Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6128/24.4T8FNC-A.L1-5
Relator: ESTER PACHECO DOS SANTOS
Descritores: ESCUSA
JUIZ NATURAL
INDEPENDÊNCIA DOS TRIBUNAIS
PRINCÍPIO DA IMPARCIALIDADE
INTERVENÇÃO
PROCESSOS DIVERSOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/20/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: ESCUSA
Decisão: DEFERIDO
Sumário: 1 - O incidente processual de escusa de juiz constitui uma dimensão do princípio do juiz natural e visa assegurar as regras da independência e imparcialidade, inerentes ao direito de acesso aos tribunais.
2 – Exige que a intervenção do julgador possa correr o risco de ser considerada suspeita, pressupondo a existência de motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
3 - A intervenção do juiz noutro processo pode consubstanciar motivo de suspeição, a aferir de acordo com parâmetros objetivos.
4 - Em defesa de um estado de direito democrático não basta que o juiz seja imparcial, necessário é, também, que o pareça, sendo ainda igualmente relevante a defesa da sua posição, de modo a que nada afete a sua imagem de isenção e objetividade.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Em conferência, acordam os Juízes na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO
1. Nos autos de Instrução com o n.º 6128/24.4T8FNC, do Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, Juízo de Instrução Criminal do Funchal, a Exma. Senhora Juiz de Direito Dr.ª AA veio, ao abrigo do disposto no art.º 43.º, n.º 4 do Código de Processo Penal, solicitar escusa para intervir na instrução requerida pela arguida BB nesses mesmos autos.
Para tanto, invoca os seguintes fundamentos:
- Os presentes autos tiveram origem numa certidão extraída do Processo n.º 322/21.7JAFUN, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, Juízo Central Criminal do Funchal – Juiz 3;
- A requerente interveio no referido Processo em fase de inquérito e nesse âmbito determinou a sujeição à medida de coacção, entre outros, do aí arguido CC, companheiro da arguida nestes autos;
- No âmbito do 1.º interrogatório judicial do referido arguido, a requerente proferiu despacho considerando fortemente indiciados, entre outros, os seguintes factos:
“Desde data não concretamente apurada, mas seguramente anterior a 2017, que o arguido CC, conhecido por “CC”, se dedica à aquisição e distribuição de produto estupefaciente, designadamente Alfa XXX, na Região Autónoma da Madeira, crime pelo qual, aliás, já foi condenado.
Não obstante a referida condenação e se encontrar preso em cumprimento de pena no Estabelecimento Prisional do Funchal, o arguido decidiu continuar a desenvolver aquela actividade, contando com o auxílio de BB, sua companheira, que serve de intermediária nos contactos e comunicações por ele estabelecidos, introduzindo para o efeito equipamentos electrónicos no interior do estabelecimento prisional.
O arguido CC coordena, desde o interior do estabelecimento prisional, a aquisição de elevadas quantidades de produto estupefaciente, nomeadamente Alfa XXX, e a posterior venda e distribuição na Região Autónoma da Madeira e na Região Autónoma dos Açores, utilizando empresas associadas ao ramo automóvel para dissimular e ocultar os proventos dela decorrente.
O produto estupefaciente é adquirido nos Países Baixos e remetido para esta Região Autónoma da Madeira através de encomendas postais, via CTT, e posteriormente distribuído a terceiros consumidores ou a indivíduos ou grupo de indivíduos que operam autonomamente na sua venda e distribuição, nomeadamente o grupo liderado pelo arguido DD.
O arguido CC, que é o mentor desta actividade, conta com o auxilio de outros familiares, nomeadamente de EE (mãe), FF (tio), GG (tia), HH (tia) e de II (primo), os quais são responsáveis pela aquisição de produto estupefaciente e remessa para esta Região Autónoma da Madeira, pelo armazenamento do produto e respectiva distribuição a terceiros intermediários ou consumidores e a indivíduos ou grupo de indivíduos que operam autonomamente na venda e distribuição de produto estupefaciente.
