Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4162/24.3T8FNC.L1-7
Relator: JOSÉ CAPACETE
Descritores: AÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
CAUSA DE PEDIR
PEDIDO
CONTRADIÇÃO
TEORIA DA SUBSTANCIAÇÃO MITIGADA OU SUAVIZADA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/15/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: Sumário[1]:
(Elaborado pelo relator e da sua inteira responsabilidade – art. 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil[2])
1. Após a entrada em vigor do atual CPC, face à menor exigência no que respeita à alegação dos factos essenciais, na medida em que a lei autoriza o seu complemento e/ou concretização posteriores (arts. 5.º, n.º 2 e 590.º, n.º 4), não parece ser mais possível afirmar que no art. 581.º, n.º 4, se encontra consagrada a clássica “pura e dura” teoria pura da substanciação, mas a chamada de teoria da substanciação mitigada ou suavizada.
2. A causa de pedir, na ação de reivindicação, é necessariamente complexa, composta não só pelo direito real ou pelos seus factos constitutivos, mas também pela detenção da coisa por terceiro, em desconformidade com aquele direito, constituindo até a situação de facto desconforme um momento prévio sem o qual o recurso à reivindicação carece de sentido.
3. A contradição entre o pedido e a causa de pedir, geradora da ineptidão da petição inicial e, consequentemente, da absolvição do réu da instância pela verificação da exceção dilatória consistente na nulidade de todo o processo, exige uma negação recíproca, um encaminhamento de sinal oposto, uma conclusão que pressupõe exatamente a premissa oposta àquela de que se partiu;
4. (...) ou seja, é no sentido da incompatibilidade lógica entre o facto real, concreto, individual, invocado pelo autor como base da sua pretensão (causa de pedir) e o efeito jurídico por ele requerido (pedido) através da ação judicial, que deve ser interpretada e aplicada a contradição entre o pedido e a causa de pedir.
5. Não padece, manifestamente, de tal vício, a petição inicial onde os autores pedem:
- o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre a fração; e,
- a condenação da ré a restituir a fração;
alegando para o efeito que:
- «com efeitos a partir do dia 31 de maio de 2023», puseram validamente termo ao contrato de arrendamento que os ligava à ré, celebrado no dia 19 de maio de 2017;
- a partir daquele dia 31 de maio de 2023, a ré passou a ocupar a fração desprovida de qualquer título válido para o efeito.
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[1] Neste acórdão utilizar-se-á a grafia decorrente do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, respeitando-se, no entanto, em caso de transcrição, a grafia do texto original.
[2] Diploma a que pertencem todos os preceitos legais citados sem indicação da respetiva fonte.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO:
CM, JC, AC, MC, ZC, AZ, intentaram ação de reivindicação contra MR, alegando, em resumo, que são os únicos herdeiros da herança indivisa aberta por óbito de JE, da qual faz parte a fração autónoma designada pela letra «A-2», destinada a habitação, integrada no prédio em regime de propriedade horizontal sito ____[3].
Por contrato celebrado no dia 19 de maio de 2017, o falecido JE e a autora CM, declararam arrendar à ré, que declarou tomar-lhes de arrendamento, mediante a renda mensal de € 450,00, e com efeitos a 1 de junho de 2017, a sobredita fração, pelo prazo de uma ano, automaticamente renovável por iguais e sucessivos, «sem prejuízo do direito das partes se oporem à sua renovação, nos termos do disposto na lei».
No dia 17 de novembro de 2022, ou seja, mais de cinco anos após o início do contrato, os autores remeteram à ré uma carta registada com aviso de receção, comunicando-lhe a oposição à renovação do contrato de arrendamento celebrado, com efeitos a partir do dia 31 de maio de 2023.
Sucede que, não obstante o contrato de arrendamento ter cessado a sua vigência na referida data de 31 de maio de 2023, a ré não desocupou a fração, assim como não entregou as chaves da mesma, passando a ocupá-la desprovida de título.
Assim, neste momento, a ré continua a residir na fração, sem título e de forma ilegítima, privando os autores de a fruírem, nomeadamente de a colocarem no mercado de arrendamento, o que lhes provoca prejuízo à razão mensal de € 600,00, pelo qual pretendem ser ressarcidos.
