Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1440/23.2T8PDL.L1-2
Relator: HIGINA CASTELO
Descritores: FORMA DE PROCESSO
ERRO NA FORMA DE PROCESSO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I. A forma de processo devida é a que for adequada ao pedido formulado pelo autor.
II. O recurso direto ao processo executivo por quem está munido de título suficiente não constitui uma obrigação, antes correspondendo a um ónus jurídico, cuja não observância tem por consequência que o onerado pague as custas do processo declarativo que, sem necessidade, tenha instaurado.
III. A ação declarativa intentada por quem esteja munido de título executivo não padece de erro na forma do processo.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os abaixo assinados juízes do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório
«AA», autora na presente ação declarativa de condenação que moveu a «BB» e «CC», casados entre si, notificada do saneador-sentença proferido em 28/11/2023, que anulou o processado com fundamento em erro na forma do processo e absolveu os réus da instância, e com essa decisão não se conformando, interpôs o presente recurso.
A autora intentou a ação contra os réus alegando, em síntese, que:
- Os réus são irmão e cunhada da autora;
- Autora e réu são herdeiros de «DD» e de «EE» (seus pais), cujo inventário, sob o nº …0.0 T8PDL, correu termos no Juízo Local Cível de Ponta Delgada – …, e no qual a autora desempenhou o cargo de cabeça de casal;
- Por óbito dos inventariados foram relacionados um prédio urbano e seis prédios rústicos, o primeiro da freguesia de …, concelho de Lagoa, e os últimos da freguesia de …, do mesmo concelho;
- Por transação judicialmente homologada em conferência de interessados, os referidos imóveis foram adjudicados em comum e na proporção das respetivas quotas aos ali herdeiros (ora autora e seus 11 irmãos, incluindo o réu);
- Pelo mesmo acordo, homologado por sentença, foi acordado que os imóveis seriam vendidos e a autora ficou mandatada para efetuar as diligências necessárias à sua venda, designadamente a assinatura de contratos de mediação imobiliária;
- Os réus obrigaram-se a entregar livre e devoluto os imóveis rústicos que, por tolerância da autora e dos restantes herdeiros, exploram, bem como o armazém edificado num deles que, também, ocupam;
- A autora realizou as diligências a que se tinha comprometido e para as quais foi mandatada (incluindo, atualização das áreas dos prédios rústicos, licenciamento do armazém, avaliação dos imóveis, contratação da mediação);
- Na sequência, surgiu um interessado do Continente para o armazém, pelo valor de € 166.000 (superior à avaliação em € 6.000), e que pretendia efetuar o contrato-promessa ainda no dia em que estava a visitar o imóvel, 23/02/2023;
- Sucede que, ainda no decurso dessa visita, compareceu no local o réu marido que, munido de uma catana, ameaçou de morte o interessado e o legal representante da mediadora imobiliária, desferiu com a catana um golpe nas costas do legal representante da imobiliária, agrediu com empurrões uma sua irmã «FF» presente na visita, e, referindo-se ao armazém, gritava “isto é meu”, “ninguém compra”, “este terreno e armazém são para mim”, “eu é que vou comprar”, “eu não assino escritura de venda nenhuma”, “saiam daqui”, “ eu mato-vos”;
- O interessado desinteressou-se;
- A autora e demais irmãos tentaram chamar o réu à razão e que cumprisse com o que se tinha comprometido, até porque muitos passavam dificuldades e necessitavam do produto da venda, mas o réu continuou obstinado;
- No final do mês de fevereiro surgiu um outro interessado na aquisição da totalidade dos terrenos rústicos pelo preço global de 272.150€, valor superior ao que consta da avaliação, mas os réus recusaram-se a aceitar ou a assinar fosse o que fosse;
- O confessado objetivo dos réus é o de impedir a venda do terreno e do armazém a terceiros de forma que, por inexistência de interessados, os possam eles adquirir pelo preço que entenderem e no mesmo passo, valorizar o imóvel contíguo pertença do sogro do réu e que também pretendem comprar.