O arguido CC conta ainda com a colaboração dos arguidos JJ (conhecida por “JJ” ou “JJ”), KK, LL, MM, NN, OO, PP e QQ, a quem incumbe de receber as encomendas postais que acondicionam o produto estupefaciente, armazenar e ocultá-lo nas suas residências e proceder à venda e distribuição a terceiros.
Tendo em conta a margem de lucro resultante desta actividade, o arguido CC delineou um esquema para ocultar a sua proveniência ilícita, fazendo o dinheiro por ele gerado circular na economia lícita e assim evitar a sua detecção pelas autoridades.
Com vista a conferir aparência de legalidade, esse dinheiro é investido na aquisição de veículos automóveis de alta cilindrada e de imóveis que são registados em nome de sociedades comerciais por si controladas e de pessoas singulares que figuram para efeitos registais como seus donos, mas que são na realidade meros “testas de ferro”.
Para o efeito, o arguido CC conta com a colaboração dos arguidos RR e SS, os quais actuando através das empresas “F&A– Reparação de Automóveis, Unipessoal Lda.”, “Cal – Reparação de Veículos, Lda.”, “TP Unipessoal, Lda.”, “SQ, Lda.” e “FYH, Unipessoal Lda.”, dissimulam a origem e proveniência do dinheiro resultante da venda de produto estupefaciente, adquirindo veículos automóveis que registam em nome daquelas empresas e imóveis que registam em nome de terceiros.
BB, tal como a arguida EE, é intermediária nos assuntos relacionados com a venda de produto estupefaciente e no recebimento de valores provenientes dessa mesma venda e no esquema utilizado para ocultar a proveniência dos lucros obtidos, intermediando os contactos estabelecidos entre o arguido CC e os arguidos RR e SS.
No período compreendido entre o ano 2020 e o ano 2022, o arguido CC adquiriu, por intermédio do arguido RR – com os lucros provenientes da venda de Alfa XXX – os seguintes veículos automóveis que foram registados em nome da sociedade “Cal – Reparação de Veículos, Lda.”, de que o arguido RR e BB, companheira do arguido CC, são sócios gerentes: veiculo automóvel de marca Land Rover Velar, com a matrícula ..-ZV-.., veículo automóvel de marca Porsche Panamera, com a matrícula AD-..-XI, veículo automóvel de marca Mercedes, com a matrícula AD-..-XH.
Com o intuito de receber o dinheiro proveniente da venda de Alfa XXX na Região Autónoma dos Açores e de o canalizar para a aquisição de veículos automóveis, convertendo assim os lucros obtidos daquela actividade em bens, o arguido RR deslocou-se a Ponta Delgada, pelo menos por quatro ocasiões, nomeadamente em Setembro de 2020, Outubro de 2020, Novembro de 2020 e Junho de 2022.
As estadias e consumos referentes aos dias 16 a 18 de Setembro de 2020 e 4 a 7 de Novembro de 2020 foram facturadas em nome da empresa “Cal – Reparação de Veículos, Lda.”, de que o arguido RR e BB, companheira do arguido CC, são sócios gerentes.
No dia 4 de Janeiro de 2023, por contacto telefónico estabelecido entre ambos, o arguido CC pediu a BB, sua companheira, que adquirisse um telemóvel e lho entregasse no estabelecimento prisional ou numa das suas saídas precárias.
No dia 12 de Janeiro de 2023, por contacto estabelecido entre ambos, o arguido RR e BB conversaram sobre assuntos relacionados com a actividade de venda e distribuição de Alfa XXX e com os proventos dela resultante, comentando sobre depósitos de valores numa determinada instituição bancária.
No dia 13 de Janeiro de 2023, por contacto telefónico estabelecido entre ambos, BB informou o arguido CC que o arguido RR não procedeu ao depósito ou pagamento da totalidade dos valores resultante da actividade por eles desenvolvida.
