Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
19912/22.4T8LSB.L1-2
Relator: JOSÉ MANUEL MONTEIRO CORREIA
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
RESPONSABILIDADE CIVIL
INDEMNIZAÇÃO
PERITAGEM
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I.- Os art.ºs 31.º a 46.º do D.L. 291/07, de 21/08 estabelecem um mecanismo contendo regras e procedimentos a observar pelas seguradoras com vista a garantir, de forma pronta e diligente, a assunção da sua responsabilidade e o pagamento das indemnizações em caso de sinistro no âmbito do seguro de responsabilidade civil automóvel.
II.- Este mecanismo tem como principal escopo agilizar e garantir celeridade à resolução consensual e amigável dos procedimentos de atribuição das indemnizações pelas seguradoras aos lesados em consequência de acidente de viação e, por conseguinte, uma vocação extrajudicial.
III.- Neste pressuposto, uma vez desencadeado, mas não sendo obtido acordo no âmbito do mesmo quanto à indemnização a atribuir, ou haja fundamento válido para que não deva prosseguir com ele, nada obsta a que o lesado diligencie por si próprio pela reparação dos danos que sofreu e que, ulteriormente, discuta o seu ressarcimento pela via judicial, no quadro do instituto jurídico da responsabilidade civil extracontratual, mormente, dos preceitos fundamentais desse instituto que são os art.ºs 483.º, 562.º e 566.º do Código Civil.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: .- Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa os Juízes Desembargadores abaixo identificados,

I.- Relatório
.- Táxis Gaivotas do Tejo, Lda. instaurou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra Fidelidade - Companhia de Seguros, S.A., pedindo que, pela sua procedência, fosse a Ré condenada a pagar-lhe:
a.- o custo do pedido de certidão de acidente de viação à PSP, no valor de €100,00;
b.- o custo da peritagem externa no valor de €123,00;
c.- os danos patrimoniais referentes à reparação do veículo automóvel com a matrícula …-…-…, da sua propriedade, no valor total de €2.711,93;
d.- os danos patrimoniais resultantes da paralisação do mesmo veículo automóvel, no valor de €2.420,00;
e.- os juros de mora, sobre os valores referidos em i a iv, a partir da citação.
Para tanto, e em síntese, alegou que no dia 29 de junho de 2022, pelas 16h22, no cruzamento da Praça do Martim Moniz com a Rua de São Lázaro, em Lisboa, ocorreu um acidente de viação, no qual intervieram os seguintes veículos automóveis:
i.- veículo ligeiro de passageiros, com a matrícula …-…-…, da marca Fiat;
ii.- veículo ligeiro de passageiros, com a matrícula …-…-…, da sua propriedade, destinado ao serviço de Táxi; e
iii.- veículo de emergência, destinado ao serviço de ambulância, com a matrícula …-…-….
O acidente ocorreu do seguinte modo: os três veículos circulavam na Praça Martim Moniz, no sentido da Rua de São Lázaro, tendo a condutora do primeiro veículo, na entrada desta via, travado para deixar passar peões na passadeira.
O condutor do veículo da sua propriedade, seguindo atrás, travou e imobilizou o veículo, mas o condutor do último veículo não travou a tempo e foi embater com a frente na traseira do seu veículo, indo este, por seu turno, embater com a frente na traseira do primeiro.
O sinistro deveu-se, por conseguinte, a culpa do condutor do terceiro veículo, que conduzia desatento e em violação das regras de trânsito.
Acrescentou que, em consequência do acidente, o seu veículo sofreu estragos na frente e na traseira, com cuja reparação, em pintura, colocação de peças e mão de obra, despendeu o valor pecuniário de €2.711,93.
Outrossim, desde a data do sinistro até à data da conclusão da sua reparação, em 20 de julho de 2022, num total, portanto, de 22 dias, esteve impedido de circular e, por conseguinte, inutilizado para o serviço de táxi, o que gerou uma perda de rendimento de €2.420,00.
Suportou, ainda, o custo de €100,00 com a aquisição da certidão da participação do acidente elaborado pela PSP e, bem assim, o de €123,00 com uma peritagem externa a que, junto da DEKRA, teve de recorrer.
Concluiu, em face do exposto, ter direito ao ressarcimento de tais danos, designadamente, por parte da Ré, para a qual, à data do sinistro, se encontrava transferida, pelo respetivo proprietário, a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo causador do acidente.
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Citada, apresentou a Ré a sua contestação, batendo-se pela improcedência da ação.
Para tanto, depois de aceitar a existência do contrato de seguro e de impugnar, por desconhecimento, a descrição da dinâmica do acidente de viação dos autos feita pela Autora, invocou que o condutor do veículo desta fazia a condução por conta, no interesse e sob a sua direção e, porque seu trabalhador, no âmbito de uma relação de comissão.
Sobre ele recaia, assim, a presunção de culpa prevista no n.º 3 do art.º 503.º do CC.
Quanto aos danos, referiu que o valor da reparação do veículo peticionado inclui o IVA de €507,11, o qual é recuperado pela Autora enquanto sociedade comercial, pelo que a um eventual valor a liquidar a este título sempre haveria que descontar este valor.
Acrescentou que o dono da oficina onde teria sido reparada a viatura da Autora, que atua em representação desta, manda reparar viaturas com o preço da mão de obra que entende e emite faturas em nome da oficina a favor da sociedade de táxis de que é sócio gerente, havendo, pois, dúvidas sobre a peritagem realizada.
Por outro lado, não deu (a Ré) instruções para que a oficina em causa processe à reparação do veículo sinistrado porquanto não visualizou os danos que apresentava, já que a oficina não permite que o perito veja o veículo e que acompanhe a reparação.
Finalmente, os 22 dias de inutilização do veículo não são consentâneos com o facto de, no relatório de peritagem, terem sido fixados 4 dias de reparação, além de o valor diário peticionado ser excessivo, só levando em consideração o rendimento obtido com a utilização do veículo, mas não os custos decorrentes da sua utilização.
Impugna, em face do exposto, os danos invocados pela Autora e o direito desta ao seu ressarcimento.
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Realizada audiência prévia, nela foi proferido:
i.- despacho a fixar em €5.354,93 o valor da causa;
ii.- despacho saneador tabelar;
iii.- despacho a identificar o objeto do litígio e a enunciar os temas da prova, do que não houve reclamações.
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Teve lugar a audiência de discussão e julgamento, com observância do formalismo legal.
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Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, julgando parcialmente procedente a ação e, consequentemente:
I.- condenando a Ré a pagar à Autora as seguintes quantias pecuniárias:
.- €100,00, a título de indemnização pelo dano patrimonial decorrente do custo do pedido de certidão da participação de acidente, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação e até efetivo e integral pagamento;
.- a quantia de €123,00, a título de indemnização pelo dano patrimonial decorrente do custo da realização da peritagem externa, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação e até efetivo e integral pagamento;
.- a quantia de €2.204,82, a título de indemnização pelo dano patrimonial decorrente do custo da reparação do veículo com a matrícula …-…-…, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação e até efetivo e integral pagamento;
.- a quantia de €2.420,00, a título de indemnização pelo dano patrimonial decorrente da privação do uso do veículo com a matrícula …-…-…, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação e até efetivo e integral pagamento;
II.- absolvendo a Ré do mais que contra si foi peticionado;
III.- condenando Autora e Ré nas custas da ação, na proporção do decaimento, fixado em 10% relativamente à primeira e em 90% relativamente à segunda.
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Inconformada com esta decisão, dela veio a Autora interpor o presente recurso, batendo-se pela sua revogação e consequente absolvição do pedido, formulando, para o efeito, as seguintes conclusões, que assim se transcrevem:

“A. Em todos os processos que envolvem acidentes de viação com a Autora e outras empresas do grupo, decorrem vários factos idênticos, a seguradora tenta marcar a peritagem sendo esta marcada na mesma oficina Car Pronto Reparações e Comércio de Automóveis e Peças Lda sendo que o perito da seguradora desloca-se á oficina no entanto é impedido pela oficina que realize a peritagem e não o deixa acompanhar a reparação!
B. Assim, também no processo sub judice e á semelhança de dezenas de outros
processos de regularização semelhantes, os veículos da Autora não são peritados pelas seguradoras, sendo que a empresa de táxis recorre a uma “peritagem externa” realizada sempre pelo mesmo “perito” e empresa!
C. Ou seja, não é permitido peritar o veículo, requer uma alegada “peritagem externa” e eis que judicialmente vem peticionar valor de reparação, privação de uso e o custo da dita “peritagem externa”.
D. A ora Ré não concorda com os factos dados como provados 11 a 26 bem co-
mo com os factos dados como não provados a) a h).
E. Do depoimento da testemunha PB, não ficou devidamente provado o período de imobilização do veículo sinistrado, aliás ainda alimentou dúvidas sobre os danos e sobre o período de imobilização uma vez que assumiu que o veículo tinha problemas de mecânica.
F. Esta testemunha, condutor do veículo táxi, nada referiu sobre os danos que o
veículo sofreu, nada soube sobre a peritagem e nem sequer quando é que o veículo ficou pronto!
G. Por sua vez, do depoimento da testemunha IO, mecânico funcionário da oficina, resulta que nem sequer sabia qual a matrícula do veículo
sinistrado!
H. Também esta testemunha não soube dizer qual o período de imobilização do veículo, que peças foram trocadas e nem sequer soube confirmar qual o valor de reparação!
I. Esta testemunha ainda não soube confirmar que danos é que o veículo verdadeiramente sofreu, nada sabia sobre a peritagem e quando é que o veículo ficou pronto!
J. Estes testemunhos não deveriam ter sido valorizados pelo tribunal “a quo”!
K. Também o depoimento da testemunha NM não deveria ter sido valorizado pelo tribunal “a quo”.
L. Esta testemunha comprova as dúvidas existentes sobre a peritagem externa realizada por este perito, aliás comprova que existiam danos á frente no veículo não enquadráveis com este acidente!
M. Esta testemunha dirige-se á oficina a pedido da Autora, vê a viatura e elabora um relatório de acordo com os danos que vê, não acompanha a reparação, nem sabe sequer se a viatura é reparada!
N. Mas acima de tudo não consegue afirmar que os danos alvo da peritagem decorrem ou não do acidente sub judice!
O. Por outro lado, o depoimento da testemunha RL, perito da ora Ré, foi esclarecedor e credível!
P. Esta testemunha deslocou-se á oficina três vezes para a realização da peritagem, somente visualizou a viatura na 1º deslocação, tendo sido impedido pela oficina de realizar por completo a peritagem!
Q. Somente lhe foi permitido tirar fotografias ao veículo, não tendo, contudo, realizado as restantes competências que uma peritagem exige, nomeadamente acompanhar a desmontagem do veículo e a sua reparação!
R. Aliás somente na 1ª deslocação o perito viu a viatura, posteriormente, na 2ª e 3ª deslocações, 7 dias e 10 dias depois, a viatura já não estaria na oficina!