Terminou pedindo a condenação dos réus a pagar solidariamente à autora, na qualidade de mandatária dos comproprietários desses imóveis, caso o preço da venda seja inferior, o diferencial entre o valor pelo qual venham a ser vendidos os terrenos e armazém e a quantia global de 438.150 €, já oferecidos por investidores interessados, montante diferencial este a liquidar em execução de sentença, acrescido de juros de mora, à taxa devida para as operações civis (4%) a contar da data da citação e até efetivo e integral pagamento; bem como condenados ao pagamento à autora na qualidade em que se arroga, a contar da citação, de uma sanção pecuniária compulsória de 1.000 € diários por cada dia em que praticarem, de qualquer forma, quaisquer atos que inviabilizem a venda dos bens imóveis identificados mormente, não entregarem livre e devoluto de pessoas e bens os terrenos que exploram e o armazém que ocupam por mera tolerância e sem qualquer título ou contactarem potenciais interessados na aquisição dos bens imóveis mencionados ou dirigirem a esses potenciais interessados ameaças; e, ainda, serem os réus solidariamente condenados ao pagamento de uma sanção pecuniária compulsória de 1.000 € diários por cada dia em que, após a notificação para o efeito e ultrapassado o prazo que lhes for concedido, não assinarem o contrato promessa de compra e venda ou a escritura de compra e venda conforme o teor da notificação que lhes for dirigida.
Contestando, os réus excecionaram: i. o erro na forma de processo uma vez que, alegam, a autora teria ao seu dispor o processo executivo; e, ii. a ilegitimidade da autora por, em seu entender, a autora não poder sozinha, desacompanhada dos demais herdeiros, formular os pedidos que formula.
No mais, impugnam parte dos factos e terminam pugnando pela sua absolvição da instância ou, caso assim não se entenda, dos pedidos.
A autora teve oportunidade de responder às exceções, o que fez.
Findos os articulados, o tribunal a quo julgou haver erro na forma do processo por os herdeiros, disse, estarem «dotados de um título executivo que podem submeter ao tribunal no sentido de o verem concretizado…coisa que declinaram em favor de uma ação de condenação que até foi interposta por alguém que não tem para isso mandato. Efetivamente da sentença homologatória aqui em causa, que é avançada como a fonte da sua legitimidade, não encontramos qualquer referência no sentido de lhe atribuir poderes para intentar ações em nome dos demais co-herdeiros e de reclamar para si o valor dos pedidos que formula».
A autora não se conformou e recorreu, concluindo as suas alegações de recurso da seguinte forma:
«A) A decisão recorrida julgou procedente a exceção do erro na forma do processo absolvendo os R.R. do peticionado por entender que caberia à A. deitar mão da execução de sentença pois dispunha duma transação homologada judicialmente que obrigava à venda dos imóveis identificados na petição inicial.
B) Os pedidos formulados pela A., consistem na condenação dos R.R. ao pagamento do diferencial da quantia global de 438.150 € (quatrocentos e trinta e oito mil cento e cinquenta euros) da quantia que efetivamente vierem a ser vendidos os terrenos e armazém identificados em 8º e 10º da presente; condenação ao pagamento de uma sanção pecuniária compulsória de 1.000 € (mil euros) diários por cada dia em que praticarem, de qualquer forma, quaisquer atos que inviabilizem a venda dos bens imóveis identificados em 8º e 10º da p.i. mormente, entregarem livre e devoluto de pessoas e bens os terrenos que exploram e o armazém que ocupam por mera tolerância e sem qualquer titulo ou contactarem potenciais interessados na aquisição dos bens imóveis mencionados ou dirigirem a esses potenciais interessados ameaças e, ainda, solidariamente condenados ao pagamento de uma sanção pecuniária compulsória de 1.000 € (mil euros) diários por cada dia em que, após a notificação para o efeito e ultrapassado o prazo que lhes for concedido, não assinarem o contrato promessa de compra e venda ou a escritura de compra e venda conforme o teor da notificação que lhes for dirigida.