Os arguidos CC e BB e EE têm a disponibilidade de, pelo menos, três apartamentos, e possuem na sua posse, entre outros, os veículos automóveis de marca Mercedes, modelo AMG GT, com a matrícula ..-ZD-.., de marca Porsche, modelo Panamera, com a matrícula AD-..-XI, de marca Mercedes, com a matrícula AD-..-XH, de marca Lamborghini, com a matrícula ..-GM-... BB declara rendimentos anuais crescentes, desde o ano 2018, num total de cerca de € 75.000,00, não tendo averbado em seu nome qualquer veículo automóvel e dispõe de duas habitações, uma sita no Edifício ... e outra na Rua ..., no Funchal, bens estes obtidos com o dinheiro resultante da venda de Alfa XXX.”
- Em 5 de Julho de 2023 foi deduzida acusação, imputando – para além do mais – à arguida BB a prática, em co-autoria material, na forma consumada, com dolo directo e em concurso efectivo real, um crime de tráfico de estupefacientes agravado, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, com a agravação prevista no artigo 24.º, alínea c) do mesmo diploma legal, por referência às Tabelas I-C e II-A a ele anexas; um crime de branqueamento, previsto e punido pelo artigo 386.º-A, n.º 1, alínea f) e n.ºs 2, 3, 4 do Código Penal, por referência aos artigos 10.º, n.º 1, 14.º, n.º 1, 26.º e 28.º do Código Penal, e uma contra-ordenação de produção, detenção, anúncio ou publicitação, venda ou cedência, importação ou exportação de substância psicoactiva, prevista e punida pelos artigos 4.º, n.º 1, alínea a), e 11.º, n.º 1 do Decreto Legislativo Regional n.º 28/2012/M, de 25 de Outubro, por referência ao artigo 2.º, n.º 1 do mesmo diploma e ao respectivo Anexo I.
- Deduzida a acusação, e na sequência de requerimento do Ministério Público relativo aos arguido BB, GG e II, a requerente proferiu despacho do qual consta:
“Nos autos resulta fortemente indiciada a factualidade constante da acusação, cujo teor dou por integralmente reproduzida, sendo que a mesma integra a prática, pelos referidos arguidos, em co-autoria material, na forma consumada, com dolo directo e em concurso efectivo real, de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, com a agravação prevista no artigo 24.º, alínea c) do mesmo diploma legal, por referência às Tabelas I-C e II-A anexas e de uma contra-ordenação de produção, detenção, anúncio ou publicitação, venda ou cedência, importação ou exportação de substância psicoactiva, prevista e punida pelos artigos 4.º, n.º 1, alínea a) e 11.º, n.º 1 do Decreto Legislativo Regional n.º 28/2012/M, de 25 de Outubro, por referência ao artigo 2.º, n.º 1 do mesmo diploma e ao respectivo Anexo I, e ainda pela arguida BB de um crime de branqueamento, previsto e punido pelo artigo 386.º-A, n.º 1, alínea f) e n.ºs 2, 3, 4 do Código Penal, por referência aos artigos 10.º, n.º 1, 14.º, n.º 1, 26.º e 28.º do Código Penal.
Nos autos, apenas o arguido II foi sujeito a Termo de Identidade e Residência, ausentando-se após do País com destino aos Países Baixos, onde já reside a arguida GG, sendo que a arguida BB tem nacionalidade ucraniana, mas tendo como última morada conhecida o Reino Unido.
Face aos factos imputados aos arguidos, à natureza do crime de tráfico e o concreto perigo dos arguidos continuarem a desenvolver a sua actividade criminosa, facilitada pela sua mobilidade, importa efectivar a detenção, de modo a assegurar a constituição como arguidas de BB e GG nos termos do art.º 58.º do Código de Processo Penal e a posterior apresentação dos arguidos a juiz de instrução para aplicação de medida de coacção.
Considerando que os factos imputados são graves, que ao crime de tráfico imputado é aplicável pena de prisão até 16 anos e que não se afigura viável obter a comparência dos arguidos com vista à sua sujeição às diligências necessárias à alteração do seu estatuto coactivo, determino, ao abrigo do disposto nos arts. 254.º, n.º 1, alínea a) e 257.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, com referência à alínea a) do artigo 204.º do Código de Processo Penal, a detenção fora de flagrante delito de BB, II e GG.