S. É assim totalmente falso que tenha sido realizada peritagem ao veículo em apreço, tendo sido o perito impedido pela oficina, do mesmo proprietário da empresa de táxis, de realizar a peritagem completa!
T. Atendendo que não foi feita prova inequívoca dos danos na viatura sinistrada, bem como sequer que tais tenham sido reparados, não pode a Apelante concordar com os factos dados como provados 11, 12, 20, 21 e 22!
U. O facto nº 15, despesa com uma certidão de acidente, também não está devidamente provado que a Autora tenha suportado tal despesa!
V. O facto dado como provado nº 17 é falso, a Ré não realizou qualquer peritagem á viatura 25-11-IT, porquanto a oficina cujo proprietário também é proprietário da viatura táxi, não permitiu a concretização da referida peritagem nem permitiu o acompanhamento da pseudo reparação!
W. Os factos dados como provados 18 e 19 sobre a peritagem externa carecem de prova, porquanto não está provado que a Autora tenha liquidado o valor de 123€ e a alegada peritagem não passou de uma vistoria aos danos na viatura naquela data não existindo nexo de causalidade com o acidente sub judice!
X. Aliás bem pelo contrário, apurou danos na frente quando o acidente ocorreu com um embate na traseira!
Y. Por último, a Autora não provou os factos dados como provados 23 a 26, porquanto nenhuma testemunha confirmou se existiu e qual o período que o táxi esteve imobilizado!
Z. Por outro lado, a Ré entende que os factos dados como não provados a) a h)
não foram devidamente considerados pelo tribunal “a quo”!
AA. Como anteriormente exposto, ficou devidamente comprovado que o Presidente da Car Pronto Reparações e Comércio de Peças, Lda é FC, e que este manda reparar viaturas com o preço de mão
de obra que entende.
BB. FC emite faturas em nome da oficina Car Pronto Reparações e Comércio de Peças, Lda a favor da sociedade de táxis da qual é sócio-gerente, sendo que a oficina não permite a realização da peritagem, nem que acompanhe a reparação da viatura!
CC. A Ré não realizou qualquer peritagem e não deu instruções para que a oficina procedesse à reparação do veículo.
DD. A reparação dos táxis ocorre sempre á revelia de qualquer decisão ou acordo da Ré, e totalmente á margem dos procedimentos de regularização de sinistros previstos no Dec. Lei 291/2007 de 21 de Agosto, o que constituiu uma impossibilidade da reconstituição natural.
EE. A Ré não concluiu a peritagem do dito veículo nem acompanhou a “pseudo” reparação, e agora já não o pode fazer, nem requere-lo judicialmente porquanto a própria Autora tornou impossível apurar se concluiu ou não a reparação, daí vir agora reclamar o pagamento de uma indemnização em dinheiro sem existir qualquer prova que os danos resultantes do acidente terão sido os reparados.
FF. A prioridade da reconstituição natural sobre a indemnização em dinheiro, não deixam de ser obrigações alternativas cuja escolha, nos termos do disposto nos artigos 36º a 43º do já citado Dec. Lei 291/2007, pertence á seguradora ora Ré.
GG. Assim, nos termos do disposto no artigo 547º 2ª parte do Código Civil, se a
impossibilidade de alguma das prestações for imputável ao credor e a escolha pertencer ao devedor, a obrigação tem-se por cumprida, a menos que este prefira efetuar outra prestação e ser indemnizado dos danos que houver sofrido.
HH. Pelo exposto, mesmo que a responsabilidade pelo sinistro pertencesse ao veículo seguro na ora Ré, a obrigação de reparação natural que impendia sobre a Ré deve ter-se por extinta!
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A Autora respondeu à alegação da Recorrente, batendo-se pela manutenção da sentença recorrida, formulando, para o efeito, as seguintes conclusões, que se transcrevem:
“1ª – De facto existiu o acidente conforme factos provados, ver douta sentença, pag. 3, 4 e 5.
2ª – Estes factos relatam de uma forma fiel o que deu origem ao acidente e os danos daí resultantes.
3ª – O douto Tribunal “a quo”, página 5, 4.º parágrafo, também descreveu claramente os factos não provados.
4ª – Nessa sequência, página 5, penúltimo parágrafo, descreve muito claramente a convicção do Tribunal, confirmando as regras de experiência, nos termos do artigo 607.º, n.º 4 e 5 do CPC.
5ª – Começando por referir qual foi a sua convicção, referindo as testemunhas que depuseram com uma clareza meridiana, e os depoimentos delas foi conjugado com os documentos apresentados, explicando, muito claramente o que cada testemunha disse, vide página 6, 7 e 8 da douta sentença.
6ª – Chegados aqui, o M. Juiz “a quo”, aplicou o direito aos factos, vide página 10 e seguintes da douta sentença.
7ª – Começando por referir que quem causar um dano, está obrigado a reparar, nos termos do artigo 483.º e seguintes do CC.
8ª – Em face da prova produzida existiu um facto, foi ilícito, existiu culpa, existiu danos e nexo de causalidade, estando assim preenchido a obrigação de indemnizar os prejuízos que a recorrida teve por consequência do acidente.
9ª – Estando assim preenchidos os pressupostos da responsabilidade cível, artigos 483.º, 487.º, 562.º e 1305.º todos do CC.
10ª – Sendo a recorrente a responsável pela indemnização por a sua segurada lhe
ter transferido a responsabilidade pelo seguro da viatura …-…-…, pelo contrato
de seguro, apólice ….
11ª – Conforme referido no pedido da PI, a recorrida teve danos com a peritagem do acidente, 123,00€, de danos no veículo de 2.204,82€ e paralisação no montante de 2.420,00€, perfazendo tudo o montante dos danos sofridos pela recorrida por causa direta do acidente.
12ª – O M. Juiz “a quo” neste caso fez uma correta interpretação dos factos, com
as provas apresentadas, quer testemunhais, quer documentais e a sua subsunção
ao direito.”
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O recurso foi admitido como apelação, com subida nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo e assim recebido nesta Relação, que o considerou corretamente admitido e com o efeito legalmente previsto.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II.- Das questões a decidir
O âmbito dos recursos, tal como resulta das disposições conjugadas dos art. ºs 635.º, n.º 4, 639.º, n.ºs 1 e 2 e 641.º, n.º 2, al. b) do Código de Processo Civil (doravante, CPC), é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente.
Isto, com ressalva das questões de conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado ou das que se prendem com a qualificação jurídica dos factos (cfr., a este propósito, o disposto nos art. ºs 608.º, n.º 2, 663.º, n.º 2 e 5.º, n.º 3 do CPC).
Neste pressuposto, as questões que, neste recurso, importa apreciar e decidir são as seguintes:
i.- saber se deve ser alterada a decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida quanto aos factos provados com os n.ºs 11, 12, 15, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25 e 26, no sentido da sua consideração como factos não provados, bem como quanto aos factos não provados constantes das alíneas a) a h), no sentido da sua consideração como factos provados;
ii.- saber se a Recorrida diligenciou pela reparação do veículo de que é proprietária em consequência do acidente de viação dos autos à revelia da Recorrente e do procedimento de regularização de sinistros previsto no D.L. 291/07, de 21/08 e, na afirmativa, quais as consequências a retirar desse facto, nomeadamente, se daí resultou a extinção da responsabilidade daquela;
iii.- na negativa, saber se a Recorrida provou os danos emergentes e os lucros cessantes que alegou ter sofrido em consequência do acidente de viação dos autos e, por decorrência dessa constatação, aferir a medida e os termos do seu ressarcimento.
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III.- Da Fundamentação
III.I.- Na sentença proferida em 1.ª Instância e alvo deste recurso foram considerados provados os seguintes factos:
1.- Consta do documento único automóvel que a autora é proprietária do veículo automóvel ligeiro de passageiros, de marca Mercedes-Benz, de matrícula …-…-… e é titular do respetivo certificado de matrícula datado de 1 de outubro de 2012.
2.- O veículo de matrícula …-…-… tem licença para o serviço de transporte público de passageiros.
3.- No âmbito da sua atividade comercial, a ré firmou com a Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Moscavide e Portela um acordo denominado “contrato de seguro do ramo automóvel”, com início em 1 de abril de 2022 e em vigor a 29 de junho de 2022, titulado pela apólice n.º …, nos termos do qual assumiu a responsabilidade pelos danos emergentes da circulação da ambulância, de marca Mercedes-Benz, de matrícula …-…-….
4.- No dia 29 de junho de 2022, pelas 16,22 horas, no cruzamento da Praça do Martim Moniz com a Rua de São Lázaro, em Lisboa, ocorreu um embate em que foram intervenientes:
a) o veículo automóvel ligeiro de passageiros, de marca Fiat, com a matrícula …-…-…, conduzido por SP;
b) o veículo automóvel ligeiro de passageiros, de marca Mercedes-Benz, com a matrícula …-…-…, conduzido por PB; e
c) o veículo automóvel de ambulância com a matrícula …-…-…, pertencente à Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Moscavide e Portela e conduzido por DS.
5.- Os veículos referidos em 4) circulavam na Praça Martim Moniz, em Lisboa, no sentido Rua de São Lázaro.
6.- Na Rua de São Lázaro, o condutor do veículo de matrícula …-…-… travou para deixar passar os peões na passadeira.
7.- Em virtude do descrito em 6), o condutor do veículo de matrícula …-…-… travou para não embater no veículo de matrícula …-…-…, parando o seu veículo.
8.- O condutor do veículo de matrícula …-…-… embateu com a parte da frente na parte traseira do veículo de matrícula …-…-….
9.- Em consequência do descrito em 8), o veículo de matrícula …-…-… embateu com a parte da frente na parte traseira do veículo de matrícula …-…-….
10.- Ao atuar conforme o descrito em 8), o condutor do veículo de matrícula …-…-… não agiu com o cuidado, o zelo e a cautela que lhe eram devidos e de que era capaz.
11.- O veículo de matrícula …-…-… sofreu danos na parte da frente e na parte traseira.
12.- O descrito em 11) ocorreu em consequência do descrito em 4).
13.- Após o descrito em 4), a Polícia de Segurança Pública foi chamada ao local.
14.- A Polícia de Segurança Pública elaborou a participação de acidente que se encontra junta aos autos e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
15.- A autora requereu uma certidão da participação de acidente, tendo suportado o custo de €100,00 (cem euros).
16.- No dia 30 de junho de 2022, foi solicitada uma peritagem ao veículo de matrícula …-…-….
17.- No dia 7 de julho de 2022, a ré efetuou a peritagem ao veículo de matrícula …-…-…, não tendo havido acordo com a oficina reparadora quanto ao valor hora.
18.- A autora recorreu a uma peritagem externa na DEKRA Portugal, S.A., tendo suportado o respetivo custo no valor de € 123,00 (cento e vinte e três euros).
19.- Da peritagem referida em 18) resultou o relatório de avaliação de danos que se encontra junto aos autos e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
20.- O veículo de matrícula …-…-… foi reparado na oficina da Car Pronto Reparações e Comércio e Peças, Lda, em 20 de julho de 2022.