Concluem assim a petição inicial:
«Nestes termos e nos mais de Direito que V. Ex.ª doutamente suprirá, deverá a presente ação ser julgada procedente, por provada, e em consequência:
1 - Condenar-se a Ré a reconhecer a propriedade dos AA. sobre a fração autónoma melhor identificada no artigo 2º da presente;
2 - Condenar-se a Ré a restituir a fração autónoma melhor identificada no artigo 2º da presente, por força do termo do contrato de arrendamento;
3 - Condenar-se a Ré a indemnizar os AA., no montante de 600,00 € mensais, a pagar desde a data em que a desocupação deveria ter ocorrido até entrega efetiva do imóvel, acrescidos de juros moratórios até integral pagamento».
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No dia 27 de fevereiro de 2025 foi proferido despacho saneador do qual consta, além do mais, o seguinte:
«Da exceção dilatória da ineptidão da PI.
O tribunal aventou a ocorrência de exceção dilatória da nulidade de todo o processo por ineptidão da PI.
Cumprido o contraditório vieram os AA. pugnar pela sua improcedência (cf. Ref.ª citius.6133923).
Cumpre apreciar e decidir.
A ineptidão da petição inicial configura uma nulidade insanável (exceção dilatória insuprível), de conhecimento oficioso, a qual afeta todo o processado e dá origem, in casu, a uma decisão de absolvição da instância, nos termos da interpretação conjugada do disposto nos artigos artigo 186.º, n.ºs 1 e 2 al. b) 576.º, nºs 1 e 2 e 577.º, b), todos do CPC.
A ineptidão prevista na al. b) do citado art. 186.º, existe quando “o pedido esteja em contradição com a causa de pedir”.
A causa de pedir são os concretos factos invocados de que emerge o direito que o autor se propõe fazer valer sendo que o pedido é a declaração desse direito.
Vejamos.
Os AA., no introito, referem que a ação é de “reivindicação de propriedade”, concluindo dessa forma no art. 13.º, da sua petição inicial, apresentando os pedidos de condenação da Ré no reconhecimento do direito de propriedade dos AA. sobre a fração identificada no art. 2.º da PI, de condenação da Ré a restituir aos AA. a fração em causa, bem como ainda na condenação da Ré a pagar aos AA. uma indemnização pela privação indevida da fração em causa.
Desta forma, os pedidos são compatíveis com os formulados em uma ação de reivindicação da propriedade, cujos traços típicos, são, como decorre do preceituado no artigo 1311.º do Código Civil: a afirmação da qualidade de proprietário e a detenção ilícita por banda do demandado.
Compreende, assim, dois pedidos: (i) por um lado o reconhecimento do direito de propriedade (pronuntiatio); (ii) por outro, o pedido de condenação na restituição da coisa (condemnatio), impondo-se ao tribunal a apreciação de cada um desses pedidos concretamente formulados. Ambos os pedidos estão, como supra se referiu, concretamente formulados pelas AA.
Quanto à causa de pedir, na decorrência do principio da substanciação que genericamente foi acolhido para a conceptualização da causa de pedir no nosso sistema processual, a mesma é, in casu, designada pelo “facto jurídico de que deriva o direito real” (cf. art. n.º 4 do art 581.º CPC).
Consequentemente, no que diz respeito à propriedade, a causa de pedir há de ser o facto concreto de que decorreu a aquisição, pelo reivindicante, do domínio sobre a coisa bem como a ocupação abusiva por parte da Ré.
A alegação e prova do direito de propriedade do demandante e da detenção por parte do demandado, ou seja, da causa de pedir, cabem àquele (ora AA.), por via do disposto no artigo 342.º, n.º 1, do mesmo codex; provada a propriedade e detenção nos moldes indicados, caberá ao demandado (ora Ré) provar que detém a coisa a título legítimo, se quiser eximir-se à condenação (exceção perentória impeditiva).
Ora, se quanto ao direito de propriedade sobre a fração não existem dúvidas, o certo é que, quanto à ocupação abusiva já tal não sucede.
