemunha que explica, nas passagens 13.34 a 13.40, que o médico que estava a tratar a ofendida havia explicado que o processo de regeneração da ferida (escara) implicava o consumo pelo organismo de todos nutrientes do corpo.
N. Ora, se verificarmos a informação clínica: o hospital constatou o estado nutricional no dia 28 de Agosto, isto é, dois dias depois de a ofendida ter tido alta do Hospital, para tratar da escara, sendo certo que na primeira admissão não verificou nada de anormal, a respeito do estado nutricional da ofendida, também não encontramos na documentação clínica qualquer explicação da causa de tal estado no dia 28, mas considerando a explicação médica fornecida pela filha da ofendida, o estado nutricional poderia dever-se ao processo de cura da escara.
O. Pois, no que respeita à alimentação, a arguida SMGA_____ explicou ao Tribunal, como era feita a alimentação no lar, nas passagens 20.58 até 22.04 da gravação, esclarecendo que tinha uma empresa de catering que fornecia os almoços e jantares, com sobremesa e que as outras refeições (pequeno almoço, lanche a meio da manhã, lanche da tarde e ceia) eram preparados no lar, e no caso especifico da ofendida, relatou ao Tribunal [nas passagens 22.05 até 23.04 da gravação], que a mesma se alimentava sozinha e que quando deixou de comer sozinha, era alimentada pela arguida e pelas funcionárias do lar.
P. Em instâncias, a arguida referiu ainda que a ofendida se alimentava bem, e que na primeira deslocação ao hospital não havia sido referenciado qualquer problema de nutrição e que se esse problema foi verificado, no segundo internamento, não sabia qual era a razão, mas que não se devia à alimentação [passagens 51.50 a 52.30]
Q. Tudo ponderado, tendo ainda em consideração que a testemunha referiu nas passagens 16.26-17.00 do seu depoimento, que o lar tinha boas condições, apesar de ter pouco pessoal, e tendo igualmente em conta o princípio da presunção da inocência, a prova dos autos não permite concluir, sem margem para dúvidas, que a ofendida estava desidratada e desnutrida devido à falta de cuidados de alimentação e hidratação no lar, e que deveriam ter sido proporcionados pela arguida, ora Recorrida, enquanto responsável pelo lar, tal como pretende efectivamente a Recorrente que fique provado, nomeadamente em articulação com as alíneas e) e f).
R. Portanto, muito bem andou o Tribunal a quo ao não ter dado como provada a al. d), desmerecendo qualquer censura ou reparo.
S. No que respeita à al. e), os cuidados que a ofendida necessitava e que estão aí concretizados, não eram diferentes dos cuidados que os outros utentes precisavam, por outro lado, os problemas da ofendida de visão e de mobilidade não tinham qualquer relevância para o caso, nem para se estabelecer um nexo de causalidade com o agravamento do estado de saúde ou com a morte da ofendida, pelo que por ser completamente irrelevante, não merece qualquer censura a motivação de facto do Tribunal que considerou que esta aliena não deveria integrar o lote dos factos provados, com relevo para a boa decisão da causa.
T. Também não se extrai da prova produzida, nomeadamente pelas declarações da arguida, às quais o Tribunal conferiu, e bem, credibilidade, que não tenham sido prestados cuidados adequados para tratar da ferida da ofendida, e que em virtude dessa falta de cuidados o estado inflamatório se tenha agravado, pelo que o Tribunal bem andou ao dar como não provadas as alíneas F), H), I), J) e L).
U. Quanto à questão da alimentação, já ficou alegado supra, que as causas do deficit nutricional não ficaram demonstradas, pelo que não se pode concluir que tenham tido como causa a falta de cuidados de alimentação por parte da arguida, quando existe até prova em contrário.
V. No que respeita ao penso, após a alta hospitalar, no dia 26/08/2018, a arguida recebeu indicação para mudar o penso de forma alternada, o que fez para tratar da ofendida e o que já havia realizado para tratar de outros doentes com escaras, ao longo da sua profissão, tendo conseguido tratar sempre.
W. Aliás, já antes do primeiro internamento, era a arguida quem providenciava por fazer os pensos à ofendida, para tratamento da ferida, que só no dia 24 de Agosto de 2018, teve a certeza que se tratava de uma úlcera de pressão - foi quando decidiu levar a ofendida ao Hospital.
X. Não nos parece que se possa extrair a ilação de que a arguida não prestou os cuidados devidos à ofendida, quando ficou provado que mudava os pensos, por outro lado também não ficou demonstrado que a mudança dos pensos não era bem feita e que se fosse um enfermeiro a realizar, a ferida teria ficado curada.
Y. Pelo que neste ponto, o recurso deve improceder.
Z. Aderimos integralmente à fundamentação do Tribunal a quo, o qual não merece qualquer censura ou reparo, devendo manter-se na ordem jurídica nos seus exactos termos, com excepção da factualidade dada como provada nos pontos 2) e 21).
AA. Face à improcedência quase total do recurso da matéria de facto (dos pontos a),
c), d), e), f), h), i), j) e l) dos factos não provados), da qual depende necessariamente o recurso sobre a matéria de Direito, mormente dos factos não provados da al. f), fica prejudicado o recurso de Direito, uma vez que mantendo- se a factualidade dada como não provada, não importará qualquer alteração na decisão e fundamentação jurídicas.
Nestes termos e nos melhores de Direito, que V. Exas. mui doutamente suprirão, deve ser concedido parcial provimento ao recurso, e em consequência deve ser alterada a redacção dos pontos 2) e 21) da matéria de facto, dados como provados.
No demais, deverá o recurso ser julgado improcedente, mantendo-se os termos da decisão recorrida.
Remetido o processo a este Tribunal, na vista a que se refere o art. 416º do CPP, o Exmo. Sr. Procurador Geral da República Adjunto emitiu parecer, no sentido da procedência do recurso, com fundamento nos argumentos de factos e de direito aduzidos no mesmo.
Cumprido o disposto no art. 417º nº 2 do CPP, não houve resposta.
Colhidos os vistos e realizada a conferência prevista nos arts. 418º e 419º nº 3 al. c) do CPP, cumpre, então, decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO 
2.1. DO ÂMBITO DO RECURSO E DAS QUESTÕES A DECIDIR: 
De acordo com o preceituado nos arts. 402º; 403º e 412º nº 1 do CPP, o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação. 
Além destas, o tribunal está obrigado a decidir todas as questões de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afectem o recorrente e dos vícios previstos no art. 410º nº 2 do CPP, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito.
Umas e outras definem, pois, o objecto do recurso (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do CPP, à luz da Constituição da República
Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, 2011, págs. 1059-1061 e Acórdão do Plenário das Secções do STJ nº 7/95 de 19.10.1995, in Diário da República, I.ª Série-A, de 28.12.1995).
Das disposições conjugadas dos arts. 368º e 369º por remissão do art. 424º nº 2, todos do Código do Processo Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso pela seguinte ordem:
Em primeiro lugar das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão; 
Em segundo lugar, das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pela impugnação alargada, se deduzida, nos termos do art. 412º do CPP, a que se seguem os vícios enumerados no art. 410º nº 2 do mesmo diploma;  Finalmente, as questões relativas à matéria de Direito. 
Seguindo esta ordem lógica, no caso concreto, as questões a tratar são as seguintes:
Em primeiro lugar saber se houve erro de julgamento, na fixação da matéria de facto e se:
a. os factos descritos sobre o ponto 2) e ponto 21) não poderiam ter sido dados provados, nos termos em que o foram, por não terem suporte probatório e até por existir prova em contrário;
b. os pontos a), c), d), e), f), h), i), j) e l) dos factos não provados, deveriam ter sido dados como provados.
Em segundo lugar se houve erro de direito e, em consequência, se se encontram verificados dos os elementos constitutivos do tipo legal e crime de maus tratos, p. e p. pelo artigo 152°-A n° 1 do Código Penal.
Em caso afirmativo, eventual escolha e determinação concreta da pena.
2.2. DA FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Da sentença recorrida consta a seguinte matéria provada e não provada e a forma como o Tribunal a quo fundamentou a mesma (transcrição parcial):
1) A ofendida, MAR______  tinha 82 anos em Setembro de 2018.
2) A ofendida integrou o lar/instituição de acolhimento “...” Unipessoal, Lda em data não concretamente apurada.
3) Aquela instituição tinha como objecto social a actividade de lar de idosos, apoio geriátrico, centro de dia, apoio domiciliário e prestação de serviços médicos e de enfermagem.
4) Aquele lar, primeiramente, situava-se na Rua … , Ramada, mas em 8 de Março de 2018, mudaram as suas instalações para a Rua … , Queluz.
5) A responsável pelo lar era a arguida, SMGA_____  
6) No dia 25 de Agosto de 2018 a arguida comunicou à família da ofendida que esta se ia deslocar ao Hospital para fazer uma T.A.C., quando, na verdade, a ofendida tinha dado entrada nas urgências daquele hospital, pelas 19:15 do dia 24 de Agosto de 2018.
7) Quando a ofendida deu entrada no Hospital Amadora-Sintra, no dia 24 de Agosto, apresentava-se prostrada, com saída de urina com cheiro fétido, bem com apresentava uma úlcera de pressão de categoria IV, com tecido necrosado e desvitalizado, com cheiro fétido, apresentava um penso repassado e exsudado purulento em abundante quantidade.
8) No entanto, a ofendida apenas saiu daquele hospital no dia 26 de Agosto de 2018, pelas 00:06.
9) O estado de saúde da ofendida agravou-se, tendo regressado ao Hospital Doutor Fernando da Fonseca, no dia 28 de Agosto de 2018, pelas 15:53, onde se apurou que a ofendida mantinha uma úlcera exsudado seroso e fétido e tecido necrosado.
10) Foi determinado o internamento da ofendida por apresentar provável infecção urinária, ulcera de pressão na região sagrada e hipernatremia e desidratação. Foi determinado o internamento da ofendida
11) Iniciou-se tratamento, por antibiótico, à ofendida, por provável infecção cutânea da úlcera de pressão sagrada.
12) À data da alta clínica, que ocorreu no dia 5 de Setembro de 2018, a ofendida apresentava úlcera na região sagrada, com cerca de 5x8cms de diâmetro e 3cms de profundidade, com tecido desvitalizado no bordo externo, mas sem exsudado purulento e sem eritema peri lesional e úlcera de decúbito superficial na região do ombro esquerdo, com cerca de 1 cm de diâmetro, sem exsudado e sem eritema.
13) Para tratamento daquelas úlceras, no hospital sugeriu-se mudança de pensos em dias alternados, posicionamentos alternados e colchão anti-escaras.
14) A ofendida veio a falecer no dia 14 de Setembro de 2018, pelas 11:45, na residência sita na Rua …, Amadora.
15) À arguida, no exercício da sua actividade laboral e enquanto responsável daquele lar, cabiam, entre outras, as seguintes funções, que devia desempenhar diariamente e ainda sempre que fosse necessário: administrar a medicação prescrita aos utentes do lar aí internados; lava-los; mudar-lhes as fraldas (caso as usassem); mudar pensos, adesivos e efectuar curativos em feridas; alimentar (à colher ou através de sonda) os doentes que não conseguissem, devido às doenças, alimentar-se sem ajuda; mudar os lençóis; escrever no livro “notas do enfermeiro”, todas as informações relativas a cada doente; informar os médicos e os enfermeiros de qualquer alteração do estado de saúde dos utentes e ainda prestar assistência, em caso de emergência, aos doentes que dela necessitassem, pessoalmente ou chamando o médico de serviço, quando necessário.
16) Apesar de aquele lar necessitar de preencher determinados requisitos, para poder prestar o serviço que havia sido contratado pela ofendida, apurou-se, após inspecção feita pela segurança social, que aquele lar não tinha licença de funcionamento, não tinha pessoal suficiente para o seu funcionamento, bem como não tinha profissionais qualificados para a prestação de cuidados médicos.
17) A arguida tem um filho de vinte anos.
18) A arguida abandonou o ensino escolar aos dezassete anos, quando frequentava o oitavo ano de escolaridade.
19) A arguida trabalhou como empregada fabril, na área das limpezas e como empregada de balcão.
20) A arguida iniciou a actividade de constituir um lar de idosos em 2009/2010.
21) A arguida trabalha como auxiliar num lar de idosos auferindo mensalmente a quantia de €750,00.
22) A arguida não tem antecedentes criminais.
3. Não se logrou provar qualquer outro facto, com relevo para a boa decisão da causa, ou que esteja em contradição com os dados como provados. Designadamente não se logrou apurar que:
a) Que a arguida no dia 24 de Agosto de 2018 apenas reagia a estímulos dolorosos,
estava apirética e algaliada com ch14.
b) Que no dia 25 de Agosto a arguida pediu à filha da ofendida para não ir visitar a
ofendida no lar, pois esta tinha regressado do aludido exame, com um pouco de febre.
c) Que no dia 26 de Agosto de 2018 a ofendida encontrava-se no aludido lar,
apresentando nódoas negras na zona inferior das pernas e nos pulsos.
d) Que a ofendida encontrava-se desnutrida.
e) Que quando a arguida aceitou a admissão da ofendida naquele lar, tinha conhecimento do estado clínico da ofendida e sabia que esta necessitava da administração de diversos medicamentos, da prestação de cuidados de enfermagem e de higiene, bem como alimentação da ofendida.
f) Que a arguida, como responsável daquele lar, conhecendo a situação da ofendida, não lhe prestou os cuidados devidos, nomeadamente, não adequou a alimentação à situação clínica da ofendida, não chamou o médico/enfermeiro para mudar o penso da úlcera, que a
ofendida tinha, deixando assim agravar aquele ferimento.
g) Que após a ofendida ter regressado ao lar, no dia 26 de Agosto de 2018, a arguida continuou a não providenciar por uma alimentação adequada à ofendida, não determinou que se procedesse à limpeza da ferida da ofendida, não lhe mudou o penso, nem a colocou numa cama com colchão adequado, de forma a permitir a cicatrização daquele ferimento.
h) Que agiu a arguida sabendo que iria provocar danos físicos e psicológicos à
ofendida, como consequência necessária das suas condutas.
i) Que ao recusar a prestar aqueles cuidados de saúde, sabia que punha em perigo a saúde, a integridade física e mesmo a vida da ofendida, bem sabia que causava nesta desespero, intranquilidade e receio pela sua segurança e bem estar.
j) Que a arguida agiu com desrespeito pela condição e dignidade humana da ofendida, não lhe aliviando a dor, recusando-se a prestar-lhe a assistência para a qual estava perfeitamente apta a realizar.
l) Que mais sabia que as suas condutas eram punidas e proibidas por lei.
8.O Tribunal norteou a sua convicção quanto à matéria de facto provada com base na valoração da prova produzida e examinada em audiência, conjugada com o princípio da livre apreciação da prova, entendido como o esforço para alcançar a verdade material, tendo desconsiderado todas as afirmações de pendor conclusivo e de matéria de direito, analisando dialecticamente os meios de prova ao seu alcance, procurando harmonizá-los entre si de acordo com os princípios da experiência comum, sem critérios pré-definidores de valor a atribuir aos diferentes elementos probatórios, salvo quando a lei diversamente o disponha.
A arguida não contesta que era a responsável do lar e que em 2018 cuidava da ofendida, MAR______ ; também refere que esta desenvolveu uma úlcera de pressão na zona sacra e que, para o efeito, cuidou de lhe lavar a ferida, colocar compressas de vaselina, hidrogel e aplicar penso e creme, sendo que só quando esta piorou, sensivelmente dois meses depois em Agosto de 2018, levou a ofendida ao Hospital, porquanto a úlcera começou a deitar um exsudado purulento. Mais declara que não informou a família das verdadeiras causas do transporte da ofendida ao hospital porque, nas suas palavras, não quis preocupá-los, mas que em momento algum lhes disse que iria levar a ofendida a realizar um T.A.C. Quanto ao segundo internamento, declara que a ofendida piorou, já depois de ser vista no lar pela família, sendo que voltou a enviá-la para o hospital, nunca mais tendo a ofendida regressado ao lar. Confirmou que tinha as funções de administrar a medicação prescrita aos utentes do lar, lavá-los, mudar-lhes as fraldas, mudar pensos, adesivos e efectuar curativos em feridas, alimentar os doentes, mudar lençóis. Também admitiu que o lar não preenchia todas as orientações da Segurança Social, pois que não tinha licença de funcionamento, pessoal suficiente ou profissionais qualificados para a prestação de cuidados médicos ou de enfermagem. Nega a arguida, no entanto, que tenha prestado cuidados desadequados à ofendida, pois que, no seu entender, fez o que pôde, sendo que, quando não mais conseguiu, encaminhou a ofendida ao Hospital.
A prova directa e concreta resume-se, no essencial, à documentação clínica das idas ao Hospital da ofendida em 24 de Agosto de 2018 e 28 de Agosto de 2018 de fls. 67 a 99, nela se descrevendo que a ofendida apresentava úlcera de pressão de grau IV com infecção, estava prostrado e demonstrava sinais de desidratação. Tudo culminado, a ofendida tinha úlcera na região sagrada, com cerca de 5x8cms de diâmetro e 3cms de profundidade, com tecido desvitalizado no bordo externo, mas sem exsudado purulento e sem eritema peri lesional e úlcera de decúbito superficial na região do ombro esquerdo, com cerca de 1 cm de diâmetro, sem exsudado e sem eritema.
A…, filha da ofendida, e M…, nora da ofendida, relatam um quadro de normalidade até este dia: que visitavam a ofendida uma vez por semana, nunca se tendo deparado com qualquer falta de condições, nem com um tratamento desadequado a esta. Declara, no entanto, a primeira, ao contrário do que refere a arguida, que esta última lhe disse que iria levar a sua mãe para um T.A.C., mas sobre a úlcera nada soube até ao segundo internamento, quando M… lhe comunicou o que lhe foi dito pelo médico, ou seja, que já havia ocorrido um primeiro encaminhamento hospitalar da ofendida por conta de uma úlcera de pressão.
Porém, nenhuma destas testemunhas é capaz de nos responder às perguntas que verdadeiramente importam: como veio a ocorrer aquela úlcera de pressão, que cuidados deveriam ter sido ministrados e se foi a conduta da arguida que provocou tanto a úlcera como a sua degeneração até aquele grau. No limite, e de forma até contraintuitiva, as familiares da ofendida vêm atestar da qualidade do serviço prestado pela arguida à ofendida, sendo que, ao visitarem a ofendida todas as semanas, nunca se depararam com nenhum problema, inclusive de desnutrição ou desidratação.
Também Ac…, respectivamente, médico e “coach de enfermagem” que prestavam serviços ocasionais ao lar, sem nenhum vínculo contratual, são incapazes de se recordar da ofendida, não atestando se lhe prestaram algum cuidado, medicamento ou tratamento por conta desta úlcera.