C) Em contrário ao teor da douta decisão recorrida, estes pedidos não encontram suporte legal nem estão contemplados na transação homologada judicialmente.
D) E as concretas causas de pedir enunciadas na petição inicial destes não se alicerçam nem se reconduzem, apenas, à transação homologada judicialmente em que as partes se obrigavam a alienar os imóveis, mas, também, nos factos alegados em 16º a 21º, 24º, 25º, 35º e 36º da petição inicial (ameaças aos potenciais compradores, ofensas à integridade física e recusa em abandonar os terrenos e armazém).
E) Para os fins pretendidos pela recorrente e para a satisfação dos seus interesses e direitos a transação homologada judicialmente não é o meio processual bastante por dela não constar quaisquer elementos ou disposição sancionatórias que obriguem os recorridos a cumprir a totalidade do peticionado nos presentes autos,
F) Para além de que, esta omissão de obrigações retira à transação qualquer (putativo) efeito executivo considerando-se ela inexequível e inexigível.
G) Desta forma devendo ser entendido, à luz das disposições conjugadas dos artigos 189º, nº1, 288º, nº1, alínea b), 493º, nº3 e 494º, alínea b), e o preceituado no art.º 2º e 704º, todos do C.P. Civil, ter ocorrido um erro na interpretação da matéria de direito e que a ação declarativa de condenação nos moldes em que foi instaurada pela recorrente é o meio processualmente adequado, não enfermando de qualquer erro na forma do processo,
Desta forma e pelas razões de facto e de direito invocadas devendo o presente recurso ser considerado procedente e, por via dele, aos autos prosseguirem os seus ulteriores termos assim se fazendo a habitual Justiça»
Os réus contra-alegaram com as seguintes conclusões:
«A. O presente recurso está fatalmente votado ao insucesso dado que a douta sentença bem aplicou o direito ao caso concreto, atento o manifesto erro na forma do processo.
B. Por mais criativa que seja a alegação da Recorrente, agora espraiada em sede de recurso, não há volta a dar quanto à causa de pedir erigida nestes autos e consistente na alegada violação do acordado pelos herdeiros Réus, e, por conseguinte, o que se pretende é assacar responsabilidade aos aqui Recorridos pelo pretenso incumprimento da sentença homologatória de partilhas, mais forçando-os à assinatura de contratos-promessa de venda de imóveis.
C. Tudo pedidos circunscritos e delimitados ao perímetro decisório do Tribunal na ação de partilhas.
D. Conforme bem sindicou a decisão recorrida: “Com a presente ação a A. não pretende mais do que executar o acordo que está firmado na sentença homologatória da partilha que lhe serve de causa de pedir. Efetivamente…socorrendo-se de pedidos que na sua perspetiva serão o único instrumento dissuasor da conduta obstaculizadora a tal desiderato que imputa aos RR., não pretende outra coisa que não seja cumprir o acordo homologado na sentença proferida no inventário sob o nº …0.0T8PDL. Na verdade, é insofismável, que a A. e demais co-herdeiros têm um título executivo que podem fazer valer em juízo e com isso lograrem o fim a que se propuseram no acordo de partilha”.
E. Com efeito, em consonância com o alegado na PI, a Recorrente assaca aos Recorridos a suposta violação de tal acordo (judicialmente homologado), imputando-lhes (cf. artigo 32.º) responsabilidade contratual,
F. Assim sendo, e perante tal incumprimento que constitui (exclusivamente) a causa de pedir dos presentes autos, ocorre manifesto vício consistente em erro na forma de processo, porque a Recorrente sempre disporia (sendo esse o meio processual correto) do recurso ao mecanismo de execução de sentença.