Compulsados os autos, verifica-se que o paradeiro dos arguidos é conhecido, muito embora se situe nos Países Baixos no que respeita aos arguidos II e GG e no Reino Unido no caso da arguida BB, pelo que não foi possível cumprir os mandados de detenção emitidos pelo Ministério Público, a fim de os apresentar a primeiro interrogatório judicial, nem se mostra viável e efectivação da detenção agora determinada.
Nos termos do disposto no art.º 1.º n.º 1 da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto, o mandado de detenção europeu é uma decisão judiciária emitida por um Estado-membro com vista à entrega por outro Estado-membro de uma pessoa procurada para efeitos de procedimento criminal ou para cumprimento de uma pena ou de uma medida de segurança privativas da liberdade.
Assim sendo, porque o regime do mandado europeu é aplicável quando se pretende a entrega de uma pessoa para efeitos de procedimento criminal, integrando a sua sujeição a medida de coacção o conceito de “para efeitos de procedimento criminal”, porque aos arguidos foi imputada a prática de factos puníveis pelo ordenamento jurídico português com pena privativa da liberdade de duração máxima superior a 12 meses e existe uma situação de dupla incriminação (cfr. art.º 2.º, n.º 1, alíneas e) e i) e n.º 3 da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto), estão reunidos os pressupostos para a emissão, relativamente aos arguidos II e GG, de um mandado de detenção europeu.
Por outro lado, verifica-se quanto à arguida BB estarem preenchidos os pressupostos para a emissão de mandado ao abrigo do disposto nos arts. LAW.SURR.76 a LAW.SURR.112, e Anexo Law-5, do Acordo de Comércio e Cooperação entre a União Europeia e a Comunidade Europeia da Energia Atómica, por um lado, e o Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte, por outro. Pelo exposto, determino a emissão de mandado de detenção europeu dos arguidos II e GG a ser entregue a Officier van Justitie te Amsterdam e de mandado de detenção da arguida BB ao abrigo do disposto nos arts. LAW.SURR.76 a LAW.SURR.112 do Acordo de Comércio e Cooperação entre a União Europeia e a Comunidade Europeia da Energia Atómica, por um lado, e o Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte, por outro. Para o efeito, determino que se proceda à tradução dos factos descritos na acusação e deste despacho, a qual deverá ser inclusa nos respectivos formulários (no que respeita aos Países Baixos o disponível na EJN e quanto ao Reino Unido no Anexo LAW 5 do acima referido acordo).
D.N.”
- Muito embora considere ter a serenidade e o distanciamento exigíveis para apreciar a questão submetida agora a instrução, afigura-se à requerente que, objectivamente, o facto de ter proferido despacho considerando fortemente indiciados os factos que nestes autos estão sujeitos a apreciação e determinado, nessa sequência, a detenção da arguida, compromete a imagem pública da imparcialidade e confiança na administração da Justiça;
- Sendo a imparcialidade a “pedra de toque” do poder judicial, tudo aquilo que a possa pôr em risco perante o público, deve – em seu entender – ser imediatamente afastado, pois o acto de julgar tem uma dignidade própria que não pode ser posta em causa.
Pelo exposto, espera deferimento.
2. O pedido de escusa encontra-se suficientemente instruído, não se mostrando necessária a produção de outras provas.
3. Colhidos os vistos, foi realizada a competente conferência.
II – FUNDAMENTAÇÃO
Do requerimento apresentado resulta, com interesse para a decisão a proferir, o seguinte:
• O pedido de escusa foi formulado pela Exma. Senhora Juiz a quem o processo foi distribuído e, por isso, a quem competiria proceder à tramitação dos autos na fase de instrução, presidir ao debate instrutório e proferir decisão instrutória.
• Os autos tiveram origem numa certidão extraída do Processo n.º 322/21.7JAFUN, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, Juízo Central Criminal do Funchal – Juiz 3, onde a requerente teve intervenção em fase de inquérito.