AM____ , enfermeira que assistiu a ofendida nos seus últimos dias, relatou em Tribunal que uma úlcera de pressão de grau IV como aquela, apenas poderia ocorrer por força da colocação da ofendida sempre na mesma posição e na ausência de proteína na alimentação desta. Porém, e aqui reside a distinção clara entre uma testemunha e um perito, a testemunha não observou a ofendida, limitou-se a fazer um penso nos últimos dias, pelo que não é possível valorar o seu depoimento nesta parte, já que não responde à questão: o que concretamente provocou aquela úlcera e não as suas causas genéricas. Podem existir suposições e presunções a este respeito, aliadas à falta de condições físicas e de pessoal do lar, as quais, como se viu, não foram também atestadas por nenhuma testemunha, mas apenas pela arguida. Mas a assumir que estamos perante uma falta de cuidados adequados ou atempados à ofendida, podemos concluir que existe prova de uma actuação incorrecta por parte da arguida? Não foi trazida qualquer prova no sentido de sustentar esta conclusão: de que o que foi administrado pela arguida não o foi devida ou atempadamente; tudo o que sabemos é da existência de uma ferida, que a certa altura infectou e que, nessa sequência, a arguida remeteu a ofendida ao Hospital. Podemos conjecturar o que se passou no entremeio, mas nada sabemos de concreto. Conclui-se também que o tratamento adequado seria a mudança de pensos em dias alternados, posicionamentos alternados e colchão anti- escaras, o que a arguida refere que realizou e inexiste prova que sustente o oposto. É certo que a acusação pública conclui com o falecimento da ofendida, procurando, de forma indirecta, cremos, imputar um resultado morte à arguida (fls. 53). Mas não existe nenhum nexo de causalidade entre a actuação da arguida e esse resultado. Assim como nada foi trazido aos autos que nos mostre que a ofendida foi sujeita, por parte da arguida, a um qualquer tratamento desumano ou cruel. É certo que a ofendida veio a morrer e não se diminuem as dores que terá sofrido também por conta desta infecção, mas não foi trazido nada aos autos que comprove uma conduta dolosamente cruel e grave no tratamento da arguida para com a ofendida: o que o crime exige. Aliás, existe uma informação médica nos autos a fls. 226, no qual o senhor médico conclui que “a negligência é conceptualmente englobada no conceito de maus tratos”. Não sendo o mais correcto dos enquadramentos jurídicos, pois que é essencial o conhecimento do carácter cruel e desumano dos actos praticados, é o mais certeiro possível no enquadramento fáctico: adiantaremos melhor esta questão em sede de direito, mas, no limite, o que existiria aqui seria uma conduta negligente por parte da arguida.
Assim sendo, no que respeita à matéria de facto dada como não provada, o Tribunal, tendo em conta alguma dúvida inerente a essa prova da qual não conseguiu tirar ilações seguras e perante a ausência de prova cabal quanto à mesma, ou perante a contradição com os factos que se mostram provados, foi levado a julgá-la nesses moldes.
As condições pessoais da Arguida foram pela própria relatadas e corroboradas pelo relatório elaborado pela DGRSP e na medida do dado como provado lograram convencer o Tribunal.
Relativamente aos antecedentes criminais da arguida, o Tribunal formou a sua convicção com base no teor do Certificado de Registo Criminal junto aos autos.
2.3. APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO
A matéria de facto pode ser sindicada em recurso através de duas formas: uma, de âmbito mais estrito, a que se convencionou designar de «revista alargada», implica a apreciação dos vícios enumerados nas als. a) a c) do art. 410º nº 2 do CPP; outra, denominada de impugnação ampla da matéria de facto, que se encontra prevista e regulada no art. 412º nºs 3, 4 e 6 do mesmo diploma.
Assim, se no primeiro caso, o recurso visa uma sindicância centrada exclusivamente no texto da sentença, dirigida a aferir da capacidade do juiz em expressar de forma adequada e suficiente as razões pelas quais se convenceu e o sentido da decisão que tomou, já no segundo, o que o recurso visa é o reexame da matéria de facto, através da fiscalização das provas e da forma como o Tribunal recorrido formou a sua convicção, a partir delas.
O erro do julgamento verifica-se sempre que o Tribunal tenha dado como provado um facto acerca do qual não foi produzida prova e, portanto, deveria ter sido considerado não provado, ou inversamente, quando o Tribunal considerou não provado um facto e a prova é clara e inequívoca, no sentido da sua comprovação. 
O mecanismo por via do qual deverá ser invocado - impugnação ampla da matéria de facto – encontra-se previsto e regulado no art. 412º nºs 3, 4 e 6 do CPP e envolve a reapreciação da actividade probatória realizada pelo Tribunal, na primeira instância e da prova dela resultante.
No entanto, essa reapreciação não é livre, nem abrangente, antes tem vários limites, porque, além de não importar um novo julgamento da causa, está condicionada ao cumprimento de deveres muito específicos de motivação e formulação de conclusões do recurso (Maria João Antunes, in RPCC – Ano 4 Fasc.1 – pág. 120; Acórdão do STJ n.º 3/2012, de 8/3/2012, DR, I Série, n.º 77, de 18/4/2012 Acs. da Relação de Guimarães de 6.11.2017, proc. 3671/13.4TDLSB.G1; da Relação de Évora de 09.01.2018 proc. 31/14.3GBFTR.E1; da Relação de Coimbra de 08.05.2018, proc. 30/16.0GANZR.C1; da Relação de Lisboa de 12.06.2019, processo 473/16.0JAPDL.L1 e de 28.04.2021, processo 4426/17.2T9LSB.L1, in http://www.dgsi.pt).  
Assim, nos termos do nº 3 do art. 412º do CPP, quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e c) as provas que devem ser renovadas».
O nº 4 do mesmo artigo acrescenta que, tratando-se de prova gravada, as indicações a que se referem as alíneas b) e c) do nº 3 se fazem por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação, sendo que, neste caso, o tribunal procederá à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa, segundo o estabelecido no nº 6.
Assim, quanto à especificação dos concretos pontos de facto, a mesma «só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e se considera incorrectamente julgado» (Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal, 4ª. ed., 2009, nota 7 ao art. 412º., pág. 1144).
No que se refere à especificação das provas concretas, o ónus previsto no art. 412º do CPP «só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida. Por exemplo, é insuficiente a indicação genérica de um depoimento, de um documento, de uma perícia ou de uma escuta telefónica realizada entre duas datas ou a uma pessoa. Mais exactamente, no tocante aos depoimentos prestados na audiência, a referência aos suportes magnéticos só se cumpre com a indicação (…) das passagens dos depoimentos gravados que impõem diferente decisão, não bastando a indicação das rotações correspondentes ao início e ao fim de cada depoimento» (Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal, 4ª. ed., 2009, nota 8 ao art. 412º., pág. 1144).
Este ónus de indicação das provas que impõem decisão diversa da recorrida, apresenta, pois, uma configuração alternativa, conforme a acta da audiência de julgamento contenha ou não a referência do início e do termo de cada uma das declarações e depoimentos gravados. 
Assim, se a acta contiver essa referência, a indicação dos excertos em que se funda a impugnação faz-se incluindo a referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 364º (nº 4 do artigo 412º do C.P.P.).
Mas, se a acta não contiver essa referência, basta a identificação e transcrição nas motivações de recurso das ditas “passagens/excertos” dos meios de prova oral gravados (Acs. da Relação de Évora, de 28.05.2013, proc. 94/08.0GGODM.E1 e da Relação de Lisboa de 22.09.2020, proc. 3773/12.4TDLSB.L1-5, in http://www.dgsi.pt).
Em qualquer das duas hipóteses, o recorrente terá de indicar, com toda a clareza e precisão, o que é que, na matéria de facto, concretamente, quer ver modificado, apresentando a sua versão probatória e factual alternativa à decisão de facto exarada na sentença que impugna, e quais os motivos exactos para tal modificação, em relação a cada facto alternativo que propõe, o que exige que o recorrente apresente o conteúdo específico de cada meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida e o correlacione comparativamente com o facto individualizado que considera erradamente julgado.
Quando se trate de depoimentos de testemunhas, de declarações de arguidos, assistentes, partes civis, peritos ou consultores técnicos, se o recorrente não individualizar, no universo das declarações prestadas, quais as particulares passagens, nas quais ficaram gravadas as frases que se referem ao facto impugnado, não pode considerar-se cumprido o ónus de impugnação especificada exigido pelo art. 412º nºs 3 als. a) e b) e nº 4 do CPP.
Tal forma genérica de impugnação, além de permitir converter em regra uma excepção, desvirtuando completamente o regime do duplo grau de jurisdição da matéria de facto, que se traduz num reexame pontual e parcial da prova, porque restrito aos precisos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, prejudica e pode mesmo inviabilizar o exercício legítimo do princípio do contraditório pelos demais sujeitos processuais com interesse juridicamente relevante no desfecho do recurso.
Além disso, transferiria para o tribunal de recurso a incumbência de encontrar e selecionar, segundo o seu próprio critério, as específicas passagens das gravações que melhor se adequassem aos interesses do recorrente, ou seja, de fazer conjecturas sobre quais seriam os fundamentos do recurso, o que não é aceitável, porque o tribunal não pode, nem deve substituir-se ao recorrente, no exercício de direitos processuais que só a este incumbem, nos termos da lei, nem deve tentar perscrutar ou interpretar a sua vontade, interferindo, por essa via, com a própria inteligibilidade e concludência das motivações do recurso, logo, com a definição do seu objecto. 
É, igualmente, inadmissível, à luz dos princípios da imediação e oralidade da audiência de discussão e julgamento, da livre apreciação da prova e da segurança jurídica, partindo da constatação de que o contacto que o Tribunal de recurso tem com as provas é, por regra e quase exclusivamente, feito através da gravação, sem a força da imediação e do exercício sistemático do contraditório que são característicos da prova produzida no julgamento.
Essa modificação será, assim, tão só a que resultar do filtro da documentação da prova, segundo a especificação do recorrente, por referência ao conteúdo da acta, com indicação expressa e precisa dos trechos dos depoimentos ou declarações em que alicerça a sua divergência (art. 412º nº4 do CPP), ou, pelo menos, mediante «a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas pelo recorrente» (Ac. do STJ nº 3/2012, de fixação de jurisprudência de 08.03.2012, in D.R. 1.ª série,  nº 77 de 18 de abril de 2012).
«É em face dessa prova que, em sede de recurso se vai aferir da observância dos juízos de racionalidade, de lógica e de experiência e se estes confirmam, ou não, o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos, cuja veracidade cumpria demonstrar. Caso esteja demonstrado que o juízo constante da decisão recorrida é compatível com aqueles critérios não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não estiver, então a decisão recorrida merece alteração. Com o que em nada se viola a imediação da prova, que fica acessível, imediatamente, ao juiz de recurso tal e qual como foi produzida em primeira instância» (Paulo Saragoça da Mata, in A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença em Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, Coimbra 2004, pág. 253).
Trata-se, em suma, de colocar à apreciação do tribunal de recurso a aferição da conformidade ou desconformidade da decisão da primeira instância sobre os precisos factos impugnados com a prova efectivamente produzida no processo, de acordo com as regras da experiência e da lógica, com os conhecimentos científicos, bem como com as regras específicas e princípios vigentes em matéria probatória, designadamente, com os princípios da livre apreciação da prova e in dubio pro reo, assim como, com as normas que regem sobre a validade da prova e sobre a eficácia probatória especial de certos meios de prova, como é o caso da confissão, da prova pericial ou da que emerge de certo tipo de documentos. 
Se dessa comparação resultar que o Tribunal não podia ter concluído, como concluiu na consideração daqueles factos como provados ou como não provados, haverá erro de julgamento e, consequentemente, modificação da matéria de facto, em conformidade com o desacerto detectado.  
Portanto, só os factos controvertidos por efeito das provas cujo conteúdo seja adequado à conclusão de que se impõe uma decisão diferente da recorrida, segundo a motivação do recorrente, é que são objecto de sindicância pelo Tribunal da Relação.
Porém, se a convicção ainda puder ser objectivável de acordo com essas mesmas regras e a versão que o recorrente apresentar for meramente alternativa e igualmente possível, então, deverá manter-se a opção do julgador, porquanto tem o respaldo dos princípios da oralidade e da imediação da prova, da qual já não beneficia o Tribunal de recurso. Neste caso, já não haverá, nem erro de julgamento, nem possibilidade de alteração factual.
Assim, a convicção do julgador, no tribunal do julgamento, só poderá ser modificada se, depois de cabal e eficazmente cumprido o triplo ónus de impugnação previsto no citado art. 412º nºs 3, 4 e 6 do CPP, se constatar que decisão da primeira instância sobre os precisos factos impugnados quando comparada com a prova efectivamente produzida no processo, deveria necessariamente ter sido a oposta, seja porque aquela convicção se encontra alicerçada em provas ilegais ou proibidas, seja porque se mostram violadas as regras da experiência comum e da lógica, ou, ainda, porque foram ignorados os conhecimentos científicos, ou inobservadas as regras específicas e princípios vigentes em matéria probatória, designadamente, os princípios da livre apreciação da prova e in dubio pro reo, assim como, as normas que regem sobre a validade da prova e sobre a eficácia probatória especial de certos meios de prova, como é o caso da confissão, da prova pericial ou da que emerge de certo tipo de documentos (autênticos e autenticados).
«A censura dirigida à decisão de facto proferida deverá assentar “na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na convicção ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção
(…)”.
«A reapreciação da prova, dentro daqueles parâmetros, só determinará uma alteração da matéria de facto quando do respectivo reexame se concluir que as provas impõem uma decisão diversa, excluindo-se a hipótese de tal alteração ter lugar quando aquela reapreciação apenas permita uma decisão diferente da proferida, porquanto, se a decisão de facto impugnada se mostrar devidamente fundamentada e se apresenta como uma das possíveis soluções face às regras da experiência comum, deve a mesma prevalecer, não ocorrendo, nesse caso, violação das regras e princípios de direito probatório» (Ac. da Relação de Lisboa de 10.09.2019 proc. 150/18.7PCRGR.L1-5. No mesmo sentido, Ac. STJ n.º 3/2012, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 18-4-2012; Acs. do Tribunal Constitucional nºs 124/90; 322/93; 59/2006 e 312/2012, in www.tribunalconstitucional.pt e AUJ nº 10/2005, de 20.10.2005, DR, Série I-A, de 07-12-2005 Paulo Saragoça da Mata, in A Livre Apreciação da
Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença em Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, Coimbra 2004, pág. 253, Ana Maria Brito, Revista do C.E.J., Jornadas Sobre a Revisão do C.P.P., pág. 390; Cunha Rodrigues, «Recursos», in O Novo Código de Processo Penal, p. 393 e ainda, os Acs. do STJ de 12.09.2013, proc. 150/09.8PBSXL.L1.S1 e de 11.06.2014, proc. 14/07.0TRLSB.S1; Acs. da Relação de Coimbra de 16.11.2016, proc. 208/14.1JACBR.C1; de 13.06.2018, proc. 771/15.0PAMGR.C1 e de 08.05.2019, proc. 62/17.1GBCNF.C1; Acs. da Relação do Porto de 15.11.2018, proc. 291/17.8JAAVR.P1, de 25.09.2019, processo 1146/16.9PBMTS.P1 e de 29.04.2020, proc. 1164/18.2T9OVR.P1; da Relação de Lisboa de 24.10.2018, proc. 6744/16.8L1T9LSB-3; de 13.11.2019, proc. 103/15.7PHSNT.L1, de 09.07.2020, proc. 135/16.8GELSB.L1-9, da Relação de Guimarães de 08.06.2020, proc. 729/17.4GBVVD.G1, da Relação de Lisboa de 2.11.2021, proc. 477/20.8PDAMD.L1-5, in http://www.dgsi.pt).
«Os Tribunais da Relação têm poderes de intromissão em aspectos fácticos (art.ºs 428º e 431º/b) do CPP), mas não podem sindicar a valoração das provas feitas pelo tribunal em termos de o criticar por ter dado prevalência a uma em detrimento de outra, salvo se houver erros de julgamento e as provas produzidas impuserem outras conclusões de facto; «Normalmente, esses erros de julgamento capazes de conduzir à modificação da matéria de facto pelo tribunal de recurso consistem no seguinte: dar-se como provado um facto com base no depoimento de uma testemunha que nada disse sobre o assunto; dar-se como provado um facto sem que tenha sido produzida qualquer prova sobre o mesmo; dar-se como provado um facto com base no depoimento de testemunha, sem razão de ciência da mesma que permita a referida prova; dar-se como provado um facto com base em prova que se valorou com violação das regras sobre a sua força legal; dar-se como provado um facto com base em depoimento ou declaração, em que a testemunha, o arguido ou o declarante não afirmaram aquilo que na fundamentação se diz que afirmaram; dar-se como provado um facto com base num documento do qual não consta o que se deu como provado; dar-se como provado um facto com recurso à presunção judicial fora das condições em que esta podia operar;
«Quando o tribunal recorrido forma a sua convicção com provas não proibidas por lei, prevalece a convicção do tribunal sobre aquelas que formulem os Recorrentes» (Ac. da Relação de Lisboa de 11.03.2021, processo 179/19.8JDLSB.L1-9, in http://www.dgsi.pt).
O regime do duplo grau de jurisdição da matéria de facto, traduz-se num reexame pontual e parcial da prova, porque restrito aos precisos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância e não pode, nem deve ser subvertido numa repetição da audiência de discussão e julgamento realizada em primeira instância.
A forma minuciosa e exigente como está previsto e regulado este tríplice ónus de especificação ilustra como o duplo grau de jurisdição da matéria de facto não implica a formulação de uma nova convicção por parte do tribunal de recurso, em substituição integral da formada pelo tribunal da primeira instância, nem equivale a um sistema de duplo julgamento, antes se cingindo a pontos concretos e determinados da matéria de facto já fixada e que, de acordo com a prova já produzida ou a renovar, devem necessariamente ser julgados noutro sentido, justamente, de harmonia com os princípios da imediação, da oralidade e do contraditório da audiência de discussão e julgamento, que postulam a excepcionalidade das alterações ao julgamento da matéria de facto, feito na primeira instância e a concepção do recurso como um remédio jurídico e não como um outro julgamento (Ac. STJ n.º 3/2012, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 18-4-2012. No mesmo sentido, Acs. do Tribunal Constitucional nºs 124/90; 322/93; 59/2006 e 312/2012, in
www.tribunalconstitucional.pt e AUJ nº 10/2005, de 20.10.2005, DR, Série I-A, de 07-122005, Germano Marques da Silva, Registo da Prova em Processo Penal, Tribunal Colectivo e Recurso, in Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, vol. I, Coimbra, 2001. No mesmo sentido, Ana Maria Brito, Revista do C.E.J., Jornadas Sobre a Revisão do C.P.P., pág. 390; Cunha Rodrigues, «Recursos», in O Novo Código de Processo Penal, p. 393).
