Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | JOÃO BÁRTOLO | ||
Descritores: | VIOLÊNCIA DOMÉSTICA DOLO MEDIDA DA PENA | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 04/09/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIDO | ||
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Sumário: | Após uma análise do tipo objectivo da incriminação previsto no art.º 152.º do Código Penal, e do reconhecimento do seu preenchimento, aceitando a verificação do dolo quanto às condutas provadas, o tribunal recorrido sustentou que não se mostrava inteiramente preenchido o tipo subjectivo da incriminação porque a acusação mostrava-se absolutamente omissa a respeito da representação do arguido da relação que mantinha com a ofendida e da intenção de perpetrar essas condutas quanto à sua companheira; e, por conseguinte que estava ciente do dever especial que daí emergia e que justifica a punição das ofensas perpetradas. De acordo com o art.º 14.º, n.º 1, do Código Penal, “age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, actuar com intenção de o realizar”. Daqui decorre que o agente do crime deve ter conhecimento de todos os factos que preencham uma dada incriminação (elemento cognitivo), e que o mesmo deve ter intenção de concretizar a sua conduta com esse âmbito (elemento volitivo) O facto provado que estabeleceu que “o arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito alcançado de exercer poder sobre a ofendida (…) e de a dominar, querendo causar-lhe, como causou, medo, humilhação, vergonha, dores e sofrimento físico e psíquico, de a prejudicar na sua saúde e de a limitar na sua liberdade e no livre desenvolvimento da sua personalidade”, ao descrever uma actuação de forma livre, voluntária e consciente – por referência os demais factos provados antes descritos – permite concluir pelo conhecimento e consciência de todos os factos provados descritos anteriormente e a sua vontade de os realizar, incluindo a relação que o arguido mantinha com a ofendida, a sua coabitação e mesmo a presença do filho numa das situações; pelo que preenche totalmente a incriminação de violência doméstica. (sumário da responsabilidade do relator) | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa I. Relatório No âmbito dos autos n.º 50/24.1PBHRT do Juízo de Competência Genérica da Horta – Juiz 2 –, estando AA acusado da prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, alínea a), do Código Penal, após julgamento, foi decidido: “a) Absolver o arguido AA do crime de violência doméstica, previsto e punido nos termos do artigo 152.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, alínea a), do Código Penal, de que vinha acusado. b) Condenar o arguido AA, pela prática do crime de ameaça agravado previsto e punido nos termos conjugados dos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, cometido contra a ofendida BB em data não concretamente apurada, mas sita entre 2018 e 12.01.2024, numa pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de 5,00€ (cinco euros). c) Condenar o arguido pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido nos termos do artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, cometido entre Abril e Maio de 2017, contra a ofendida, numa pena de 9 (nove) meses de prisão. d) Condenar o arguido pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido nos termos do artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, cometido a 12.01.2024 contra a ofendida, numa pena de 1 (um) ano de prisão. e) Em cúmulo jurídico das penas referidas em c) e d), condenar o arguido AA na pena única de 1 (um) ano e 3 (três) meses de prisão. f) Suspender a pena única de prisão aplicada por igual período de tempo (artigo 50.º do Código Penal), sujeitando a aludida suspensão a um regime de prova a delinear e fiscalizar pela Direcção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, nos termos do artigo 53.º, n.º 1, do Código Penal, bem como, ao abrigo do disposto no artigo 51.º, n.º 1, do mesmo diploma: - Ao pagamento pelo arguido da totalidade da indemnização arbitrada oficiosamente à vítima até ao final do período de suspensão, nos termos do artigo 51.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal; - À submissão do arguido a consulta(s) de psicologia de diagnóstico e a sujeitar-se ao acompanhamento psicológico que lhe seja eventualmente prescrito, nomeadamente a respeito das suas capacidades e instrumentos pessoais de gestão de emoções e do estabelecimento de vínculos de afecto e de manutenção de relações interpessoais salutares, nos termos do artigo 52.º, n.º 3, do Código Penal. g) Condenar o arguido no pagamento a BB (vítima/lesada) a quantia de 1.200,00 € (mil e duzentos euros) a título de indemnização por danos não patrimoniais decorrentes da prática do crime, a qual oficiosamente se atribui nos termos do artigo 82.º-A do Código de Processo Penal, acrescida de juros de mora contabilizados à taxa de 4% desde a data da prolação desta sentença até integral pagamento; h) Condenar o arguido no pagamento ao demandante HOSPITALAR DA HORTA, E.P.E.R. da quantia de 85,00 € (oitenta e cinco euros) a título de reembolso das despesas tidas com a prestação de cuidados de saúde à ofendida emergentes da prática do crime, acrescida de juros de mora contabilizados à taxa de 4% desde a data da notificação para contestação do pedido cível deduzido pelo demandante; i) Condenar o arguido no pagamento das custas criminais, nas quais se inclui a taxa de justiça de 2 (duas) U.C., e nos demais encargos a que a sua actividade houver dado lugar (artigos 8.º, n.º 9 e Tabela III, todos do Regulamento das Custas Processuais), sem prejuízo do apoio judiciário com que litigue”. Inconformado com os termos desta condenação interpôs recurso o Ministério Público, tendo formulado, após a motivação do seu recurso, as seguintes conclusões: “1. Entendeu a douta decisão recorrida que estava em falta o elemento subjetivo tendo absolvido o arguido pela prática do crime de violência doméstica. 2. O Ministério Público não concorda. 3. A douta decisão recorrida é excessivamente enfática quanto à relevância que atribui à relação entre o arguido e a vítima e à específica vontade e conhecimento de agressão de um cônjuge para a caracterização do crime de violência doméstica. 4. O enfâse deverá, outrossim, ser colocado na manifestação histórica e cultural que caracteriza as relações entre mulheres e homens, caracterizada por uma vontade de domínio e de subjugação daquelas a estes. 5. De acordo com a Convenção de Istambul (CI), o traço distintivo na violência contra as mulheres é a discriminação das mulheres através de atos de violência; sendo a violência doméstica uma forma especial de violência de género que tem a particularidade de ocorrer na família ou na unidade doméstica ou ainda entre cônjuges ou ex-cônjuges, ou entre companheiros ou ex-companheiros, quer o agressor coabite ou tenha coabitado, ou não, com a vítima. 6. Quer isto dizer que à luz da CI a violência doméstica não se caracteriza necessariamente pela violência que ocorre entre cônjuges ou ex-cônjuges, ou entre companheiros ou ex-companheiros, podendo ainda ocorrer na família ou na unidade doméstica, independentemente daquela relação, contanto seja um ato de violência contra mulheres e ocorra na unidade doméstica ou familiar – podendo, por ex, a vítima tratar-se de parente, mas também, p. ex., uma empregada interna que resida na unidade doméstica. 7. A Convenção também reconhece, nos seus considerandos, que “a violência contra as mulheres é uma manifestação das relações de poder historicamente desiguais entre mulheres e homens que conduziram à dominação e discriminação contra as mulheres pelos homens, o que as impediu de progredirem plenamente;” bem como “a natureza estrutural da violência exercida contra as mulheres é baseada no género, e que a violência contra as mulheres é um dos mecanismos sociais cruciais pelo qual as mulheres são forçadas a assumir uma posição de subordinação em relação aos homens”. 8. Por esta ordem de razões a CI expressa, mesmo no seu artigo 43.º que “As infrações previstas na presente Convenção aplicam-se, independentemente da natureza da relação entre a vítima e o perpetrador.” 9. A particularidade do crime em análise, quando as vítimas sejam mulheres, não reside na relação familiar ou para-familiar entre o arguido e a vítima, mas do facto de ambos pertencerem a categorias sociais distintas – homens e mulheres – cujas relações, historicamente, são permeadas pela dominação violenta e subordinação destas àqueles. 10. Deverá, pois, entender-se que, o dolo, neste crime, e quando a vítima seja uma mulher ou criança, mais do que dirigido ao conhecimento e vontade de fazer mal ao cônjuge, ex-cônjuge, companheiro ou ex-companheiro, dirige-se mais essencialmente ao conhecimento e vontade de fazer mal a uma mulher como forma de dominação e de subalternização desta categoria de pessoas historicamente dominadas, e que assume ainda a qualidade referida em qualquer das alienas do número 1 do artigo 152.