21.- A autora despendeu, com a reparação do veículo de matrícula …-…-…, o valor de €2.204,82 (dois mil, duzentos e quatro euros e oitenta e dois cêntimos), acrescido de IVA no valor de €507,11 (quinhentos e sete euros e onze cêntimos), o que perfaz o valor total de €2.711,93 (dois mil, setecentos e onze euros e noventa e três cêntimos).
22.- Foram substituídas as seguintes peças do veículo de matrícula …-…-…:
a) grelha de radiador;
b) cobertura;
c) pala;
d) pala lateral;
e) apoio lateral pára-choques;
f) vidro conj. luzes rectag. esq.;
g) esticar lateral esq. no banco de ensaio;
h) publicidade traseira;
i) borrachas panela.
23.- O veículo de matrícula …-…-… não foi utilizado no período compreendido entre 29 de junho de 2022 e 20 de julho de 2022.
24.- O descrito em 23) ocorreu em consequência do descrito em 4).
25.- A autora labora com o veículo de matrícula …-…-… dois turnos por dia, auferindo com cada turno cerca de € 55,00 (cinquenta e cinco euros).
26.- O valor acordado entre a APS/Antral para a paralisação de um táxi com dois turnos
de laboração era, de 1 de março de 2020 a 28 de fevereiro de 2021, de € 96,28 (noventa e seis
euros e vinte e oito cêntimos).
27.- PB dedica-se à atividade profissional de motorista.
28.- Na data referida em 4), PB conduzia o veículo de matrícula …-…-… no exercício das suas funções, por conta, no interesse e sob a direção da autora
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Na mesma sentença não foi considerado provado que:
a.- O Presidente da Car Pronto Reparações e Comércio de Peças, Lda seja FC;
b.- FC mande reparar viaturas com o preço de mão de obra que entende;
c.- FC emita faturas em nome da oficina Car Pronto Reparações e Comércio de Peças, Lda a favor da sociedade de táxis da qual é sócio gerente;
d.- Aa oficina não permita que o perito veja o veículo sinistrado;
e.- A oficina não permita a realização da peritagem, nem que seja condicional;
f.- Aa oficina não permita que o perito acompanhe a reparação da viatura;
g.- A ré não tenha visualizado os danos do veículo de matrícula …-…-…;
h.- A ré não tenha dado instruções para que a oficina procedesse à reparação do veículo de matrícula …-…-….
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III.II.- Do objeto do recurso
.- Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto
O presente recurso versa, desde logo, sobre a decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida.
Os termos em que a Relação pode conhecer da matéria de facto impugnada em sede de recurso constam, no essencial, do art.º 662.º do Código de Processo Civil.
De acordo com o disposto no n.º 1 deste preceito, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Por seu turno, nos termos do n.º 2, a Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:
a) ordenar a renovação da produção da prova quando houve dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;
b) ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;
c) anular a decisão proferida na 1.ª Instância quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração proferida sobre a decisão da matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta;
d) determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados.
Da leitura de tais dispositivos legais resulta que à Relação é, em sede de recurso em que esteja em causa a impugnação da matéria de facto, conferido um grau de autonomia especialmente relevante.
Na realidade, se, confrontada com a prova globalmente produzida, o seu juízo decisório for diverso do da 1.ª Instância, à Relação incumbe hoje, não a faculdade ou a simples possibilidade, mas um verdadeiro dever de introduzir as alterações que tenha por convenientes ou acertadas.
Por outro lado, se, confrontada com essa mesma prova, reputá-la insuficiente ou mesmo inconsistente, deverá, mesmo sem impulso das partes nesse sentido, o mesmo é dizer oficiosamente, ordenar a renovação de prova já produzida ou mesmo a produção de novos meios de prova.
Em sede de reapreciação da matéria de facto, cabe à Relação, por conseguinte, formar a sua própria convicção quanto à prova produzida, convicção essa que, caso divirja da firmada em 1.ª instância, prevalecerá sobre esta.
Ou seja, e como refere António Santos Abrantes Geraldes, a Relação atua nesta sede com “autonomia decisória” e “como verdadeiro tribunal de instância”, ao qual compete “introduzir na decisão da matéria de facto impugnada as modificações que se justificarem, desde que, dentro dos poderes de livre apreciação dos meios de prova, encontre motivo para tal” (in Recursos em Processo Civil, Almedina, 2022, p. 334).
A posição que a Relação deve adotar quando confrontada com um recurso em matéria de facto deve, pois, ser a mesma da da 1.ª Instância aquando da apreciação da prova após o julgamento, valendo para ambos o princípio da livre apreciação da prova, conforme resulta, aliás, do disposto nos art.ºs 607.º, n.º 5 e 663.º, n.º 2 do CPC.
O mesmo é dizer, com Remédio Marques, que a “Relação tem o poder-dever de formar a sua convicção própria sobre a prova produzida e sobre a correção do julgamento da matéria de facto, não se devendo escusar a fazê-lo com base no princípio da livre convicção do julgador da 1.ª instância” (in Acção declarativa à luz do Código revisto, p. 637-638, apud José Lebre de Feitas, Armando Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. 3.º, p. 172).
Só assim se garantirá, de resto, a efetiva sindicância, por parte da Relação, do julgamento da matéria de facto levado a cabo em 1.ª instância e, com isso, o princípio fundamental do duplo grau de jurisdição (v., neste sentido, e entre muitos outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24-09-2013, de 26-05-2021 e de 04-11-2021, todos disponíveis na internet, no sítio com o endereço www.dgsi.pt).
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A autonomia decisória com que a Relação deve encarar a reapreciação da matéria de facto não pode implicar, contudo, a consideração genérica e indiscriminada de todos os factos e meios de prova já tidos em conta pela 1.ª Instância, como se aquela reapreciação impusesse a realização de um novo julgamento.
Dispõe, com efeito, o art.º 640.º, n.º 1 do CPC que quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
.- os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados (alínea a);
.- os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnada  diversa da recorrida (alínea b);
.- a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (alínea c).
Por outro lado, de acordo com a alínea a) do n.º 2, sempre que os meios de prova que, nos termos da alínea b) do n.º 1 devem ser especificados, tenham sido gravados, incumbe ao recorrente indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.  
Resulta de tais normativos legais que sobre o recorrente que pretenda ver sindicado pela Relação o julgamento da matéria de facto feito em 1.ª instância recai o ónus de, não só circunscrever e delimitar a concreta matéria de facto de cujo julgamento discorda, como o de enunciar os meios de prova que deveriam ter conduzido a decisão diversa - apontando, neste caso, em se tratando de depoimentos gravados, as passagens da gravação ou procedendo à transcrição dos excertos relevantes - e, ainda, o de indicar o sentido da decisão que, na sua perspetiva, deve ser proferida.
O sistema adotado pelo legislador quanto ao julgamento da matéria de facto pela Relação, ao invés de uma solução pautada pela simples “repetição dos julgamentos” e “pela admissibilidade de recursos genéricos contra a decisão da matéria de facto”, consiste, pois, num sistema caracterizado “por restringir a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente”, como corolário do “princípio do dispositivo que se revela através da delimitação do objeto do recurso (da matéria de facto) através das alegações” (v., neste sentido, António Santos Abrantes Geraldes, in ob. cit., p. 195 e 341).
Isto, aliás, com reflexos na aferição da própria admissibilidade do recurso em matéria de facto, já que, como decorre expressamente do corpo do preceito que acaba de ser transcrito, o ónus que recai sobre o recorrente deve ser cumprido sob pena de rejeição do próprio recurso.
Do sistema assim concebido pelo legislador podemos entrever, em suma, e como se referiu no Acórdão do STJ de 29-10-2015, um “ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação”, bem como de “um ónus secundário – tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes” (sublinhados nossos; Acórdão disponível na internet, no sítio com o endereço www.dgsi.pt).
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Neste recurso, e como resulta das conclusões da Recorrente, a divergência desta quanto ao julgamento da matéria de facto feito pela 1.ª instância prende-se, desde logo, com os factos provados com os n.ºs 11, 12, 15, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25 e 26.
É certo, a este propósito, que, na conclusão D do seu recurso, a Recorrente afirma que discorda dos factos provados com os n.ºs “11 a 26”, o que, numa primeira leitura, poderia sugerir que a sua impugnação contemplava, também, os factos provados com os n.ºs 13, 14 e 16.
A Recorrente, contudo, quer na sua motivação, quer, sobretudo, nas suas restantes conclusões (que delimitam o objeto do recurso), não faz qualquer alusão a estes últimos factos provados, cingindo-se apenas aos acima identificados, constantes dos n.ºs 11, 12, 15, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25 e 26.
Temos, pois, até pela natureza absolutamente genérica da afirmação constante da referida conclusão D, que, devidamente interpretada a peça recursória da Recorrente, o objeto da impugnação da decisão da matéria de facto é, quanto aos factos provados, os que constam dos n.ºs 11, 12, 15, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25 e 26, designadamente, no sentido da sua consideração como factos não provados.
Além destes factos, a impugnação da decisão da matéria de facto incide, também, sobre os factos não provados constantes das alíneas a) a h), que a Recorrente entende que devem ser considerados provados.
Ora, a este respeito, e levando-se em linha de conta as considerações acima expendidas sobre a admissibilidade do recurso em matéria de facto, há que dizer que se entende que a Recorrente cumpriu o duplo ónus primário e secundário acima exposto.
Na verdade, a Recorrente individualizou os concretos pontos de facto que reputou incorretamente julgados pela 1.ª instância e justificou a sua posição.
Outrossim, indicou os meios de prova que, na sua perspetiva, impunham um julgamento diverso, precisando as passagens da gravação dos depoimentos de que se serviu, concluindo pela enunciação do sentido em que, na sua perspetiva, tais factos devem agora ser julgados.
Ademais, como decorre do recente Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Plenário das Secções Cíveis do STJ de 17-10-2023, a ponderação sobre a admissão ou rejeição do recurso em matéria de facto deve ser feita no quadro dos “princípios da proporcionalidade e da razoabilidade”, pelo que, cumprido o essencial do ónus a cargo do recorrente, o princípio será o da admissão da impugnação em matéria de facto “se da conduta processual do recorrente resultar de forma clara e inequívoca o que o mesmo pretende com a interposição do recurso”.
 E é esse, quanto a nós, o caso dos autos, em que, como se viu, da leitura da peça recursória da Recorrente resulta evidenciado aquilo que a mesma visa com a impugnação da matéria de facto constante da sentença recorrida.
Cumpriu a mesma, em suma, o ónus que o acima citado art.º 640.º do CPC faz recair sobre si, nada obstando ao conhecimento do recurso nesta parte.
Apreciemos, pois, a sua pretensão relativamente aos factos acima destacados.
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A.- Dos factos provados
.- Dos factos provados n.ºs 11 e 12
Dada a ligação intrínseca entre estes dois factos analisá-los-emos em conjunto.
O teor do facto provado n.º 11 é o seguinte:
“O veículo de matrícula …-…-… sofreu danos na parte da frente e na parte traseira.”