O recorrente cumpriu cabalmente o ónus de impugnação especificada, quer no tocante à menção dos precisos pontos de facto que considera terem sido incorrectamente julgados, quer nos meios de prova e respectivos segmentos dos quais, na sua visão da prova, se impunha a decisão oposta à que o Tribunal tomou.
Por isso, se deixa consignado que se procedeu à audição integral da prova produzida em audiência.
Quanto ao ponto 2 dos factos provados.
Na sentença recorrida, este ponto tem a seguinte redacção:
2) A ofendida integrou o lar/instituição de acolhimento “...” Unipessoal, Lda. em data não concretamente apurada.
O Mº. Pº. opõe a esta indefinição temporal da entrada da ofendida nesta instituição, que o que resulta da prova produzida, concretamente das declarações da arguida SMGA_____ e do depoimento da testemunha M…, que expressamente mencionaram este facto, nos segmentos indicados nas motivações do recurso, foi que essa entrada teve lugar em data não concretamente apurada, mas do ano de 2017.
 Ouvidos estes excertos - minuto 10:02 a 10:18 das declarações da arguida prestadas no dia 09.09.2021, consignadas em acta como tendo início às 09h32m45s e termo às 10h34m41s e o excerto daquele depoimento constante do minuto 14:43 prestado no dia 09.09.2021, consignado em acta como tendo início às 11h02m18s e termo às 11h24m08s, resulta que:
A arguida admite como possível que tenha sido em Setembro de 2017 que Ma…
 integrou o lar/instituição de acolhimento “...” - Unipessoal, Lda, embora não tenha conseguido precisar a data em que tal ocorreu;
A testemunha M… declarou que MAR______  faleceu um ano depois de ter dado entrada no lar ... -Unipessoal, Lda. e que essa entrada ocorreu em 2017, pois morreu em 2018.
A testemunha M… era nora da ofendida que se deslocava, pelo menos, semanalmente àquela instituição para visitar a sogra e a sua própria mãe que também ali se encontrava acolhida, no período temporal mencionado na acusação, sendo ela quem levava a sua mãe às consultas médicas, razões porque frequentava aquele lar e contactava amiudadas vezes com a arguida, circunstâncias que a própria também referiu.
Considerando a razão de ciência desta testemunha e a coerência de versões apresentadas nestes dois meios de prova quanto a tal circunstância, a mesma terá de ser integrada na matéria de facto provada, pelo que o ponto 2) tem de ser alterado e passar a ter a seguinte redacção:
2) A ofendida integrou o lar/instituição de acolhimento “...” Unipessoal, Lda, em data não concretamente apurada do ano de 2017. 
No que concerne ao facto dado como provado em 21), o mesmo tem a seguinte redacção:
A arguida trabalha como auxiliar num lar de idosos auferindo mensalmente a quantia de € 750,00.
Esta circunstância consta do relatório social com a referência Citius 19347440, junto aos autos em 13 de Agosto de 2021 (cfr. p. 4 do mesmo relatório), pelo que, estando alicerçado em prova não impugnada, não existe erro de julgamento, improcedendo o recurso nesta parte. 
Quanto à produção de prova que determina a consideração como provados dos pontos
a), c), d), e), f), h), i), j) e l) que na sentença recorrida foram considerados não provados:
O facto dado como não provado em a) é o seguinte: 
a)  Que a arguida no dia 24 de agosto de 2018 apenas reagia a estímulos dolorosos,
estava apirética e algaliada com ch14.
Como muito bem salienta o Mº. Pº., a referência a «arguida», naquele ponto é um lapso de escrita e deve, como tal, ser corrigido, porque se refere à ofendida MAR______ .
E esse é o primeiro reparo a efectuar, quanto a este ponto. 
Da motivação da convicção do Tribunal, quanto aos factos provados e não provados não se descortina, no texto da sentença recorrida, qual a razão pela qual este facto não foi dado como provado, quando, na realidade, o mesmo consta expressa e claramente do Diário Clínico - Urgência, relativamente ao episódio com inicio no dia 24-08-2018, às 19:15h, que a ofendida MAR______ , poucas horas depois de ter dado entrada nas urgências (às 01:44h), se apresentava prostrada e apenas reagia a estímulos dolorosos. Da mesma forma é feito constar que a ofendida se encontrava apirética e que foi “(...) algaliada com CH14, com saída de urina com cheiro fétido e concentrada” (às 02:08h) que consta de fls. 88, 89 e 90 dos autos.
Este documento não foi impugnado por ninguém, foi requisitado ao estabelecimento hospitalar onde, segundo a própria versão apresentada pela arguida em audiência, a ofendida MAR______  foi assistida, naquele dia 24 de Agosto de 2018, sendo certo que, como resulta do texto do documento, aquelas informações resultam de observações feitas por médicos e enfermeiros que prestaram a assistência hospitalar em causa.
O seu conteúdo, não merece qualquer dúvida porque nem sequer foram produzidos outros meios de prova aptos a infirmar ou neutralizar o estado físico, anímico e clínico de MAR______ , naquelas circunstâncias de tempo e lugar.
Pelo contrário, a própria arguida explicou os motivos que a levaram a decidir levar a ofendida ao Hospital, admitindo, ao minuto 27:50 das suas declarações que um dos motivos pelos quais decidiu levar a ofendida ao Hospital – além de a úlcera de pressão não estar a melhorar, «a ferida não estava bonita e dois dias antes estava a deitar um exsudado o que significa que poderia estar a haver uma infecção», a ofendida «poderia estar um pouco prostrada» -  os quais dão total consistência ao conteúdo de tal Diário Clínico a que se soma o sentido coincidente da nota de Nota de Alta/Transferência (cfr. fls. 97 a 99) na parte em que refere que nas observações iniciais a ofendida apresentava-se «prostrada, reativa aos estímulos dolorosos. (...). Deficiente estado geral e nutricional (...) Pele e mucosas desidratadas e descoradas”.
De resto, é a própria Mma. Juíza que, a propósito dos motivos da sua convicção sobre a decisão de facto que tomou, refere que «a prova directa e concreta resume-se, no essencial, à documentação clínica das idas ao Hospital da ofendida em 24 de Agosto de 2018 e 28 de Agosto de 2018 de fls. 67 a 99, nela se descrevendo que a ofendida apresentava úlcera de pressão de grau IV com infecção, estava prostrado e demonstrava sinais de desidratação (…)», o que embora não correspondendo integralmente ao que resultou da discussão da causa em audiência segundo a gravação da prova, revela, no entanto, que foi o próprio Tribunal a aceitar como correcta e credível a informação acerca do estado de saúde da ofendida que consta desses documentos.   
Assim sendo, a Mma. Juiz ao considerar tal facto como não provado decidiu ao contrário do que devia, pois a prova documental que permite a sua consideração como provado não oferece qualquer incerteza e não há para além dela, outras provas de sinal contrário ou diverso.
Há, pois, erro de julgamento e o ponto a) dos factos não provados passará a integrar a
matéria de facto provada.
Quanto à alínea c), o seu conteúdo é o seguinte:
c) Que no dia 26 de Agosto de 2018 a ofendida encontrava-se no aludido lar,
apresentando nódoas negras na zona inferior das pernas e nos pulsos.
O Mº. Pº. alicerça a sua discordância da consideração deste facto como não provado, essencialmente, nos depoimentos testemunhais prestados por e M…, que são, a primeira, filha da ofendida e a segunda sua nora, sendo que ambas visitavam a ofendida MAR______ , no lar explorado pela arguida com uma periodicidade semanal.
Os depoimentos destas testemunhas estão registados na gravação digital do dia 09-092021, consignados em acta como tendo início às 10h34m42s e termo às 11h02m17s e início às 11h02m18s e termo às 11h24m08s, respectivamente.
relatou, nas passagens correspondentes aos minutos 8:30 e 19:25 que na segunda-feira seguinte ao primeiro episódio de urgência e internamento hospitalares (o dos dias 24 e 25 de Agosto de 2018), quando chegaram ao lar para irem levar iogurtes proteicos à sua mãe, em virtude de a ter visto muito debilitada e a sua cunhada, a testemunha M… quis ver as pernas e os pés da ofendida, porque começaram a aparecer-lhe manchas sobretudo nos calcanhares que «eram o início das escaras», a arguida impediu-as, dizendo que a ofendida estava bem e que aquele cheiro fétido que a sua mãe então apresentava, era por estar algaliada.
Por seu turno, quanto à testemunha Ma…, ouvidos os excertos deste depoimento a que o Mº. Pº. alude, nas motivações do recurso, efectivamente, (cf. passagens constantes dos minutos 06:10, 06:44, 12:57 e 17:15, do seu depoimento) deles resultam as afirmações atribuídas à testemunha pelo recorrente, concretamente, confirmou que, numa segunda feira seguinte ao primeiro internamento hospitalar da sogra, viu manchas negras nos calcanhares da mesma e ficou muito alarmada porque associou aquelas manchas ao surgimento de escaras e tentou inspeccionar outras partes do corpo da sogra, mas a arguida demoveu-a de o fazer,  dizendo que a senhora estava bem, só um pouco cansada. Também se recorda de que a sogra tinha um cheiro, mau e muito intenso e que a arguida o atribuiu à algália.
Acrescentou que marcou de imediato uma consulta médica para a sogra, mas que, entretanto, nem se concretizou, porque a sogra foi internada pela segunda vez, tendo sido, só aquando deste internamento que toda a família soube da existência de uma úlcera de pressão na região sacro de MAR______  e que havia estado hospitalizada dois ou três dias antes por causa daquela escara, por informação prestada pelo médico que observou a ofendida MAR______ .
Assistiu à desbridação da ferida da sua sogra e percebeu que se tratava de uma úlcera muito grave.
Neste contexto probatório e não havendo qualquer motivo para retirar credibilidade a estes depoimentos, posto que assentes em algo que as duas testemunhas viram no corpo da ofendida, importa que, de acordo com os princípios da livre apreciação da prova previstos no art. 127º do CPP considerar provado que no dia 26 de Agosto de 2018 a ofendida encontrava-se no aludido lar, apresentando nódoas negras na zona dos calcanhares (e não também na zona inferior das pernas e dos pulsos, porque dos depoimentos destas duas testemunhas apenas resulta terem visto as nódoas negras nos calcanhares da ofendida e não foi produzido qualquer outro meio de prova acerca destas circunstâncias);
Quanto ao facto não provado em d) o mesmo refere que a ofendida encontrava-se desnutrida.
Como refere e bem o recorrente, este facto resulta inequívoco de fls. 88 do Diário Clínico - Urgência, do episódio com inicio no dia 24.08.2018, às 19:15h, em resultado do qual a ofendida MAR______  foi internada no Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca, EPE, nos dias 24 e 25 de Agosto de 2028.
Com efeito, na entrada desse diário efectuada pelas 01h24m, está escrito o seguinte: 
«Utente prostrada. Reactiva à mobilização. Pele e mucosas pouco coradas e desidratadas».
Também o Diário Clínico - Urgência, do episódio de urgência hospitalar com inicio no dia 28.08.2018, às 15:53h, fls. 79 e 80, diz acerca da ofendida MAR______ , que a mesma apresentava, quando foi observada pelas 16:42h, «a pele e mucosas pouco coradas e desidratadas». 
Do mesmo Diário Clínico referente ao mesmo dia, mas à observação feita à ofendida pelas 17h20m, a fls. 81, é repetida a menção a que «a pele e mucosas se apresentavam pouco coradas e desidratadas» e anotado que a ofendida apresentava um «deficiente estado geral e nutricional». 
Segundo, tal Diário Clínico, desta feita referente à observação feita à ofendida MAR______ , no dia 29.08.2021, pelas 00:06h, a fls. 82, a mesma tinha para além de úlceras de pressão na região sagrada com exsudado seroso fétido e tecidos desvitalizado», pele e mucosas descoradas e desidratadas»
Ainda deste Diário Clínico, a fls. 82, relativamente à observação feita à ofendida no referido dia 29.08.2021, quando eram 20h03m, consta «Problemas: Desidratação e Escaras de Decúbito», de que sofria a ofendida.
O estado de desnutrição da ofendida, nas referidas datas é, pois, evidente, porquanto resulta da observação clínica a que foi sujeita nos dias 24, 25, 28 e 29 de Agosto de 2018, no Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca EPE, tal como documentado nas informações clínicas a que se referem aquelas fls. 79 a 82, as quais, como já se referiu a propósito da al. a) dos factos não provados, não merecem qualquer dúvida acerca da fidedignidade entre o respectivo texto e o quadro real de saúde e estado anímico e psíquico da ofendida, de resto, confirmado pela própria arguida e pelas testemunhas e M….
Efectivamente, a própria arguida referiu que a determinada altura a ofendida MAR______  deixou de conseguir comer as refeições pela própria mão, pelo que dependia de terceiros para providenciar a sua alimentação, sendo ela e as suas funcionárias quem davam de comer à ofendida e, quando confrontada pela Sra. Procuradora Adjunta, com o estado de desnutrição e desidratação assinalado nas observações clínicas realizadas em 24-25 de Agosto de 2018 e em 28-29 de Agosto de 2018, a que se referem as informações clínicas de fls. 67 a 99, respondeu que esse quadro talvez se devesse a uma infeccção urinária que lhe havia sido diagnosticada também no Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca EPE (minutos 22:08 e 50:47 das declarações prestadas em audiência no dia 9.09.2021).
A desnutrição da ofendida resulta corroborada nos depoimentos das testemunhas e M…, nos excertos em que aludem à aquisição de iogurtes proteicos que foram entregar ao lar para serem consumidos pela ofendida, precisamente porque a mesma estava muito prostrada e cada vez mais debilitada e combalida e recusava comer (minuto 07:32 do depoimento de e minutos 07:10 e 16:03 do depoimento de M…).
A prova produzida impõe, por tudo isto, a consideração como demonstrado do facto descrito no ponto d) do elenco dos factos não provados, pelo que também nesta parte existe erro de julgamento.
As alíneas e), f), g), h), i), j) e l), referem-se à consciência da ilicitude da conduta, à consumação do crime de maus tratos por omissão e aos elementos intelectual e volitivo do dolo que vinham imputados à arguida na acusação.
A propósito da consideração destes factos como não provados, a sentença limita-se a dizer que (transcrição parcial):
«Assim sendo, no que respeita à matéria de facto dada como não provada, o Tribunal, tendo em conta alguma dúvida inerente a essa prova da qual não conseguiu tirar ilações seguras e perante a ausência de prova cabal quanto à mesma, ou perante a contradição com os factos que se mostram provados, foi levado a julgá-la nesses moldes».
Todavia:
Que a arguida SMGA_____ sabia do estado clínico da ofendida M…
 e das suas necessidades resulta, desde logo, por presunção judicial resultante da aplicação das regras de experiência comum e de critérios de lógica à idade da mesma ofendida quando foi acolhida como provado no ponto 1) e ao próprio contexto contratual em que a mesma ofendida foi acolhida no Lar ... Unipessoal, Lda, como resulta ilustrado, respectivamente, e nos pontos 3 a 5 e 15 da matéria de facto provada
A arguida é que era a responsável pela gestão desta empresa, de cuja exploração lucrativa fazia modo de vida, pelo que, segundo o que é de esperar segundo critérios de normalidade do que são os «usos do comércio» a que este tipo de actividade de prestação de serviços de assistência a pessoas idosas, nem ela poderia deixar de tomar conhecimento das condições físicas, psíquicas e estado geral de saúde das pessoas que admite para serem acolhidas no Lar, até porque teria necessariamente de saber da eventual existência de restrições alimentares, do tipo de medicação e periodicidade diária em que a mesma deveria ser ministrada, etc.
De resto, a própria arguida, ao longo das suas declarações em audiência de discussão e julgamento, prestadas no dia 9 de Setembro de 2021, revelou sempre saber muito bem qual o estado físico e de saúde da ofendida, sendo particularmente revelador o excerto correspondente ao minuto 24:06 em que refere «a Dona A… já não era uma senhora autónoma». 
Nem outra conclusão seria compreensível, de acordo com o mais elementar senso comum.
Por outro lado, o depoimento da testemunha M…, nora da ofendida corrobora esta conclusão, pois a referida testemunha explicou que a arguida tomou conhecimento dos diversos problemas de saúde da ofendida, designadamente os problemas de mobilidade e de visão (cf. passagem constante do minuto 14:55, do seu depoimento).
Depois, considerando que a senhora já tinha 80 anos quando foi admitida naquele Lar, bem como o objecto social deste que era precisamente o de cuidar de pessoas idosas, só por uma total inconsideração, irreflexão e falta de pensamento crítico da arguida é que esta não teria como saber e não sabia que tinha perante si uma pessoa a precisar de cuidados de saúde, higiene, alimentação e todos os necessários à satisfação das suas necessidades e ao desenvolvimento da sua personalidade, pois foi precisamente para essa finalidade que M….
ali ingressou e esse era também o objecto social da empresa “...” Unipessoal, Lda. cuja actividade era a de lar de idosos, apoio geriátrico, centro de dia, apoio domiciliário e prestação de serviços médicos e de enfermagem, como descrito nos pontos 2) e 3) da matéria de factos provada.
Por isso, como refere e muito bem o recorrente:
«É até contraintuitivo afirmar que sendo a arguida a responsável pelo lar (facto provado 5), que tinha como funções, entre outras, administrar a medicação prescrita aos utentes, mudar pensos, alimentar e informar os médicos de qualquer alteração dos estado de saúde dos utentes (facto provado 15), não tivesse conhecimento do estado clínico da ofendida e que não soubesse que esta necessitava da administração de diversos medicamentos, da prestação de cuidados de enfermagem e de higiene, bem como de alimentação.»
No que se refere às alíneas f) e g) dos factos não provados, o seu conteúdo é o que mais incisivamente se refere à consumação do crime de maus tratos por omissão e é o seguinte: 
f) Que a arguida, como responsável daquele lar, conhecendo a situação da ofendida, não lhe prestou os cuidados devidos, nomeadamente, não adequou a alimentação à situação clínica da ofendida, não chamou o médico/enfermeiro para mudar o penso da úlcera, que a ofendida tinha, deixando assim agravar aquele ferimento.
g) Que após a ofendida ter regressado ao lar, no dia 26 de Agosto de 2018, a arguida continuou a não providenciar por uma alimentação adequada à ofendida, não determinou que se procedesse à limpeza da ferida da ofendida, não lhe mudou o penso, nem a colocou numa cama com colchão adequado, de forma a permitir a cicatrização daquele ferimento.
Resultou, desde logo, das declarações da arguida, que não havia médico contratado para prestar a devida assistência aos utentes, nem enfermeiros, porque havia dificuldades económicas, nem auxiliares de acção médica (cujo número mínimo legalmente exigido nem sequer sabia, como o minuto 20:04 das suas declarações evidencia) porque as mensalidades pagas pelos idosos eram baixas, pelo que, quando alguém adoecia, chamava «médicos particulares». 
Isto mesmo, foi também confirmado pelas testemunhas A… e B…, respectivamente, médico e “coach de enfermagem” que prestavam serviços ocasionais ao lar, sem nenhum vínculo contratual.