º do Código Penal por ser maioritariamente, mas não exclusivamente, no âmbito dessas relações que tais formas de dominação e de subalternização, com recurso à violência, ocorrem. 11. Conforme se entende sem sobressaltos na doutrina e na jurisprudência, o elemento subjetivo no crime de violência doméstica basta-se com o mero dolo genérico, isto é, com o conhecimento e vontade de realizar os elementos objetivos. 12. É suficiente que a relação entre arguido e vítima esteja descrita no elemento objetivo, não carecendo de estar discriminada no elemento subjetivo. 13. A douta decisão recorrida vem introduzir uma exigência de redação acrescida quanto à vertente intelectual do dolo do agente dos factos, que é o concreto conhecimento de que estava a atingir o cônjuge, ex-cônjuge, companheiro ou ex-companheiro. 14. Esta exigência não corresponde sequer à exigência de um de um dolo específico, dado que o dolo específico se dirige à descrição de elementos que não têm correspondência nos elementos típicos objetivos. 15. Pois que se está descrita qual a relação entre o arguido e a ofendida; e se está descrito que o arguido quis praticar aqueles atos relativamente à Ofendida, com todo o respeito, não compreendemos como pode afirmar-se que o elemento subjetivo é insuficiente. 16. Se se descreveu que BB foi companheira de AA; que AA quis fazer e fez mal a BB, logo AA fez mal à sua então companheira. 17. Se se provou que AA manteve relação análoga á dos cônjuges com BB durante 12 anos, AA necessariamente sabia que CC é sua companheira. 18. De acordo com a douta decisão recorrida seria, então possível, dar como provado que a ofendida e o arguido mantiveram comunhão de leito, mesa e habitação por 12 anos, mantendo relação análoga á dos cônjuges, simultaneamente, dar como não provado que AA sabia que BB era sua companheira. 19. A exigência da douta decisão recorrida aduz imprevisibilidade e insegurança na descrição casuística do tipo, o que não é nem desejável nem aceitável. 20. Conforme se escreveu no Ac TRC de 24 de abril de 2024, relatado por Paulo Guerra: “Não existe uma fórmula sacramental de descrever o dolo da violência doméstica.” 21. Com a mesma descrição do elemento subjetivo aqui posto em crise, foram já deduzidas, perante o mesmo tribunal recorrido, muitas dezenas de acusações, mais de uma dezena perante o tribunal coletivo, gerando, na sua esmagadora maioria, condenações, muitas delas em penas de prisão efetiva, algumas longas, e outras confirmadas em recurso pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa sem que tal exigência jamais tivesse sido colocada. 22. Uma tal exigência a título de novidade também gera insegurança e tem um carater de surpresa que vem ao arrepio do propósito da ação da Justiça e dos Tribunais. 23. Considerado o dolo genérico exigido no crime de violência doméstica, é suficiente que do conjunto do texto da acusação decorra que o arguido praticou os factos no interior da residência comum e na presença dos filhos ainda crianças, e que se diga que o arguido agiu de modo livre, voluntário e consciente e que sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei, para se ter por preenchido o elemento subjetivo quanto a todos os factos objetivos descritos na acusação, e designadamente aqueles a que se refere a agravação imputada. Pelas razões vindas de expor consideramos que a douta decisão recorrida violou a lei e os artigos 43.º da Convenção de Istambul, e 14.º e 152.º n.º 1 al. b) e n.º 2 al. a) do Código Penal, devendo ser revogada e substituída por outra que condene o arguido pelam prática do crime de violência doméstica nos termos da acusação pública deduzida, com todas as demais consequências legais”. Não foi apresentada resposta a este recurso. Neste Tribunal da Relação de Lisboa o Ministério Público sustentou a posição assumida em 1.ª instância. Feito o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos remetidos à conferência - cfr. Art.º 419.º n.º 3, c), do Código de Processo Penal. II. Fundamentação. A Decisão Recorrida. No acórdão recorrido o tribunal considerou os seguintes factos provados: “1. BB, nascida a 2 de Novembro de 1993 e o arguido AA, nascido a 13 de Janeiro de 1974, iniciaram uma relação amorosa a 14 de Novembro de 2012, momento em que passaram a residir conjuntamente, partilhando as suas refeições e mantendo relações sexuais, contribuindo mutuamente para as despesas do quotidiano. 2. Neste contexto relacional, constituiu residência comum do casal: no início da relação, em 2012, uma casa sita no ...; em 2014, uma residência sita na ..., sem número de porta; em Maio de 2016, uma outra residência sita ..., sem número de porta; e em 2022 tendo-se mudado para a última residência comum, sita na .... 3. O referido relacionamento amoroso manteve-se, com excepção de um período de separação infra concretizado, durante 12 anos, tendo terminado no dia 12 de Fevereiro de 2024, quando a BB saiu da última residência comum. 4. Quando a predita relação se iniciou, o arguido AA já tinha possuía três filhos frutos de uma relação amorosa anterior mantida com DD, com a qual se manteve sempre casado: EE, nascido a 14 de Setembro de 2017, FF, nascida a 14 de Abril de 2010 e GG, nascida a 12 de Março de 2004. 5. Do relacionamento amoroso que o arguido manteve com BB, nasceram três filhos: HH, II e JJ. 6. No ano de 2013, o arguido passou a adoptar comportamentos possessivos para com BB, exigindo diariamente que a mesma se mantivesse em chamada telefónica consigo desde o momento em que esta embarcasse no porto da Horta para se deslocar à Ilha do Pico, onde laborava, até ao momento em que entrasse no seu local de trabalho, mais solicitando videochamadas com a ofendida para garantir que a mesma se encontrava nesse local e chegando a deslocar-se por diversas vezes à Ilha do Pico, onde permanecia a vigiar a companheira durante as pausas laborais para almoço, solicitando-lhe que a mesma não falasse com ninguém. 7. No início do ano de 2016 a ofendida saiu da residência comum e, em Março do mesmo ano, passou a laborar num estabelecimento de diversão nocturna com a firma “...”, sito na Ilha do Faial. 8. Em Abril de 2016, pelas 04:00 horas, o arguido, após ter descoberto que a ofendida aí laborava, deslocou-se ao referido estabelecimento e, ao chegar, desferiu um soco na porta, partindo-a, após o que ali entrou, segurou na sua ex-companheira pelos pulsos e ordenou-lhe esta que dali saísse por aquele se tratar de um local de “putas”. 9. O casal reconciliou-se a 2 de Maio de 2016, passando, de novo, a residir conjuntamente, na ..., cuja residência partilhavam, agora, com os três filhos em comum e com os filhos do arguido, referidos em 4. 10. Após a reconciliação, o arguido passou a controlar o telemóvel da ofendida, consultando por diversas vezes com quem a mesma estabelecia contactos e disse-lhe que, no seu local de trabalho, descrito em 6., a mesma não poderia falar com ninguém. 11. Em data não concretamente apurada, mas certamente entre Abril e Maio de 2017, o arguido iniciou uma discussão com a ofendida pela circunstância de a mesma ter saído mais tarde do trabalho, momento em ambos começaram a falar num tom de voz elevado. 12. Nessa sequência, o arguido desferiu socos nas prateleiras, nas portas e na mesa da sala da residência e a ofendida, em reacção, atirou em direcção àquele diversos objectos que ali se encontravam. 13. Nessa sequência, o arguido agarrou a companheira, envolvendo-lhe firmemente o pescoço com o seu braço, numa manobra vulgarmente conhecida como “mata-leão”, exercendo pressão e asfixiando BB até que a mesma sentisse tonturas. 14. No dia 12 de Fevereiro de 2024, pelas 19 horas e 30 minutos, no interior da residência sita na ..., o arguido e a ofendida encetaram um discussão após o arguido insinuar que a mesma lhe era infiel, desferindo pontapés nas cadeiras e murros de uma mesa. 15. De seguida, o arguido aproximou-se da ofendida, levantando-lhe a mão, ao que esta, em reacção, receando que o mesmo a agredisse, lhe arremessou pratos de porcelana e pegou numa faca que ali se encontrava e desferiu no arguido, com o cabo da faca, diversas pancadas pelo corpo. 16. Nesse momento, na presença do filho EE, o arguido agarrou a ofendida pelos pulsos e colocou-a no chão. 17. Após, colocando-se sobre as costas da ofendida, o arguido envolveu-lhe firmemente o pescoço com o braço, numa manobra de agressão vulgarmente conhecida como “mata-leão”, apertando e asfixiando BB, até que a mesma ficasse completamente sem ar. 18. O arguido apenas soltou a ofendida após esta ter logrado desferir-lhe, com o cotovelo, um golpe na perna que tinha sido alvo de operação, que lhe fez perder o equilíbrio. 19. De seguida, a ofendida correu para fora de casa e deslocou-se de carro até casa da progenitora, após o que se deslocou ao Hospital da Horta para receber assistência médica pelos cortes que sofreu nas mãos, provocados pela quebra dos pratos que arremessou conforme descritos sob o número 15. 