• Nesse âmbito determinou a sujeição à medida de coação, entre outros, do aí arguido CC, companheiro da arguida nestes autos.
• No âmbito do 1.º interrogatório judicial do referido arguido, a requerente proferiu despacho considerando fortemente indiciados, entre outros, factos respeitantes à arguida.
• Foi deduzida acusação, imputando – para além do mais – à arguida BB a prática, em coautoria material, na forma consumada, com dolo direto e em concurso efetivo real, de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, com a agravação prevista no artigo 24.º, alínea c) do mesmo diploma legal, por referência às Tabelas I-C e II-A a ele anexas; um crime de branqueamento, previsto e punido pelo artigo 386.º-A, n.º 1, alínea f) e n.ºs 2, 3, 4 do Código Penal, por referência aos artigos 10.º, n.º 1, 14.º, n.º 1, 26.º e 28.º do Código Penal, e uma contraordenação de produção, detenção, anúncio ou publicitação, venda ou cedência, importação ou exportação de substância psicoativa, prevista e punida pelos artigos 4.º, n.º 1, alínea a), e 11.º, n.º 1 do Decreto Legislativo Regional n.º 28/2012/M, de 25 de Outubro, por referência ao artigo 2.º, n.º 1 do mesmo diploma e ao respetivo Anexo I.
• Deduzida a acusação, e na sequência de requerimento do Ministério Público relativo à arguida BB (e outros), a requerente proferiu despacho considerando fortemente indiciados os factos que nestes autos estão sujeitos a apreciação e determinado, nessa sequência, a detenção da arguida.
***
Apreciando
O incidente processual de escusa de juiz (tal como o de recusa), que constitui uma dimensão importante do princípio do juiz natural (art.º 32.º, n.º 9 da Constituição da República Portuguesa), visa assegurar as regras da independência e imparcialidade, inerentes ao direito de acesso aos tribunais (art.º 20.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa).
Encontra-se previsto no art.º 43.º do Código de Processo Penal e exige que a intervenção do julgador possa correr o risco de ser considerada suspeita, pressupondo a existência de motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
Assim, para sustentar a escusa do juiz, atento o disposto no citado artigo 43.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, é necessário verificar:
- se a intervenção do juiz no processo em causa corre “o risco de ser considerada suspeita”; e
- se essa suspeita ocorre “por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade”.
Tenhamos, pois, presente que aquilo que se aprecia nestes autos é se estamos perante o risco da Sr.ª Juiz ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar a desconfiança sobre a sua imparcialidade, decorrendo do preceituado na disposição legal em análise (n.º 4) que o juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir.
É disso que se trata e que foi oportunamente requerido pela Sr.ª Juiz.
Posto isto, certo é também que a lei não define o que se deve entender por «motivo sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade» do juiz.
Porém, admite expressamente como fundamento de escusa, nos termos do n.º 2 da disposição legal citada, a intervenção do juiz noutro processo, penal ou não penal.
Ou seja, a intervenção do juiz noutro processo pode consubstanciar motivo de suspeição.
Nessa perspetiva, a aferir de acordo com parâmetros objetivos, ganham relevância os fundamentos invocadas pela requerente para tanto sustentar, na medida em que teve intervenção ativa no Processo n.º 322/21.7JAFUN, onde então tomou posição sobre os factos que agora se pretendem “discutir” em instrução, considerando-os fortemente indiciados: “Nos autos resulta fortemente indiciada a factualidade constante da acusação (…)”.
Melhor dizendo, a requerente proferiu despacho nesse processo considerando fortemente indiciados os factos que nestes autos estão sujeitos a apreciação e determinou, nessa sequência, a detenção da arguida.