G. E neste mesmo sentido alinha a nossa jurisprudência superior: “A sentença homologatória da partilha (art.º 1382º, n.º 1, do CPC de 1961), uma vez transitada em julgado, constitui título executivo. Se determinada verba for aprovada por todos os interessados e partilhada no inventário como dívida do casal, verifica-se o caso julgado relativamente ao credor que seja interessado no inventário, considerando-se a dívida judicialmente reconhecida e exigível, ainda que falte a expressa condenação no seu pagamento a que alude a parte final do n.º 1 do art.º 1354º, do CPC de 1961. Com o trânsito em julgado da sentença que homologou a partilha ficou definitivamente fixado o direito dos intervenientes no processo de inventário, sendo que o direito da exequente (credor) ficou definido com rigor em sede de conferência de interessados (competente para deliberar sobre a aprovação e forma de pagamento do passivo relacionado/art.º 1353º, n.º 3, do CPC de 1961) e no mapa da partilha - o que aí se concretiza, em obediência ao acordado ou decidido no processo de inventário, deverá pois ser cumprido/executado. Daí que assista legitimidade à exequente para requerer a execução da sentença no que respeita ao pagamento de tal crédito, reconhecido no inventário, ou, dito doutra forma, cuja obrigação ficou declarada ou constituída pela sentença homologatória da partilha” – Acórdão da Relação de Coimbra, 07.10.2014, Processo n.º 590-E/2001.C1.
H. E acresce ainda que é manifesta igualmente a ilegitimidade ativa da Recorrente, dado que os direitos alegadamente em disputa nos presentes autos, na exata medida e forma com que são alegados, emergem, não da titularidade de qualquer herdeiro específico, concretamente considerado, incluindo necessariamente a Autora (uma das herdeiras e cabeça-de-casal), mas antes da própria herança (indivisa).
I. Ou seja, a causa de pedir e o pedido hasteados nestes autos, baseados em incumprimento culposo do acordo de partilhas por ação imputável exclusivamente aos Recorridos, resultam e têm por titulares e beneficiários (do crédito indemnizatório) todos os herdeiros, e nunca a Recorrente (para o efeito bastará atentar no cômputo indemnizatório que até engloba, ilicitamente, o quinhão ou parcela atinentes aos próprios Réus).
J. Na verdade, nos presentes autos não está em causa qualquer das situações tipologicamente delimitadas no artigo 2078.º do CC, nem se trata de ação possessória contra terceiros (cf. artigo 2088.º do CC), nem está em crise uma cobrança de dívidas (cf. artigo 2089.º do CC),
K. Destarte, a douta sentença recorrida não merece qualquer reparo, tendo feito correto enquadramento e interpretação do Direito ao caso concreto, pelo que assim se deverá manter na ordem jurídica, dado que sempre se imporá determinar a absolvição dos Recorridos da instância, e isto, porque a petição inicial não pode ser aproveitada para a forma de processo adequada - artºs.199º, nº.1, 288º, nº.1, al. b), 493º, nº.2 e 494º, al. b), todos do CPC.
Nestes termos e nos melhores de Direito aplicáveis, sempre com o mui douto amparo de V. Exas., deve ser negado provimento ao presente recurso, confirmando-se, in totum, a douta sentença recorrida, com todas as legais consequências.»
Conforme acima referido, no saneador-sentença foi conhecido e julgado procedente o invocado erro na forma do processo, absolvendo-se os réus da instância. Nessa sede, o tribunal a quo deixou de conhecer de outras questões (nomeadamente da ilegitimidade ativa arguida pelos réus), por estarem prejudicadas pela questão que decidiu (o erro na forma do processo).
Os réus, além de terem arguido a ilegitimidade da autora na contestação, voltaram a pugnar por ela na resposta ao recurso.
Nada obstando a que, neste acórdão se conheça daquela exceção dilatória, as partes foram notificadas para sobre isso se pronunciarem, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 665.º do CPC, e nada disseram.
Foram colhidos os vistos e nada obsta ao conhecimento do mérito.