20. No decurso da relação e em datas não concretamente apuradas, mas sitas entre 2018 e 2024, o arguido, pelo menos numa ocasião, dirigiu-se a BB dizendo-lhe “Se algum dia te apanhar com outra pessoa mato-te! Vou andar de olho em ti!”. 21. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito alcançado de exercer poder sobre a ofendida BB e de a dominar, querendo causar-lhe, como causou, medo, humilhação, vergonha, dores e sofrimento físico e psíquico, de a prejudicar na sua saúde e de a limitar na sua liberdade e no livre desenvolvimento da sua personalidade. 22. Sabia, no mais, que toda a sua descrita conduta era proibida e punida por lei. [Do pedido cível deduzido pelo lesado Hospital da Horta, E.P.E.R.] 23. Na sequência dos cortes referidos sob o número 18., o Hospital da Horta, E.P.E.R. prestou assistência médica hospitalar à ofendida BB, onde foi atendida em episódio de urgência que importou um custo total de 85,00€. [Do Arbitramento Oficioso de Indemnização à Vítima] 24. BB nasceu a 2 de Novembro de 1993. 25. Encontra-se desempregada. 26. Tem os três filhos nascidos da sua relação com o arguido a seu cargo, não se encontrando o mesmo a liquidar mensalmente qualquer quantia fixa para dar cobro às suas despesas. 27. Os filhos HH e II frequentam a escola pública e filha JJ frequenta a creche. [Condições Pessoais e Económicas do Arguido] 28. O arguido nasceu a 13 de Janeiro de 1974, natural da freguesia de Cedros, Ilha do Faial, possuindo, actualmente, 50 anos de idade. 29. Com 9 anos de idade, foi residir para os Estados Unidos na América, onde completou o 12.º ano de escolaridade. 30. Iniciou o seu percurso laboral nos Estados Unidos da América, onde desempenhou funções como empregado fabril. 31. Regressou a Portugal, à Ilha do Faial, com 24 anos, tendo laborado como vigilante na Marina do Faial e como segurança em estabelecimentos de diversão noturna. 32. Na sequência de acidente de motociclo de alta cilindrada entre os anos de 2012 e 2013, o arguido reformou-se por invalidez, auferindo, actualmente, a título de pensão mensal, cerca de 600,00€. 33. Tem 9 filhos, nascidos de três relações amorosas diferentes: duas filhas de uma primeira relação amorosa, actualmente com 33 e 30 anos de idade e autónomas financeiramente; quatro filhos, um dos quais faleceu, nascidos da relação amorosa mantida com DD, conforme descrito em 4.; três filhos, nascidos da relação amorosa com a ofendida, conforme descrito em 5, todos os quais frequentam escola pública. 34. Paga à sua ex-companheira DD uma pensão de alimentos devida aos seus filhos, num total de 170,00€ mensais. 35. Reside numa casa arrendada, liquidando a título de renda mensal o valor de 350,00€. 36. Contraiu um empréstimo bancário para aquisição de casa própria, liquidando, a título de prestação mensal, cerca de 197,00€. 37. Contraiu um empréstimo bancário para aquisição de viatura própria, liquidando, a título de prestação mensal, o valor de 50,00€. [Antecedentes Criminais] 38. Não se encontram averbados em nome do arguido quaisquer antecedentes criminais. [Consentimento] 39. Em sede de audiência de discussão e julgamento, directamente questionado, o arguido manifestou o seu consentimento para que, em caso de aplicação de pena de prisão suspensa, a referida suspensão fosse condicionada à sua sujeição a diagnóstico e acompanhamento psicológico”. Foi a seguinte a fundamentação apresentada quanto ao enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido relativamente à incriminação de violência doméstica: “A acusação pública imputa ao arguido, em autoria material e sob a forma consumada, a prática de um (1) crime de violência doméstica, previsto e punível nos termos do artigo 152.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, alínea a), do Código Penal. Cumpre, então, analisar se a factualidade concretamente apurada se afigura subsumível ao imputado crime. * DO CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA Nos termos do artigo 152.º, n.º 1, alínea d), do Código Penal, “Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais (…) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação (…) é punido com pena de prisão de dois a cinco anos”. Apesar da divergência suscitada em torno do BEM JURÍDICO tutelado pela incriminação, tem sido posição assumida por grande parte da doutrina e jurisprudência, que aqui se acompanha, a de que a tutela se dirige à integridade física e a dignidade pessoal, que abrange tanto a saúde física como a saúde psíquica da vítima [Carvalho, Américo Taipa de, na anotação ao artigo 152.º do Código Penal, in Comentário Conimbricense ao Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 2012, 2.ª edição, Coimbra, p. 512 e Brandão, Nuno, in A Tutela Especial Reforçada da Violência Doméstica, Revista Julgar, n.º 12, Setembro de 2010, pp. 15 e 16]. Ao nível TIPO OBJECTIVO trata-se de um crime específico, já que pressupõe que o agente se encontre numa determinada relação com o sujeito passivo dos comportamentos em causa: uma relação conjugal ou análoga, seja actual, seja passada, uma relação parental ou uma relação de coabitação. De todo o exposto já se infere que a autonomização deste crime em face das demais incriminações igualmente tuteladoras da integridade física e psíquica da pessoa (sobretudo com a reforma ao Código Penal de 2007, que retirou o elemento da reiteração) não ocorre, por isso, ao nível do bem jurídico, mas ao nível da ilicitude, a partir da especial relação de intimidade que se estabelece entre o agressor e a vítima. De forma impressiva, sugere o Tribunal da Relação do Porto, no Acórdão de 16 de Março de 2022, processo n.º 1052/20.2GBVNG.P1, relatado por Nuno Pires Salpico, consultado em www.dgsi.pt, que esta especial tutela resulta da circunstância de o comportamento violento emergir “entre sujeitos que estão ligados por especiais deveres de respeito (…), os quais assentam numa relação de proximidade, de conhecimento mútuo e por isso de elevada exposição”. Dito de outro modo, a tutela ao nível da saúde física e psíquica da vítima encontra-se, neste tipo de ilícito, interligado a uma especial desconsideração pela sua dignidade pessoal imanente ao comportamento violento próprio dos maus tratos. Confere-se, em suma, “uma ‘tutela especial e reforçada’ da vítima perante situações de violência desenvolvida no seio da vida familiar ou doméstica que, pelo seu caráter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, evidenciem um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal” e “de perigo ou de ameaça de prejuízo sério para a saúde e para o bem-estar físico e psíquico da vítima” [Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28 de Setembro de 2011, processo n.º 170/10.0GAVLC.P1, relatado por Artur Oliveira, consultado em www.dgsi.pt]. O crime de violência doméstica visa, por conseguinte, “proteger muito mais do que a soma dos diversos ilícitos típicos que o podem preencher, como ofensas à integridade física, injúrias ou ameaças. Está em causa a dignidade humana da vítima, a sua saúde física e psíquica, a sua liberdade de determinação, que são brutalmente ofendidas, não apenas através de ofensas, ameaças ou injúrias, mas essencialmente através de um clima de medo, angústia, intranquilidade, insegurança, infelicidade, fragilidade e humilhação” [Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 7 de Fevereiro de 2018, processo n.º 663/16.5 PBCTB.C1, relatado por Brízida Martins, consultado em www.dgsi.pt – itálico da responsabilidade da subscritora]. Já a conduta, propriamente dita, traduz-se em infligir a outra pessoa maus-tratos físicos ou psíquicos. Este é um conceito indeterminado, para cuja concretização o legislador logrou contribuir, acrescentando que a conduta poderá abranger, nomeadamente, castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais. A abertura típica conferida pelo legislador é propositada, exprimindo o objectivo da incriminação que opera ao abrigo do artigo 152.º, que, como já supra se deixou referido, visa conferir significado criminal a condutas que, de outro modo, seriam penalmente irrelevantes. Esta tutela permite converter um facto que, ao abrigo de outras incriminações poderia não encontrar guarida penal – o que resultaria na sua atipicidade – num facto censurável e punível; ao mesmo tempo que, noutros casos, permite uma punição mais agravada do que aquela que caberia a uma simples ofensa à integridade física [Brandão, Nuno, in A Tutela Especial Reforçada da Violência Doméstica, Revista Julgar, n.º 12, Setembro de 2010, p. 18]. É com base no exposto que parte da doutrina e da jurisprudência vêm considerando que o crime de violência doméstica se tratará de um crime de perigo abstracto, e não um crime de perigo concreto ou de dano, entendimento esse que sufragamos, e que surge evidenciado pelo o próprio legislador, que não se reporta expressamente a qualquer perigo concreto. A formulação normativa e a sua aludida ratio apontam, assim, para uma intenção legislativa de dispensa de prova da efectiva ofensa à integridade física ou psíquica da vítima, bastando-se com a prova da idoneidade desses comportamentos a fazer recear-se que deles possa vir a resultar um perigo para ela [neste sentido, Brandão, Nuno, in A Tutela Especial Reforçada da Violência Doméstica, Revista Julgar, n.