Como refere o recorrente, é muito sintomático que o médico A…, que prestava serviços ocasionais e esporádicos no lar, nunca tenha tratado ou observado a ofendida MAR______  (excerto do minuto 04:36, do seu depoimento), nem nunca lhe tenha sido pedida ajuda ou conselho pela arguida SMGA_____ quanto  aos cuidados médicos ou de enfermagem a prestar à ofendida em virtude da lesão que apresentava (excerto do minuto 08:47, do seu depoimento), o que revela a desvalorização que a arguida fez, da gravidade do estado de evolução daquela úlcera de pressão.  
Também o depoimento prestado pela testemunha F… que chegou a ser directora técnica de um lar de idosos que a arguida explorou em Odivelas, tendo sido contratada pela arguida ajuda a perceber e reforça a falta de condições adequadas do lar explorado pela arguida para prestar cuidados de saúde, alimentação, higiene e bem estar aos idosos ali acolhidos e a pouca ou nenhuma sensibilidade da arguida para a necessidade de alterar esse estado de coisas, como defluí da circunstância de nem sequer existir um director técnico tendo sido esta testemunha quem, como amiga da arguida, lhe deu alguma ajuda, quanto aos requisitos legais para a abertura do lar em Queluz (aquele em que ocorreram os factos objecto deste processo), mas onde só esteve uma ou duas vezes.
Segundo a mesma arguida, também não dispunha de auxiliares em número suficiente para o número de utentes. Só tinha seis auxiliares «normais» (dos que não são auxiliares de acção médica), porque, adiantou, havia muita falta de pessoal.
São particularmente elucidativas as afirmações da arguida de que, primeiro, a ofendida comia como todos os outros utentes, que demorava muito tempo a comer e que a partir de determinada altura deixou de conseguir comer sozinha, a de que, entre o momento em que se apercebeu dos primeiros sinais de úlcera de pressão na zona sacro do corpo da ofendida MAR______ , até ao dia 24 de Agosto de 2018, quando ocorreu o primeiro episódio de urgência e internamento hospitalar decorreram dois a três meses em que ia aplicando pomadas e fazendo pensos numa escara que descambou numa úlcera de pressão de grau IV, ou seja, no último estádio de evolução possível e que foi fazendo o penso, a cada dois dias, julgando que conseguia, ela própria, tratar uma úlcera com aquelas dimensões e gravidade e apenas levou a ofendida ao hospital, dois dias depois de se ter apercebido que a ferida deitava líquido, «não estava bonita» e tinha «um bocadinho de cheiro» (excertos constantes dos minutos 22:13, 27:13, 55:37 das declarações que prestou ao Tribunal).
Ora, estas expressões de que a ferida deitava líquido, «não estava bonita» e tinha «um bocadinho de cheiro», face ao que consta das informações clínicas de fls. 67 a 99 dos autos e ao facto provado em 7., só podem ser interpretadas como um eufemismo para a «úlcera de pressão de categoria IV, com tecido necrosado e desvitalizado, com cheiro fétido, apresentava um penso repassado e exsudado purulento em abundante quantidade» que a ofendida apresentava no dia 24 de Agosto de 2018, quando deu entrada no Hospital Prof. Doutor Fernando Fonseca EPE. 
Acresce que segundo a descrição da testemunha AM____  esta ferida evidenciava ausência de cuidados de saúde e má alimentação, porque a úlcera apresentada pela ofendida, além de grandes dimensões e rompimento dos músculos com perda irreversível dos tecidos, tinha exposição óssea.
Esclareceu, ainda, como surge e se desenvolve todo o processo de formação de uma úlcera de pressão com as características daquela que a ofendida MAR______  apresentava: desde o grau I, traduzido numa maceração da pele, uma mancha vermelha que não desparece ao fim de uma/duas horas depois de pressionada, o grau II ou flictena que se manifesta numa bolha que rebenta com líquido transparente, o grau III que é uma ferida emergente após o rebentamento da bolha e atinge os músculos, sendo por vezes necessário para evitar a criação de tecidos necrosados, ministrar medicação antibiótica e em situações mais graves, recorrer a tratamento hospitalar com desbridamento para evitar a proliferação dos tecidos necrosados e permitir a regeneração dos tecidos, até ao grau IV que corresponde àquele em que estava a úlcera de pressão na zona sacro do corpo da ofendida em Agosto de 2018, que apresenta falta de carne e exposição óssea.
Também esclareceu que a falta de proteínas sobretudo, carne, peixe e ovos, na alimentação e falta de mudança de posicionamento do corpo de duas em duas ou de três em três horas e em diferentes posições por forma a assegurar períodos de seis horas sem pressão sobre a zona do corpo afectada são as principais causas para o surgimento de escaras.
A propósito deste depoimento, a motivação da decisão de facto da sentença recorrida refere que importa fazer «a distinção clara entre uma testemunha e um perito, a testemunha não observou a ofendida, limitou-se a fazer um penso nos últimos dias, pelo que não é possível valorar o seu depoimento nesta parte, já que não responde à questão: o que concretamente provocou aquela úlcera e não as suas causas genéricas.».
Ora, a verdade é que esta testemunha é enfermeira de profissão, faz parte de uma associação na área da prevenção e tratamento das úlceras de pressão, sabe do que fala, quando fala acerca de escaras e do seu processo evolutivo e não há nenhuma razão, em face ao seu conhecimento directo dos factos, por ter observado e feito um curativo àquela úlcera e da forma desinteressada como depôs, para não valorar o seu depoimento.
Esta testemunha examinou a ferida na zona do decúbito da ofendida e pôde constatar a sua gravidade e o risco de evoluir para uma septicémia e possível morte, tendo disso dado conhecimento ao neto da ofendida que foi a pessoa que a chamou para fazer novo penso à ferida da avó, logo depois de a mesma ter tido alta hospitalar do segundo episódio de urgência e internamento nos dias 28-29 de Agosto de 2018.
São também muito elucidativos os depoimentos das testemunhas A… e M…, nos relatos coincidentes entre si e com a versão apresentada pela arguida sobre toda a sucessão de acontecimentos relacionados com a condução da sua mãe e sogra ao Hospital Professor Doutro Fernando Fonseca, EPE nos dias 24 e 25 de Agosto de 2018, com o segundo episódio de urgência e internamento hospitalar entre os dias 28 de Agosto de 2018 e 5 de Setembro seguinte e os motivos desses internamentos e assistência hospitalar.
Por fim, os Diários Clínicos de fls. 67 a 99 são inequívocos, quanto ao estado de desnutrição e desidratação da ofendida, bem como à evolução da úlcera de decúbito que a ofendida apresentava e à falta de cuidados de enfermagem adequados ao tratamento desta úlcera, de que são reflexo os factos provados em 7) a 12), dos quais resulta, em síntese que quando a ofendida deu entrada no Hospital Amadora-Sintra, no dia 24 de Agosto, apresentava-se prostrada, com saída de urina com cheiro fétido, bem com apresentava uma úlcera de pressão de categoria IV, com tecido necrosado e desvitalizado, com cheiro fétido, apresentava um penso repassado e exsudado purulento em abundante quantidade e regressou ao Hospital Doutor Fernando da Fonseca, no dia 28 de Agosto de 2018, pelas 15:53, porque o seu estado de saúde se agravou, sendo que  se apurou que a ofendida mantinha uma úlcera exsudado seroso e fétido e tecido necrosado, tendo sido determinado o seu internamento por apresentar provável infecção urinária, úlcera de pressão na região sagrada e hipernatremia e desidratação e  à data da sua da alta clínica, que ocorreu no dia 5 de Setembro de 2018, a ofendida apresentava úlcera na região sagrada, com cerca de 5x8cms de diâmetro e 3cms de profundidade, com tecido desvitalizado no bordo externo, mas sem exsudado purulento e sem eritema peri lesional e úlcera de decúbito superficial na região do ombro esquerdo, com cerca de 1 cm de diâmetro, sem exsudado e sem eritema.
Ora, se a ofendida estava aos cuidados de um lar de idosos por cuja gestão a arguida era a única responsável, como provado em 2), 3), 5) e 15) da matéria de facto provada e sabendo-se, porque se trata de factos de conhecimento geral decorrentes de um grau mínimo de experiência de vida e da vulgarização e massificação de certos ensinamentos básicos da ciência médica ao alcance de todos nós, que nem uma úlcera de pressão, nem os estados de desnutrição e de desidratação são fenómenos súbitos ou de emergência espontânea, ou de um dia para o outro, antes constituem condições físicas que são o culminar de um processo mais ou menos prolongado no tempo e que são fortemente indicadores da qualidade (ou falta dela) dos cuidados de alimentação, higiene, saúde e bem estar físico prestados à pessoa que os apresenta, tem igualmente de se concluir pela total contradição entre a prova produzida e a consideração como não provados dos factos descritos sob as alíneas f) e g) que resultam, efectivamente, demonstrados, porque a arguida é que tinha o dever de providenciar pela prestação dos necessários cuidados de saúde, alimentação, higiene e conforto adequados a prevenir quer os estados de desidratação e desnutrição que a ofendida apresentava, quer a progressão do que começou por ser uma maceração da pele, para degenerar numa úlcera de pressão de grandes dimensões e profundidade num máximo estádio de evolução até expor o osso, ao invés de ter deixado passar entre dois a três meses, segundo o que a própria arguida afirmou, sem providenciar pelos necessários cuidados de enfermagem e médicos que se mostrassem necessários. 
Por fim os factos não provados nas alíneas h), i), j) e l), referem-se aos elementos intelectual e volitivo do dolo e à consciência da ilicitude e têm a seguinte redacção:
h) Que agiu a arguida sabendo que iria provocar danos físicos e psicológicos à
ofendida, como consequência necessária das suas condutas.
i) Que ao recusar a prestar aqueles cuidados de saúde, sabia que punha em perigo a saúde, a integridade física e mesmo a vida da ofendida, bem sabia que causava nesta desespero, intranquilidade e receio pela sua segurança e bem estar.
j) Que a arguida agiu com desrespeito pela condição e dignidade humana da ofendida, não lhe aliviando a dor, recusando-se a prestar-lhe a assistência para a qual estava perfeitamente apta a realizar.
l) Que mais sabia que as suas condutas eram punidas e proibidas por lei.
Ora, depois de tudo quanto ficou expresso sobre a insustentabilidade lógica da sentença recorrida na consideração como não provados dos factos a que se referem as alíneas a) a g) da matéria de facto não provada, para concluir que os mesmos resultam demonstrados e do que resulta descrito nos pontos 1) a 15) da matéria de facto provada, ouvidas as declarações da arguida, que se apresentou como uma pessoa dotada de inteligência, conhecimento e liberdade, portanto, em relação à qual nenhuma dúvida se suscita sobre a sua imputabilidade, acrescendo a circunstância, por ela própria relatada de que durante cerca de dez anos explorou lares de idosos e trabalhou nas mais variadas tarefas de prestação de cuidados específica desta população só por uma muito extraordinária e de todo em todo improvável coincidência é que poderiam não ser considerados provados estes factos exarados nestas alíneas h) a l).
Relembra-se que o dolo é um fenómeno psicológico que, situando-se na vida interior de cada um, só é observável diretamente por quem o experiencia. Da sua natureza subjetiva, nasce a sua insusceptibilidade de apreensão directa por terceiros.
Assim como acontece em geral com os actos interiores ou factos internos, respeitantes à vida psíquica, que raramente se provam directamente, porque não são externamente observáveis, também a demonstração da existência do dolo é frequentemente feita por inferência ou dedução lógica, partindo dos factos conhecidos que são os modos de execução dos tipos de crime, associados à capacidade de discernimento e à liberdade de vontade do autor desses factos e demais circunstâncias que contextualizam a prática do crime.
E, assim se prova o dolo, com base em prova indirecta, tão válida quanto seria, caso o arguido tivesse confessado integralmente e sem reservas os factos.
«A prova do dolo faz-se, normalmente, de forma indirecta, com recurso a inferências lógicas e presunções ligadas ao princípio da normalidade ou às chamadas máximas da vida e regras da experiência, pelo que, na ausência de confissão, em que o arguido reconhece ter sabido e querido os factos que realizam um tipo objectivo de crime e ter consciência do seu carácter ilícito, a prova terá de fazer-se por ilações, a partir de indícios, através de uma leitura do comportamento exterior e visível do agente.» (Ac. da Relação de Lisboa de 15.12.2015, processo 200/15.9PBOER.L1-5. No mesmo sentido Ac. da Relação do Porto de 18.03.2015, processo 400/13.6PDPRT.P1, de 31.10.20218, proc. 423/16.3PBVLG.P1, da Relação de Lisboa de 09.07.2020, proc. 135/16.8GELSB.L1-9, da Relação do Porto de 10.11.2021, proc. 229/19.8GCVFR.P1in http://www.dgsi.pt. No mesmo sentido Ragués i Vallés, El dolo y su prueba en el proceso penal, pág. 243).
O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem a respeito do silêncio do arguido e das presunções judiciais e tendo presente o artigo 6º da CEDH no seu acórdão de 20.03.2001 (Caso Telfner c. Áustria), também considerou que «as presunções legais (de culpa) e o juízo que se faça do silêncio do arguido não são, em regra e só por si, incompatíveis com a presunção de inocência».
Do mesmo modo, o Tribunal Constitucional vem decidindo, o artigo 127º do Código de Processo Penal permite o recurso a presunções judiciais, é compatível com a presunção de inocência, consagrada no artigo 32º nº 2 da Constituição, e ainda com o dever de fundamentar as decisões judiciais, imposto pelo artigo 205º nº 1 da Constituição ( Ac. Tribunal Constitucional nº 391/2015, em DR nº 224, II Série, de 16/11/2015, e Ac. do TC nº 521/2018 de 17 Out. 2018, Processo 321/2018 http://www.tribunalconstitucional.pt/tc//tc/acordaos/20180521.html).
Por último, importa, tecer as seguintes considerações:
Um Juiz não pode resumir a sua actividade de valoração e análise crítica da prova a considerar os factos provados apenas quando exista confissão integral e sem reservas do arguido e, quando ela não aconteça e apenas porque o arguido nega a autoria dos factos pelos quais se encontra acusado ou tenta encontrar algum tipo de explicação para certos desfechos, considerar esses factos não provados.
Não que as declarações de um arguido não possam, por si só, no confronto com os demais meios de prova, fundamentar a sua própria absolvição.
Num sistema, como o processual penal português, de livre apreciação da prova, não tem qualquer eficácia jurídica o aforismo “testis unus testis nullus”, pelo que, um único depoimento, mesmo sendo o da própria vítima, pode ilidir a presunção de inocência e fundamentar uma condenação, do mesmo modo que as declarações do arguido por si só, isoladamente consideradas, podem fundamentar a sua absolvição. 
«É hoje consensual que um único testemunho, pode ser suficiente para desvirtuar a presunção de inocência desde que ocorram: a) ausência de incredibilidade subjectiva derivada das relações arguido/vítima ou denunciante que possam conduzir à dedução da existência de um móbil de ressentimento, ou inimizade; b) verosimilhança – o testemunho há-de estar rodeado de certas corroborações periféricas de carácter objectivo que o dotem de aptidão probatória; c) persistência na incriminação, prolongada no tempo e reiteradamente expressa e exposta sem ambiguidades ou contradições (Nesse sentido, cfr., entre outros, António Pablo Rives Seva, La Prueba en el Processo Penal-Doctrina de la Sala Segunda del Tribunal Supremo, Pamplona, 1996, pp.181-187)» (Ac. da Relação de Guimarães de 07.12.2018, processo 40/17.0PBCHV.G1, in http://www.dgsi.pt).
Mas o que é imperativo, é que esse único testemunho ou essas únicas declarações se mostrem verosímeis, plausíveis, consistentes com regras de experiência e senso comum e da lógica humana, para além de toda a dúvida razoável e, no confronto com todos os outros meios de prova, se possa concluir que esse único meio de prova é credível e os demais não merecem a mesma confiabilidade, quanto à sua capacidade de reproduzir aquilo que realmente aconteceu.
Ou seja, é preciso que esse meio de prova isolado gere uma dúvida racional que ilida a certeza contrária, ou ao contrário, crie uma certeza que afaste a dúvida, em suma, que alicerce de forma consistente ou impeça de forma igualmente consistente a convicção do tribunal.
Se não for o caso, como não foi, no caso vertente, é imperioso ter uma visão global e globalizante da prova, fazer correlações e comparações críticas entre os diversos meios de prova produzidos e colocar a informação obtida, através de todos e cada um deles, sob o crivo da razoabilidade e da lógica humanas, das regras de bom senso e de experiência comum, de certos conhecimentos científicos que, de tão massificados, já integram o património cultural de uma comunidade, porque isso é que é o que corresponde ao exame crítico das provas e ao exercício da livre convicção do julgador. 
«O julgador, em vez de se encontrar ligado a normas prefixadas e abstractas sobre a apreciação da prova, tem apenas de se subordinar à lógica, à psicologia e às máximas da experiência» (Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, II, p. 298).
Ora, as regras da experiência são critérios gerais, índices corrigíveis, que definem conexões de relevância, orientam os caminhos da investigação e oferecem probabilidades conclusivas, que servem para produzir prova de primeira aparência, baseadas na experiência de vida, argumentos que ajudam a explicar o caso particular por referência ao que é normal acontecer, em situações semelhantes, embora sem excluir que o caso particular não se reconduza ao caso típico.
As regras de experiência comum são «definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto «sub judice», assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade.» (Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, Vol. II, pág. 300).
«As regras de experiência, os critérios gerais não serão aqui mais do que índices corrigíveis, critérios que definem conexões de relevância, orientam os caminhos da investigação e oferecem probabilidades conclusivas, mas apenas isso – é assim em geral, em regra, mas sê-lo-á realmente no caso a julgar ?» (Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal (1967-1968), Coimbra, 1968, pp 47-48).
«As regras da experiência ou regras de vida como ensinamentos empíricos que o simples facto de viver nos concede em relação ao comportamento humano e que se obtém mediante uma generalização de diversos casos concretos tendem a repetir-se ou a reproduzir-se logo que sucedem os mesmos factos que serviram de suporte para efectuar a generalização. «Estas considerações facilitam a lógica de raciocínio judicial porquanto se baseia na provável semelhança das condutas humanas realizadas em circunstâncias semelhantes, a menos que outra coisa resulte no caso concreto que se analisa, ou porque se demonstre a existência de algo que aponte em sentido contrário ou porque a experiência ou perspicácia indicam uma conclusão contrária» Santos Cabral, em Prova Indiciária e as novas formas de criminalidade, Julgar n.º 17, http://julgar.pt/prova-indiciaria-e-as-novas-formas-decriminalidade/. No mesmo sentido, Paulo de Sousa Mendes, A Prova Penal e as Regras da experiência, Estudos em Homenagem ao prof. Figueiredo Dias, III, p.1002 e, particularmente, 1011).