Objeto do recurso
Sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, são as conclusões das alegações de recurso que delimitam o âmbito da apelação (artigos 635.º, 637.º, n.º 2, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
Tendo em conta o teor daquelas e acrescendo a questão da ilegitimidade que o tribunal a quo não conheceu por estar prejudicada pela solução que deu à causa, colocam-se as seguintes questões:
a) A autora tem título executivo para o crédito reclamado na presente ação?
b) A autora não tem legitimidade processual para intentar a presente ação desacompanhada dos demais herdeiros (réu excluído)?
II. Fundamentação de facto
Os factos relevantes são os que constam do relatório, sendo ainda de ter em consideração o exato teor do acordo em sede de conferência de interessados e da sua homologação por sentença, como passamos a descrever:
1. No inventário n.º …0.0T8PDL, correu termos no Juízo Local Cível de Ponta Delgada - …, aberto por óbito dos pais da autora e no qual são interessados a autora, seus irmãos e cunhados, foram relacionados os seguintes bens imóveis:
a) Prédio urbano artigo matricial …8 da freguesia …, Lagoa, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º …4, com o valor patrimonial de €62.412,35;
b) Prédio Rústico, inscrito matricialmente sob o artigo …8, Secção …, da freguesia …, Lagoa, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º …4, com o valor patrimonial de €46,93;
c) Prédio Rústico, inscrito matricialmente sob o artigo …9, Secção …, da freguesia …, Lagoa, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º …6 com o valor patrimonial de €145,33;
d) Prédio Rústico, inscrito matricialmente sob o artigo …5, Secção …, da freguesia …, Lagoa, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º …6 com o valor patrimonial de €536,67;
e) Prédio Rústico, inscrito matricialmente sob o artigo …1, Secção …, da freguesia …, Lagoa, com o valor patrimonial de €153,60;
f) Prédio Rústico, inscrito matricialmente sob o artigo …2, Secção …, da freguesia …, Lagoa, com o valor patrimonial de €456,00; e
g) Prédio Rústico, inscrito matricialmente sob o artigo …5, Secção …, da freguesia …, Lagoa, com o valor patrimonial de €48,00.
2. Na conferência de interessados do processo de inventário n.º …0.0T8PDL, realizada em 28/04/2022, foi acordado que as verbas 9 a 15 (sete bens imóveis, sendo um prédio urbano e seis rústicos, acima identificados) fossem adjudicadas em comum e na proporção das respetivas quotas aos herdeiros; mais acordaram que os mesmos imóveis seriam «colocados  à venda, ficando para o efeito designada a Cabeça de Casal «AA»», a qual foi «expressamente mandatada para efetuar as diligências de venda, designadamente, a assinatura dos contratos de mediação imobiliária»; acordaram, ainda, «todos os interessados que os valores das vendas serão processados pelas avaliações das empresas de mediação imobiliária e que, na eventualidade de qualquer dos interessados pretender exercer o direito de preferência, ser-lhe-á esse direito de preferência automaticamente conferido».
3. Este acordo foi, do âmbito da mesma conferência, homologado por sentença, nos seus precisos termos.
III. Apreciação do mérito do recurso
1. Do erro na forma do processo
O erro na forma do processo constitui uma irregularidade processual oficiosamente corrigível. Com efeito, nos termos do disposto no artigo 193.º, n.ºs 1 e 2, do CPC (artigo 199.º CPC 1961), o erro na forma do processo ou no meio processual importa unicamente a anulação dos atos que não possam ser aproveitados, devendo praticar-se os que forem estritamente necessários para que o processo se aproxime, quanto possível, da forma estabelecida pela lei; não devendo, porém, aproveitar-se os atos já praticados, se do facto resultar uma diminuição de garantias do réu.
Com o CPC de 2013 foi introduzida norma expressa no sentido de o erro na qualificação do meio processual utilizado pela parte ser corrigido oficiosamente pelo juiz, determinando que se sigam os termos processuais adequados (n.º 3 do artigo 193.º).