º 12, Setembro de 2010, p. 17; Carvalho, Américo Taipa de, na anotação ao artigo 152.º do Código Penal, in Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, 2012, 2.ª edição, Coimbra, pp. 520; Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 07 de Fevereiro de 2018, proc. N.º 663/16.5 PBCTB.C1, relatora Brízida Martins, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15 de Janeiro de 2020, proc. N.º 420/17.1PAVLG.P1, relator Nuno Pires Salpico e Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 08 de Janeiro de 2013, proc. N.º 113/10.0TAVVC.E1, relator João Gomes de Sousa]. Por esta razão, o preenchimento do tipo basta-se com a idoneidade do comportamento violento em ferir a saúde física e psíquica da vida e a sua dignidade e liberdade, com o comportamento que potencialmente diminua a vítima e a coloque numa posição de sujeição perante futuras agressões [cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 16 de Março de 2022, processo n.º 1052/20.2GBVNG.P1, relatado por Nuno Pires Salpico, consultado em www.dgsi.pt]. Os maus-tratos físicos poderão ser, com efeito, definidos como condutas que, por qualquer modo, ofendam o corpo ou saúde da vítima, abrangendo comportamentos como empurrões, apertos de braço e puxões. Os maus-tratos psíquicos abrangerão as humilhações, ameaças, provocações, privações, críticas, comentários destrutivos, stalking, ameaças (que não cheguem a consubstanciar crime de ameaça), sempre se exigindo que tenham intensidade suficiente, em termos de apreciação global, para colocar em crise o bem jurídico protegido e que não sejam puníveis com pena mais grave aplicável por força de outra disposição legal [Carvalho, Américo Taipa de, na anotação ao artigo 152.º do Código Penal, in Comentário Conimbricense ao Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 2012, 2.ª edição, Coimbra, pp. 515 a 516]. * O crime de violência doméstica tem, assim, como elementos constitutivos do tipo (i) o acto ou omissão do agente através do qual inflija maus-tratos físicos ou psíquicos; (ii) a pessoa que com ele mantenha uma relação de especial proximidade prevista no artigo 152.º, n.º 1, alíneas a), b), c) ou d); (iii) de modo reiterado ou isolado, (iv) desde que, à luz da imagem global dos factos seja susceptível de causar perigo para a saúde e a dignidade pessoal da vítima. * Constitui, por sua vez, circunstância qualificativa agravante dos limites mínimo e máximo da pena aplicável, que passa a situar-se entre os 2 e os 5 anos de prisão, a de os actos terem lugar contra menor, na presença de menor ou no domicílio comum ou da vítima [artigo 152.º, n.º 2, alínea a), in fine] – note-se, quanto a esta última parte, sem que saí advenha a dupla valoração do mesmo comportamento (facto praticado contra pessoa com a qual o arguido coabite e o comportamento ter lugar na habitação comum), uma vez que o tipo fundamental depende da qualidade da pessoa (pessoa especialmente vulnerável com quem arguido coabita), ao passo que a agravação reside no local onde o facto ocorra (domicílio comum ou da vítima). * No que se refere ao TIPO SUBJECTIVO, trata-se de um crime doloso, em qualquer uma das formas previstas no artigo 14.º do Código Penal, tal como decorre da leitura conjugada dos artigos 13.º e 152.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, alínea b), todos do Código Penal. Com efeito, exige-se do autor o conhecimento dos elementos objectivos do tipo e da identidade e características da vítima, e, no caso dos maus-tratos físicos, a representação e intenção de prosseguir o resultado danoso da integridade física. Já em relação às outras condutas bastará o dolo de perigo de afectação da saúde [cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11 de Novembro de 2021, processo n.º 1000/20.0POLSB.L1-9, relator Calheiros da Gama e Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10 de Julho de 2013, proc. N.º 413/11.2GBAMT.P1, relatora Maria do Carmo Silva Dias, ambos consultados em www.dgsi.pt]. Alguma jurisprudência vem sugerindo que este dolo surge interligado a um dolo de domínio e de subjugação, associado à intenção de lesar a dignidade pessoal da vítima [cfr., a título exemplificativo, os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 15 de Janeiro de 2020, processo n.º 420/17.1PAVLG.P1, e de 16 de Março de 2022, processo n.º 1052/20.2GBVNG.P1, ambos relatados por Nuno Pires Salpico, consultado em www.dgsi.pt]. * Efectuado, em abstracto, o enquadramento jurídico do crime em apreço, cumpre analisar o caso sub judice, tendo em vista aferir se os factos apurados se afiguram, ou não, subsumíveis aos pressupostos típicos acabados de analisar. Ora, resultou provado que o arguido AA manteve uma relação amorosa com BB, vivendo os mesmos como se de marido e mulher se tratassem durante cerca de 12 anos [factos dados como provados sob os números 1, 2 e 3]. Resultou ainda apurado que, no contexto do relacionamento, o arguido foi assumindo comportamentos de controlo perante a ofendida, que escalaram, numa primeira fase, para actos de violência verbal, dirigindo-lhe ameaças de morte [factos dados como provados sob os números 6, 7, 8, 10 e 20] e que culminaram, a final, em dois episódios de violência física no interior da habitação comum, um deles presenciado pelo menor EE (filho do arguido) nos quais o arguido, na sequência de discussões motivadas por ciúmes e após desferir pontapés e murros em objectos da residência como acto de intimidação, perante a reacção de defesa da ofendida, agarrou-a e apertou-lhe o pescoço, sufocando-a, o que, no último episódio retratado, apenas não teve consequências mais nefastas (potencialmente a perda de sentidos total da ofendida) porque a sua companheira logrou soltar-se, através de um golpe que desferiu na perna do arguido [factos dados como provados sob os números 11 a 18]. Diga-se, no que concerne aos actos de agressão da própria ofendida (que, em ambos os relatados episódios de violência física arremessou objectos que tinha na sua disponibilidade e se muniu de um faca com a qual bateu no corpo do arguido [factos dados como provados sob os números 12 e 16]), nunca poderiam os mesmos considerar-se neutralizadores do desvalor da conduta do arguido, justificando-a ou tornando-a menos censurável do ponto de vista da culpa ou da ofensa do bem jurídico tutelado. Na verdade, o arguido é, conforme observado em audiência, um sujeito alto e corpulento, sendo absolutamente compreensível que, no decurso de discussões em que o mesmo já manifestada um comportamento violento e descontrolado, quer do ponto de vista verbal, quer do ponto de vista físico (ao pontapear ou desferir murros contra mesas e portas), a ofendida, sentindo-se legitimamente na iminência de ser alvo de semelhante agressão actual à sua integridade física, reagisse, tentado repelir ou demover arguido, em legítima defesa [artigo 32.º do Código Penal]. Os comportamentos do arguido tratam-se, inegavelmente, de comportamentos activos e reiterados consubstanciadores de maus-tratos psíquicos e físicos infligidos à pessoa da sua companheira, reconduzindo-a a uma vivência de medo, de tensão e de subjugação. Não se tratou de uma conduta isolada, mas de condutas reiteradas e com um padrão de comportamento prolongado no tempo, que assumem especial relevância ao nível do desvalor da conduta. Assim actuou, por duas vezes (nos dois episódios de violência física retratados sob os números 11 a 18), no domicílio comum, e, numa das vezes (no último episódio de 12 de Fevereiro de 2024), perante o filho menor que também ali residia [artigo 152.º, n.