Todos os factos alegados pelos AA. e que suportarão o pedido em causa apontam para uma ocupação da fração com base na prévia outorga de um contrato de arrendamento com a Ré, sendo que, a determinada altura da vigência do referido contrato, os AA. entenderam remeter à Ré missiva para impedir a renovação automática, tendo, após a receção dessa missiva, a Ré apresentado argumentos que contrariavam a mesma, mantendo-se, dessa forma, na ocupação da fração.
Esta é a causa de pedir na qual os AA. fundamentam o seu direito, ou seja, na outorga de um contrato de arrendamento, que, por alegado incumprimento da Ré na observação das normas quanto à oposição à sua renovação, motivou a presente ação. A bem de ver tal causa de pedir não pode fundamentar a estatuição do art. 1311.º, do Código Civil, outrossim a prevista no art. 1053.º, do mesmo código.
À presente à ação, que é de reivindicação de propriedade, face à configuração dada pelos AA., e pedidos formulados, apresenta, contudo, uma causa de pedir própria de ação de despejo, o que, configura uma manifesta contradição entre causa de pedir e pedido, veja-se, nesse sentido, entre muitos outros, o AC. do Tribunal da Relação do Porto, de 14-07-2021, processo n.º 3226/19.0T8VLG.P1, in www.dgsi.pt/, no qual se sumaria:
“I - Os factos essenciais, numa acepção estrita, cumprem a função individualizadora da causa de pedir, são eles que individualizam a pretensão do autor.
II - Diz-se inepta a petição quando exista uma desarmonia irreversível entre a exposição dos factos na petição inicial e a pretensão jurídica formulada na acção. Nesta hipótese, prevista na alínea b), do n.º 1, do artigo 186.º do Código de Processo Civil, verifica-se contradição entre a causa de pedir e o(s) pedido(s) deduzido(s), facto que inviabiliza qualquer tutela jurisdicional.
III - Essa contradição ocorre quando o demandante interpõe contra os demandados acção de reivindicação, pedindo, designadamente, que nela sejam estes condenados a reconhecerem o direito de propriedade daquele relativamente a imóvel que os Réus ocupam, pedindo que sejam estes condenados a restituí-lo, quando na exposição dos factos os demandantes alegam a existência de um contrato de arrendamento celebrado com os Réus, que, por virtude de tal contrato, ocuparam o imóvel, mas que se recusam a desocupá-lo, terminado o prazo do arrendamento e tendo o senhorio lhes comunicado o propósito de o não renovar, instando-os a procederem à entrega do local arrendado.”
A talhe de foice sempre se dirá que, caso os AA. tivessem apresentado a causa de pedir compatível com os pedidos que deveriam ter sido formulados (relativos à ação de despejo), caberia, como supra se referiu, à Ré, alegar e provar a existência de causa que legitimasse a ocupação.
Em conclusão, tendo presente o teor da causa de pedir (cessação de contrato de arrendamento) e pedidos conforme resulta do petitório (próprios de ação de reivindicação), verifico que é patente e manifesta a contradição entre a causa de pedir e pedido formulado, o que consubstancia uma nulidade insanável (exceção dilatória insuprível), de conhecimento oficioso, a qual afeta todo o processado e dá origem, in casu, a uma decisão de absolvição da instância, nos termos da interpretação conjugada do disposto nos artigos artigo 186.º, n.ºs 1 e 2 al. b) 576.º, nºs 1 e 2 e 577.º, b), todos do CPC, o que se declarará.
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Decisão.
Pelo exposto, ao abrigo das disposições citadas, julgo procedente por provada a presente exceção dilatória da nulidade de todo o processo por ineptidão da petição inicial e em consequência absolvo a Ré, MR, NIF 177 081 643, da presente instância».
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Inconformados, os autores recorrem para este Tribunal da Relação de Lisboa, concluindo assim as respetivas alegações:
I- A Douta Sentença ora recorrida violou, interpretou e aplicou de forma errada a alínea b) do art.º 186.º do CPC;
VIII- (...) a causa de pedir exposta pelos Recorrentes consiste numa realidade complexa de factos e não se funda per si na cessação do contrato de arrendamento, mas sim na ocupação ilícita da propriedade dos Recorrentes;
XII- A causa de pedir vertida pelos Recorrentes, nomeadamente, a violação do direito de propriedade por ocupação abusiva e sem título, é típica de uma ação de reivindicação, a qual foi por eles interposta;
XIII- E o pedido formulado (declaração do direito de propriedade e restituição do imóvel) não nega aquela, pelo contrário, é corolário lógico e necessário, nos termos do art.º 1311.º do CC;
XIX- Assim, deve a Douta Sentença ora recorrida, ser revogada e, em sua substituição, julgar improcedente a exceção de nulidade do processo por ineptidão da petição inicial por contradição entre o pedido e a causa de pedir, ordenando o prosseguimento da normal tramitação dos autos».