Por seu turno, o teor do facto provado n.º 12 é o seguinte:
“O descrito em 11) ocorreu em consequência do descrito em 4).”
Segundo a Recorrente, tais factos deviam ter sido julgados não provados, por, no essencial, não ter sido produzida prova cabal a respeito deles, tanto mais que o acidente dos autos “ocorreu com um embate na traseira” do veículo da Recorrida.
Discorda-se, contudo, desta posição, considerando-se, pelo contrário, haver prova concludente quanto a tais factos.
Na verdade, no auto de participação de acidente de viação elaborado pela PSP tendo por objeto o acidente de viação dos autos, auto esse junto à petição inicial como documento n.º 3, é referido expressamente que o veículo da Recorrida apresentava “danos na frente do lado direito e na traseira do lado esquerdo” (sublinhados nossos).
Na declaração escrita da pessoa que conduzia esse veículo (a testemunha PB), alusiva à forma como ocorreu o acidente, que integra aquele auto da PSP, é dito que, do acidente, resultaram estragos na “traseira, sob lado esquerdo” e na “frente pára-choques e grelha frente”.
No relatório de peritagem efetuada pela “DEKRA” junto com a petição inicial como documento n.º 8 são, não só espelhados estragos na frente e na traseira do veículo, como propostos serviços de reparação e de colocação de peças naquelas duas partes (traseira e frente) do veículo.
As fotografias que integram esse relatório ilustram, aliás, esses estragos, o que acontece não só, claramente, quanto aos estragos na parte traseira, como, também, quanto aos estragos na parte da frente, como é o caso, quanto a estes últimos, das 8.ª a 10.ª e 20.ª a 26.ª fotografias.
A testemunha NM, que efetuou a peritagem do veículo retratada no referido relatório da “DEKRA”, além de confirmar o teor deste documento, referiu expressamente em audiência que o veículo apresentava danos “atrás e à frente”, sendo “atrás com maior volume; à frente mais ligeiros”.
Finalmente, como consta dos factos provados com os n.ºs 7 a 10 (que a Recorrente não pôs em causa no seu recurso), o acidente de viação dos autos consistiu, no que aqui importa considerar, no facto de o veículo da Recorrente ter sido embatido na traseira pelo veículo com a matrícula …-…-… e, por decorrência desse embate, ter sido projetado contra o veículo …-…-…, embatendo com a sua frente na traseira deste último.
Os estragos na traseira e na frente do veículo da Recorrente são, pois, consentâneos com a descrita dinâmica do acidente de viação dos autos, que, repita-se, não foi posta em causa pela Recorrente.
Ou seja, quer a aludida prova documental, quer a referida testemunha atestam os factos em causa e tais factos, considerando a dinâmica do acidente de viação dos autos, estão em sintonia com ela, tendo por base as regras da experiência comum.
Nenhuma razão há, assim, para que se ponha em causa o juízo decisório do tribunal a quo quanto à sua consideração como factos provados.
Improcede, pois, a pretensão da Recorrente quanto a eles.
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.- Do facto provado n.º 15
O teor deste facto é o seguinte:
“A autora requereu uma certidão da participação de acidente, tendo suportado o custo de €100,00 (cem euros).”
Segundo a Recorrente o facto em causa não foi sustentado em prova cabal, pelo que deve ser julgado não provado.
O tribunal a quo fundamentou a consideração como provado de tal facto no documento (recibo) junto com a petição inicial como documento n.º 6, conjugado com o teor da participação de acidente de viação oferecida com o mesmo articulado sob o documento n.º 3.
Não vemos qualquer razão para questionar este juízo decisório.
Na verdade, o referido documento n.º 6 constitui um recibo de pagamento emitido pela própria PSP em nome da Recorrente, relativo à emissão de certidão de acidente de viação e pelo valor constante dos factos provados.
A dita participação de acidente de viação contempla, como decorre da sua análise, cinco componentes, que são precisamente as assinaladas no aludido recibo.
Ou seja, o facto em causa é meridianamente evidenciado pelos documentos em questão.
Assim, e posto que a Recorrente, relativamente ao facto em causa, não adianta uma única razão concreta que leve a questionar a autenticidade ou fidedignidade dos aludidos documentos, nenhuma razão se entrevê para pôr em causa a consideração como provado do facto em questão.
Improcede, pois, a pretensão da Recorrente quanto a ele.
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.- Do facto provado n.º 17
O teor do facto em apreço é o seguinte:
No dia 7 de julho de 2022, a ré efetuou a peritagem ao veículo de matrícula …-…-…, não tendo havido acordo com a oficina reparadora quanto ao valor hora.
Mais uma vez, a Recorrente insurge-se contra a consideração como provado do facto em apreço no pressuposto de não ter sido produzida prova cabal sobre ele, ao passo que o tribunal a quo justificou o seu juízo decisório nesse sentido com o teor da ata de informação técnica junta com a petição inicial como documento n.º 8, em conjugação com o depoimento da testemunha RL.
Ora, a respeito deste facto, importa desdobrá-lo nos dois períodos que o integram.
Quanto ao primeiro período, assim como que a Ré tenha efetuado a peritagem ao veículo no dia 7 de julho de 2022, aquilo que resultou dos elementos de prova em que o tribunal estribou a sua resposta ao facto em apreço foi que a peritagem teve início na data nele mencionada, mas não foi concluída.
Na verdade, referiu a testemunha RL que, quando se dirigiu à oficina para fazer a peritagem, autorizaram-na a ver o veículo, a fotografá-lo e a fazer uma estimativa dos danos, mas, como não havia acordo quanto ao ‘valor hora’, assumiram logo a posição de que não reparariam o veículo com base nessa peritagem.
Mais referiu a testemunha que a peritagem não foi concluída e que não chegaram a falar em valores de reparação, sendo que o funcionário da oficina que se encontrava no local nem sequer assinou a ata de informação técnica que elaborou.
Referiu, ainda, que se deslocou à oficina por mais duas vezes, respetivamente, 7 e 3 dias úteis depois da primeira visita, sendo que só desta primeira vez é que visionou o veículo e que não teve qualquer possibilidade de acompanhar a reparação feita.
Por todos estes motivos, na impossibilidade de concluir a peritagem, cancelou-a.
Esta versão dos factos narrada pela testemunha surge, no essencial, refletida na ata de informação por ela elaborado que constitui o documento n.º 8 junto com a petição inicial, em que se evidencia que a peritagem iniciada pela testemunha não foi concluída naquela data.
Tanto assim foi que nele é dada conta da necessidade de “desmontagem na traseira” do veículo para efeitos de aferição da eventual existência de “danos ocultos” e que haverá “nova comparência do perito na oficina no dia 14-07-2022”.
Ora, perante estes dados, não contrariados por qualquer outro elemento de prova, temos por certo que, como se disse acima, a peritagem do veículo pela testemunha enquanto perita da Recorrente teve, de facto, início na referida de 7 de julho de 2022, mas não foi concluída.
Uma peritagem automóvel consiste, na realidade, numa análise do veículo sinistrado cuja reparação se pretende e, em função da análise feita do veículo, na descrição, quantificação e orçamentação desses danos em vista da sua reparação, o que, em função do que foi dito pela testemunha, não ocorreu.
Quanto ao segundo período do facto em apreço, que não havia acordo com a oficina reparadora do veículo da Recorrida quanto ao ‘valor hora’ foi facto confirmado em juízo pela referida testemunha.
Segundo a mesma, havia, de facto, “um desacordo entre a oficina e a seguradora quanto ao valor da hora que esta tem em sistema”, o que teria sido, de resto, o motivo invocado pela Recorrida para a não aceitação da peritagem a efetuar.
Ou seja, do depoimento da testemunha, não contrariado por qualquer outro elemento de prova, está evidenciado o segmento do facto em apreço atinente ao desacordo em causa quanto ao ‘valor hora’.
De resto, a Recorrente, na sua alegação de recurso, verdadeiramente não se insurge quanto a este segmento do facto, pois que a razão da sua discordância centrou-se no primeiro período do mesmo, atinente à realização da peritagem.
Importa, pois, alterar a redação do facto em apreço, nos seguintes termos:
“A peritagem do veículo com a matrícula …-…-… pelo perito da Ré foi iniciada por este no dia 7 de julho de 2022, não tendo havido acordo com a oficina reparadora quanto ao ‘valor hora’ da reparação”.
Procederá, assim, nesta medida, a pretensão da Recorrente aqui em análise.
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.- Dos factos provados n.ºs 18 e 19
Dada a ligação intrínseca entre estes dois factos analisá-los-emos em conjunto.
O teor do facto provado n.º 18 é o seguinte:
.- A autora recorreu a uma peritagem externa na DEKRA Portugal, S.A., tendo suportado o respetivo custo no valor de €123,00 (cento e vinte e três euros).”
Por seu turno, é o seguinte o teor do facto provado n.º 19:
“Da peritagem referida em 18) resultou o relatório de avaliação de danos que se encontra junto aos autos e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
Para a Recorrente, não há prova cabal de tais factos, sendo que, de acordo com o tribunal a quo, tais factos resultariam dos documentos juntos com a petição inicial sob os n.ºs 9 e 10 e do depoimento da testemunha NM.
Ora, a este respeito, é de meridiana evidência, em face dos elementos de prova mencionados pelo tribunal a quo, que a Autora recorreu aos serviços da DEKRA Portugal, S.A. para realizar a peritagem ao veículo da Recorrida, bem como que dessa peritagem resultou o relatório de avaliação de danos junto aos autos.
Que assim é atesta-o o próprio documento em questão, isto é, o documento n.º 10 junto com a petição inicial, o qual, como decorre da sua leitura, descreve, quantifica e orçamenta os danos do veículo e aquilo que era necessário para a sua reparação.
A realização da peritagem e a elaboração de tal relatório foram, também, atestadas em juízo pela referida testemunha, que foi precisamente quem fez a peritagem e elaborou o relatório e que, de forma distanciada, objetiva e cabal confirmou tê-lo feito em julho de 2022, descrevendo, inclusive, o método que seguiu na elaboração do relatório – isto é, mediante inserção de dados no sistema informático quanto aos danos verificados e consequente recolha a partir do sistema dos resultados procurados quanto às peças e serviços necessários à reparação e respetivo custo.
Ademais, os serviços e as peças que constam do documento são consentâneos com os estragos que o veículo poderia apresentar em função de um acidente com a dinâmica do dos autos e a data da realização da peritagem, ocorrida em 19 julho de 2022, surge na sequência da sua ocorrência, o que, tudo devidamente sopesado com as regras da experiência da vida, não permite outra conclusão que não a de que a peritagem em causa teve por objeto a avaliação de danos decorrentes do acidente dos autos.
De referir, finalmente, que se o documento n.º 9 junto com a petição inicial, que constitui a fatura emitida pela DEKRA respeitante ao custo da peritagem efetuada, atesta o valor do serviço prestado € 123,00 e a identidade da Recorrida como sendo a entidade devedora do mesmo, o documento n.º 10, tal como dele consta expressamente, vale como recibo de pagamento.