º 2, alínea a), do Código Penal]. Conclui-se, como tal, pela verificação de todos os elementos objetivos do crime de que vinha acusado, onde se engloba a agravação imputada. Ficou ainda apurado que as condutas perpetradas pelo arguido o foram a título doloso, porquanto, conforme apurado sob o número 21, agiu sobre a ofendida com o propósito de causar medo, humilhação, vergonha, dores e sofrimento físico e psíquico, de a prejudicar na sua saúde e de a limitar na sua liberdade e no livre desenvolvimento da sua personalidade. No entanto, não se mostra inteiramente preenchido o elemento subjetivo do ilícito fundamental nem, de todo, preenchido o elemento subjectivo referente à agravação. De facto, a acusação mostrava-se absolutamente omissa a respeito da representação do arguido da relação que mantinha com a ofendida e intenção de perpetrar essas condutas quanto à sua companheira, e, por conseguinte que estava ciente do dever especial que daí emergia e que justifica a punição das ofensas perpetradas (de outro modo reconduzíveis a outros tipos de crime) concretamente no âmbito do crime de violência doméstica. Afigura-se-nos, na verdade, que a acusação apenas logra concretizar o elemento subjectivo relativo às ofensas perpetradas e o elemento subjectivo relativo ao tipo de dolo (específico) que, conforme supra referimos, não se traduz no elemento expressamente previsto pelo legislador, sendo a sua verificação insuficiente para a punição (a intenção de exercer domínio ou subjugar a vítima). Mas, tratando-se de um crime específico próprio, quanto ao autor – cuja especial relação que mantém com a vítima lhe fazem emergir deveres especiais que fundamentação a incriminação ao nível deste crime, de modo diverso aos demais crimes de injúria, ameaça ou ofensas à integridade física que poderiam estar em causa, que são crimes comuns – torna-se sempre necessário que o agente tenha conhecimento das suas especiais qualidades perante a vítima. Conforme refere, nesta parte, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 25.05.2023, proferido no âmbito do processo n.º 1819/21.4T9STB.E1 relatado por Moreira das Neves, “Sendo o elemento subjetivo composto pelo dolo genérico, id est (o conhecimento e vontade de praticar o facto), em qualquer das suas formas (direto, necessário ou eventual), «o dolo implicará o conhecimento da relação subjacente à incriminação da violência doméstica, assim como o conhecimento e vontade da conduta e do resultado, consoante os comportamentos em causa configurem tipos formais ou materiais». Não exigindo o ilícito de violência doméstica qualquer elemento subjetivo específico” [itálico da responsabilidade da signatária], citando Maria Elisabete Ferreira, O Crime de Violência Doméstica na Jurisprudência Portuguesa (Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Manuel da Costa Andrade, 2017, Instituto Jurídico, Boletim da Faculdade de Direito – Universidade de Coimbra – Studia Iuridica, 1008, p. 583, BFDUC). O que, in casu, não se verifica. A acusação é, por outro lado, absolutamente omissa quanto à representação e intenção do arguido dirigidas à circunstância agravante de perpetrar os factos do domicílio comum ou na presença do seu filho menor. Quanto a tais omissões, encontra-se vedado ao Tribunal operar qualquer integração dos elementos subjectivos em falta, em conformidade com a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça [Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 1/2015, publicado no Diário da República, 1.ª série — N.º 18 — 27 de Janeiro de 2015], que impede que se lance mão de uma eventual alteração substancial dos factos, conforme prevista no artigo 359.º, por referência ao artigo 1.º, alínea f), do Código de Processo Penal, pois que tal implicaria, não a imputação de um crime diverso, mas a conversão de uma conduta atípica numa conduta típica. E é assim ainda que da factualidade objectiva sempre fosse possível inferi-los: conforme se refere no aludido acórdão, “não é admissível a ideia de um «dolus in re ipsa», ou seja, a presunção do dolo resultante da simples materialidade de uma infracção” – pois que uma coisa é “poder operar a comprovação do dolo pelo recurso a presunções legais”, que pressupõe que a respectiva factualidade que se pretende provar se mostre alegada; outra coisa é inferir de matéria alegada a prova de matéria que não se mostre alegada. No entanto, consideramos que, não se demonstrando o conhecimento por parte do arguido da especial relação que mantinha com a vítima (crime específico próprio), nem por isso a sua conduta perde relevância criminal. De facto, in casu estão comportamentos que, sendo perpetrados, como foram e com a intenção com que foram, por e contra qualquer pessoa, independentemente das suas especiais qualidades, sempre subsumiriam à prática de diversos crimes (comuns, do ponto de vista do agente). * DOS CRIMES DE OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA SIMPLES (…)”. Objecto do recurso. Conforme dispõe o art.º 412.º nº1 do Código de Processo Penal, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente na respetiva motivação, nas quais o mesmo sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido por si formulado, de forma a permitir que o tribunal superior apreenda e conheça das razões da sua discordância em relação à decisão recorrida, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso que eventualmente se verifiquem. De acordo com o disposto no art.º 412.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, versando matéria de direito, como é exclusivamente o recurso interposto pelo Ministério Público nestes autos, “as conclusões indicam ainda: a) As normas jurídicas violadas; b) O sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada; e c) Em caso de erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, deve ser aplicada”. Atentas as conclusões apresentadas pelo recorrente e as especificações legalmente exigidas, as questões de direito a apreciar e decidir são a da violação: - do artigo 43.º da Convenção de Istambul, - dos artigos 14.º e 152.º n.º 1 al. b) e n.º 2 al. a) do Código Penal, com a consequente condenação do arguido pela prática do crime de violência doméstica nos termos da acusação pública deduzida. 1. Violação do artigo 43.º da Convenção de Istambul O recorrente sustenta a violação pelo tribunal recorrido do disposto no art.º 43.º da Convenção de Istambul. Estabelece tal disposição que “as infrações previstas na presente Convenção aplicam-se, independentemente da natureza da relação entre a vítima e o perpetrador”. Sendo claro que era ao recorrente Ministério Público que incumbia demonstrar como é que esta norma foi indevidamente interpretada ou aplicada pelo tribunal recorrido, e qual deveria ter sido o seu sentido de aplicação, não é minimamente perceptível a violação normativa invocada. Apesar de o Ministério Público efectuar diversos considerandos sobre a protecção das mulheres, como se alguma desconsideração da ofendida tivesse sido pressuposta na decisão recorrida, em particular por ser mulher, não é possível perceber o enquadramento da alegada violação daquele art.º 43.º da Convenção de Istambul. Assim, nenhum dos fundamentos expostos na sentença recorrida perturba o sentido de defesa das vítimas (nomeadamente das mulheres). Por outro lado, dentro do sentido potencial do referido art.º 43.º da Convenção de Istambul em relação ao caso dos autos, é de destacar que, apesar da questão principal referida no ponto seguinte, o tribunal recorrido não só não esqueceu, como destacou devidamente o relacionamento verificado entre a ofendida e o arguido. Ou seja, mesmo sem o enquadramento penal reconduzido à incriminação de violência doméstica, foi totalmente respeitada a ponderação penal que se impunha em decorrência do relacionamento entre arguido e a ofendida. Pelo que não se mostra violado o disposto no art.º 43.º da Convenção de Istambul. 2. Violação dos artigos 14.º e 152.º n.º 1 al. b) e n.º 2 al. a) do Código Penal Conforme se depreende dos termos do recurso apresentado pelo Ministério Público, a discordância essencial que o mesmo apresenta com a sentença recorrida é o juízo de que os factos provados (na linha da acusação) não integram o tipo subjectivo da incriminação de violência doméstica. Efectivamente, após uma análise do tipo objectivo da incriminação previsto no art.º 152.º do Código Penal, e do reconhecimento do seu preenchimento (ainda que com fundamentação não consensual, designadamente na referência à incriminação como podendo ser de mero perigo), aceitando a verificação do dolo quanto às condutas provadas, o tribunal recorrido apresenta as seguintes afirmações quanto ao preenchimento do tipo subjectivo da incriminação: “No entanto, não se mostra inteiramente preenchido o elemento subjetivo do ilícito fundamental nem, de todo, preenchido o elemento subjectivo referente à agravação. De facto, a acusação mostrava-se absolutamente omissa a respeito da representação do arguido da relação que mantinha com a ofendida e intenção de perpetrar essas condutas quanto à sua companheira, e, por conseguinte que estava ciente do dever especial que daí emergia e que justifica a punição das ofensas perpetradas (de outro modo reconduzíveis a outros tipos de crime) concretamente no âmbito do crime de violência doméstica. Afigura-se-nos, na verdade, que a acusação apenas logra concretizar o elemento subjectivo relativo às ofensas perpetradas e o elemento subjectivo relativo ao tipo de dolo (específico) que, conforme supra referimos, não se traduz no elemento expressamente previsto pelo legislador, sendo a sua verificação insuficiente para a punição (a intenção de exercer domínio ou subjugar a vítima). Mas, tratando-se de um crime específico próprio, quanto ao autor – cuja especial relação que mantém com a vítima lhe fazem emergir deveres especiais que fundamentação a incriminação ao nível deste crime, de modo diverso aos demais crimes de injúria, ameaça ou ofensas à integridade física que poderiam estar