O princípio da livre apreciação da prova consagrado no art. 127º do CPP, pese embora dê ao Juiz alguma margem de liberdade, não pode resultar de opiniões, crenças, impressões ou outras razões meramente subjectivas, porque tem como contrapartida, ser um instrumento de descoberta da verdade material, portanto, visa a reconstituição dos factos da forma mais fidedigna possível à sua realidade histórica.
A livre convicção é um mecanismo de descoberta da verdade, mas não é a afirmação infundada da verdade.  
A apreciação da prova é livre, porém, não pode ser arbitrária. Tem de alicerçar-se num processo lógico-racional, de que resultem objectivados, à luz das máximas de experiência, do senso comum, de razoabilidade e dos conhecimentos técnicos e científicos, os motivos pelos quais o Tribunal valorou as provas naquele sentido e lhes atribuiu aquele significado global e não outro qualquer.
Trata-se de uma «liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada verdade material – de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e susceptíveis de motivação e controlo» (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 2004, p. 202-3)
«A liberdade de que aqui se fala não é, nem deve implicar nunca o arbítrio, ou sequer a decisão irracional, puramente impressionisto-emocional que se furte, num incondicional subjetivismo, à fundamentação e à comunicação. Trata-se antes de uma liberdade para a objetividade – não aquela que permita uma “intime conviction”, meramente intuitiva, mas aquela que se determina por uma intenção de objetividade, aquela que se concede e que se assume em ordem a fazer triunfar a verdade objetiva, i. é, uma verdade que transcenda a pura subjetividade e que se comunique e imponha aos outros» (Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal (1967-68), Coimbra, 1968, págs. 50-51).
O princípio da verdade material é um princípio com dignidade constitucional, sendo certo que a justiça material baseada na verdade dos factos é um direito indisponível. «(...) No processo penal, vigora o princípio da liberdade de prova, no sentido de que, em regra, todos os meios de prova são igualmente aptos e admissíveis para o apuramento da verdade material, pois nenhum facto tem a sua prova ligada à utilização de um certo meio de prova préestabelecido pela lei. E recorda-se que também a busca da verdade material é, no processo penal, um dever ético e jurídico.
É que o Estado, como titular que é do «jus puniendi», está interessado em que os culpados de actos criminosos sejam punidos; só tem, porém, interesse em punir os verdadeiros culpados» (Ac. do Tribunal Constitucional nº 578/98. No mesmo sentido, Acs. do TC nº 137/2012 e 198/2004, in http://www.tribunalconstitucional.pt e Marques Ferreira, Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal, 1988, 229/30).
Por isso mesmo envolve um esforço intelectual e de raciocínio crítico na interpretação da informação que todos os meios de prova produzidos são aptos a produzir de forma global e globalizante e é também por isso que a fixação dos factos tem de ser acompanhada de fundamentação sobre os motivos da convicção do julgador. 
Envolve um esforço de razoabilidade.
É que essa fundamentação não serve apenas, nem o propósito de legitimação democrática da decisão judicial, nos termos consagrados nos arts. 205º da CRP e 97º, 374º e 379º do CPP, nem só a possibilidade de sindicância da decisão em sede de recurso, seja em revista alargada (art. 410º do CPP), seja em impugnação ampla (art. 412º do CPP).
Ela é um instrumento de autocontrole do arbítrio do próprio Juiz ou Colectivo de Juízes que assistiu à discussão da causa em julgamento, na fixação dos factos, na medida em que é na fonte da informação, na sua credibilidade que está o derradeiro teste ao acerto da consideração de um determinado facto como provado ou como não provado. E isto tanto em relação aos meios de prova não catalogados, quanto aos meios de prova cuja força probatória está pré-estabelecida legalmente (v.g., confissão integral e sem reservas, prova pericial e documentos autênticos e autenticados). 
É o que determina a fronteira entre prudente arbítrio e arbitrariedade.
«A exigência de motivação responde, assim, a uma finalidade do controle do discurso, neste caso probatório, do juiz com o objectivo de garantir até ao limite de possível a racionalidade da sua decisão, dentro dos limites da racionalidade legal. Um controle que não só visa uma procedência externa como também pode determinar o próprio juiz, implicando-o e comprometendo-o na decisão evitando uma aceitação acrítica como convicção de algumas das perigosas sugestões assentes unicamente numa certeza subjectiva» (Ac. do STJ de 23.02.2011, proc. 241/08.2GAMTR.P1.S2, in http://www.dgsi.pt).
Por fim, cumpre referir que, enquanto que as presunções judiciais são meios de prova, o princípio in dubio pro reo, corolário do princípio constitucional da presunção de inocência do arguido, contemplado no art. 32º nº 2 da Constituição, é um princípio de prova.
Ambos são mecanismos de resolução dos estados de incerteza, na convicção do julgador, quanto à verificação dos factos integradores de um crime.
O primeiro pressupõe que a dúvida se mantenha insanável, depois de esgotado todo o iter probatório e feito o exame crítico de todas as provas e resolve a dúvida cominando-lhe como consequência a consideração dos factos como não provados e a consequente absolvição do arguido.
A segunda, através da inferência lógico-dedutiva, a partir de indícios ou factos circunstanciais ou colaterais ao objecto do processo resolve essa dúvida contra o arguido, superando a aplicação do in dubio pro reo, pois permite afirmar um facto desconhecido a partir de um facto conhecido, para além de qualquer dúvida razoável ( Euclides Dâmaso Simões, em «Prova indiciária», na Revista Julgar, n.º 2, 2007, pág. 203 e ss., José Santos Cabral em «Prova indiciária e as novas formas de criminalidade», na Revista Julgar, n.º 17, 2012, pág. 13, Marta Sofia Neto Morais Pinto, em «A prova indiciária no processo penal, na Revista do Ministério Público, n.º 128, out.-dez. 2011, pp. 185-222).
A adequada concatenação entre os princípios da presunção de inocência e in dubio pro reo e o da admissibilidade da prova indirecta, através de presunções judiciais em Direito
Penal, implica que as dúvidas acerca da demonstração de determinados factos, sejam resolvidas em benefício do arguido, conduzindo à sua absolvição, mas a questão da existência da dúvida e consequente aplicação deste princípio só pode colocar-se depois de esgotado todo o iter probatório, ou seja, quando o «non liquet« persiste, mesmo depois de analisadas todas as provas directas e de concluído todo o esforço lógico-dedutivo inerente ao apuramento dos factos através de presunções judiciais.
E esse esforço de indagação, para além da primeira aparência criada pelas declarações da arguida, e de análise conjugada e crítica de todos os meios de prova disponíveis é que não emerge na sentença recorrida, que parece baralhar e confundir o comportamento omissivo da arguida na prestação de cuidados básicos e essenciais de saúde, higiene, alimentação, bem estar físico e emocional à ofendida MAR______  com a causa da morte desta senhora em 14 de Setembro de 2018.
Ora, a arguida não está acusada da prática de um crime de homicídio.
O crime que lhe foi imputado foi o de maus tratos p. e p. pelo art. 152º A do CP, alicerçando-se a acusação no incumprimento de um dever geral de assistência à vítima a que a arguida estava contratualmente vinculada, por explorar um lar de idosos e ter aceitado, em contrapartida de uma remuneração mensal, acolher e cuidar desta senhora, depois concretizado em vários deveres de prestação de cuidados de alimentação, higiene e saúde.
Num contexto como este, nem se percebe como é que a sentença depois de ter assumido e bem que os documentos clínicos de fls. 67 a 99 eram tão credíveis ao ponto de serem os únicos meios de prova directa (o que nem sequer corresponde totalmente ao acervo probatório produzido, neste processo), não só não retira deles toda a informação útil que os mesmos são aptos a providenciar, como ainda decide contra o conteúdo expresso de tais documentos, por exemplo, no que concerne ao estado de desidratação e desnutrição da ofendida MAR______  constatado por médicos e enfermeiros que assistiram esta senhora num período temporal em que a mesma se encontrava confiada aos cuidados da arguida e em que esta era a única responsável pela gestão e funcionamento do lar onde a senhora residia, factos, de resto, corroborados pela própria arguida SMGA_____ bem como pelos depoimentos das testemunhas AM____ , e M… que são, de resto, os meios de prova essenciais para a solução do caso.
No que se refere ao primeiro dos mencionados depoimentos, o Tribunal optou por desvalorizá-lo, com alusões à falta de qualidade de perita da testemunha, em alternativa àquilo que teria sido o mais óbvio e consentâneo com as regras de experiência e senso comum, que era ter ponderado este depoimento, por tão elucidativo, quer do estado grave e irreversível da úlcera de pressão sofrida pela vítima, quer para contextualizar em conjugação com algumas afirmações proferidas pela própria arguida, que aquela úlcera progrediu até a um estádio de grau IV porque não foram prestados os necessários cuidados de alimentação e mudança de posicionamento frequente da vítima, para evitar essa progressão e que aquele estado de desenvolvimento de tecidos necrosados e exposição óssea durou tempo, já que foi a própria quem declarou que passaram entre dois a três meses entre a constatação da ferida e a condução da ofendida ao Hospital para receber tratamento adequado à mesma.
Mais arbitrária ainda se revela a desconsideração dos depoimentos das testemunhas e M…, respectivamente, filha e nora da vítima que prestaram depoimentos esclarecedores do estado de saúde de MAR______ e de toda a sucessão de eventos desde o dia 24 de Agosto de 2018, até à morte desta senhora, em 14 de Setembro de 2018, com a explicação de que «nenhuma destas testemunhas é capaz de nos responder às perguntas que verdadeiramente importam: como veio a ocorrer aquela úlcera de pressão, que cuidados deveriam ter sido ministrados e se foi a conduta da arguida que provocou tanto a úlcera como a sua degeneração até aquele grau. No limite, e de forma até contraintuitiva, as familiares da ofendida vêm atestar da qualidade do serviço prestado pela arguida à ofendida, sendo que, ao visitarem a ofendida todas as semanas, nunca se depararam com nenhum problema, inclusive de desnutrição ou desidratação».
Ora este conjunto de afirmações exaradas na motivação da decisão de facto revela que, contra tudo quanto foi dito e esclarecido pelas duas testemunhas em apreço e até de forma coincidente com a versão dos factos apresentada pela arguida, o Tribunal ignorou que a arguida começou por ocultar a estas duas testemunhas e a toda a família que a ofendida já havia estado internada no Hospital Fernando Fonseca EPE nos dias 24 e 25 de Agosto de 2018, que a arguida sempre ocultou até quando lhe foi possível que a ofendida tinha uma úlcera por pressão na zona sacro desde dois a três meses antes daquele dia 24 de Agosto de 2018 e reconheceu que nunca lhe prestou a assistência necessária pois nem tinha enfermeiros a trabalhar ao seu serviço, nem conhecimentos de enfermagem para o efeito e também nunca antes do dia 24 de Agosto de 2018 lhe ocorreu conduzir a vítima ao Hospital para receber o tratamento médico adequado, como ela própria respondeu a perguntas da Mma. Juíza, sendo certo que a família só veio a saber da existência da úlcera no segundo internamento ocorrido em 28 de Agosto de 2018 e, ainda assim, porque tal foi noticiado pelo médico que observou e
assistiu a ofendida. 
Do mesmo modo não se compreende a dúvida acerca do que possa ter causado a úlcera de pressão de grau IV e o estado de desidratação e desnutrição, seja à luz dos conhecimentos de cultura geral que a medicina e a observação empírica revelam, pois que é consabido que as úlceras de pressão, ou escaras, são um problema de saúde pública e um indicador da qualidade dos cuidados prestados, que assola sobretudo a população mais idosa e mais propensa, por fragilidades de saúde, a longos períodos de acamamento ou imobilização, bem como a desidratação e a desnutrição, sobretudo, ao ponto de ser mencionado no Diário Clínico elaborado pelo médico de medicina geral que a observou no dia 28 de Agosto de 2018 «Prostrada reactiva aos estímulos dolorosos. Não colaborante e não emite discurso. Deficiente estado geral e nutricional. Rigidez dos membros superiores e inferiores. Eupneica. Pele e mucosas desidratadas e descoradas» (fls. 81).  
Desde logo porque o que importa, ao contrário do que foi escrito na motivação da decisão de facto da sentença recorrida nem sequer é saber «como veio a ocorrer aquela úlcera de pressão», mas sim, depois de detectada a mesma e foi detectada entre dois a três meses antes, segundo o que a própria arguida relatou ao tribunal, o que é que a arguida deveria ter feito e não fez.
E a estas duas questões as respostas já estavam dadas pelos factos que a própria Mma. Juíza havia considerado provados e que são os que constam dos pontos 2), 3), 5) e 15) e era a partir deles que podia e devia ter concluído que a degeneração da úlcera até ao grau IV e os estados de desidratação e de desnutrição só à arguida são imputáveis, pois era sob a sua responsabilidade que esta senhora se encontrava e dependente dos cuidados de saúde, alimentação, higiene e bem-estar físico e psicológico, que ela, arguida, estava contratualmente obrigada a prestar-lhe, desde vários meses antes, pois que igualmente se provou que o ingresso de MAR______  no lar/instituição de acolhimento ..., Unipessoal Lda. ocorreu em data não concretamente apurada, mas do ano de 2017.
Assim sendo, por tudo quando fica exposto e atento o preceituado no art. 424º do CPP, impõe-se a alteração da decisão de facto, por forma a incluir na matéria de facto provada a matéria de facto provada, as als. a), c), d), e), f), h), i), j) e l) que na sentença recorrida foram considerados não provados, bem como a introduzir no ponto 2) dos factos provados o ano de 2017.
A decisão da matéria de facto passa, consequentemente, a ser a seguinte:
1) A ofendida, MAR______  tinha 82 anos em Setembro de 2018.
2) A ofendida integrou o lar/instituição de acolhimento “...” Unipessoal, Lda, em data não concretamente apurada do ano de 2017.  
3) Aquela instituição tinha como objecto social a actividade de lar de idosos, apoio geriátrico, centro de dia, apoio domiciliário e prestação de serviços médicos e de enfermagem.
4) Aquele lar, primeiramente, situava-se na Rua … , Ramada, mas em 8 de Março de 2018, mudaram as suas instalações para a Rua … , Queluz.
5) A responsável pelo lar era a arguida, SMGA_____  
6) No dia 25 de Agosto de 2018 a arguida comunicou à família da ofendida que esta se ia deslocar ao Hospital para fazer uma T.A.C., quando, na verdade, a ofendida tinha dado entrada nas urgências daquele hospital, pelas 19:15 do dia 24 de Agosto de 2018.
7) No entanto, a ofendida apenas saiu daquele hospital no dia 26 de Agosto de 2018, pelas 00:06.
8) Quando a ofendida deu entrada no Hospital Amadora-Sintra, no dia 24 de Agosto, apresentava-se prostrada, com saída de urina com cheiro fétido, bem com apresentava uma úlcera de pressão de categoria IV, com tecido necrosado e desvitalizado, com cheiro fétido, apresentava um penso repassado e exsudado purulento em abundante quantidade.
9) Nesse dia 24 de agosto de 2018, a ofendida apenas reagia a estímulos dolorosos, estava apirética e algaliada com ch14.
10) No dia 26 de agosto de 2018 a ofendida encontrava-se no aludido lar, apresentando nódoas negras na zona dos calcanhares.
11) O estado de saúde da ofendida agravou-se, tendo regressado ao Hospital Doutor Fernando da Fonseca, no dia 28 de Agosto de 2018, pelas 15:53, onde se apurou que a ofendida mantinha uma úlcera exsudado seroso e fétido e tecido necrosado.
12) Foi determinado o internamento da ofendida por apresentar provável infecção urinária, ulcera de pressão na região sagrada e hipernatremia e desidratação. Foi determinado o internamento da ofendida
13) Iniciou-se tratamento, por antibiótico, à ofendida, por provável infecção cutânea da úlcera de pressão sagrada.
14) À data da alta clínica, que ocorreu no dia 5 de Setembro de 2018, a ofendida apresentava úlcera na região sagrada, com cerca de 5x8cms de diâmetro e 3cms de profundidade, com tecido desvitalizado no bordo externo, mas sem exsudado purulento e sem eritema peri lesional e úlcera de decúbito superficial na região do ombro esquerdo, com cerca de 1 cm de diâmetro, sem exsudado e sem eritema.
15) Para tratamento daquelas úlceras, no hospital sugeriu-se mudança de pensos em dias alternados, posicionamentos alternados e colchão anti-escaras.
16) A ofendida encontrava-se desnutrida.
17) À arguida, no exercício da sua actividade laboral e enquanto responsável daquele lar, cabiam, entre outras, as seguintes funções, que devia desempenhar diariamente e ainda sempre que fosse necessário: administrar a medicação prescrita aos utentes do lar aí internados; lava-los; mudar-lhes as fraldas (caso as usassem); mudar pensos, adesivos e efectuar curativos em feridas; alimentar (à colher ou através de sonda) os doentes que não conseguissem, devido às doenças, alimentar-se sem ajuda; mudar os lençóis; escrever no livro “notas do enfermeiro”, todas as informações relativas a cada doente; informar os médicos e os enfermeiros de qualquer alteração do estado de saúde dos utentes e ainda prestar assistência, em caso de emergência, aos doentes que dela necessitassem, pessoalmente ou chamando o médico de serviço, quando necessário.
18) Apesar de aquele lar necessitar de preencher determinados requisitos, para poder prestar o serviço que havia sido contratado pela ofendida, apurou-se, após inspecção feita pela segurança social, que aquele lar não tinha licença de funcionamento, não tinha pessoal suficiente para o seu funcionamento, bem como não tinha profissionais qualificados para a prestação de cuidados médicos.
19) Quando a arguida aceitou a admissão da ofendida naquele lar, tinha conhecimento do estado clínico da ofendida e sabia que esta necessitava da administração de diversos medicamentos, da prestação de cuidados de enfermagem e de higiene, bem como alimentação da ofendida.
20) A arguida, como responsável daquele lar, conhecendo a situação da ofendida, não lhe prestou os cuidados devidos, nomeadamente, não adequou a alimentação à situação clínica da ofendida, não chamou o médico/enfermeiro para mudar o penso da úlcera, que a ofendida tinha, deixando assim agravar aquele ferimento.
21) A arguida agiu sabendo que iria provocar danos físicos e psicológicos à ofendida, como consequência necessária das suas condutas.
22) Ao recusar a prestar aqueles cuidados de saúde, sabia que punha em perigo a saúde, a integridade física e mesmo a vida da ofendida, bem sabia que causava nesta desespero, intranquilidade e receio pela sua segurança e bem estar.
23) A arguida agiu com desrespeito pela condição e dignidade humana da ofendida, não lhe aliviando a dor, recusando-se a prestar-lhe a assistência para a qual estava perfeitamente apta a realizar.
24) Mais sabia que as suas condutas eram punidas e proibidas por lei.
25) A ofendida veio a falecer no dia 14 de Setembro de 2018, pelas 11:45, na residência sita na Rua …, Amadora.