Em face de todos estes elementos de prova e, bem assim, da absoluta e total ausência de qualquer outro elemento de prova suscetível de gerar a dúvida sobre a verificação dos factos em questão, nenhuma razão há para que se questione a bondade do juízo decisório do tribunal a quo no sentido da sua consideração como factos provados.
Improcede, pois, a pretensão da Recorrente no sentido da sua consideração como factos não provados.
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.- Dos factos provados n.ºs 20, 21 e 22
Dada a ligação intrínseca entre estes três factos analisá-los-emos em conjunto.
É o seguinte, respetivamente, o teor dos factos provados em causa:
“.- O veículo de matrícula …-…-… foi reparado na oficina da Car Pronto Reparações e Comércio e Peças, Lda, em 20 de julho de 2022.”;
“.- A autora despendeu, com a reparação do veículo de matrícula …-…-…, o valor de €2.204,82 (dois mil, duzentos e quatro euros e oitenta e dois cêntimos), acrescido de IVA no valor de €507,11 (quinhentos e sete euros e onze cêntimos), o que perfaz o valor total de €2.711,93 (dois mil, setecentos e onze euros e noventa e três cêntimos)”;
.- Foram substituídas as seguintes peças do veículo de matrícula …-…-…:
a) grelha de radiador;
b) cobertura;
c) pala;
d) pala lateral;
e) apoio lateral pára-choques;
f) vidro conj. luzes rectag. esq.;
g) esticar lateral esq. no banco de ensaio;
h) publicidade traseira;
i) borrachas panela.
A Ré sustenta a impugnação da decisão da matéria de facto quanto a estes factos na ausência de prova cabal sobre eles.
O tribunal a quo justificou a consideração como provados de tais factos com o teor da ‘fatura-recibo’ oferecida com a petição inicial sob o documento n.º 11, conjugada com os recibos constantes dos documentos juntos aos autos sob as referências Citius com os n.ºs 35493370 e 35493511, com o depoimento da testemunha IO e com as regras da experiência comum.
Bem ponderada a prova produzida em julgamento, não vemos razões para questionar a decisão da matéria de facto da 1.ª instância nesta parte.
Na verdade, e desde logo, há que reiterar que, contrariamente ao defendido pela Recorrente no seu recurso, da prova produzida em julgamento e da que consta dos autos resultou claro que o veículo da Recorrida, em consequência do acidente de viação dos autos, sofreu estragos na frente e na traseira.
Há que salientar, também, que a reparação do veículo tem a precedê-la uma peritagem levada a cabo por entidade terceira, em cujo relatório são descritas as peças a colocar no veículo, os serviços de reparação a efetuar e os respetivos preços.
Ora, tais peças, serviços e preços estão em sintonia, não só com os estragos decorrentes do acidente de viação ocorrido, como com aquilo que, de acordo com os factos provados em análise, foi executado na reparação do veículo.
Por outro lado, o dito relatório de peritagem do veículo foi efetuado por entidade terceira e, em particular, por pessoa, a testemunha NM, que, em função do que já acima foi dito, executou a peritagem de forma autónoma e independente.
Temos, pois, uma reparação suportada num serviço de peritagem prévio que, por si só, afasta a ideia – de resto, não evidenciada por qualquer outro elemento de prova – de que se tratasse de reparação manipulada ou não coincidente com a realidade.
Acresce que se o documento n.º 11 junto com a petição inicial, que consiste na ‘fatura-recibo’ relativa à reparação do veículo emitida pela oficina ‘Car Pronto’, refere expressamente que se tratou da reparação tendo por base o sinistro de 29 de junho de 2022, dela constando valores pecuniários consonantes com a peritagem efetuada pela ‘DEKRA’, os documentos juntos aos autos em 27-03-2023, sob determinação do tribunal a quo, com as referências Citius acima referidas, atestam a aquisição, pela oficina responsável pela reparação, a ‘Car Pronto’, junto de uma terceira entidade, a ‘Autocavem Comércio de Peças Auto’, das peças necessárias à reparação, peças essas que estão em linha com as que constam, quer do relatório de peritagem, quer da fatura da ‘Car Pronto’.
De referir, ainda, que a testemunha IO, trabalhadora na oficina onde foi reparado o veículo, confirmou que a reparação foi efetuada.
Perante estes dados, e, também aqui, perante a ausência de outros elementos de prova que, em si mesmos, levassem a questionar a veracidade daqueles que acabam de ser analisados, não vemos razões para pôr em causa o juízo decisório do tribunal a quo quanto à sua consideração como factos provados.
Improcede, pois, a pretensão da Recorrente aqui em análise.
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.- Dos factos provados n.ºs 23 e 24
Dada a ligação intrínseca entre estes dois factos analisá-los-emos em conjunto.
É o seguinte o teor dos dois factos em apreço:
.- O veículo de matrícula …-…-… não foi utilizado no período compreendido entre 29 de junho de 2022 e 20 de julho de 2022”;
.- O descrito em 23) ocorreu em consequência do descrito em 4).
Segundo a Recorrente, não há prova cabal de tais factos, ao passo que o tribunal a quo justificou a sua decisão de os considerar provados com os depoimentos das testemunhas PB e IO, conjugados com o relatório de avaliação que constitui o documento n.º 10 junto com a petição inicial e com as regras da experiência comum.
Ora, devidamente analisada e sopesada toda a prova produzida em julgamento, afigura-se-nos que não há motivo para alterar a decisão do tribunal a quo a propósito do facto em apreço.
Na verdade, a respeito do período de imobilização do veículo dos autos, sabemos que o mesmo, como resulta da restante factualidade apurada (e que não foi posta em causa pela Recorrente), interveio num acidente de viação ocorrido em 29 de junho de 2022.
Segundo a testemunha PB, que era a condutora do veículo à data do sinistro, a própria, logo após o acidente, levou o carro para a oficina, onde o deixou, pelo que temos por certo que a viatura ali deu entrada nesse dia.
A testemunha RL, a qual, como se viu, interveio na qualidade de perito da Recorrente, referiu que se deslocou à oficina onde estava o veículo no dia 7 de julho de 2022 (facto que, aliás, assinalou na ata de informação técnica que elaborou, à qual já acima se fez referência).
Por seu turno, a testemunha NM, que efetuou a avaliação dos danos do veículo ao serviço da DEKRA, referiu que se deslocou à oficina a fim de visionar o veículo e que o fez nos dias 11 e 12 de julho de 2022.
Ou seja, de acordo com o relatado por todas estas testemunhas, o veículo dos autos sempre esteve na oficina para reparação durante todo o período de tempo em consideração.
Acresce que, no relatório de peritagem efetuado pela última testemunha referida, relatório esse que, como se viu, serviu de base à reparação do veículo, consta expressamente que essa reparação demandaria 4 dias úteis e que o início dos trabalhos correspondentes ocorreria, de acordo com a disponibilidade da oficina, no dia 14 de julho de 2022, pelo que os referidos 4 dias úteis completar-se-iam no dia 20 de julho de 2022.
Temos, assim, que, da conjugação de todos estes elementos de prova, resultam dados objetivos que permitem concluir que o período de imobilização do veículo da Recorrida foi exatamente aquele que consta do facto em apreço.
Nenhuma razão se entrevê, em face do exposto, para censurar o juízo decisório do tribunal a quo a esse respeito.
Improcede, pois, a pretensão da Recorrente aqui em apreço.
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.- Facto provado n.º 25
O facto provado em análise é do seguinte teor:
“- A autora labora com o veículo de matrícula …-…-… dois turnos por dia, auferindo com cada turno cerca de € 55,00 (cinquenta e cinco euros).
Segundo a Recorrente não há prova deste facto.
Para o tribunal a quo, a sua demonstração adveio do teor do documento junto com a petição inicial sob o n.º 12, em conjugação com o depoimento da testemunha IO.
Ora, a respeito deste facto, impõe-se começar por dizer que é apodítica a conclusão de que, em face da prova produzida, o veículo em causa está ao serviço da Recorrente e que, por isso, labora para ela.
O depoimento da testemunha PB é claro nesse sentido, já que, como se viu, ela própria, aquando do acidente, conduzia o veículo ao serviço da Recorrente, sendo que, como também referido pela mesma, a circunstância de o conduzir nessa qualidade já perdurava no tempo.
Mas já quanto a saber em que circunstâncias laborava, entende-se, tal como defendido pela Recorrente, que não há prova relevante a sustentá-lo.
Na verdade, o documento n.º 12 junto com a petição inicial, ao qual se fez referência na decisão recorrida, constitui um documento emitido pela própria Recorrida, ou, mais, rigorosamente, pelo legal representante desta, em nome da mesma.
Ora, em julgamento não se procedeu a qualquer exame do documento, nem sequer se apurou as circunstâncias em que foi emitido.
O documento em causa não passa, por isso, de reprodução em papel, pela Autora do processo, de algo que a própria alegou como fundamento da ação.
Só por isso não lhe pode ser atribuído qualquer relevo probatório.
Acresce que o que estava em causa no facto em análise não era o número de turnos que a Autora, como empresa exploradora de serviço de Táxi, fazia diariamente, mas o número de turnos que fazia com o veículo acidentado.
No documento em questão, porém, não é feita qualquer referência ao veículo dos autos, pelo que ao documento em causa não pode ser atribuído relevo para prova daquilo que estava em causa no facto em apreço.
O mesmo se diga, quanto à total ausência de relevo probatório, da testemunha IO, que, como se disse, também serviu de justificação para que o tribunal a quo considerasse provado o facto em causa.
Na verdade, a testemunha é mecânica de profissão e trabalha na oficina onde foi reparado o veículo, tendo sido, segundo a própria, quem efetuou essa reparação.
Sucede que, ainda que, de facto, tenha confirmado que o veículo “fazia dois turnos” e que cada turno implicava um provento diário de “€60”, fica no ar a dúvida, não esclarecida em julgamento, sobre em que medida é que a mesma, enquanto trabalhadora de uma oficina de automóveis, tinha conhecimento da natureza, em termos de qualidade e quantidade, do serviço prestado por um concreto táxi ao serviço da Recorrida, empresa de táxis.
A testemunha não revelou, assim, quanto ao facto em causa, uma razão de ciência suficientemente sólida e consistente que permitisse estribar nela a convicção segura quanto à sua verificação.
Em suma, está provado que a Recorrente labora com o veículo, mas não as circunstâncias em que o faz.
Impõe-se, pois, alterar a redação do facto em questão, nos seguintes termos:
.- “A Autora labora com o veículo com a matrícula …-…-…”.
E impõe-se introduzir um novo facto - não provado - nos seguintes termos:
.- Que “a utilização que a Autora faz do veículo com a matrícula …-…-… se processe em dois turnos por dia, auferindo com a cada turno cerca de €55,00”.
Procede, pois, nesta medida, a pretensão da Recorrente.
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.- Do facto provado n.º 26
O facto provado em apreço é do seguinte teor:
“.- O valor acordado entre a APS/Antral para a paralisação de um táxi com dois turnos de laboração era, de 1 de março de 2020 a 28 de fevereiro de 2021, de €96,28 (noventa e seis euros e vinte e oito cêntimos).