em causa, que são crimes comuns – torna-se sempre necessário que o agente tenha conhecimento das suas especiais qualidades perante a vítima. (…) A acusação é, por outro lado, absolutamente omissa quanto à representação e intenção do arguido dirigidas à circunstância agravante de perpetrar os factos do domicílio comum ou na presença do seu filho menor. (…) No entanto, consideramos que, não se demonstrando o conhecimento por parte do arguido da especial relação que mantinha com a vítima (crime específico próprio), nem por isso a sua conduta perde relevância criminal. De facto, in casu estão comportamentos que, sendo perpetrados, como foram e com a intenção com que foram, por e contra qualquer pessoa, independentemente das suas especiais qualidades, sempre subsumiriam à prática de diversos crimes (comuns, do ponto de vista do agente”. Ou seja, apesar de o recorrente não o destacar especificamente, o tribunal recorrido considerou que a factualidade provada que podia ser reconduzida aos elementos subjectivo da incriminação de violência doméstica (nesta parte idêntica à que era descrita na acusação) não permitia a sua subsunção jurídica completa em termos subjectivos. Embora o tribunal não o tenha dito de forma clara, essa apreciação resultaria da interpretação restritiva da expressão utilizada no facto provado 21 “O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito alcançado de exercer poder sobre a ofendida BB e de a dominar, querendo causar-lhe, como causou, medo, humilhação, vergonha, dores e sofrimento físico e psíquico, de a prejudicar na sua saúde e de a limitar na sua liberdade e no livre desenvolvimento da sua personalidade”. Estas palavras terão sido insuficientes, de acordo com o tribunal recorrido, para transmitir o conhecimento do arguido em relação a todos os demais factos provados anteriores, bem como quanto à vontade de os realizar; em particular terá pressuposto o tribunal recorrido que este facto não poderia abranger o conhecimento e vontade sobre a relação do arguido com a ofendida e quanto à circunstâncias típicas das ocorrências. Ora, de acordo com o art.º 14.º, n.º 1, do Código Penal, “age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, actuar com intenção de o realizar”. Daqui decorre que o agente do crime deve ter conhecimento de todos os factos que preencham uma dada incriminação (elemento cognitivo), e que o mesmo deve ter intenção de concretizar a sua conduta com esse âmbito (elemento volitivo)1. Apesar de na sentença recorrida se misturar indistintamente o conhecimento dos factos e a vontade de os realizar, estão em causa duas dimensões subjectivas de aplicação diferente porquanto as circunstâncias típicas de uma incriminação (como o tipo de relação entre o arguido e a ofendida ou a sua coabitação) não são dependentes da intenção do agente do crime de as realizar, ou seja, não se traduzem em alguma acção típica, sendo-lhe pressuposto e ficando preenchido o dolo do arguido apenas em virtude do seu conhecimento, acompanhado da vontade de realizar o facto criminoso em si; sabendo, por isso o arguido que o faz nessas circunstâncias. Pretende o tribunal recorrido que dos factos provados não pode decorrer a representação do arguido da relação que mantinha com a ofendida e a qualidade de sua companheira quanto à ofendida. Tendo sido provado que o arguido actuou de forma livre, voluntária e consciente – por referência os demais factos provados antes descritos - é manifesto que, tal como o Ministério Público pretendeu na acusação, ficou provado o conhecimento, consciência de todos os factos provados descritos anteriormente e a sua vontade de os realizar, incluindo a relação que o arguido mantinha com a ofendida, a sua coabitação e mesmo a presença do filho numa das situações. Não é sequer compreensível como é possível pretender que esta representação não está descrita, tendo sido especificada a relação da vítima com o arguido, mas que se encontra descrita a representação (o elemento cognitivo) quanto aos demais elementos do tipo objectivo, assim como aos elementos dos tipos objectivos de ofensa à integridade física e de ameaça2. Em relação a estas últimas incriminações apenas se verifica em acréscimo a prova de uma intenção específica (dolo específico) que, conforme o tribunal recorrido afirma, não releva para o preenchimento da incriminação. Sendo claro que a incriminação de violência doméstica não comporta elementos subjectivos especiais da ilicitude Independentemente da forma de expressão escrita utilizada estão assim, provados os factos que se reconduzem ao dolo do arguido quanto a todos os demais factos provados. Pelo que se mostra preenchida a incriminação de violência doméstica prevista no art.º 152.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, alínea a), do Código Penal (de acordo com a análise do tipo objectivo devidamente efectuada na sentença recorrida e do tipo subjectivo agora verificada). A recondução da conduta do arguido às incriminações de ofensa à integridade física e de ameaça apenas foi feita de forma subsidiária, consequente ao não preenchimento da incriminação de violência doméstica, pelo que tais condenações devem ser revogadas. 3. Consequências Feito o preenchimento jurídico da conduta criminosa há que determinar a medida da pena concreta adequada ao arguido. A prática de um crime de violência doméstica prevista no art.º 152.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, alínea a), do Código Penal é punida com pena de prisão de 2 a 5 anos (de acordo com a agravante decorrente da prática de factos criminosos no domicílio comum e na presença do filho). De acordo com os termos da sentença recorrida, na parte não especificamente impugnada, e que se aceita: “Para as teorias de prevenção positiva, a que o legislador penal nacional indubitavelmente adere, tal como decorre do artigo 40.º, n.º 1, do Código Penal, a pena tem em vista, desde logo, reforçar a confiança da comunidade na validade da norma e na força e manutenção da sua vigência da sua, apesar da violação de que foi alvo (prevenção geral positiva). Por sua vez, evitando a total instrumentalização do indivíduo ao serviço de fins meramente utilitários ou pragmáticos que pretendem alcançar-se no contexto social, a ele externos - a que obsta, desde logo, o princípio da dignidade da pessoa humana, basilar da República Portuguesa nos termos do artigo 1.º da Constituição - determina o mesmo artigo 40.º, n.º 1, do Código Penal, que a pena logrará igualmente prover à reintegração do indivíduo na sociedade (prevenção especial positiva). Descendo ao caso concreto, é de entender que as exigências de prevenção geral, enquanto necessidade de reestabelecer a confiança da comunidade na validade das normas violadas, são particularmente elevadas. Tal conclusão toma por referência a circunstância de os crimes terem sido cometidos no domicílio comum da vítima e do arguido, um dos quais na presença de um menor, e todos eles contra a pessoa com quem o arguido não só manteve, durante 12 anos, uma relação análoga à dos cônjuges, como com a qual teve três filhos. As referidas circunstâncias (…) não deixam de caracterizar objectivamente os factos perpetrados olhos da comunidade, e de à sua luz serem percepcionados com um maior desvalor social, que conduz ao agravamento da ânsia pela reposição das normas violadas como forma de garantia do bem jurídico tutelado. Mas mesmo ao nível das exigências de prevenção especial, sempre se dirá que (…) todo o enquadramento apurado dos factos é igualmente susceptível de reverter a seu particular desfavor. Os factos evidenciam uma escalada de violência contra a ofendida, ao longo de 12 anos, no decurso dos quais o arguido poderia e deveria ter reflectido a respeito do seu comportamento. Pelo contrário, o arguido foi agravando, a cada novo ilícito perpetrado, o grau de violência empregado, demonstrando absoluta falta de juízo crítico e, até, algum sentimento de impunidade, que, de resto, foi perceptível na postura adoptada nas poucas interacções que teve com o Tribunal do decurso da audiência (nas quais demonstrou absoluta descontracção e até alguma leviandade, dirigindo-se à signatária como “senhora” e empregando vocábulos em língua inglesa - como “yeah” -, não obstante, directamente questionado, afirmar que já se encontrava a residir em Portugal há mais de vinte anos, dominando a língua portuguesa). Há ainda que atender ao grau de ilicitude dos factos relativos às ofensas à integridade física perpetradas, atendendo ao modus operandi das condutas do arguido, actuando, em duas ocasiões diversas, sobre a ofendida, apertando-lhe o pescoço por recurso à manobra de estrangulamento conhecida como “mata-leão”, deixando-a, em ambas as vezes, tendo em conta os sintomas demonstrados, perto da perda de sentidos, resultado que, no último evento, apenas não se verificou porque a ofendida logrou soltar-se após atingir o arguido numa perna combalida. Conhecem-se os resultados nefastos que a conduta do arguido poderia ter tido e que não chegaram a ocorrer por motivos alheios ao arguido. Na verdade, o estrangulamento, consistindo no acto de pressionar o pescoço, interrompe o fluxo de oxigênio para o cérebro, podendo levar à inconsciência e, em última instância, à morte. Não se vislumbram quaisquer motivos que tornassem a conduta do arguido sequer remotamente justificada ou necessária para, sendo esse o seu propósito, manietar a ofendida. Antes pelo contrário. O que, de resto, contribui para reforçar a particular censurabilidade da sua conduta, a acrescer ao dolo directo com que foram praticados os factos, e que frustra, conforme começou por se referir, as expectativas do Tribunal a respeito da maleabilidade do arguido e sua permeabilidade à intervenção penal e correcção futura da sua conduta perante a aplicação de uma pena de carácter económico que não encerre, sequer, uma ameaça de privação da sua liberdade. (…) MEDIDA DA PENA Importa agora fixar a medida concreta das referidas penas, dentro das molduras abstratamente previstas. Para tanto, deve atender-se aos critérios previstos no artigo 71.