26) A arguida tem um filho de vinte anos.
27) A arguida abandonou o ensino escolar aos dezassete anos, quando frequentava o oitavo ano de escolaridade.
28) A arguida trabalhou como empregada fabril, na área das limpezas e como empregada de balcão.
29) A arguida iniciou a actividade de constituir um lar de idosos em 2009/2010.
30) A arguida trabalha como auxiliar num lar de idosos auferindo mensalmente a quantia de €750,00.
31) A arguida não tem antecedentes criminais.
Factos não provados:
Que, no dia 26 de Agosto de 2028, a ofendida apresentasse nódoas negras nos pulsos.
Quanto ao erro de direito referente ao enquadramento jurídico-penal dos factos como crime de maus tratos.
O artigo 152º-A do Código Penal, sob a epígrafe «maus tratos», pune com uma pena de prisão cujos limites mínimo e máximo são, respectivamente, um e cinco anos «quem, tendo ao seu cuidado, à sua guarda, sob a responsabilidade da sua direcção ou educação, ou a trabalhar ao seu serviço, pessoa menor ou particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez: a) lhe infligir, de modo reiterado ou não, maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais, ou a tratar cruelmente; b) a empregar em actividades perigosas, desumanas ou proibidas; ou c) a sobrecarregar com trabalhos excessivos.
Esta incriminação resulta da autonomização do crime de violência doméstica relativamente ao de maus tratos que constava antes da revisão do CP de 2007 do art. 152º Código Penal, segundo a redacção que lhe foi introduzida pelo D. L. 48/95, de 15.03., entretanto, modificada pelas Leis 65/98, de 02.09, e 7/2000, de 27.05, o qual tutelava diferentes formas de violência no seio da família, da educação e do trabalho.
«Ainda em sede de crimes contra a integridade física, os maus tratos, a violência doméstica e a infracção de regras de segurança passam a ser tipificados em preceitos distintos, em homenagem às variações de bem jurídico protegido. Na descrição típica da violência doméstica e dos maus tratos, recorre-se, em alternativa, às ideias de reiteração e intensidade, para esclarecer que não é imprescindível uma continuação criminosa» (ponto 8. Da exposição de motivos inserta na Proposta de Lei n.º 98/X, Anteprojecto da Lei 59/2007, de 4 de Setembro, que procedeu a tal tipificação autonomizada).  
Ainda que o bem jurídico saúde coincida com o tutelado pelo crime de ofensa à integridade física, na medida em que «em causa estará então em ambos os casos, no essencial, a proteção de um estado de completo bem-estar físico e mental.» (Nuno Brandão, A tutela penal especial reforçada da violência doméstica, Revista Julgar nº12 (especial), ASJP, Lisboa, Set.- Dez. 2010, p. 13 e ss.), trata-se de assegurar a integridade da saúde física e mental de pessoas mais vulneráveis, o seu bem-estar físico, psíquico e emocional (A. Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, p. 299; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2ª edição, artigos 152º e 152ºA, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2010, p. 438 e Paula Ribeiro de Faria Comentário Conimbricense do Código Penal, Volume II, 2ª ed., artigo 143º, Coimbra Editora, Coimbra, 2012, p. 299; Gomes Canotilho e Viral Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, artigo 25º, 4ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 453).
Por isso, o bem jurídico protegido é a saúde entendida como um bem jurídico complexo suficientemente amplo e nas suas múltiplas dimensões para se identificar com a integridade do ser humano, em todas as suas componentes física, psíquica, mental e moral a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual e a honra, nos mesmos termos em que se encontra protegida no art. 25º da CRP.
Tal como acentuado, na exposição de motivos inserta na Proposta de Lei n.º 98/X, Anteprojecto da Lei 59/2007, de 4 de Setembro, do qual resultou este art. 152º A do CP, a razão de ser desta incriminação é o fortalecimento da defesa dos bens jurídicos visados com a incriminação, especialmente, «o reforço da tutela de pessoas particularmente indefesas».
O referido preceito visa, pois, a prevenção, combate e repressão de frequentes e quase sempre subtis formas de violência física, psíquica e sexual dirigidas contra pessoas com menor capacidade de reacção ou defesa, tidas como mais frágeis ou vulneráveis a partir de certos índices, como a idade, doença, ou condição física ou psíquica ou gravidez e quando envolvidas num contexto relacional muito específico com o agressor: trata-se de relações de poderes/deveres de cuidado, de guarda, de direção ou educação, ou de natureza laboral que criam, pela sua própria existência, um certo ascendente natural ou posição mais privilegiada ou preponderante do agressor em relação ao agredido.
O vínculo de dependência existencial da vítima em relação ao autor do crime já não se funda na coabitação, nas relações familiares ou de namoro e afins como na violência doméstica, mas numa ligação institucional: o art. 152ºA, «(…) tem por objeto os maus tratos praticados nas escolas, hospitais, nas creches ou infantários, em lares de idosos ou instituições ou famílias de acolhimento de crianças, bem como os maus tratos cometidos na própria casa de habitação (por exemplo contra a empregada doméstica ou “baby-sitter”) ou na empresa, não deixando de fora, ainda e por exemplo, as pessoas que assumam, espontânea e gratuitamente, o encargo de tomar conta de “pessoas particularmente indefesas”, nomeadamente crianças, idosos, doentes ou pessoas com deficiência» (Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Volume II, artigos 152º e 152ºA, Coimbra Editora, Coimbra, 2012, p. 536).
É, aliás, essencialmente, neste vínculo que o crime de maus tratos se distingue do de violência doméstica.
Assim, vítima ou sujeito passivo só pode ser uma pessoa que, simultaneamente, preencha dois requisitos positivos - o de que se encontre em relação de subordinação existencial ou laboral com o agente, ou seja que a vítima esteja ao cuidado, à guarda ou sob a responsabilidade da direção ou educação do agente ou a trabalhar ao seu serviço; o de que seja menor ou particularmente indefesa em razão da idade (avançada), de deficiência, da doença ou da gravidez - e um outro negativo - o de que não exista entre o agente e a vítima uma relação de coabitação -, pois nesse caso estará em causa um crime de violência doméstica, nos termos da al. d) do nº1 do art. 152º.
Os modos de acção típica são muito diversificados em sintonia com a amplitude e complexidade do bem jurídico, estando enumerados exemplificativamente os comportamentos susceptíveis de qualificação como maus tratos físicos ou psíquicos, ao invés de uma enumeração taxativa, que não esgotaria todo o espectro de actos potencialmente lesivos do bem jurídico visado proteger com a incriminação do art. 152º A do CP.
O crime consuma-se tanto com as condutas integradoras de ofensas à integridade física simples (os maus tratos físicos), ou seja todas as agressões que envolvam alguma perturbação no corpo e saúde da vítima, como com os maus tratos psíquicos, incluindo humilhações, provocações, quer estas se reconduzam ou não a actos, gestos, palavras, expressões, escritos, etc., englobando quaisquer comportamentos que ofendam a integridade moral ou o sentimento de dignidade da vítima, como as injúrias, humilhações, ameaças e outros e compreendem, a par das estratégias e condutas de controlo, o abuso verbal e emocional puníveis, em si mesmas, ou não, como crimes de injúria e difamação, de ameaça ou de coacção. 
Como exemplos de maus tratos psíquicos são, normalmente, indicados os «insultos, as críticas e comentários destrutivos, achincalhantes ou vexatórios, a sujeição a situações de humilhação, as ameaças, as privações injustificadas de comida, de medicamentos ou de bens e serviços de primeira necessidade, as restrições arbitrárias à entrada e saída da habitação ou de partes da habitação comum, as privações da liberdade, as perseguições, as esperas inopinadas e não consentidas, os telefonemas a desoras», entre outros (Nuno Brandão, A tutela penal especial reforçada da violência doméstica, Revista Julgar nº12 (especial), ASJP, Lisboa, Set.- Dez. 2010, p. 19. No mesmo sentido, Fernando Silva, Direito Penal Especial: Os crimes contra as pessoas: crimes contra a vida, crimes contra a vida intra-uterina, crimes contra a integridade física, Quis Juris, Lisboa, 2011, p. 315 e Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2ª edição, artigos 152º e 152ºA, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2010, p. 465).
As privações da liberdade consistem em comportamentos destinados a impedir a deslocação da vítima, forçando-a a permanecer num determinado local, comprometendo, assim, o seu bem-estar e a sua liberdade de decisão quanto a deslocar-se de um local para outro ou de permanecer num determinado espaço, quer preencha, quer não crimes de rapto ou de sequestro.
As ofensas sexuais reportam-se às condutas sexuais punidas por tipos de crime autónomos no âmbito do Capítulo V do CP, cujas penas não ultrapassem a dos crimes em causa, ou seja, cinco anos, senão, aplicar-se-á o tipo legal mais grave, por força da cláusula de subsidiariedade expressa contida na parte final do art. 152º A nº1. 
O crime de maus tratos proíbe também o tratamento cruel, que não se traduz, necessariamente, na imposição de lesões físicas, mas pode incluir outros tipos de comportamentos que impliquem um desgaste constante na vítima, devendo caracterizar-se pela sua adequação à inflição de sofrimento físico ou psicológico com uma certa tónica de reiteração ou permanência. 
Este tipo proíbe ainda a sujeição a actividades desumanas, perigosas ou proibidas, que assim deverão ser qualificadas por referência às características e fragilidades específicas de cada vítima que, respectivamente, as humilhem ou degradem, ou com utilização de meios particularmente perigosos, ou na colocação da vítima em situações, também elas, especialmente perigosas, ou que correspondam à prática de factos ilícitos.
Por fim, entre as modalidades de maus tratos também se contam os trabalhos excessivos. A excessividade dos maus tratos afere-se também atendendo às características da vítima e ao tipo de trabalhos concretamente impostos. 
Segundo o critério do resultado material, tanto podem ser classificados como crimes de resultado – quando a execução típica se traduz em maus tratos físicos ou em privações da liberdade - como de mera actividade – no caso de a conduta integradora do tipo constituir provocações, ameaças ou o emprego em actividades perigosas, desumanas ou proibidas - sendo que, nos primeiros o resultado é elemento do tipo de crime e nos segundos, apenas constitui motivo da incriminação.
De acordo com o critério da intensidade da lesão do bem jurídico, estes crimes também podem ser crimes de dano, por exemplo no caso de ofensas sexuais ou corporais e das privações de liberdade, ou crimes de perigo, nas situações em que ocorram ameaças ou humilhações ou o emprego em actividades perigosas. Nos primeiros, a efectiva lesão do bem jurídico é elemento do tipo legal, enquanto nos segundos o tipo legal apenas exige a colocação em perigo do bem jurídico.
Trata-se de um crime específico que será impróprio quando as condutas integradoras do crime de maus tratos, isolada e autonomamente consideradas, já constituam crime (v.g. os maus tratos físicos que traduzirão sempre ofensas à integridade física e certas modalidades de maus tratos psíquicos reconduzem-se aos crimes de injúria, ameaça, difamação, coacção sequestro), na medida em a qualidade do autor do facto ou o dever que sobre ele impende, não servem para fundamentar a responsabilidade, mas unicamente para a agravar. 
Se as condutas não configurarem, em si mesmas consideradas, qualquer outro ilícito penal, como tal previsto na parte especial do CP, o crime de maus tratos será, então, um crime específico próprio pois, nestes casos, como quando se submete a vítima a actividades perigosas, a trabalhos excessivos, a certas formas de crueldade, é a qualidade do agente que constituí o motivo da incriminação (neste sentido, Ricardo Bragança de Matos, Dos Maus Tratos a Cônjuge à Violência Doméstica: Um Passo na Tutela da Vítima, RMP, ano 27, Julho-Setembro 2006, nº 107, pág. 97 e Augusto Silva Dias, Materiais para o estudo da Parte Especial do Direito Penal, Crimes Contra a Vida e a Integridade Física, 2ª edição, AAFDL, 2007, pág. 111; Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2ª edição, artigos 152º e 152ºA, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2010, p. 469 e Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Volume II, artigos 152º e 152ºA, Coimbra Editora, Coimbra, 2012p. 513 e 535).
No que especificamente concerne aos idosos, a Organização Mundial de Saúde define maus tratos como um acto único ou repetido, ou ainda, ausência de acção apropriada que cause dano, sofrimento ou angústia e que ocorra no contexto e desenvolvimento de um relacionamento de confiança que atenta contra a sua vida, ou é lesiva da sua integridade física ou psíquica, da sua liberdade, segurança económica ou compromete o desenvolvimento da sua personalidade (Action on Elder Abuse (AEA, 1993) e adotada pela Organização Mundial de Saúde - WHO/INPEA. Missing voices: views of older persons on elder abuse. Geneva: WHO; 2002, https://apps.who.int/iris/handle/10665/67371)
Assim, dentro destes limites e com estas características, podem enumerar-se como formas de maus tratos a idosos: qualquer forma de agressão física (espancamentos, golpes, queimaduras, fracturas, administração abusiva de fármacos ou tóxicos, relações sexuais forçadas, que se reconduzem à modalidade maus tratos físicos; os maus-tratos psicológicos ou emocionais, materializam-se em condutas que causam dano psicológico como manipulação, ameaças, humilhações, chantagem afectiva, desprezo ou privação do poder de decisão, negação do afecto, isolamento e marginalização; a negligência traduzida em não satisfazer as necessidades básicas (negação de alimentos, cuidados higiénicos, habitação, segurança e cuidados médicos) que se reconduz a tratamento cruel, assim como condutas de abuso económico, como seja, impedir o uso e controlo do próprio dinheiro, exploração financeira e chantagem económica, ou permitir a exposição incontrolada a formas de auto-negligência resultantes da incapacidade de um indivíduo desempenhar tarefas de cuidado consigo próprio indispensáveis à sua sobrevivência e à satisfação de necessidades essenciais do quotidiano (cfr., Hirsch CH, Stratton S, Loewy R., The primary care of elder mistreatment. WEST J MED 1999 Jun; 170 (6): 353-8; Fernández-Alonso MC, Herrero-Velázquez S. Maltrato en el anciano: posibilidades de intervención desde la atención primaria (I). Aten Primaria 2006 Ene; 37 (1):56-9; Howard M. Fillit, Kenneth Rockwood, John B Young, Brocklehurst's Textbook of Geriatric Medicine and Gerontology E-Book pp 943 e 944 https://www.us.elsevierhealth.com/ e Briony Dow e Melanie Joosten Entendendo o abuso de idosos: uma perspectiva de direitos sociais, Janeiro de 2012, Psicogeriatria Internacional 24(6): 853-5 DOI: 10.1017/S1041610211002584 https://www.cambridge.org/core).
Em princípio, a estrutura objectiva do tipo implica a reiteração pois que a lesão do bem jurídico complexo saúde envolverá uma pluralidade de condutas da mesma ou de diferentes espécies repetidas por um período mais ou menos prolongado, embora com a expressão de «modo reiterado ou não» se admita que certas condutas isoladas, desde que dotadas de gravidade bastante, podem também operar a consumação dos maus tratos.
A imputação subjectiva do tipo, pese embora, as diferentes modalidades que pode revestir (crime de resultado, quando a forma de acção típica são os maus tratos físicos; crime de mera actividade, quando a modalidade de execução do tipo se reconduz à imposição de trabalhos excessivos; crime de dano, quando dos maus tratos físicos resultam lesões corporais; crime de perigo, nas formas de execução previstas nas als. b) e c) do nº 1 do art. 152º A), tem o seu fundamento exclusivo no dolo em qualquer das suas modalidades que, justamente, por causa, das diferentes formas que a consumação do crime de maus tratos pode revestir, tem conteúdo variável.
Implica, desde logo, sempre, o conhecimento da existência dos deveres inerentes, à assunção da relação laboral, ou do vínculo de protecção-subordinação, do estado de menoridade, deficiência, velhice, doença ou gravidez da vítima.
Na vertente de maus tratos físicos, o dolo abrange o resultado, qual seja, a consciência e a vontade de causar a lesão da integridade física da vítima e, nos restantes casos, implica a consciência e vontade de criar o risco de lesão da saúde da pessoa do ofendido ou do perigo de afectação do normal desenvolvimento da criança aos cuidados do agente ou de criação de prejuízos para a saúde da vítima.
O art. 10º do CP equipara, em geral, a omissão à acção, nos crimes de resultado, estabelecendo que, quando um tipo legal de crime compreender um certo resultado, o facto abrange não só a acção adequada a produzi-lo como também a omissão adequada a evitá-lo. São os crimes comissivos por omissão imprópria, porque o evento antijurídico pertinente à consumação do crime, segundo a sua descrição típica, resulta do incumprimento do dever jurídico de evitar esse resultado, nisso se distinguindo dos crimes omissivos puros que se caracterizam pela simples abstenção de agir e são crimes de mera actividade.
A punibilidade do omitente depende da existência de um específico dever jurídico que o obrigue a agir, para evitar o resultado. Só há equivalência entre o desvalor da acção e o desvalor da omissão, porque o agente tem uma posição de garante da não produção do resultado, à luz de um dever jurídico de agir que constituí o fundamento da punição e sem o qual a punibilidade da omissão constituiria uma intromissão intolerável na esfera privada de cada um. 
O facto típico materializa-se na «criação de um risco de verificação de um resultado típico» que existirá sempre que esse perigo se verifica ou é intensificado por efeito da omissão, traduzida na ausência da acção esperada e exigível por referência àquilo que segundo a descrição típica é necessário para obstar à verificação do resultado previsto no tipo legal e desde que o omitente esteja em condições de poder levar a cabo a acção devida ou necessária a evitar o resultado (Figueiredo Dias, Dto Penal, Parte Geral, I, Coimbra editora 2ª ed., págs. 927 e 928).
O dever jurídico de garante da não ocorrência do resultado antijurídico pode resultar directamente da Lei (dever legal especial), de um contrato, de situações de criação de perigo e/ou relações familiares íntimas de solidariedade e confiança que importem a aceitação de facto de deveres cuja execução importe ingerência/apoio entre o omitente e o titular do bem jurídico que suporte o dever de agir, numa posição de protecção ou de uma posição de controlo (Johannes Wessels, Direito Penal, Parte Geral 1976, pág. 157 e ss; Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, II, verbo, pág. 49 e ss; Pinto de Albuquerque Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2ª edição, artigo 10º, p. 72-73).
Analisados todos os elementos do tipo de crime de maus tratos, importa verificar se os factos demonstrados preenchem este tipo legal de crime.
A primeira constatação a fazer é a de que entre a arguida e a ofendida existia uma relação contratual nos termos da qual, a primeira se obrigou, mediante uma contrapartida monetária, a prestar todos os cuidados de saúde, alimentação, higiene, vestuário, medicação e tudo o mais necessário à satisfação das necessidades quotidianas da segunda que data não apurada de 2017, quando tinha 80 anos, ingressou no lar/instituição de acolhimento ...-Unipessoal, Lda., cujo objecto social era a actividade de lar de idosos, apoio geriátrico, centro de dia, apoio domiciliário e prestação de serviços médicos e de enfermagem e por cuja gestão a arguida, SMGA_____ era a única responsável.