A Recorrente invoca a ausência de prova sobre tal facto, enquanto que o tribunal a quo fundamentou a sua consideração como provado no teor do documento junto com a petição inicial sob o n.º 13.
Entende-se, também aqui, que o facto em análise não pode ser considerado provado.
Na verdade, o documento mencionado na sentença recorrida consiste apenas num documento do qual, sob a epígrafe “Acordo de Paralisação APS/ANTRAL 2020”, consta um quadro contendo um conjunto de dizeres, entre os quais o de que “2 turnos” de “Táxi” implicam um valor de “€96,28” por dia. 
O documento em causa não contém, contudo, qualquer assinatura ou outro dizer que permita inferir a sua autoria.
Por outro lado, em julgamento não se procedeu ao seu exame, nem sequer foi prestado algum esclarecimento sobre o seu teor, sobre a sua proveniência, ou sequer sobre quem o emitiu.
Ao documento em questão não pode, pois, ser conferido qualquer relevo probatório.
Pelo exposto, e porque, relativamente ao facto em apreço, não consta do processo, nem foi produzido em julgamento qualquer outro elemento de prova suscetível de o atestar, forçoso é considerá-lo não provado.
Procede, pois, a pretensão da Recorrente aqui em análise.
*
B.- Dos factos não provados
.- Dos factos não provados constantes das alíneas a), b) e c)
Dada a conexão existente entre estes três factos analisá-los-emos em conjunto.
Os factos em apreço são do seguinte teor:
.- que “o Presidente da Car Pronto Reparações e Comércio de Peças, Lda seja FC”;
.- que “FC mande reparar viaturas com o preço de mão de obra que entende”;
.- que “FC emita faturas em nome da oficina Car Pronto Reparações e Comércio de Peças, Lda. a favor da sociedade de táxis da qual é sócio gerente”.
Segundo a Recorrente, tais factos resultaram provados, ao passo que, de acordo com o tribunal a quo, sobre tais factos não foi produzida prova cabal.
E não vemos que haja razões para alterar tal decisão.
Na verdade, quanto ao primeiro facto, tratava-se de facto (a qualidade de gerente da empresa que reparou o veículo) cuja demonstração carecia de prova documental, que a Recorrente, apesar de, na sua contestação, ter protestado que o iria a fazer, não juntou.
Por outro lado, e quanto aos restantes factos, já se viu atrás que, na origem da reparação do veículo dos autos esteve uma avaliação efetuada por uma sociedade terceira, o que, em si mesmo, afasta a conclusão de que a reparação do veículo e o custo respetivo não correspondessem à realidade e que tivesse sido manipulada pela pessoa neles mencionada.
Improcede, pois, a pretensão da Recorrente em análise.
*
.- Dos factos não provados constantes das alínea d) e g)
Dada a conexão existente entre estes dois factos analisá-los-emos em conjunto.
O facto da alínea d) é do seguinte teor:
.- que “a oficina não permita que o perito veja o veículo sinistrado”.
Por seu turno, no facto da alínea g) diz-se o seguinte:
.- Que “a Ré não tenha visualizado os danos do veículo de matrícula …-…-…”.
Segundo a Recorrente os factos em apreço deveriam ter sido julgados provados em função, designadamente, do depoimento da testemunha RL, que, na sua perspetiva, os teria confirmado.
O tribunal a quo, por seu turno, julgou não provados estes factos com fundamento na ausência de prova ‘inequívoca’ sobre eles.
E o certo é que os mesmos, não só não foram evidenciados por qualquer elemento de prova, como, pelo contrário, foram afastados pela testemunha RL, que, como se viu, interveio como perita da Ré.
Na verdade, a testemunha foi clara a dizer que, uma vez chegada à oficina, ali lhe foi dito “que poderia ver a viatura” e que “se quisesse, podia fotografar o carro e efetuar estimativa” dos danos.
Ou seja, a própria testemunha afirmou que lhe foi dada a possibilidade de visionar o veículo.
É certo que, de acordo com a testemunha, pela mesma foi suscitada a necessidade de desmontagem da parte traseira do veículo, por forma a aferir da existência de “danos ocultos”.
Certo é, também, que não há quaisquer elementos de prova que sugiram a existência de tais danos, isto é, de outros danos que não aqueles que o carro apresentava e que poderiam ser visionados aquando da primeira visita da testemunha à oficina.
Nenhuma razão há, pois, para que se censure o juízo decisório do tribunal a quo respeitante ao facto em apreço.
Improcede, assim, a pretensão da Recorrente quanto a ele.
*
.- Do facto não provado constante da alínea e)
O facto em apreço é do seguinte teor:
.- que “a oficina não permita a realização da peritagem, nem que seja condicional”.
Segundo a Recorrente, tal facto teria resultado provado em função do depoimento da testemunha RL e da ata de informação técnica elaborada pela testemunha e que foi junta pela Recorrida com a petição inicial como documento n.º 8.
O tribunal a quo, por seu turno, justificou a consideração como não provado de tal facto na ausência de prova sobre ele e, bem assim, pelo facto de o mesmo ter sido contrariado, precisamente, pelos elementos de prova invocados pela Recorrente em suporte do mesmo.
Ora, a este respeito, concordamos com a decisão do tribunal a quo na interpretação que fez da prova produzida e na conclusão a que chegou no sentido da não verificação do facto em apreço.
Na verdade, o sentido do facto em questão era, em conformidade com o que fora alegado pela Recorrente no art.º 23.º da sua contestação, o de que a oficina onde foi reparado o veículo tenha adotado uma postura de total recusa ou proibição de realização da peritagem, mesmo que esta fosse condicional.
Não foi isso, contudo, o que a testemunha RL referiu em juízo.
Na verdade, e como se viu já, a testemunha foi clarividente a afirmar que, uma vez chegada à oficina, foi-lhe franqueado o acesso ao veículo, permitindo-se-lhe, não só fotografá-lo, como efetuar uma estimativa dos danos.
Aliás, a testemunha, na ata de informação técnica que elaborou, não fez qualquer observação no item, que constava do respetivo formulário, em que se questionava se houve “impedimento de realização do serviço”.
O facto em apreço surge, pois, contrariado por tais elementos de prova.
Nenhuma censura merece, por conseguinte, a decisão do tribunal a quo de o não considerar provado.
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.- Do facto não provado constante da alínea f)
Este facto é do seguinte teor:
.- que “a oficina não permita que o perito acompanhe a reparação da viatura”.
Segundo a Recorrente, a verificação de tal facto teria resultado do depoimento da mesma testemunha, RL, ao passo que, para o tribunal a quo, sobre ele não foi produzida prova inequívoca.
Afigura-se-nos, nesta parte, assistir razão à Ré, tendo o facto em apreço sido evidenciado pelo depoimento da referida testemunha e pela ata de informação técnica elaborada pela mesma.
Na verdade, como se viu já, segundo a testemunha, a mesma deslocou-se por uma primeira vez à oficina onde se encontrava o veículo, tendo-o visionado, mas, carecendo, como resulta do referido documento, de indagação da existência de possíveis “danos ocultos”, entendeu que o veículo carecia, para o efeito, de desmontagem de peças na parte traseira.
Por isso, deslocou-se por mais duas vezes à oficina, sem que, contudo, lhe tenha sido dada a possibilidade de visionar o veículo.
Assim, e porque, como também se viu, o veículo foi efetivamente reparado, é manifesto que ao perito não foi dada a possibilidade de acompanhar a reparação, impondo-se a consideração como provado do facto em questão, designadamente, com a seguinte redação:
.- A oficina não permitiu que o perito da Ré acompanhasse a reparação da viatura.
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.- Do facto constante da alínea h)
Este facto é do seguinte teor:
.- que “a Ré não tenha dado instruções para que a oficina procedesse à reparação do veículo com a matrícula …-…-…”.
Segundo a Recorrente, a verificação de tal facto teria resultado do depoimento da mesma testemunha, RL, ao passo que, para o tribunal a quo, sobre ele não foi produzida prova ‘inequívoca’.
E o certo é não há como não dar como provado o facto em questão.
Na verdade, independentemente das vicissitudes ocorridas com a avaliação dos danos do veículo dos autos, a testemunha RL foi clara a evidenciar que, não tendo concluído a peritagem que iniciara, cancelou-a.
E se cancelou, parece claro que não deu instruções para que a oficina procedesse à reparação do veículo, em parte a isso se devendo, de resto, a existência da presente ação.
Em suma, o facto em apreço deve ser considerado provado e ter a seguinte redação:
“A Ré não deu instruções para que a oficina processo à reparação do veículo com a matrícula …-…-…”.
*
Em suma: em função da apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto da Recorrente que acaba de ser feita, o elenco de factos provados e não provados que há-de servir de substrato à apreciação jurídica do presente caso será aquele que, de seguida, se reproduz, introduzindo-se as alterações decorrentes daquela apreciação nos locais adequados de acordo com uma sequência lógica:

.- Factos Provados
1.- Consta do documento único automóvel que a autora é proprietária do veículo automóvel ligeiro de passageiros, de marca Mercedes-Benz, de matrícula …-…-… e é titular do respetivo certificado de matrícula datado de 1 de outubro de 2012.
2.- O veículo de matrícula …-…-… tem licença para o serviço de transporte público de passageiros.
3.- No âmbito da sua atividade comercial, a ré firmou com a Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Moscavide e Portela um acordo denominado “contrato de seguro do ramo automóvel”, com início em 1 de abril de 2022 e em vigor a 29 de junho de 2022, titulado pela apólice n.º …, nos termos do qual assumiu a responsabilidade pelos danos emergentes da circulação da ambulância, de marca Mercedes-Benz, de matrícula …-…-….
4.- No dia 29 de junho de 2022, pelas 16,22 horas, no cruzamento da Praça do Martim Moniz com a Rua de São Lázaro, em Lisboa, ocorreu um embate em que foram intervenientes:
a) o veículo automóvel ligeiro de passageiros, de marca Fiat, com a matrícula …-…-…, conduzido por SP;
b) o veículo automóvel ligeiro de passageiros, de marca Mercedes-Benz, com a matrícula 25-11-IT, conduzido por PB; e
c) o veículo automóvel de ambulância com a matrícula …-…-…, pertencente à Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Moscavide e Portela e conduzido por DS.
5.- Os veículos referidos em 4) circulavam na Praça Martim Moniz, em Lisboa, no sentido Rua de São Lázaro.
6.- Na Rua de São Lázaro, o condutor do veículo de matrícula …-…-… travou para deixar passar os peões na passadeira.
7.- Em virtude do descrito em 6), o condutor do veículo de matrícula …-…-… travou para não embater no veículo de matrícula …-…-…, parando o seu veículo.
8.- O condutor do veículo de matrícula …-…-… embateu com a parte da frente na parte traseira do veículo de matrícula …-…-….
9.- Em consequência do descrito em 8), o veículo de matrícula …-…-… embateu com a parte da frente na parte traseira do veículo de matrícula …-…-….