º do Código Penal, nos termos do qual “A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”. (…) Com efeito, a medida concreta da pena será encontrada, num primeiro momento, dentro da moldura penal abstracta, tendo em conta a medida da necessidade de tutela de bens jurídicos (prevenção geral), sem ultrapassar a medida da culpa (limite máximo da pena concreta). Num segundo momento, a pena concreta será encontrada, dentro desta nova moldura, fazendo actuar as exigências de prevenção especial de socialização que o caso revele. A determinação é auxiliada pelo artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal, que fornece, de forma exemplificativa, os factores de determinação de medida da pena. Desta forma, e com directa relevância para a determinação da medida da pena, em desfavor do arguido dir-se-á o seguinte. Em primeiro lugar, não é despiciente o juízo de censura merecido. Por um lado, atendendo ao dolo directo com que praticou os factos. Por outro lado, tendo em conta a motivo fútil que determinou a conduta do arguido, em todos os factos perpetrados, tolhido pela necessidade de controlo sobre a pessoa da ofendida, com a intenção de a dominar, exercer poder sobre si e de a limitar na sua liberdade, em actos manifestamente desproporcionados à resistência que aquela era susceptível de lhe oferecer. Tal juízo de censura é mais elevado no que ao episódio de agressão física do dia 12 de Fevereiro de 2024 concerne, atendendo a que se trata já de uma repetição do mesmo ilícito anteriormente praticado, assim traduzindo uma personalidade absolutamente desprovida de capacidade de auto-reflexão ou de remorsos pelas condutas perpetradas. O mesmo se dirá quanto ao grau de gravidade da ilicitude da conduta, que é mediano no que concerne às ameaças proferidas, mas elevado no que respeita às ofensas à integridade física perpetradas, atendendo ao grau de violência dos seus actos, por recurso a manobras de estrangulamento que chegaram a provocar na ofendida os sintomas primordiais da perda de sentidos (tonturas e falta de ar). (…). Todo o exposto contribui, concomitantemente, para elevar as exigências de prevenção especial reclamadas. O arguido revela, em face de todo o exposto mas, em especial, no grau de violência empregado, ao estrangular a ofendida, na reiteração dessa conduta, na persistência demonstrada no seu cometimento (ao ponto de provocar na ofendida visão turva e de impedir que a mesma respirasse), no lapso temporal ocorrido entre todas as condutas imputadas (cerca de 6 anos) - que não teve qualquer efeito ao nível da sua correcção e arrependimento – e à postura de indiferença manifestada em sede de audiência final supra descrita, uma forte resistência perante o obstáculo que constitui a proibição penal e um manifesto sentido de impunidade perante a sua actuação. Em suma, o arguido não revela possuir qualquer freio quando e se colocado, no futuro, perante as mesmas circunstâncias que o motivaram a praticar os factos sub judice, revelando um descontrolo emocional que, uma vez premido, o torna impermeável aos comandos e às proibições legais vigentes, sem que, posteriormente, uma vez voltando a si, demonstre qualquer capacidade de reflexão que condicione o seu comportamento futuro. Por sua vez, afirmam-se elevadas as exigências de prevenção geral positiva, atendendo ao alarme social potenciado pelas circunstâncias em que foram praticados os factos, conforme supra se fundamentou. A favor do arguido dir-se-á que o mesmo se manteve profissionalmente activo durante toda a sua vida, revelando integração laboral. Já a respeito da sua integração social, não obstante a ausência de antecedentes criminais, o arguido evidencia alguma instabilidade pessoal, sendo pai de oito filhos, de três mães diferentes, não se encontrando a contribuir com quaisquer quantias mensais fixas para o sustento dos seus três filhos mais novos (que nasceram de um relacionamento mantido com uma terceira companheira, não obstante ter permanecido casado com a anterior) e tendo demonstrado, em audiência, algum desprendimento e falta de consciência parental para a necessidade de assumir o seu sustento. Sopesando devidamente todas estas circunstâncias, julga-se ainda adequado, necessário e proporcional aplicar o arguido, por se considerar proporcional à sua culpa efetiva, e que se crê suficiente para a afirmação da validade da norma por si violada e para evitar uma sua recidiva no futuro (…)”, concluindo-se pela adequação de uma pena de 4 anos de prisão. Quanto a esta pena de prisão não existem motivos para afastar os termos da pena substitutiva expostos na sentença recorrida, de acordo com a qual: “Tendo em conta a medida concreta da pena aplicada, há que ponderar a possibilidade da sua substituição. O ordenamento jurídico-penal português é marcado pela relação de mútua referência que estabelece com ordem axiológica jurídico-constitucional [Dias, Jorge Figueiredo in Direito Penal Parte Peral, Tomo I, Questões Fundamentais: A Doutrina Geral do Crime, Coimbra Editora, Coimbra, 2004, pp. 14, 109 e 114], da qual decorre um conjunto de princípios impostos, além do mais, ao processo de determinação e de escolha da pena. No que concerne à substituição da pena de prisão, rege, em especial, de entre estes princípios, o princípio da preferência pelas reacções criminais não privativas de liberdade, decorrente da exigência da necessidade, subsidiariedade e proporcionalidade da intervenção e da sanção penal [artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa e Antunes, Maria João in Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, Coimbra, 2015, pp. 20, 36 e 80]. Assim, o Tribunal deverá, sempre que possível, optar pela aplicação de uma pena não privativa da liberdade, considerada mais eficaz para promover a integração do agente na sociedade e dar resposta às necessidades de prevenção geral e especial previstas no artigo 40.º, n.º 1, do Código Penal. Nesta esteira, as execuções das penas curtas de prisão devem ser evitadas sempre que não possibilitem (como, em grande parte das vezes, não possibilitarão nem exercerão) “uma atuação eficaz sobre a pessoa do delinquente no sentido da sua socialização” nem exerçam “uma função de segurança relevante face à comunidade.” [Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 16 de Setembro de 2009, no processo n.º 394/09.2YRPRT.P1, relator Melo Lima, consultado em www.dgsi.pt]. Em execução do aludido princípio, prevê o Código Penal diversas penas substitutivas da pena de prisão, o que faz nos seus artigos 45.