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II – ÂMBITO DO RECURSO:
Nos termos dos arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do CPC, é pelas conclusões do recorrente que se define o objeto e se delimita o âmbito do presente recurso, sem prejuízo das questões de que este tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objeto do recurso.
A única questão que se coloca neste recurso consiste em saber se ocorre a exceção dilatória consistente na nulidade de todo o processo por ineptidão da petição inicial por o pedido estar em contradição com a causa de pedir.
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III – FUNDAMENTOS:
3.1 – Fundamentação de facto:
A factualidade processual relevante para a decisão deste recurso é a que decorre do relatório que antecede.
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3.2 – Fundamentação de direito:
Dispõe o n.º 1 do art. 186.º que «é nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial», estatuindo a al. b) do n.º 2, que «diz-se inepta a petição (…) quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir».
Conforme referem Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Luís Sousa, «se o pedido deve ser a consequência ou o corolário lógico da causa de pedir, numa ideia de silogismo, a contradição entre esses dois elementos implica a impossibilidade de a petição cumprir a sua função; em rigor, este motivo de ineptidão resulta de um verdadeiro antagonismo entre o pedido e a causa de pedir, e não de uma mera desadequação entre uma coisa e outra (...). A petição inicial, assim como a sentença final, deve apresentar-se sob a forma de um silogismo, ao menos implicitamente enunciado, que estabeleça um nexo lógico entre as premissas e a conclusão; em tal silogismo, a premissa maior é constituída pelas razões de direito invocadas, a premissa menor é integrada pelas razões de facto e o pedido corresponderá à conclusão. Por isso mesmo a causa de pedir não deve estar em contradição com o pedido, o que não se confunde com a simples desarmonia entre pedido e causa de pedir»[4].
Segundo Alberto dos Reis, «o pedido deve ser o corolário ou a consequência logica da causa de pedir ou dos fundamentos em que assenta a pretensão do autor, do mesmo modo que, num silogismo, a conclusão deve ser a emanação lógica das premissas. Se, em vez disso, o pedido colidir com a causa de pedir, a ineptidão é manifesta»[5].
Como dilucida Antunes Varela, a «contradição não pressupõe uma simples desarmonia, mas uma negação recíproca, um encaminhamento de sinal oposto… uma conclusão que pressupõe exactamente a premissa oposta àquela de que se partiu».
Segundo este Autor, «é no sentido da incompatibilidade lógica entre o facto real, concreto, individual, invocado pelo autor como base da sua pretensão (causa de pedir) e o efeito jurídico por ele requerido (pedido) através da acção judicial, que a doutrina e a jurisprudência justificadamente interpretam e aplicam a contradição prevista (e regulada) na al. b) do nº 2 do art. 193º do Código de Processo Civil[6]­-[7].
À luz de tais considerandos, é por demais evidente que a petição inicial com que foi introduzida em juízo a presente ação não padece do apontado vício.
Não se lobriga qualquer antagonismo entre o pedido e a causa de pedir, não se vislumbra qualquer incompatibilidade lógica entre o pedido e a causa de pedir que o sustenta, não se vê qualquer negação entre os factos reais, concretos, individuais, invocados pelo autor como base da sua pretensão (causa de pedir) e o efeito jurídico por ele requerido (pedido) através da presente ação.
Como se sabe, a natureza jurídica de uma ação, o seu objeto, define-se através do pedido e da causa de pedir que lhe subjaz, e não pelo “nomen iuris” que o autor lhe atribui.