10.- Ao atuar conforme o descrito em 8), o condutor do veículo de matrícula …-…-… não agiu com o cuidado, o zelo e a cautela que lhe eram devidos e de que era capaz.
11.- O veículo de matrícula …-…-… sofreu danos na parte da frente e na parte traseira.
12.- O descrito em 11) ocorreu em consequência do descrito em 4).
13.- Após o descrito em 4), a Polícia de Segurança Pública foi chamada ao local.
14.- A Polícia de Segurança Pública elaborou a participação de acidente que se encontra junta aos autos e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
15.- A autora requereu uma certidão da participação de acidente, tendo suportado o custo de €100,00 (cem euros).
16.- No dia 30 de junho de 2022, foi solicitada uma peritagem ao veículo de matrícula …-…-….
17.- A peritagem do veículo com a matrícula …-…-… pelo perito da Ré foi iniciada por este no dia 7 de julho de 2022, não tendo havido acordo com a oficina reparadora quanto ao ‘valor hora’ da reparação.
18.- A autora recorreu a uma peritagem externa na DEKRA Portugal, S.A., tendo suportado o respetivo custo no valor de €123,00 (cento e vinte e três euros).
19.- Da peritagem referida em 18) resultou o relatório de avaliação de danos que se encontra junto aos autos e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
20.- O veículo de matrícula …-…-… foi reparado na oficina da Car Pronto Reparações e Comércio e Peças, Lda, em 20 de julho de 2022.
21.- A autora despendeu, com a reparação do veículo de matrícula …-…-…, o valor de €2.204,82 (dois mil, duzentos e quatro euros e oitenta e dois cêntimos), acrescido de IVA no valor de €507,11 (quinhentos e sete euros e onze cêntimos), o que perfaz o valor total de €2.711,93 (dois mil, setecentos e onze euros e noventa e três cêntimos).
22.- Foram substituídas as seguintes peças do veículo de matrícula …-…-…:
a) grelha de radiador;
b) cobertura;
c) pala;
d) pala lateral;
e) apoio lateral pára-choques;
f) vidro conj. luzes rectag. esq.;
g) esticar lateral esq. no banco de ensaio;
h) publicidade traseira;
i) borrachas panela.
23.- O veículo de matrícula …-…-… não foi utilizado no período compreendido entre 29 de junho de 2022 e 20 de julho de 2022.
24.- O descrito em 23) ocorreu em consequência do descrito em 4).
25.- A autora labora com o veículo de matrícula …-…-….
26.- PB dedica-se à atividade profissional de motorista.
27.- Na data referida em 4), PB conduzia o veículo de matrícula …-…-… no exercício das suas funções, por conta, no interesse e sob a direção da autora.
28.- A oficina não permitiu que o perito da Ré acompanhasse a reparação da viatura.
29.- A Ré não deu instruções para que a oficina procedesse à reparação do veículo com a matrícula …-…-….
*
.- Factos não provados
a.- Que a utilização que a Autora faz do veículo com a matrícula …-…-…, conforme se alude em 25, se processe em dois turnos por dia, auferindo com cada turno cerca de €55,00.
b.- Que o valor acordado entre a APS/Antral para a paralisação de um táxi com dois turnos de laboração era, de 1 de março de 2020 a 28 de fevereiro de 2021, de €96,28 (noventa e seis euros e vinte e oito cêntimos).
c.- Que o Presidente da Car Pronto Reparações e Comércio de Peças, Lda seja FCernando Lourenço Simões Cortez.
d.- Que FC mande reparar viaturas com o preço de mão de obra que entende.
e.- Que FC emita faturas em nome da oficina Car Pronto Reparações e Comércio de Peças, Lda a favor da sociedade de táxis da qual é sócio gerente.
f.- Que a oficina não permita que o perito veja o veículo sinistrado.
g.- Que a oficina não permita a realização da peritagem, nem que seja condicional;
h.- Que a ré não tenha visualizado os danos do veículo de matrícula …-…-….
**
*
.- Do enquadramento jurídico dos factos
.- Subjacente a este recurso temos o seguinte quadro: o veículo com a matrícula …-…-…, da propriedade da Recorrida, interveio, juntamente com mais dois veículos, um com a matrícula …-…-… e outro com a matrícula …-…-…, num acidente de viação ocorrido no dia 29-06-2022, pelas 16h22, no cruzamento da Praça do Martim Moniz com a Rua de São Lázaro, em Lisboa, sofrendo, em consequência do sinistro, danos.
Na sentença recorrida concluiu-se que o acidente de viação ficou a dever-se a culpa exclusiva do condutor do último dos veículos referidos, com a matrícula …-…-…, veículo esse relativamente ao qual a Recorrente, como seguradora, assumira para com a sua proprietária a responsabilidade pelos danos decorrentes da sua circulação, por contrato de seguro válido e eficaz à data do acidente.
Neste pressuposto, foi a Recorrente condenada a ressarcir a Recorrida dos danos sofridos em consequência do acidente de viação, consubstanciados: (i) no valor da reparação do veículo por que a Recorrida diligenciou, (ii) nas despesas que esta teve de suportar com a perícia a que recorreu e com a aquisição de uma certidão e, finalmente, (iii) na impossibilidade de dispor do veículo durante a sua reparação.
Neste recurso, a Recorrente não questiona a responsabilidade do condutor do veículo nela seguro pela produção do acidente.
O que põe em causa é, no plano do facto, que a Recorrida tenha provado os danos que alegara e a cujo ressarcimento (a Recorrente) foi condenada; no plano do direito, que assista à Recorrida o direito a esse ressarcimento, já que se realmente diligenciou pela reparação do veículo, fê-lo à sua revelia e do procedimento de regularização de sinistros previsto no D.L. 291/07, de 21/08, o que, na sua perspetiva, extinguiria a sua obrigação de indemnizar.
Ora, começando-se, por razões de sequência lógica, pela apreciação desta última questão, cumpre referir que, com o D.L. 291/07, de 21/08, aprovou-se, de acordo com o seu art.º 1.º, o regime do sistema obrigatório de responsabilidade civil automóvel, mediante a transposição parcial para a ordem jurídica interna da Diretiva n.º 2005/14/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de maio, que, por seu turno, alterou as Diretivas n.ºs 72/166/CEE, 84/5/CEE, 88/357/CEE, do Conselho, e da Diretiva n.º 2000/26/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho de 16 de maio de 2000, relativas ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis.
Por via desta última Diretiva, com a qual se visou a aproximação das legislações dos Estados-membros quanto ao seguro da responsabilidade civil automóvel, impôs-se, no seu art.º 4.º, n.º 6, a necessidade de previsão no direito interno de cada Estado-Membro de um procedimento de resolução de sinistros entre lesados e seguradoras que, não só decorresse em termos ágeis e céleres, como, também, culminasse na apresentação, por estas, em caso de assunção da responsabilidade, de uma proposta razoável de indemnização.
Nesta sequência, previu o legislador nos art.ºs 31.º a 46.º do citado D.L. 291/07, de 21/08 um especial mecanismo contendo, nos termos daquele art.º 31.º, as regras e os procedimentos a observar pelas empresas de seguros com vista a garantir, de forma pronta e diligente, a assunção da sua responsabilidade e o pagamento das indemnizações em caso de sinistro no âmbito do seguro de responsabilidade civil automóvel.
Considerando a questão que aqui importa apreciar, prevê-se, nomeadamente, no art.º 34.º, n.º 1 que, em caso de sinistro, o tomador do seguro ou o segurado, sob pena de responder por perdas e danos, obriga-se a (i) comunicar tal facto à empresa de seguros no mais curto prazo de tempo possível, nunca superior a oito dias a contar do dia da ocorrência ou do dia em que tenha conhecimento da mesma, fornecendo todas as indicações e provas documentais e ou testemunhais relevantes para uma correta determinação das responsabilidades; (ii) tomar as medidas ao seu alcance no sentido de evitar ou limitar as consequências do sinistro.
A participação do sinistro deve, nos termos do art.º 35.º, n.º 1, ser feita em impresso próprio fornecido pela empresa de seguros ou disponível no seu sítio na Internet, de acordo com o modelo aprovado por norma do Instituto de Seguros de Portugal, ou por qualquer outro meio de comunicação que possa ser utilizado sem a presença física e simultânea das partes, desde que dela fique registo escrito ou gravado.
O terceiro lesado não tem o dever de participar o sinistro, mas não está impedido de o fazer, prevendo-se mesmo, no art.º 34.º, n.º 3, e nas condições aqui previstas, uma penalidade a cargo do tomador do seguro ou do segurado no caso de omitirem essa participação à seguradora, depois de o terceiro lesado ter efetuado a participação.
No n.º 1 do art.º 36.º, consagra-se o dever da seguradora de, sempre que lhe seja comunicada pelo tomador do seguro, pelo segurado ou pelo terceiro lesado, a ocorrência de um sinistro coberto por contrato de seguro:
a) proceder ao primeiro contacto com o tomador do seguro, com o segurado ou com o terceiro lesado no prazo de dois úteis, marcando as peritagens que devam ter lugar;
b) concluir as peritagens no prazo dos oito dias úteis seguintes ao fim do prazo mencionado na alínea anterior;
c) em caso de necessidade de desmontagem, o tomador do seguro, o segurado ou o terceiro lesado devem ser notificados da data da conclusão das peritagens, as quais devem ser concluídas no prazo máximo dos 12 dias úteis seguintes ao fim do prazo mencionado na alínea a);
d) disponibilizar os relatórios das peritagens no prazo dos quatro dias úteis após a conclusão destas, bem como dos relatórios de averiguação indispensáveis à sua compreensão;
e) comunicar a assunção, ou a não assunção, da responsabilidade no prazo de 30 dias úteis, a contar do termo do prazo fixado na alínea a), informando desse facto o tomador do seguro ou o segurado e o terceiro lesado, por escrito ou por documento electrónico;
f) na comunicação referida na alínea anterior, a empresa de seguros deve mencionar, ainda, que o proprietário do veículo tem a possibilidade de dar ordem de reparação, caso esta deva ter lugar, assumindo este o custo da reparação até ao apuramento das responsabilidades pela empresa de seguros e na medida desse apuramento.
Tal procedimento deve culminar, nos termos do n.º 1 do art.º 38.º, em caso de assunção da responsabilidade, na formulação de uma proposta razoável de indemnização, a qual, de acordo com o n.º 4, é entendida como aquela que não gere um desequilíbrio significativo em desfavor do lesado.
Note-se, contudo, que um tal mecanismo, ao ter como principal escopo agilizar e garantir celeridade à resolução consensual e amigável dos procedimentos de atribuição das indemnizações pelas seguradoras aos lesados em consequência de acidente de viação, tem uma vocação extrajudicial.