Entendeu o tribunal a quo que havia erro na forma do processo porque a autora estaria munida de título executivo, e absolveu os réus da instância. A recorrente discorda e com razão.
Em primeiro lugar, o erro na forma do processo afere-se pelo objeto da ação tal como delineada pelo autor e, em particular, pelo pedido formulado. Neste sentido, exemplificativamente, Ac. TRL de 22/02/2007, proc. 8592/2006-2, Ac. do TRP de 08/03/2019, proc. 7829/17.9T8PRT.P1, Ac. TRG de 08/07/2020, proc. 654/19.T8VCT.G1, disponíveis em www.dgsi.pt.
Também nos livros encontramos a mesma doutrina: «É em função da providência jurisdicional concretamente solicitada pelo autor em juízo que o juiz deve aferir da propriedade e da adequação do meio processual por aquele eleito, ou seja, “da correspondência ou conformidade da forma de processo a que recorreu com os critérios abstratos da lei”, o que nada tem a ver com razões de procedência ou improcedência da ação» (Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, I, Almedina, 2010, p. 539).
No caso dos autos, a autora pediu, conforme acima transmitimos, que os réus fossem solidariamente condenados a pagar à autora, na qualidade de mandatária dos comproprietários imóveis por todos herdados, caso o preço da venda destes seja inferior àquele que teriam obtido se os réus não se tivessem oposto à conclusão do negócio, o diferencial entre o valor pelo qual venham a ser vendidos e a quantia global de 438.150 €, já oferecida por investidores interessados, acrescido de juros de mora, à taxa devida para as operações civis (4%) a contar da data da citação e até efetivo e integral pagamento; bem como condenados ao pagamento à autora na qualidade em que se arroga, a contar da citação, de uma sanção pecuniária compulsória de 1.000 € diários por cada dia em que praticarem, de qualquer forma, quaisquer atos que inviabilizem a venda dos bens imóveis identificados mormente, não entregarem livre e devoluto de pessoas e bens os terrenos que exploram e o armazém que ocupam por mera tolerância e sem qualquer título ou contactarem potenciais interessados na aquisição dos bens imóveis mencionados ou dirigirem a esses potenciais interessados ameaças; e, ainda, serem os réus solidariamente condenados ao pagamento de uma sanção pecuniária compulsória de 1.000 € diários por cada dia em que, após a notificação para o efeito e ultrapassado o prazo que lhes for concedido, não assinarem o contrato promessa de compra e venda ou a escritura de compra e venda conforme o teor da notificação que lhes for dirigida.
Claramente a estes pedidos corresponde a ação declarativa de condenação, com processo comum. Declarativa ou declaratória, porque são formulados pedidos que consistem justamente na declaração de condenação dos réus em dado montante, determinável em função de evento futuro, e em sanções pecuniárias compulsórias na ocorrência de dados comportamentos dos réus. Portanto, declarativa de condenação, não de simples apreciação. Declarativa, ainda, porque não está em causa a execução de património dos réus para liquidação de quantia para a qual a autora apresente título executivo bastante, nem para forçar a entrega de uma coisa ou uma prestação de facto. Processo comum porque não existe no CPC nem fora dele um procedimento específico que a autora deva propor para que os pedidos formulados lhe sejam concedidos.
Em segundo lugar, a autora não tem ao seu dispor nenhum documento com natureza de título executivo, que possa acionar para que o património dos réus seja liquidado para fazer face à satisfação dos pedidos da autora. A sentença homologatória do acordo obtido na conferência de interessados do inventário dos pais nunca seria título para  fazer valer as pretensões ora trazidas a juízo.