Por outras palavras, o “nomen iuris” atribuído pelo autor à ação é irrelevante, devendo, antes, o juiz analisar a situação jurídica afirmada pelo autor na petição inicial, através do pedido e da causa de pedir que o sustenta, de modo a aplicar à concreta situação submetida à sua apreciação e julgamento, as pertinentes normas jurídicas, com vista à correta solução da lide que lhe é apresentada.
No caso concreto, a análise do pedido formulado pelos autores e da causa de pedir que o fundamenta, revela que é inequívoco que estamos perante uma ação de reivindicação instaurada ao abrigo do disposto no art. 1311.º do CC, e não perante a ação de despejo prevista no Art.º 14.º do NRAU, aprovado pela Lei n.º 6/2006 de 27 de fevereiro.
Uma nota quanto à invocada teoria da substanciação.
Afirma-se na decisão recorrida que «quanto à causa de pedir, na decorrência do principio da substanciação que genericamente foi acolhido para a conceptualização da causa de pedir no nosso sistema processual, a mesma é, in casu, designada pelo “facto jurídico de que deriva o direito real” (cf. art. n.º 4 do art 581.º CPC)».
Após a entrada em vigor, no dia 1 de setembro de 2013, do Código de Processo Civil vigente, face à menor exigência no que respeita à alegação dos factos essenciais, na medida em que a lei autoriza o seu complemento e/ou concretização posteriores (arts. 5.º, n.º 2 e 590.º, n.º 4), não parece ser mais possível afirmar que no art. 581.º, n.º 4, se encontra consagrada a clássica “pura e dura” teoria da substanciação.
A este propósito, Teixeira de Sousa vai ao ponto de afirmar que a solução atualmente consagrada no direito processual civil português quanto à categoria de factos que integram a causa petendi tem subjacente um conceito deflacionista de causa de pedir, correspondente à denominada «teoria da individualização aperfeiçoada do pedido do autor», não se tratando, contudo, de um retrocesso à pura teoria da individualização, uma vez que agora se exige que o autor alegue factos e não apenas relações jurídicas[8].
Não se nos afigurando, com ressalva do devido respeito, que possamos ir tão longe, pode e deve, hoje, a nosso ver, entender-se que a lei processual civil que atualmente nos rege consagra o que pode apelidar-se de “teoria da substanciação mitigada ou corrigida”[9].
Nesta ação, os autores pedem, em primeiro lugar, como se viu, que a ré seja condenada «a reconhecer a propriedade dos AA. sobre a fração autónoma melhor identificada no artigo 2º» da petição inicial.
Quanto ao primeiro dos descritos pedidos, é manifestamente incorreta a sua formulação, pois não é possível alguém pedir a condenação de outrem a reconhecer a sua propriedade, tal como, obviamente, não é possível o tribunal condenar alguém a reconhecer o direito de propriedade de outrem sobre uma determinada coisa.
No Ac. do S.T.J. de 25/03/2009, C.J., XVII, 1.º, 2009, 159, afirma-se que normalmente pede-se, de forma esdrúxula a condenação do réu a reconhecer o direito de propriedade do autor, como se fosse possível pedir a condenação de alguém a reconhecer a sua propriedade.
Conforme certeiramente refere Oliveira Ascensão, «há que afastar uma ambiguidade que se oculta em certas referências ao pretenso pedido de reconhecimento da propriedade.
Diz-se que o reivindicante pode exigir do réu o reconheci­mento. Observemos desde já que isto não tem em Direito nenhum sentido. O réu não é condenado a reconhecer, não tem de prestar facto ou declaração com este conteúdo. A única declaração que pode estar em causa é a do próprio tribunal»[10].
Assim, pois, o tribunal não deve condenar alguém a reconhecer o direito de propriedade de outrem sobre uma coisa, mas, antes, apreciar e declarar (se disso for o caso) a existência desse direito na esfera jurídica do autor; ou seja, deve o tribunal “limitar-se” a reconhecer (ou não) a existência do direito.
Não obstante a forma incorreta como este pedido se encontra formulado, é perfeitamente percetível que aquilo que os autores pretendem é que o tribunal reconheça o seu direito de propriedade sobre a fração.
Os autores pedem ainda que a ré seja condenada «a restituir a fração autónoma melhor identificada no artigo 2º [da petição inicial], por força do termo do contrato de arrendamento».