Como demonstrado no antigo ponto 15) e actual 17),  da matéria de facto provada, no exercício da sua actividade laboral e enquanto responsável daquele lar, a arguida tinha a seu cargo, entre outras, as seguintes funções, que devia desempenhar diariamente e ainda sempre que fosse necessário: administrar a medicação prescrita aos utentes do lar aí internados; lava-los; mudar-lhes as fraldas (caso as usassem); mudar pensos, adesivos e efectuar curativos em feridas; alimentar (à colher ou através de sonda) os doentes que não conseguissem, devido às doenças, alimentar-se sem ajuda; mudar os lençóis; escrever no livro “notas do enfermeiro”, todas as informações relativas a cada doente; informar os médicos e os enfermeiros de qualquer alteração do estado de saúde dos utentes e ainda prestar assistência, em caso de emergência, aos doentes que dela necessitassem, pessoalmente ou chamando o médico de serviço, quando necessário.
Está assim configurada a sua posição de garante da saúde física, mental, psíquica e bem-estar emocional da ofendida MAR______  e, além dela, também o especial contexto relacional de confiança e de apoio à satisfação das necessidades a que a arguida estava contratualmente obrigada e a situação de vulnerabilidade e dependência fruto da idade avançada da vítima, que integra o nº 1 do art. 152º A do CP.
Os factos provados sob os pontos 8) a 16) nenhuma dúvida oferecem que a arguida podendo e devendo assegurar a alimentação e assistência médica e de enfermagem adequadas ao seu estado clínico, por falta de cuidados e de assistência quer na alimentação quer nos cuidados de saúde, que podia e devia ter prestado, mas omitiu, foi a responsável pelo agravamento da úlcera de pressão e pelo estado de desnutrição e desidratação em que MAR______  se encontrava, quando deu entrada pela primeira vez, no Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca EPE, em 24 de Agosto de 2018.
Na medida em que, como descrito nos pontos 19) a 24, agiu com dolo, na modalidade de dolo necessário, ao actuar conforme referido, deve ser condenada pela prática do crime de maus tratos de que vem acusada.
E nesta sequência e em cumprimento do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2016, segundo o qual, «em julgamento de recurso interposto de decisão absolutória da 1.ª instância, se a Relação concluir pela condenação do arguido deve proceder à determinação da espécie e medida da pena, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374.º, n.º 3, alínea b), 368.º, 369.º, 371.º, 379.º, n.º 1, alíneas a) e c), primeiro segmento, 424.º, n.º 2, e 425.º, n.º 4, todos do Código de Processo Penal.» (Diário da República n.º 36/2016, Série I de 2016-02-22), impõe-se proceder à escolha e determinação concreta da pena, dentro da moldura abstracta prevista para o crime de maus tratos, p. e p. pelo art. 152º A nº 1 do CP – pena de prisão cujos limites mínimo e máximo são um ano e cinco anos.
Nos termos do art. 40º nº 1 do CP, é função da pena, salvaguardar a reposição e a integridade dos bens jurídicos violados com a prática dos crimes e, na medida do possível, assegurar a reintegração do agente na sociedade, consagrando a prevenção geral e a prevenção especial como fundamentos legitimadores da aplicação das penas e acrescentando, no seu nº 2, que, em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.
Este art. 40º veio, pois, concretizar no âmbito do Direito Penal e em matéria de escolha e dosimetria das penas, os princípios constitucionais da necessidade e da proporcionalidade ou da proibição do excesso, consagrados no artigo 18º nº 2 da CRP.
Por seu turno, o art. 71º nº 1 do CP impõe que a determinação da pena seja realizada em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
Com efeito, «o ponto de partida da determinação judicial das penas é a determinação dos seus fins, pois, só partindo dos fins das penas, claramente definidos, se pode julgar que factos são importantes e como se devem valorar no caso concreto para a fixação da pena» (Hans Heinrich Jescheck, in Tratado de Derecho Penal, Parte General, II, pág. 1194).
«A protecção de bens jurídicos implica a utilização da pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos (prevenção geral negativa), incentivar a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos (prevenção geral positiva). A protecção de bens jurídicos significa ainda prevenção especial como dissuasão do próprio delinquente potencial» (Fernanda Palma, As Alterações Reformadoras da Parte Geral do Código Penal na Revisão de 1995: Desmantelamento, Reforço e Paralisia da Sociedade Punitiva, nas Jornadas sobre a Revisão do Código Penal, 1998, AAFDL, pág. 25).
A culpa não é, pois, o fundamento da pena, antes constituindo, a um tempo, o seu suporte axiológico-normativo, não havendo pena sem culpa – nulla poena sine culpa – e também o limite que a pena nunca poderá exceder.
E é a culpa apreciada em concreto, de acordo com a teoria da margem da liberdade, segundo a qual os limites mínimo e máximo da sanção são ajustados à culpa, conjugada com os fins de prevenção geral e especial das penas.
Assim, em primeiro lugar, a medida da pena será fornecida pela medida de necessidade de tutela de bens jurídicos (exigências de prevenção geral positiva).
De seguida, dentro desta moldura, a medida concreta da pena será doseada por referência às exigências de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais.
Por fim, a culpa fornece o limite máximo e inultrapassável da pena.  
«A culpa do infractor apenas desempenha o (importante) papel de pressuposto (conditio sine qua non) e de limite máximo da pena a aplicar por maiores que sejam as exigências sociais de prevenção» (Américo Taipa de Carvalho, em Prevenção, Culpa e Pena, in Liber Discipulorum para Jorge Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, pág. 322). 
Culpa e prevenção são, por conseguinte, os dois limites a observar no processo de escolha e determinação concreta da medida da pena e prosseguindo a necessidade de assegurar este equilíbrio, entre a medida óptima da tutela dos bens jurídicos e das expectativas da comunidade e a medida concreta da pena abaixo da qual «já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar» (cf. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 229).
O art. 71º do Código Penal enumera as circunstâncias que contribuem para agravar ou atenuar a responsabilidade, a que o Tribunal deverá atender, para tal efeito.
Dispõe este preceito, no nº 1, que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
O nº 2 do mesmo artigo enumera, a título exemplificativo, algumas das circunstâncias, agravantes e atenuantes, a atender, dispondo o nº 3, que na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena, em correspondência com o artigo 375º nº 1 do CPP, que impõe que a sentença condenatória especifique os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada.
Nessa enumeração exemplificativa vislumbram-se critérios, tanto associados à prevenção geral, como é o caso da natureza e do grau de ilicitude do facto (que impõem maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como relacionados com exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente.
Com efeito, esses critérios referem-se, uns, à execução do facto – als. a), b), c) e e), parte final, como é o caso do grau de ilicitude do facto, do modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; a intensidade do dolo ou da negligência e os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; outros, à personalidade do agente, como sejam as suas condições de vida e a sua preparação ou falta dela, para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena – als. d) e f) – e, outros, ainda, à conduta anterior e posterior ao facto – al. e) - especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime.
Mas estas circunstâncias a que se refere o mencionado nº 2 do art. 71º, são aquelas que não integram os elementos constitutivos do tipo, sob pena de violação do princípio do «ne bis in idem».
No entanto, tais circunstâncias, na parte em que a sua intensidade concreta ultrapasse os limites necessários que a lei considera no tipo incriminador para a determinação da moldura penal abstracta, devem ser consideradas na fixação concreta dessa moldura.
Estas circunstâncias devem ser, ainda, valoradas de acordo com a teoria da margem da liberdade.
Quanto às circunstâncias agravantes a ponderar, importa salientar que, pese embora, no que concerne ao grau de culpa da arguida, a intensidade dolosa, na modalidade de dolo necessário se trata do tipo de dolo intermédio entre as modalidades enunciadas no art. 14º do Código Penal, o grau de violação dos deveres impostos tem sentido marcadamente agravante, atenta a situação de especial vulnerabilidade da vítima e a relação contratual ao abrigo da qual a arguida assumiu a obrigação de prestar todos os cuidados necessários não só à sobrevivência e satisfação das necessidades básicas, mas à manutenção da sua dignidade inerente à sua condição humana e às especiais necessidades decorrentes da sua avançada idade.
Vir dizer, como fez a arguida em audiência, para tentar explicar o inexplicável, que as mensalidades pagas pelos idosos eram baixas e por vezes não pagavam, quando tinha total soberania para determinar o montante da contrapartida monetária que pretendia receber, pois foi ela quem começou por se dedicar de forma livre e voluntária a uma actividade lucrativa, e em cujo contexto desconsiderou de forma absolutamente censurável o cuidado e a protecção que deveria dispensar à ofendida (como a todos os idosos a quem se incumbiu de cuidar) é, no mínimo, desconcertante.
Se não tinha qualquer qualificação científica ou técnica seja em geriatria, em gerontologia ou em cuidados básicos de enfermagem, mas queria, ainda assim, ter um negócio de prestação de serviços de assistência e cuidados de saúde e outros a pessoas idosas, mais concretamente, a actividade de lar de idosos, apoio geriátrico, centro de dia, apoio domiciliário e prestação de serviços médicos e de enfermagem que era o objecto social da empresa ... Unipessoal, Lda. que geria em 2017 e 2018, a arguida tinha de ter criado todas as condições logísticas, físicas, equipamentos adequados,  recursos materiais e humanos, com recrutamento de técnicos especializados para prestar um serviço com padrões mínimos de qualidade e fazer repercutir, então, como em qualquer actividade lucrativa, o investimento realizado, nos montantes das mensalidades que iria cobrar aos utentes.
É preciso não esquecer que as pessoas a quem pretendia servir têm especiais necessidades por efeito da sua idade avançada, problemas de saúde associados, muitas vezes, solidão e desamparo de quem está a viver a recta final da sua vida e nem sempre conta com o afecto e atenção da sua família. São pessoas com carências a vários níveis, porque dependentes de terceiras pessoas, até para as necessidades mais elementares à sua sobrevivência, mas que nem por isso perderam dignidade ou direitos. Por isso mesmo, é que merecem especial atenção, protecção e, acima de tudo, respeito.
Em contextos como aquele em que a ofendida MAR______  se encontrava em 2017 quando ingressou no lar de idosos explorado pela arguida e, infelizmente muitas pessoas idosas como ela, o que menos precisam é de serem expostos a tratamentos cruéis, degradantes, maus tratos físicos, psíquicos, infligidos por quem se responsabiliza por lhes prestar cuidados e assistência, convertendo-se, contra todas as expectativas, em seus agressores, ao invés de as protegerem e lhes assegurarem, ao menos, a satisfação das necessidades de alimentação, higiene e saúde mais básicas que foi o que faltou, no caso vertente, à ofendida.   
Já lhes basta a velhice, a solidão, a doença e as fragilidades associadas à idade avançada com que têm de lidar diariamente. O que deveria merecer solidariedade e compaixão, ao invés do menosprezo a que a arguida votou a ofendida. 
Por isso que o que jamais se pode aceitar como explicação, ou tentativa de explicação para comportamentos tão graves como o que a arguida assumiu perante esta senhora MAR______  é que «fez o que pode» porque as mensalidades pagas pelos utentes eram baixas ou porque nem sempre pagavam a tempo e horas, o que revela um profundo desrespeito por valores tão básicos ao convívio social como o respeito que é devido a todas as pessoas e à sua dignidade humana, independentemente da sua idade, condição física ou psíquica ou recurso económicos.  
Como diz e muito bem o Mº. Pº., no seu recurso, a arguida nem sequer fez o que pôde, pela simples razão de que não fez nada. 
E podia e devia tê-lo feito, até ao abrigo de um simples dever de auxílio, se, mesmo sem ter tido o cuidado de instalar um lar de idosos devidamente apetrechado, em vez de só ter providenciado por assistência médica e de enfermagem à ofendida naquele dia 24 de Agosto de 2018, o tivesse feito, dois ou três meses antes, logo que se apercebeu dos primeiros sinais da ocorrência da úlcera de pressão, segundo o que a própria arguida relatou ao tribunal. 
O mesmo tem de dizer-se do estado de desidratação e desnutrição em que esta senhora se encontrava quando foi assistida no hospital o que revela uma total desconsideração pela satisfação das necessidades mais essenciais à própria sobrevivência da vítima. 
O modo de execução é, aliás, revelador de eficácia e determinação e enorme a ilicitude da conduta, atendendo, quer à natureza dos bens jurídicos tutelados, quer ao facto de a arguida ter praticado as condutas integradoras do ilícito em apreço, durante vários meses, indiferente ao sofrimento físico e muito provavelmente psíquico e emocional que causou a MAR______  quando foi precisamente para o oposto disso que admitiu o ingresso da mesma na instituição de acolhimento para idosos ... Unipessoal, Lda. que geria como uma actividade lucrativa.
Somam-se, com carácter agravante, as exigências de prevenção geral, que são muito fortes, em face da enorme proliferação de crimes de natureza idêntica, pelo alarme social que estes crimes provocam, quer em função dos danos irreversíveis que provocam, de que muitas vezes resulta a morte das vítimas, quer em virtude da censurabilidade dos comportamentos que os integram, também do ponto de vista ético, por atentarem contra valores absolutamente fundamentais de coesão social, de solidariedade e respeito aos mais velhos, de dignificação da sua condição e da sua não discriminação em função da sua idade ou condição física e psíquica, que são valores constitucionais inspiradores dos direitos humanos fundamentais e do Estado de Direito Democrático em que vivemos.
A APAV recebeu mais de 10 mil queixas por crimes e violência contra idosos entre 2013 e 2020, tendo atingido em 2020 o número mais alto de processos abertos, maioritariamente por crimes de violência doméstica.
De acordo com a informação estatística divulgada pela Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), a propósito do Dia Internacional da Pessoa Idosa, dos 10.307 processos abertos nesta série estatística sobre crimes e violência contra idosos, 1814 foram abertos em 2020, o número mais elevado num único ano desde 2013, batendo o máximo do ano anterior (2019), em que foram abertos 1615 processos.
Daqueles 1814 processos, 579 referem-se a maus tratos físicos e 702 a maus tratos psicológicos, o que diz bem da dimensão preocupante deste fenómeno
(https://apav.pt/apav_v3/images/pdf/Estatisticas_APAV_Relatorio_Anual_2020.pdf).
Com carácter abonatório, apenas o facto de a arguida não ter antecedentes criminais, de se dedicar ao trabalho, estando inserida social e familiarmente.
Sopesados todos estes factores, mostra-se adequada a graduação da pena de prisão em dois anos e seis meses.
De acordo com os princípios gerais, consagrados nos art. 18º nº 2 da CRP, da necessidade da pena e da proporcionalidade ou da proibição do excesso, a que o art. 40º do CP deu concretização, constitui princípio fundamental do sistema punitivo do Código Penal, o da preferência fundamentada pela aplicação das penas não privativas da liberdade, consideradas mais eficazes para promover a integração do delinquente na sociedade e dar resposta às necessidades de prevenção geral e especial.
Em diversos preceitos se encontram afloramentos de tal princípio, designadamente, no instituto da suspensão da execução da pena de prisão, previsto no art. 50º.
Nos termos do art. 50º nº 1 do CP, «o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição».
A suspensão da execução da pena constituí uma dessas medidas de conteúdo pedagógico e ressocializante que exige, para além da moldura concreta não superior a cinco anos de prisão, que o Tribunal formule um juízo favorável ao arguido, no sentido de considerar provável que a simples censura da sua conduta e a ameaça da pena são suficientes para que ele não volte a cometer crimes e para satisfazer as exigências de prevenção da criminalidade.
E a ponderação das condições pessoais do arguido, da sua personalidade e conduta anterior e posterior aos factos, bem como as circunstâncias em que estes foram praticados, estão directamente associadas a finalidades de prevenção especial e não quaisquer factores relacionados com o grau de culpa do agente, cuja sede própria de apreciação é a escolha e determinação concreta da pena, constituindo o limite máximo e inultrapassável desta.
A suspensão da execução da pena que, embora efectivamente pronunciada pelo tribunal, não chega a ser cumprida, por se entender que a simples censura do facto e a ameaça da pena bastarão para realizar as finalidades da punição, deverá ter na sua base uma prognose social favorável ao réu, a esperança de que o réu sentirá a sua condenação como uma advertência e que não cometerá no futuro nenhum crime.
«O tribunal deverá correr um risco prudente, uma vez que esperança não é seguramente certeza, mas se tem sérias dúvidas sobre a capacidade do réu para compreender a oportunidade de ressocialização que lhe é oferecida, a prognose deve ser negativa» (LealHenriques e Simas Santos, Código Penal Anotado, em anotação ao art. 50.º). 
Do que se trata é de saber, se mantendo o autor do crime em liberdade, sujeito ou não a injunções e regras de conduta, como condições do não cumprimento efectivo da pena de prisão, destinadas, respectivamente, a reparar o mal do crime e a assegurar a inserção social do condenado, se mostra, em cada caso, adequado e suficiente para que interiorize o carácter ética e juridicamente reprovável da sua conduta e obste a que volte a praticar outros crimes.
«Na base da decisão de suspensão da execução da pena deverá estar uma prognose social favorável ao agente, baseada num risco prudencial. A suspensão da pena funciona como um instituto em que se une o juízo de desvalor ético - social contido na sentença penal com o apelo, fortalecido pela ameaça de executar no futuro a pena, à vontade do condenado em se reintegrar na sociedade» (Jescheck, Tratado, Parte Geral, versão espanhola, volume II, págs. 1152 e 1153).
«Também importa acrescentar que esse juízo de prognose não corresponde a uma certeza, antes a uma esperança fundada de que a socialização em liberdade se consiga realizar. Trata-se pois de uma convicção subjectiva do julgador que não pode deixar de envolver um risco, derivado, para além do mais, dos elementos de facto mais ou menos limitados a que se tem acesso» (Ac. do STJ de 18.06.2015, proc. 270/09.9GBVVD. S1, in http://www.dgsi.pt; no mesmo sentido, Acs. do STJ de 5.07.2012, proc. 373/11.0JELSB.S1-5; de 24.02.2016 proc. 60/13.4PBVLG.P1.S1, na mesma base de dados; Figueiredo Dias, in “Direito Penal
Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, pág. 344; André Lamas Leite, A suspensão da execução da pena privativa de liberdade sob pretexto da revisão de 2007 do
Código Penal, in Stvdia Jurídica, 99, Ad Honorem-5, BFDC, Coimbra Editora, 2009, pág. 629). 
Mas são, sobretudo, razões atinentes à prevenção geral que fundamentam, seja a aplicação, seja a não aplicação deste instituto. 
Com efeito, são as razões de prevenção geral, traduzidas nas exigências mínimas e irrenunciáveis de salvaguarda da crença da sociedade, na manutenção e no reforço da validade da norma incriminadora violada, que determinam a possibilidade de reinserção social em liberdade que inspira o instituto da suspensão da execução da pena.