º e seguintes. No entanto, seguindo o entendimento que vem sendo propugnado pela jurisprudência nacional, as penas de substituição assumem entre si uma ordem de preferência, ou dito de outra forma, devem ser ponderadas de forma crescente consoante a sua natureza e efeitos para o condenado (nesse sentido, vide entre outros, o Ac. TRC de 03/07/2012, proc. nº 48/12.2GTLRA.C1, disponível em www.dgsi.pt). (…) De facto, a substituição da pena de prisão pressupõe que a suficiência da pena não privativa da liberdade para fazer face a estas exigências. In casu, atendendo, sobretudo, aos motivos que se encontram na base dos factos e que se revelam como factores determinantes dos diversos delitos em causa, entende o Tribunal que pena a aplicar deve permitir, em ordem a prover às suas finalidades de prevenção, actuar sobre os referidos factores, por só assim se poder afirmar uma expectativa de que o arguido não virá novamente a delinquir nos mesmos termos. Cumpre, então, ponderar a suspensão da pena de prisão determinada, nos termos do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, constituindo esta um poder-dever para o tribunal, preenchidos que estejam os pressupostos previstos naquela disposição legal. Analisando. Conforme dispõe o aludido preceito, “o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às suas condições vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”. Assim, a decisão de suspensão da pena de prisão terá como ponto de partida a ideia de que finalidades da punição assumem, efectiva e exclusivamente, uma natureza preventiva, apenas, assim, com a medida da tutela dos bens jurídicos e, concomitantemente, com a necessidade de ressocialização do agente. Sendo este o seu primeiro contacto com o sistema de justiça, o Tribunal considera, conforme supra já se deixou tacitamente evidenciado, que a simples ameaça de prisão ainda se afigurará suficiente a satisfazer as exigências de prevenção que no caso se fazem sentir. Em sentido inverso, o Tribunal não se encontra em condições de afirmar, com toda a certeza, que não é possível tecer um juízo de prognose positivo a respeito da sua ressocialização, caso não lhe seja aqui aplicada pena privativa da liberdade, desde que se prevejam concretas condições que permitam actuar sobre os referidos factores. Do ponto de vista comunitário e das elevadas exigências de exteriorização da reprovação, o Tribunal crê que a aplicação de uma pena distinta da pena de prisão efectiva seria igualmente bem aceite pela comunidade, em virtude de permitir demonstrar que a sanção não é propriamente indiferente à gravidade do crime praticado, sobretudo porque mais severa do que a simples suspensão da pena, e sujeita a mais exigentes condições do que a suspensão anteriormente aplicada, como adiante melhor se explanará. Será de entender, de todo o modo, que a comunidade tolera uma certa perda do efeito preventivo geral, e, como tal, a aplicação de uma pena de substituição, contanto que a mesma assegure a prossecução do efeito preventivo especial – o qual, demonstrando-se frustrado, sempre poderá conduzir à revogação da suspensão e ao cumprimento efectivo da pena de prisão em que foi inicialmente condenado (cfr. Anabela Miranda Rodrigues in Estudos em Homenagem ao Professor Eduardo Correia, apud Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24.04.2018, processo n.º 208/14.1GCCLD.C1, relatado por Brizida Martins, consultado em www.dgsi.pt). Julgam-se, assim, verificadas as condições mínimas para que se entenda que a censura do facto e a ameaça de prisão realizam de forma adequada as finalidades da punição, e, bem assim, os pressupostos para a suspensão da sua pena. (…). Pelo exposto, concedendo ao arguido uma oportunidade de interiorização do ilícito e de adequação da conduta em conformidade com a norma violada ainda em liberdade, determina-se a suspensão da pena de prisão aplicada por igual período de tempo, por se entender constituir o período mínimo razoável para aferir se o arguido inverteu ou não o percurso criminógeno que iniciou com a prática do crime em discussão. Quanto à necessária imposição de condições a tal suspensão, prevê o artigo 50.º, n.º 2, do Código Penal, que “O tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição” poderá subordinar “a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova”. Da leitura conjugada desse e do artigo 52.º do Código Penal, retira-se que as regras de conduta hão-de assumir conteúdo positivo e ser susceptíveis de fiscalização, encontrando-se especialmente orientadas para promover o objectivo de reintegração na sociedade. Ganha, pois, particular acuidade, no caso em apreço, além do regime de prova (artigo 53.º do Código Penal), a possibilidade prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 51.º, de imposição do arguido de “pagar dentro de certo prazo, no todo ou na parte que o tribunal considerar possível, a indemnização devida ao lesado, ou garantir o seu pagamento por meio de caução idónea”. In casu, tendo em conta que, conforme infra se determinará, o arguido deverá ser condenado no pagamento de uma indemnização à ofendida, e tendo em conta ambos mantêm três filhos comuns, relativamente aos quais o arguido não se encontra a liquidar qualquer montante fixo mensal desde a separação, em Fevereiro do ano corrente (tendo já decorrido cerca de 9 meses), e considerando que uma eventual prestação alimentícia que venha a ser fixada não produz quaisquer efeitos retroactivos ao momento em que seriam devidos (artigo 2006.º do Código Civil) afigura-se idóneo condicionar ainda a sua suspensão ao pagamento, por parte do arguido, da totalidade da indemnização arbitrada oficiosamente pelo Tribunal até ao final da suspensão. Por outro lado, por referência à personalidade demonstrada, a qual evidencia a existência de um problema estrutural na sua formação ao nível do respeito pelas normas civis e legais reguladoras da convivência social e do respeito mais elementar, considera-se ainda adequada a mobilização do disposto no artigo 52.º, n.º 3, do Código Penal, estipulando ainda a condição de submissão do arguido a consulta de psicologia e a sujeitar-se ao acompanhamento psicológico que lhe seja eventualmente prescrito, a que o arguido deu expressamente o seu consentimento em sede de audiência [facto dado como provado sob o número 38]. Face ao exposto, entende o Tribunal ser de sujeitar a suspensão da pena de prisão aplicada: a) a um regime de prova a delinear e fiscalizar pela Direcção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, nos termos do artigo 53.º, n.º 1, do Código Penal; b) ao pagamento, por parte do arguido, da totalidade da indemnização arbitrada oficiosamente pelo Tribunal até ao final da suspensão, nos termos do artigo 51.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal; c) bem como, ao abrigo do disposto no artigo 52.º, n.º 3, do mesmo diploma, à submissão a consulta(s) de psicologia de diagnóstico e a sujeitar-se ao acompanhamento psicológico que lhe seja eventualmente prescrito, nomeadamente a respeito das suas capacidades e instrumentos pessoais de gestão de emoções e do estabelecimento de vínculos de afecto e de manutenção de relações interpessoais salutares”. Assim, a condenação do arguido passará a ser exclusivamente pela prática de um crime de violência doméstica, correspondendo-lhe a pena de 4 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período atenta a gravidade dos factos praticados e sendo necessária uma particular certeza sobre a sua reintegração social, subordinada ao cumprimento das mesmas injunções fixadas na sentença recorrida, nos termos do disposto no art.º 50.º, n.º5, do Código Penal. Mantendo-se o demais decidido na sentença recorrida. * Decisão Face ao exposto acordam os Juízes Desembargadores da 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em: a. Revogar a sentença recorrida quanto à condenação de AA pela prática de dois crimes de ofensa à integridade física e de um crime de ameaça; b. Condenar o arguido AA pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido nos termos do artigo 152.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, alínea a), do Código Penal, na pena de quatro anos de prisão; Suspender a pena de prisão aplicada por igual período de tempo (artigo 50.º do Código Penal), subordinada: i. ao cumprimento de um regime de prova a delinear e fiscalizar pela Direcção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, nos termos do artigo 53.º, n.º 1, do Código Penal, bem como, ao abrigo do disposto no artigo 51.º, n.º 1, do mesmo diploma: ii. ao pagamento pelo arguido da totalidade da indemnização arbitrada oficiosamente à vítima até ao final do período de suspensão, nos termos do artigo 51.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal; iii. à submissão do arguido a consulta(s) de psicologia de diagnóstico e a sujeitar-se ao acompanhamento psicológico que lhe seja eventualmente prescrito, nomeadamente a respeito das suas capacidades e instrumentos pessoais de gestão de emoções e do estabelecimento de vínculos de afecto e de manutenção de relações interpessoais salutares, nos termos do artigo 52.º, n.º 3, do Código Penal. c. Manter no mais a sentença recorrida. Sem custas (art.º 513.º e 514.º do Código de Processo Penal a contrario). Notifique também o parece do Ministério Público. Lisboa, 09 de Abril de 2025, (elaborado pelo 1.º signatário e revisto) João Bártolo Cristina Almeida e Sousa Rosa Vasconcelos _______________________________________________________ 1. “O elemento cognitivo ou intelectual do dolo inclui o conhecimento de todas as circunstâncias de facto (rectius, elementos descritivos do tipo) e de direito (rectius, dos elementos normativos do tipo) que constituem o tipo de ilícito objectivo, o que permite ao agente a orientação e decisão da sua consciência ética pela preservação ou não do bem jurídico tutelado pela norma” de acordo com Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código Penal, UCE, Lisboa, 2008, p. 89. 2. “O conhecimento dos elementos normativos do tipo não implica, em regra, uma exacta subsunção dos factos na lei, bastando ima “valoração paralela na esfera do leigo” ou, dito de outro modo, a apreensão pelo agente do significado social do elemento do tipo”, Paulo Pinto de Albuquerque, obra citada, p. 90. |