Estes são os pedidos característicos de uma ação de reivindicação.
Conforme referem Pires de Lima e Antunes Varela, a ação de reivindicação prevista no art. 1311.º do CC «é uma acção petitória que tem por objecto o reconhecimento do direito de propriedade por parte do autor e a consequente restituição da coisa por parte do possuidor ou detentor dela»[11].
Segundo os mesmos Autores, «são dois os pedidos que integram e caracterizam a reivindicação: o reconhecimento do direito de propriedade (pronuntiatio), por um lado, e a restituição da coisa (condemnatio), por outro. Só através destas duas finalidades previstas no nº 1, se preenche o esquema da acção de reivindicação (quanto à primeira finalidade, tem-se entendido que, se o reivindicante se limita a pedir a restituição da coisa, não formulando expressamente o reconhecimento do seu direito de propriedade, deve este pedido considerar-se implícito naquele»[12]-[13].
No que respeita à causa de pedir numa ação de reivindicação, tal como salienta Oliveira Ascensão, «a própria identificação dos factos constitutivos do direito real com a causa de pedir da reivindicação não é satisfatória.
É certo que a acção de reivindicação é uma acção real. Acções reais são as que actuam uma pretensão real, e esta é necessariamente titulada por um direito real.
O art. 498º/4 C.P.C. [art. 581º, nº 4, do C.P.C./13] declara realmente que nas acções reais causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real. Mas este destina-se a definir a identidade da causa de pedir para efeitos de litispendência e de caso julgado[14]. Nas acções reais, o que preocupa são as situações em que as partes disputam a titularidade de um direito real.
Ora, se nos interrogarmos sobre a correcção da afirmação de que, “nas acções reais, a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real de que deriva o direito real, não podemos deixar de concluir pela inadmissibilidade da noção”.
Ela enquadra apenas as acções de simples apreciação de direito real.
Há porém acções reais das mais variadas espécies. Entre elas está a acção de reivindicação. E é importante observar que o Código de Processo Civil nunca contempla a acção de reivindicação, pelo que ao art. 498º/4 C.P.C. [art. 581º, nº 4, do C.P.C./13] têm de ser estranhas quaisquer especificidades desta.
Ora, afirmar, em relação à acção de reivindicação, que a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real, é necessariamente insuficiente. E incompatível com a configuração desta acção como de condenação.
Numa acção de condenação a causa de pedir é necessariamente complexa. Consiste, não apenas no direito ou nos factos constitutivos deste que se invocam, mas também numa situação a este contrária que se quer ver transcendida através da condenação.
A acção de reivindicação é dirigida à entrega. Isto significa que a causa de pedir não é apenas a titularidade ou os factos constitutivos do direito, mas também necessariamente uma situação de desconformidade na relação com a coisa, a que a entrega deve pôr termo.
A desconformidade consiste na detenção por terceiro, que implicitamente contraria a situação de direito real. Esta representa mesmo o momento essencial (...)»[15].
Ainda segundo Oliveira Ascensão, «(...) a causa de pedir, na acção de reivindicação, é necessariamente complexa. Compõem-na não só o direito real ou os seus factos constitutivos, como a detenção[16] por terceiro, em desconformidade com aquele direito. A situação de facto desconforme é até um momento prévio, sem o qual o recurso à reivindicação surge logo como carente de sentido.
Por isso, não se pode dizer que a acção em que a parte se limitasse a invocar a situação desconforme - a detenção contrária à sua propriedade - fosse uma acção sem causa de pedir. Haveria sempre o recorte na corrente dos acontecimentos da vida que daria a individualização daquela pretensão. Haveria pedido e causa de pedir.
E havê-lo-ia ainda que o autor não tivesse feito nenhuma qualificação da situação. A qualificação da parte nada tem de decisivo. E o verdadeiro significado da acção só se desenhará com a tomada de posição do réu.
Poderia, num tal caso, haver «insuficiência da causa de pedir. Mas a insuficiência de causa de pedir deve originar uma decisão de improcedência, no desfecho normal do processo (...)»[17].
No caso concreto, os autores pedem:
- o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre a fração; e,
- a condenação da ré a restituir a fração;
alegando para o efeito que:
- «com efeitos a partir do dia 31 de maio de 2023», puseram validamente termo ao contrato de arrendamento celebrado no dia 19 de maio de 2017.