Em terceiro, e apenas a latere, ainda que a autora estivesse munida de título executivo, o recurso direto ao processo executivo não constituiria uma obrigação, e a ação declarativa não padeceria de erro na forma do processo, nada obstando ao seu prosseguimento, apreciação e decisão do mérito. O recurso direto á execução para quem esteja munido de título executivo (e, repete-se, não é esse o caso) mais não constitui do que um ónus jurídico, cuja não observância apenas tem por consequência que o onerado pague as custas do processo declarativo que, sem necessidade, tenha instaurado. Assim decorre do disposto no artigo 535.º, n.ºs 1 e 2, al. c) do CPC: quando o réu não tenha dado causa à ação e não a conteste, as custas são pagas pelo autor; um dos casos em que o réu não dá causa ao pleito é o de o autor recorrer ao processo de declaração apesar de estar munido de um título com manifesta força executiva.
Nesta matéria, e na falta de melhores, valemo-nos das palavras de Antunes Varela, J. Miguel Bezerra, e Sampaio e Nora (no Manual de Processo Civil, 2.ª ed., Coimbra Editora, 1985, pp. 96, reportando-se ao artigo 449, n.ºs 1 e 2, al. c) do CPC-1961, exatamente as mesmas normas que hoje se encontram no artigo 535.º do CPC-2013):
«Deste preceito legal se extraem duas conclusões importantes:
1.º Se o portador do título de força executiva duvidosa usar do processo de declaração, mesmo que o réu não conteste, não será condenado nas custas do processo, desde que a ação seja julgada procedente:
2.º O portador de título com manifesta força executiva não goza da liberdade de optar entre o uso do processo declaratório e o recurso imediato ao processo executivo, para obter judicialmente o cumprimento da obrigação. Não se trata de um puro benefício que a lei lhe conceda e a que ele possa livremente renunciar.
Mesmo que a ação venha a ser julgada procedente, será ele o condenado no pagamento das custas, como sanção contra o facto de ter recorrido desnecessariamente ao processo de declaração.
O uso do processo de execução, por parte de quem, dispondo de um título com incontroversa força executiva, pretenda exigir judicialmente o cumprimento da obrigação, corresponde assim a um verdadeiro ónus jurídico
Que o uso desnecessário de ação declarativa por quem está munido de título executivo não se subsume a um erro na forma do processo resulta também de algumas páginas do Prof. José Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, II, Coimbra Editora, 1945, pp. 470-480. Sendo todas de leitura obrigatória, extratamos, em jeito de conclusão (pp. 478-9):
«A disciplina do erro na forma do processo assenta, pois, em duas normas constantes e três variáveis.
Normas constantes:
a) A petição inicial nunca se inutiliza;
b) Passa-se sempre da forma errada para a forma legal.
Normas variáveis:
1) Não se anula ato algum;
2) Anulam-se alguns atos;
3) Anulam-se todos os atos.»
2. Da legitimidade da autora
No saneador-sentença, o tribunal a quo deixou de conhecer de outras questões (nomeadamente da ilegitimidade ativa arguida pelos réus), por estarem prejudicadas pela questão que decidiu (o erro na forma do processo).
Os réus, além de terem arguido a ilegitimidade da autora na contestação, por entenderem que a autora não teria legitimidade processual para intentar a presente ação desacompanhada dos demais herdeiros (réu excluído), voltaram a pugnar pela verificação da mesma exceção na resposta ao recurso.
Porque nada obsta ao conhecimento da dita exceção dilatória neste momento, as partes foram notificadas para se pronunciarem, nos termos do n.º 3 do artigo 665.º do CPC, e nada disseram.
Passamos a conhecer.
Os imóveis que estão na base do litígio foram partilhados por acordo no âmbito do inventário …0.0T8PDL, tendo ali sido, definitivamente, adjudicados a favor de cada um dos herdeiros em comum e na proporção dos respetivos quinhões, ou seja, 1/12 a cada um deles.