Mesmo que aconselhada à luz das exigências de socialização do condenado, a suspensão da execução da pena não poderá ter lugar, se a tal se opuserem a tutela dos bens jurídicos violados e as expectativas comunitárias, quanto à capacidade dos mecanismos e das instituições previstos na ordem jurídica para repor a validade e a eficácia das normas que a integram e de as fazerem respeitar.
«Uma tal medida (de suspensão de execução da pena de prisão) em nada pode ser influenciada por considerações, seja de culpa, seja de prevenção especial. 
«Decisivo só pode ser o quantum da pena indispensável para que se não ponham irremediavelmente em causa a crença da comunidade na validade de uma norma e, por essa via, os sentimentos de confiança e de segurança dos cidadãos nas instituições jurídico-penais» (Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial de Notícias, págs. 330/331 e Robalo Cordeiro, A Determinação da Pena, Jornadas de Direito Criminal – Revisão do Código Penal, CEJ, vol. 2.º, pág. 48 Acs. dos STJ de
09.11.2000, in http://www.cidadevirtual.pt/stj/jurisp/bo14crime.html; de 08.05.2003; de 02.10.2003; de 02.03.2006; de 02.05.2006; de 06.07.2006; de 25.10.2007; de 02.04.2008; de
17.04.2008 e de 18.12.2008; de 07.04.2010 in http://www.dgsi.pt).
Numa análise globalizante dos factos, mostra-se que os mesmos se inserem num contexto de vida pessoal da arguida, em que, pese embora a ausência de antecedentes criminais, a inserção familiar e laboral, os mesmos foram praticados no âmbito de uma actividade empresarial que durou cerca de dez anos, as razões de prevenção geral são fortes e a arguida não revelou a menor empatia ou sensibilidade em relação ao sofrimento que causou à vítima, assumiu uma postura de distanciamento perante os factos e de auto desresponsabilização o que coloca algumas reservas quanto à suspensão da execução da pena pura simples e à sua eficácia para fazer com que a arguida interiorize o carácter ilícito e censurável da sua conduta e se abstenha da prática de novos crimes da mesma ou de diferente natureza. Soma-se um factor de risco acrescido que é o de que continua a trabalhar na assistência a idosos, embora agora por conta de outrem. 
Ponderando, em contrapartida, o efeito consabidamente criminógeno das penas de prisão de curta duração, potenciador de reincidência (cfr., nesse sentido, Anabela Rodrigues, A Determinação da Medida Concreta da Pena Privativa de Liberdade e a Escolha da Pena, anotação ao Ac. do STJ de 21 de Março de 1990 (3ª secção – processo nº 40 639), in RPCC ano I, nº 2, Abril – Junho de 1991, p. 255) bem assim e sobretudo, porque, no caso vertente, ainda é possível garantir um “limiar mínimo de prevenção geral de defesa da ordem jurídica”, mantendo a arguida em liberdade, apenas sob a ameaça da pena e materializando a censura do facto na imposição de determinadas regras de conduta e injunções e ainda de sujeição a um plano de reinserção social a suspensão da execução da pena, com regime de prova, nos termos consentidos pelos arts. 51º nº1 al. c); 52º nº 1 al. b), 52º nº 2 als. a), b) e d), 53º e 54º nº 3 do CP, ainda assegura as finalidades de prevenção geral e especial das penas.
Assim, mostram-se adequados e proporcionais, além de outros que venham a integrar o plano individual de reinserção social, os de:
a) Frequentar programa de sensibilização para a problemática dos maus tratos a
pessoas idosas;
b) Não prestar nenhum tipo de cuidados de saúde, higiene, alimentação, vestuário, ou a qualquer outro título, auxílio ou assistência, na satisfação de todas e quaisquer necessidades essenciais à sobrevivência diária a pessoas com idades iguais e/ou superiores a 65 anos, no exercício da sua profissão, ou em qualquer outro contexto, nem acolhê-las formal ou informalmente, seja, na sua residência, ou em qualquer outro local.   
c) Entregar a quantia de € 500,00 (quinhentos euros) à APAV e junta documento
comprovativo desse pagamento aos autos, até ao final do segundo ano de duração da  suspensão da pena.
Quanto ao período de duração da suspensão, o mesmo será fixado em três anos e seis meses.
Na acusação, o Mº. Pº. também pediu a aplicação da pena acessória de proibição do exercício de funções, nos termos previstos no art. 66º nºs 1 e 2 do CP.
É a condenação do agente numa pena principal que constitui o antecedente lógico e essencial da aplicação da pena acessória.
Porém, não é a condição suficiente, porquanto, não sendo a pena acessória um mero efeito da pena principal, nem sua consequência automática, nem uma medida de segurança, porque não se encontra referida apenas a efeitos preventivos, antes surge principalmente associada a uma especial gravidade e/ou censurabilidade do crime, seja pelo particular desvalor das circunstâncias concretas da execução criminosa, seja pela intensificação da culpa, ou pela necessidade de reforço da tutela do bem jurídico ou de protecção da vítima, ou ainda, outros interesses de política criminal, para além dos limites que a pena principal é apta a assegurar, a sua aplicabilidade depende da demonstração de um específico conteúdo de ilícito, de uma culpa especialmente agravada, e/ou de especiais necessidades de protecção da vítima, ou de prevenção geral de intimidação dentro dos limites da culpa que, depois de casuisticamente avaliados, justifiquem materialmente a aplicação em espécie da pena acessória, em reforço e complemento do conteúdo sancionatório e restaurativo ínsito à pena principal.
De resto, o artigo 30º nº 4 da Constituição da República Portuguesa veio precisamente proibir, na sua plenitude, a perda de direitos civis, profissionais ou políticos enquanto efeito necessário das penas, o mesmo sucedendo, no art. 65º nº 1 do CP, revelando um claro propósito do legislador, no sentido de impedir que as penas produzam efeitos inibidores da reintegração social do condenado que não tenham na culpa o seu fundamento e limite.
 As penas acessórias «(…) são, isso sim, verdadeiras penas. Ademais, só são efectivamente aplicadas se a sentença condenatória expressamente as declarar, não resultando, pois, automaticamente, da pena principal e (…) para além disso, devemos entender, actualmente, que a sua finalidade última também não será nunca a da prevenção geral negativa, esta que tanto se associa aos efeitos das penas» (Faria Costa, “Penas acessórias – Cúmulo jurídico ou cúmulo material? [a resposta que a lei (não) dá]”, Revista de Legislação e Jurisprudência, n.º 3945, Ano 136, Julho-Agosto de 2007, Coimbra: Coimbra Editora, pp. 324). 
«A pena acessória é a consequência jurídica do crime aplicável ao agente imputável em cumulação com uma pena principal, mas cuja autonomia se manifesta porque a sua aplicação depende da alegação e prova de pressupostos autónomos, relacionados com a prática do crime a sua aplicação depende da valoração dos critérios gerais de determinação das penas, incluindo a culpa, e a pena é graduada no âmbito de uma moldura autónoma fixada na lei. Daí, a pena acessória nada tem a ver com o efeito da pena, isto é, a consequência automática e necessária do crime aplicável em cumulação com uma pena principal» (Paulo Pinto de Albuquerque “Comentário do Código Penal à Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, 2.ª edição actualizada, Universidade Católica Portuguesa, pág. 256. No mesmo sentido, Figueiredo Dias, 2 “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, 1993, Aequitas, Ed. Notícias, pág. 197; M. Miguez
Garcia, J. M. Castela Rio, “Código Penal Parte geral e especial, com notas e comentários”, p. 406; Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 14/96, publicado no Diário da República nº 275/1996, Série I-A de 27.11.1996, sobre a pena acessória de expulsão de estrangeiros do território nacional; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça Acórdão 2/2018, de 13 de Fevereiro publicado no Diário da República nº 31/2018, Série I, de 13.02.2018, acerca da inibição do direito de conduzir e da possibilidade de realização de cúmulo jurídico entre penas acessórias dessa natureza; Ac. STJ de Fixação de Jurisprudência nº 7/2008 , in DR, I Série de 30-07-2008; Acórdãos do TC n.ºs 149/01, 586/04,
79/09, 53/2011 e 145/2021, in http://www.tribunalconstitucional.pt; Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 17.01.2018, processo n.º 149/17.0PFVNG.P1 e de 10.10.2018, processo n.º 35/18.7PAESP.P1 e acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra, de 04.02.2015, processo n.º 59/14.3GTVIS.C1 e de 28.02.2018, processo n.º 211/17.0GAMIR.C1, todos in http://www.dgsi.pt).
As penas acessórias visam «censurar especialmente o arguido pelo circunstancialismo que envolve o crime cometido, circunstancialismo esse que justifica a privação de certo direito, faculdade ou posição privilegiada de algum modo relacionados com a prática do crime. É precisamente a relação (cuja existência só em concreto pode ser estabelecida) entre o cometimento do crime e o abuso (ou o «mau uso») do direito ou faculdade que a ele se liga que cria o «espaço» onde vive a censura suplementar contida na pena acessória; é também nessa relação que a pena acessória colhe o fundamento material legitimador da sua aplicação ao lado da pena principal». (…) ao passo que as medidas de segurança acessórias «visam reagir – ao lado da aplicação de uma sanção principal (pena ou medida de segurança) – contra a perigosidade manifestada pelo agente na prática de um facto ilícito-típico. Neste caso, a mediação judicial é feita através do juízo de perigosidade criminal» (Pedro Caeiro, em anotação ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29 de Abril de 1992, publicado no Diário da República, I Série-A, n.º 157, de 10.07.1992, Qualificação da Sanção de Inibição da Faculdade de Conduzir Prevista no artigo 61.º, n.º 2, alínea d), do Código da Estrada –
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29 de Abril de 1992, publicado no Diário da República, I Série-A, n.º 157, de 10.07.1992, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 3, 2.º a 4.º, Abril-Dezembro 1993, páginas 543-572).
Do mesmo modo que o princípio da legalidade criminal impede a determinação ex lege da pena concreta a aplicar e envolve, necessariamente, a possibilidade de individualização jurisdicional da sanção penal em conformidade com as circunstâncias concretas de cada caso, dentro de um sistema de penas variáveis, entre um mínimo e um máximo mais ou menos amplo, sob pena de violação dos princípios constitucionais da igualdade, da proporcionalidade (especialmente, nas vertentes da adequação e proibição do excesso) e da culpa em matéria penal e da necessidade da pena (cfr. José Sousa e Brito, "A lei penal na Constituição", Estudos sobre a Constituição, Lisboa, 1978, págs. 199 e segs. e
Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, pág. 192), também as penas acessórias carecem de uma intervenção mediadora do Juiz, na sua aplicação, escolha e determinação concreta, na medida em que apesar de prosseguirem objectivos de política criminal diferentes dos das penas principais e das especificidades do seu regime em atenção a questões como a da inadmissibilidade suspensão da respectiva execução, as penas acessórias estão indissoluvelmente ligadas ao facto praticado e à culpa do agente e são dotadas de uma moldura penal específica, que convoca, pois, os mesmos critérios gerais contidos no art. 71º do CP, para a fixação das penas principais  (Germano Marques da Silva, Crimes Rodoviários, Universidade Católica, p. 28 e Maia Gonçalves, C. Penal Anotado, 15ª ed., p. 237; Tiago Caiado Milheiro, Cúmulo Jurídico
Superveniente, Noções Fundamentais, Almedina, 2016, págs. 141-144; Figueiredo Dias,
"Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime", Coimbra Editora, 4.ª reimp., págs. 157 e ss. e Jescheck e Weigend, "Tratado de Derecho Penal - Parte General",5.ª edição, Comares, Granada, 2002, págs. 842 e ss.). 
«As penas acessórias constituem verdadeiras penas. (... ) A sua imposição não pode, pois, nunca assumir carácter automático. O carácter não automático da pena acessória reside na necessidade de comprovação judicial dos requisitos formal - prévia punição pela prática de um crime - e substancial - «particular conteúdo do ilícito que justifique materialmente a sua aplicação» (Acórdão do STJ (de Uniformização de Jurisprudência) nº7/2008, in DR 146, SÉRIE I, de 30.07.2008. No mesmo sentido, Acs. da Relação de Coimbra de 19.12.2017, processo 186/14.7GCLSA.C2; de 28.02.2018, processo n.º 211/17.0GAMIR.C1; da Relação de Lisboa de 09.07.2019, processo 338/17.8PGALM.L1 5ª Secção; de 11.03.2021, processo 179/19.8JDLSB.L1-9, in http://www.dgsi.pt).
No caso vertente, além da gravidade do comportamento da arguida já sopesado a propósito da escolha e determinação concreta da pena de dois anos e seis meses de prisão que lhe foi aplicada, importa referir que os maus tratos infligidos a MAR______  aconteceram num contexto em que a arguida se assumiu como cuidadora desta senhora de oitenta e dois anos ao abrigo de um vínculo contratual remunerado e no exercício de uma actividade comercial lucrativa.
Com efeito, tudo aconteceu quando esta senhora ingressou no lar/instituição de acolhimento ... -Unipessoal, Lda. durante o ano de 2017, tratando de uma instituição que tinha como objecto social a actividade de lar de idosos, apoio geriátrico, centro de dia, apoio domiciliário e prestação de serviços médicos e de enfermagem, por cuja gestão era responsável única a arguida SMGA_____  
Sobre a elevadíssima ilicitude do comportamento da arguida integrador do crime de maus tratos, já tudo também ficou dito a propósito da escolha e determinação concreta da pena de prisão aplicada, apenas se reitera que além da extrema danosidade do comportamento da arguida, pelo enorme sofrimento físico e psíquico que causou à vítima, durante, pelo menos, dois ou três meses e de forma completamente desnecessária, o grau de violação grosseira dos deveres que assumiu no contexto de uma prestação de serviços remunerada e, portanto, totalmente voluntária é também muito intenso e censurável.
Há em todo este contexto, um risco de reincidência que só não é enfrentado com o cumprimento efectivo da pena de prisão em virtude do tempo entretanto decorrido sem que haja notícia de outros comportamentos delituosos, da curta duração do tempo de prisão fixado, do princípio da preferência fundamentada por medidas não privativas da liberdade e do princípio da proibição do excesso, acima contextualizado a propósito da opção pela suspensão da execução da pena de prisão e que motivou, de resto, a imposição de deveres e regras de conduta, bem como o regime de prova.
Esse risco de repetição de condutas como a de que há notícia nestes autos, emerge não só da relativa facilidade com que a arguida sem qualquer qualificação técnica ou científica, sem licença, sem recursos humanos, nem equipamentos adequados e durante cerca de dez anos, explorou pelo menos, três lares de idosos, sem qualquer controlo ou supervisão, como também da sua postura de displicência e total desinteresse perante a necessidade de que os cuidados de assistência na saúde, na satisfação das necessidades essenciais do dia a dia das pessoas mais velhas e todas aquelas que lhes deveriam ser providenciadas para lhes assegurar bem estar físico, psíquico e emocional, para lhes permitir desenvolverem e conservarem em toda a sua plenitude as suas capacidades, a todos os níveis, tenham determinados patamares mínimos de qualidade.
Acresce que, mesmo depois destes factos e até ao presente, a arguida continua a trabalhar num lar de idosos sito em Famões que terá a designação de os Avozinhos, segundo o relatório social elaborado pela DGRSP e junto aos autos em 13 de Agosto de 2021, com a referência Citius 19347440, sendo sintomático o excerto contido nesse relatório segundo o qual «a arguida não nos facultou a documentação comprovativa da actual situação económico-profissional e o contacto da superior hierárquica conforme solicitamos», exarada na página 3 deste relatório.      
Acontece, porém, que falta um dos requisitos de natureza formal de que o art. 66º do CP faz depender a aplicação desta pena acessória, que é o de que a pena concretamente aplicada tenha sido igual ou superior a três anos de prisão, o que inviabiliza a aplicação da pena acessória de proibição do exercício da função.
O mesmo tem de dizer-se da recolha de ADN peticionada também na acusação, face à pena concretamente aplicada, neste processo e ao que dispõe o art. 8º nº 2 da Lei 5/2008 de 12 de Fevereiro.
III – DECISÃO 
Termos em que decidem: 
Conceder provimento parcial ao recurso e, em consequência:
Julgam parcialmente procedente a impugnação ampla da matéria de facto, determinando que:
Do ponto 2) dos factos provados passe a constar que A ofendida integrou o lar/instituição de acolhimento … - Unipessoal, Lda, em data não concretamente apurada do ano de 2017;
Que as als. a), c), d), e), f), h), i), j) e l) que na sentença recorrida foram considerados não provados, passem a integrar a matéria de facto provada, com a ressalva, quanto à alínea c), de que a mesma passará a ter a seguinte redacção:
No dia 26 de Agosto de 2018 a ofendida encontrava-se no aludido lar, apresentando nódoas negras na zona dos calcanhares; 
Condenam a arguida SMGA_____ como autora material de um crime de maus tratos, p. e p. pelo artigo 152°-A n° 1 do Código Penal, na pena de dois anos e seis meses de prisão.
Ao abrigo do disposto nos arts. 50º; 53º e 54º do CP, determinam a suspensão da execução desta pena de prisão pelo período de três anos e meio, com regime de prova a cumprir segundo um pleno individual de reinserção social a elaborar pela DGRSP quando o processo for remetido à primeira instância que diligenciará pelo cumprimento do disposto no art. 494º do CPP.
Ao abrigo do disposto nos arts. 51º nº1 al. c); 52º nº 1 al. b), 52º nº 2 als. a), b) e d), 53º e 54º nº 3 do CP, determinam, além de outros deveres e regras de conduta que venham a integrar o plano individual de reinserção social, a sujeição da arguida aos deveres e regras de conduta de:
a) Frequentar programa de sensibilização para a problemática dos maus tratos a pessoas idosas;  
b) Não prestar nenhum tipo de cuidados de saúde, higiene, alimentação, vestuário, ou a qualquer outro título, auxílio ou assistência, na satisfação de todas e quaisquer necessidades essenciais à sobrevivência diária a pessoas com idades iguais e/ou superiores a 65 anos, no exercício da sua profissão, ou em qualquer outro contexto, nem acolhê-las formal ou informalmente, seja, na sua residência, ou em qualquer outro local, devendo a sua entidade patronal ser disso informada, assim como o ISS, IP, Direcção de Lisboa e Vale do Tejo.   
c) Entregar a quantia de € 500,00 (quinhentos euros) à APAV e junta documento comprovativo desse pagamento aos autos, até ao final do segundo ano de duração da suspensão da pena.
Sem Custas – art. 522º do CPP.
Notifique.
*
Acórdão elaborado pela primeira signatária em processador de texto que o reviu integralmente (art. 94º nº 2 do CPP), sendo assinado pela própria e pela Mma. Juíza Adjunta.
*
Tribunal da Relação de Lisboa, 23 de Fevereiro de 2022
Cristina Almeida e Sousa
Florbela Sebastião e Silva