- a partir daquele dia 31 de maio de 2023, a ré passou a ocupar a fração desprovida de qualquer título válido para o efeito.
Em conclusão:
O pedido deve ser compatível, deve ser coerente, com a respetiva causa de pedir.
A petição inicial assenta num silogismo em que:
- a premissa maior é constituída pelas razões de direito invocadas;
- a premissa menor é preenchida com as razões de facto; e,
- a conclusão corresponde ao pedido.
A causa de pedir não deve estar em contradição com o pedido, sendo certo que contradição não significa simples desarmonia.
Contradição, neste contexto, significa exatamente uma negação recíproca, um encaminhamento de sinal oposto, uma conclusão que pressupõe exatamente a premissa oposta àquela de que se partiu.
Não é, manifestamente, como se viu, o que ocorre no caso concreto, pelo que a decisão recorrida não pode subsistir devendo ser revogada e substituída por outra que determine o prosseguimento dos autos[18].
***
IV – DECISÃO:
Pelo exposto, acordam os juízes que integram esta 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar a apelação procedente, revogando, em consequência, a decisão recorrida, e determinando que os autos baixem à 1.ª instância, para que aí prossigam seus regulares termos.
Sem custas.

Lisboa, 15 de julho de 2025
(Acórdão assinado eletronicamente)
José Capacete
Paulo Ramos de Faria
Micaela Sousa
___________________________________________________
[3] Doravante referida apenas por “fração”.
[4] Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 3.ª Edição, Almedina, 2022, p. 244.
[5] Código de Processo Civil Anotado, Volume I, Coimbra Editora, 1948. p. 309.
[6] -Correspondente à al. b) do n.º 2 do art. 186.º do CPC/13.
[7] R.L.J., Ano 121º, pp. 121 ss.
[8] Algumas Questões sobre o ónus de alegação e de impugnação em processo civil, in Scientia Iuridica, Revista de Direito Comparado Português de Brasileiro, LXII, nº 332, Braga, 2013, pp. 398-398.
[9] Não cabendo, no âmbito deste recurso, aprofundar esta questão, sugere-se, a propósito da mesma, a leitura do texto de Miguel Mesquita, A «sustentável leveza» de uma petição inicial, in Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 154.º, N.º 4031, março/abril de 2025, pp. 322-337.
[10] Estudos em Homenagem ao Professor Doutor João de Castro Mendes, Lex, 1995, pp. 21-22.
[11] Código Civil Anotado, Vol. III, Coimbra Editora, 1987, p. 112.
[12] Idem, p. 113.
[13] Trata-se de uma questão sobre a qual não existem divergências, tanto na doutrina, como na jurisprudência.
[14] Vejam-se as noções de causa de pedir avançadas por Mariana França Gouveia relativamente aos institutos da litispendência e do caso julgado e atrás se deixaram reproduzidas. Sucede que
o que está em causa neste recurso é a causa de pedir, não para efeitos de litispendência ou de caso julgado, mas para efeitos de ineptidão da petição inicial.
[15] Acção de Reivindicação, in Estudos em Memória do Professor Doutor João de Castro Mendes, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Lex, 1995, pp. 29-30.
[16] Ou a própria posse, permitimo-nos acrescentar.
[17] Acção de Reivindicação cit., p. 32.
[18] No sentido do aqui decidido veja-se o acórdão deste tribunal e secção, datado de 23.03.2025, Proc. n.º 18108/21.7T8LSB.L1-7 (Carlos Oliveira), in www.dgsi.pt, em cujo ponto 1. do respetivo sumário se afirma: «Não é inepta a petição inicial, nos termos do Art.º 186.º n.º 2 al. b) do C.P.C., por contradição entre o pedido e a causa de pedir, quando os Autores, alegando serem os proprietários de um imóvel e que a Ré o está a ocupar sem título legítimo, nomeadamente por motivo de ter cessado o contrato de arrendamento, por terem exercício oportunamente o direito de oposição à sua renovação, concluem pedindo para ser reconhecidos como proprietários desse imóvel e que a Ré seja condenada a restituí-lo»