Por isso, uma vez desencadeado, mas não sendo obtido acordo no âmbito do mesmo quanto à indemnização a atribuir, ou haja fundamento válido para que não deva prosseguir com ele, nada obsta a que o lesado diligencie por si próprio pela reparação dos danos que sofreu e que, ulteriormente, discuta o seu ressarcimento pela via judicial, no quadro do instituto jurídico da responsabilidade civil extracontratual, mormente, dos preceitos fundamentais desse instituto que são os art.ºs 483.º, 562.º e 566.º do Código Civil.
Trata-se aqui, de resto, de princípio que constitui posição largamente maioritária da jurisprudência dos nossos tribunais superiores.
Como expressivamente se referiu no Acórdão desta Relação de Lisboa de 14-03-2013, os preceitos constantes do referido diploma “não visam determinar os critérios e fixação do valor da indemnização devida em caso de perda total do veículo, antes visando reduzir a conflitualidade existente entre as seguradoras e seus segurados e terceiros e reforçar a proteção dos interesses económicos dos consumidores, através da introdução de procedimentos a adotar pelas empresas de seguros e da fixação de prazos com vista à regularização rápida dos litígios e do estabelecimento de princípios base na gestão de sinistros”.
Neste pressuposto, “é no âmbito do acordo extrajudicial para a resolução do litígio que tais procedimentos se inserem, apesar de obrigatórios para as empresas de seguros, visando a resolução simplificada e rápida dos litígios entre as seguradoras e os lesados, procurando-se uma solução consensual e formalmente expedita, de modo a evitar o recurso aos tribunais[;] mas não havendo consenso, e pretendendo o lesado exercer o seu direito de recurso aos tribunais para ver reconhecido o seu direito indemnizatório, aplicam-se as citadas disposições do Código Civil” (sublinhado nosso; Acórdão proferido no processo n.º 114/09.1TBRGR-A.L1-6, disponível na internet no sítio com o endereço www.dgsi.pt; neste sentido, apontam os Acórdãos da Relação de Lisboa de 17-07-2008, de 24-10-2010 e de 29-04-2014; e da Relação de Coimbra de 16-09-2014).
Tal linha de orientação é válida, não só para a fixação propriamente dita do direito de indemnização do lesado à luz do direito substantivo aplicável, como, também, para aferir do dever deste de se manter ou não no âmbito do mecanismo de resolução do sinistro previsto nos citados preceitos do D.L. 291/07, de 21/08.
Assim, no Acórdão da Relação de Lisboa de 22-10-2019 reconheceu-se legitimidade ao lesado em acidente de viação para contratar diretamente a peritagem ao seu veículo a uma empresa especializada na matéria, não só porque, nas circunstâncias nele apreciadas, essa atuação se revelou “justificada”, como, também, e sobretudo, porque “[e]m todo o caso, o que releva para a procedência da ação é a verificação dos pressupostos da responsabilidade civil (…), sendo irrelevante se os danos materiais do veículo foram analisados por solicitação da ré ou por solicitação da autora” (sublinhado nosso; acórdão proferido no processo n.º 9875/17.8T8LSB.L1-7, disponível na internet, no sítio com o endereço acima referenciado).

Reportando-nos ao caso em apreço, resulta da factualidade apurada que, verificado o sinistro em 29 de junho de 2022, a Recorrida, no dia seguinte, solicitou a realização de uma peritagem ao veículo embatido.
Sucedeu que a peritagem, por perito da Ré, teve início no dia 7 de julho, mas logo se verificou um desacordo com a mesma relativamente ao “valor hora” da reparação, o que levou a lesada a recorrer a uma peritagem externa na DEKRA Portugal, S.A. e a não prosseguir com aquela primeira peritagem.
Ora, não vemos como censurar, perante as circunstâncias do caso, uma tal conduta da Recorrida.
Na verdade, com a peritagem a realizar pelo perito da Recorrente visava-se, além do mais, a obtenção de elementos que a habilitassem a apresentar à Recorrida uma proposta razoável de indemnização dos danos por ela sofridos com o sinistro dos autos.
Verificou-se, contudo, uma divergência quanto a uma das componentes da indemnização a propor, o que inviabilizou logo ali a possibilidade de obtenção de acordo quanto à indemnização a atribuir.
Tendo ficado prejudicado, assim, o sucesso do mecanismo de resolução consensual de atribuição da indemnização pela Recorrente à Recorrida em curso, ficou esta legitimada a diligenciar, pelos seus próprios meios, pela realização da perícia, sujeitando-se, de resto, aos riscos da sua decisão.
Reputamos, pois, justificada a conduta da Recorrida.
De todo o modo, e como se viu, o que relevaria no presente caso seria sempre, em último termo, a análise do direito da Recorrida à luz do instituto jurídico da responsabilidade civil, sendo irrelevante a questão de saber se os danos por esta sofridos foram aferidos a pedido da Recorrida ou da Recorrente.
Ora, a este respeito, era já um dado assente, pois que não contrariado pela Recorrente no presente recurso, que o acidente de viação em que interveio o veículo da Recorrida ficou a dever-se a conduta ilícita e culposa do condutor do veículo seguro na Recorrente.
Resultou assente no âmbito deste recurso, também, que, mercê do acidente de viação dos autos, o veículo da Recorrida sofreu os danos descritos no relatório de peritagem mencionado no facto provado n.º 19, danos esses que foram reparados, conforme se depreende do facto n.º 20, na oficina da Car Pronto Reparações e Comércio e Peças, Lda, em 20 de julho de 2022, mediante o pagamento, pela Recorrida, da quantia de €2.204,82, acrescida de IVA no valor de €507,11.
Pelo exposto, legitimada que estava o recurso, pela Recorrida, a uma peritagem por empresa da especialidade e provados que foram, não só os danos do veículo resultantes do acidente de viação dos autos, como, também, a sua reparação pela Recorrida e o seu custo, nenhuma razão há que conduza a alterar a sentença recorrida na parte em que condenou a Recorrente a pagar à Recorrida o valor de tal reparação.
*
Insurge-se a Recorrente no recurso, também, contra a sentença recorrida na parte em que a condenou a pagar à Recorrida o custo suportado com a peritagem realizada pela DEKRA a seu pedido e com a certidão do auto de participação da PSP, bem como o valor da compensação devida pela paralisação do veículo entre o dia do acidente, 29 de junho de 2022,  e o dia da finalização da reparação, em 20 de julho de 2022.
A este respeito, a Recorrente, como resulta das suas conclusões, não põe em causa o direito da Recorrida de ser ressarcida de tais valores à luz do direito aplicável; o que questiona é que a Recorrida tenha provado os factos que alegara em suporte da sua pretensão indemnizatória relativamente a tais danos.
O que aqui importa aferir aqui é, pois, se se provaram ou não tais factos.
Ora, a esse respeito, resulta do facto provado n.º 15 que a Recorrida requereu uma certidão da participação de acidente de viação dos autos e que, com isso, suportou o custo de €100,00 (cem euros).
Mais resulta do facto provado n.º 18 que, com o recurso à peritagem externa na DEKRA Portugal, S.A., suportou a Recorrida o respetivo custo no valor de €123,00.
Finalmente, resulta do facto provado n.º 23, que o veículo da Recorrida não foi utilizado por esta no período compreendido entre 29 de junho de 2022 e 20 de julho de 2022, o que, de acordo com o facto provado n.º 24, ocorreu em consequência do acidente de viação dos autos.
Ora, provado que está o dispêndio, pela Recorrida, do custo da peritagem a que recorreu e da certidão que obteve, nenhuma censura merece a sentença recorrida na parte em que condenou a Recorrente a reembolsar a Recorrida do seu valor.
Já quanto ao valor da indemnização a que a Recorrida tem direito pela paralisação do veículo, apesar de se ter provado o período de duração da mesma, não se provou, quer o tipo de utilização que a Recorrida fazia do veículo (isto é, que, com ele, fazia dois turnos), quer o valor daquilo que, mercê da paralisação, deixou de auferir.
Não há, pois, elementos que, mesmo com recurso à equidade (cfr. art.º 566.º, n.º 3 do Código Civil), permitam quantificar a indemnização concretamente devida à Recorrida pela paralisação do veículo.
Impõe-se, pois, nessa parte, a condenação da Recorrida, nos termos do disposto no art.º 609.º, n.º 2 do CPC, a pagar à Recorrida, a título de indemnização pela paralisação do veículo, aquilo que vier a ser liquidado ulteriormente, em incidente de liquidação a deduzir, dentro do limite daquilo que, a esse título, foi inicialmente peticionado; tudo, acrescido dos competentes juros de mora, nos termos também fixados na sentença proferida em 1.ª instância.

Em suma: (i) impõe-se manter a sentença recorrida na parte em que condenou a Recorrente a pagar à Recorrida o valor da reparação do veículo, bem como aquilo que esta despendeu com a peritagem externa e com a aquisição da certidão junto da PSP; (ii) impõe-se alterar a sentença recorrida na parte em que condenou a Recorrente a indemnizar a Recorrida do valor da paralisação do veículo e respetivos juros de mora, mantendo tal condenação, mas como condenação genérica, a liquidar ulteriormente, como o limite do inicialmente peticionado.
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.- Da responsabilidade pelas custas
Constata-se, em função do acima exposto, que a Recorrente decairá em todas as suas pretensões, exceção feita à sua condenação a indemnizar a Recorrida do dano da paralisação do veículo.
Ainda assim, quanto a esta, não há um vencimento de causa certo, já que a condenação mantém-se, embora seja convolada em condenação genérica e, portanto, em valor a liquidar ulteriormente.
Neste pressuposto, sendo certo o decaimento relativamente ao valor da reparação do veículo e ao custo da peritagem e da certidão, o valor proporcional das custas relativamente à soma de todos estes pedidos deverá ser suportado integralmente pela Recorrente.
Relativamente ao valor da indemnização pela paralisação do veículo, será a responsabilidade pelas custas, nessa parte, na proporção de metade para Recorrente e Recorrida, devendo a sua fixação definitiva ocorrer na decisão a proferir no incidente de liquidação que venha a ser deduzido.
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IV.- Decisão
Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente o recurso e, consequentemente, decide-se:
I.- alterar a sentença recorrida na parte em que condenou a Recorrida a pagar à Recorrente a quantia de €2.420,00, a título de indemnização pelo dano patrimonial decorrente da privação do uso do veículo com a matrícula …-…-…, substituindo-a por outra no sentido da condenação da Recorrida a pagar tal indemnização, mas em quantia a liquidar ulteriormente, em sede de incidente de liquidação a deduzir, dentro do limite inicialmente peticionado, acrescida dos juros de mora, à taxa legal, desde a citação até efetivo pagamento;
II.- manter a sentença em tudo o mais.
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Custas do seguinte modo:
i.- na parte da condenação da Recorrente respeitante ao valor da reparação do veículo e ao custo da peritagem e da certidão, pela Recorrente;
ii.- na parte da condenação da Recorrente respeitante à indemnização pela paralisação do veículo, provisoriamente por Recorrente e Recorrida, relegando-se a sua fixação definitiva para a decisão a proferir no incidente de liquidação a deduzir.
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Lisboa, 8 de fevereiro de 2024
José Manuel Monteiro Correia
Vaz Gomes
Orlando Nascimento