Sem prejuízo, “no que respeita à intervenção do juiz num outro processo, a verificação concreta do objecto do processo em qualquer das intervenções processuais do juiz, seja a que interveio, seja aquela em que vai intervir é absolutamente fundamental para se apreciar da possibilidade de existência de motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade. Só um juízo “ex post factum”, sobre a intervenção funcional do juiz num determinado processo poderá levar, objectivamente, à “suspeita” da sua nova intervenção, por carência de garantia da absoluta imparcialidade nesse processo. É por isso absolutamente necessário avaliar toda a intervenção de um juiz num determinado processo para daí concluir da existência de motivos sérios e graves que levem a uma situação de quebra de confiança no juiz, pondo em causa a sua própria legitimação como julgador1.
Por via disso, a intervenção do juiz noutro processo só deve consubstanciar motivo de suspeição em certas circunstâncias, a saber,
a. Quando o processo tenha tido por objeto a mesma factualidade (ainda que noutra jurisdição ou noutro tipo de processo;
b. esteja com ela diretamente relacionada;
c. ou que digam respeito a factos que tenham ocorrido durante ou no processo em que o juiz “suspeito” interveio2.
Ora, olhando ao caso concreto, tendo presente que o objeto da instrução se prende com a acusação proferida contra a arguida no processo principal, de que este é uma certidão, certo é que aí se pronunciou a requerente sobre a factualidade cuja comprovação judicial aqui se requer (RAI).
Em outras palavras, a situação factual vista e apreciada pela Sr.ª Juiz no processo que deu origem aos presentes autos é agora de novo posta à sua apreciação. Donde, a posição assumida pela Sr.ª Juiz naquele processo pode suscitar, do ponto de vista do cidadão comum, dúvidas fundadas sobre a sua imparcialidade, provocando equívocos suscetíveis de colocar em “crise” a decisão a tomar nesta nova apreciação.
Trata-se, pois, de um contexto suscetível de gerar na interessada (arguida requerente da instrução) o receio da existência de ideia feita quanto à matéria da causa.
Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.03.2015, “objectivamente, para um terceiro, colocado numa posição independente, o contacto prévio com aqueles processos cria uma marca indelével sobre os factos e as pessoas que neles intervêm com evidentes sequelas na apreciação do processo que agora é sujeito à sua apreciação.
A eventual perda de equidistância aqui surgida é objectiva e exógena a qualquer comportamento activo ou deliberado, mas é uma consequência da natureza das coisas, resultando duma circunstância aleatória que é distribuição processual e do contacto prévio que deve ser mantido pelo julgador e que não é mais do que uma das faces da imparcialidade”3.
Em suma, em defesa de um estado de direito democrático não basta que o juiz seja imparcial, necessário é, também, que o pareça, sendo que, “se está em causa uma tarefa essencial no desempenho do Estado, igualmente se procura defender a posição do Juiz, assegurando um instrumento processual que possibilite o seu afastamento quando, objectivamente, existir uma razão que minimamente possa beliscar a sua imagem de isenção e objectividade.”4.
Por conseguinte, e de acordo com o estatuído no art.º 43.º, n.ºs 1, 2 e 4 do Código de Processo Penal, é de deferir a escusa requerida.
III – Decisão
Em conformidade com o exposto, nos termos do artigo 43.º, n.ºs 1, 2 e 3 do Código de Processo Penal, acordam os Juízes desta Relação em:
- deferir o pedido de escusa da Mma Juiz AA, na intervenção nos autos de Instrução com o n.º 6128/24.4T8FNC que lhe foram distribuídos.
Sem tributação.
Notifique.
*
Lisboa, 20 maio de 2025
(texto processado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94.º, n.º 2 do Código de Processo Penal)
Ester Pacheco dos Santos
Rui Coelho
Ana Lúcia Gordinho
_____________________________________________________
1. José Mouraz Lopes, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo I, Almedina, dezembro 2022, pág. 514, nota §11.
2. Neste sentido, ainda José Mouraz Lopes, op. cit., pág. 514, nota §12.
3. Ac. do STJ de 12.03.2015 (Santos Cabral), proc. n.º 4914/12.7TDLSB.G1-A.S1, www.dgsi.pt.
4. Citando, ainda, o mesmo Ac. do STJ de 12.03.2015.