Pelo mesmo acordo celebrado entre as partes e homologado por sentença no mesmo inventário, todos os interessados (réus incluídos) mandataram a ora autora para colocar os ditos imóveis em venda, efetuar as diligências a tal necessárias, «designadamente, a assinatura dos contratos de mediação imobiliária»; acordaram, ainda, todos os interessados que os imóveis seriam postos em venda pelos valores das avaliações das empresas de mediação imobiliária e que, na eventualidade de qualquer dos interessados pretender exercer o direito de preferência, ser-lhe-ia esse direito de preferência automaticamente conferido.
Por força deste mandato, a autora tinha os necessários poderes para proceder como procedeu, celebrando contratos de mediação, contratando as avaliações, preparando os documentos necessários a que os contratos de compra e venda e, se fosse o caso, os contratos-promessa daqueles fossem celebrados. Da sentença proferida no inventário, o mandato da autora não abrangia a celebração dos próprios contratos de compra e venda, nem sequer os de promessa (pois tal não se encontra expressamente previsto no texto do acordo), razão pela qual seria necessária a declaração dos proprietários aquando da celebração dos mesmos contratos.
No entanto, havia o acordo de todos no sentido de os celebrarem, ou de exercerem a sua preferência. Aparentemente desrespeitando este acordo, os réus terão praticado atos ilícitos para afugentar os potenciais adquirentes e ter-se-ão oposto à celebração dos contratos, à qual estavam obrigados pelo acordo homologado no inventário – este é o cerne do mérito desta causa.
Os atos que a autora imputa aos réus constituem uma revogação tácita e ilícita do mandato.
Lembramos que o mandato conferido à autora o foi também no interesse da mandatária (comproprietária), pelo que apenas poderia ser revogado pelo mandante com o acordo da mandatária, salvo ocorrendo justa causa (artigo 1170.º, n.º 2, do CC). Acresce que, tratando-se de um mandato coletivo, conferido por várias pessoas e para assunto de interesse comum, a revogação só produziria efeitos se for realizada por todos os mandantes, e não apenas pelo réu (artigo 1173.º do CC).
O que se discute agora é se a autora tem legitimidade para intentar a presente ação contra os réus, desacompanhada dos demais comproprietários.
Trata-se de uma ação pela qual a autora pede a condenação dos réus numa indemnização que compense todos os comproprietários pelos atos ilícitos dos réus, indemnização que colocará os comproprietários na situação em que estariam se os réus tivessem cumprido as obrigações para si decorrentes da sentença proferida no inventário, de subscrever os contratos necessários à venda (promessa e/ou definitivo), desde que por valor igual ou superior ao das avaliações feitas (sem prejuízo do direito de preferência que entendessem exercer). Mais pede nesta ação que os réus sejam condenados ao pagamento de uma sanção pecuniária compulsória de 1.000 € diários por cada dia em que praticarem quaisquer atos que inviabilizem a venda dos bens imóveis identificados (mormente, não entregarem livre e devoluto de pessoas e bens os terrenos que exploram e o armazém que ocupam por mera tolerância, ou contactarem potenciais interessados na aquisição dos bens imóveis mencionados ou dirigirem a esses potenciais interessados ameaças, ou não assinem o contrato promessa de compra e venda ou a escritura de compra e venda que venham a ser acordados.
O mandato especial abrange, além dos atos nele referidos, todos os demais necessários à sua execução (n.º 2 do artigo 1159.º do CC).
Estando a autora mandatada para diligenciar pela venda dos imóveis, podendo assinar os contratos necessários a que seja encontrado comprador(es), tal mandato abrange também a propositura de ação necessária a permitir-lhe a cabal execução do mesmo mandato, pelo que a autora é parte legítima para a presente ação, intentada também no interesse dos demais mandantes e comproprietários prejudicados pela atuação dos réus.

IV. Decisão
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação, revogando o despacho saneador recorrido e determinando o prosseguimento dos autos, dado que se verificam todos os pressupostos processuais necessários para o efeito.
Custas pelos recorridos.

Lisboa, 23/05/2024
Higina Castelo
António Moreira
Susana Maria Mesquita Gonçalves