Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5450/23.1T8GMR.L1-7
Relator: CRISTINA COELHO
Descritores: PROCEDIMENTO CAUTELAR COMUM
PROCESSO ESPECIAL PARA ACORDO DE PAGAMENTO(PEAP)
BANCO DE PORTUGAL
COMUNICAÇÃO DE INCUMPRIMENTO
HONRA E BOM NOME
LESÃO GRAVE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. No PEAP são aplicáveis as exigências de publicitação do processo de insolvência, não incumbindo ao devedor dar conhecimento aos credores da pendência do processo, do acordo de pagamento aí aprovado em que não intervieram todos os credores, e da sua homologação, prevendo a lei ampla publicitação de forma a que tais factos sejam conhecidos dos credores.
2. A omissão do cumprimento da obrigação prevista no art. 222º-D, nº 1, do CIRE, não interfere com o seguimento do processo, nem afeta o valor dos atos nele praticados.
3. O acordo de pagamento aprovado e homologado por decisão judicial vincula o devedor e todos os credores, mesmo aqueles que não hajam reclamado créditos ou participado nas negociações, relativamente a créditos constituídos à data em que foi proferida a decisão de nomeação de administrador judicial provisório.
4. Nos termos do disposto no art. 2º, nº 4, do DL nº 204/2008, de 14.10, ao devedor assiste o direito a ver retificada/alterada comunicação efetuada à Central de Responsabilidades de Crédito se não se verificar o incumprimento comunicado ou se o mesmo já não se verificar.
5. O risco de o devedor ser afastado do cargo de administrador único de sociedade anónima, com os inerentes prejuízos daí resultantes a nível profissional (com eventual responsabilização pelos danos causados) e do seu bom nome, consubstancia uma lesão grave e de difícil reparação, a implicar uma decisão cautelar.
6. A manutenção de comunicação feita à Central de Responsabilidades de Crédito pode atingir maior gravidade com o passar do tempo, mostrando-se justificado o receio na não reparação integral dos danos que daí possam advir, quer para o devedor, quer para a sociedade que administra.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
Em 11.10.2023, A intentou procedimento cautelar comum (junto do Juízo Local Cível de Guimarães [1]) contra B [ Banco …. Sucursal em Portugal ] , pedindo que se julgue procedente a providência cautelar e se determine a notificação do Requerido para proceder à retirada imediata do incumprimento do Requerente da Central de Responsabilidades do Banco de Portugal, sob pena de condenação em sanção pecuniária compulsória não inferior a €1.500,00/diários por cada dia de incumprimento da decisão a proferir, sendo este o único meio de assegurar o efeito útil da providência.
Fundamenta a sua pretensão na seguinte alegação, em síntese [2]:
No exercício da sua atividade empresarial assumiu a responsabilidade solidária pelo cumprimento das obrigações pecuniárias emergentes dos contratos de mútuo e de financiamento à importação que as sociedades “Calçados …. S.A.” e “Z..…. Calçado, S.A.” celebraram com o Requerido, tendo nesse âmbito ainda prestado avais.
Apresentou-se a Processo Especial para Acordo de Pagamento (PEAP), em cujo âmbito foi aprovado e homologado um acordo de pagamento, nos termos do qual se aplicava um perdão de 95% dos créditos comuns, sendo apenas o remanescente (5%) a ser liquidado pelo Requerente, no prazo de 5 dias, o que o Requerente fez relativamente a todos os créditos reclamados e reconhecidos.
O Requerido não reclamou créditos no referido PEAP, tendo transmitido ao Requerente a ideia de que não iria solicitar-lhe o pagamento enquanto avalista, pelo que não efetuou o pagamento ao Requerido, ao abrigo do PEAP, quer da dívida da “Calçados ….., S.A.”, quer da “Z… Calçado, S.A.”.
Porém, na sequência da insolvência da sociedade “Z…. Calçado, S.A.”, o Requerido enviou comunicação ao Requerente, datada de 31 de Agosto de 2022, a invocar incumprimento dos planos homologados pelas duas sociedades e a peticionar o valor integral devido por estas – €38.529,26 e €215.387,39 - no prazo de 15 dias, e comunicou o incumprimento do Requerente à Central de Responsabilidades do Banco de Portugal, reportando um incumprimento no valor de €31.200,69, reporte que se mantém não obstante o Requerente tenha provisionado as contas com valores próximos dos valores devidos (sendo certo que não dispunha de informação exata).
É administrador de várias sociedades, entre as quais a “MA……, S.A.”, sendo imprescindível para a prossecução da atividade desta a abertura de conta junto de alguma instituição bancária e o pedido de concessão de crédito.
Sucede que as instituições bancárias recusaram proceder a essa abertura de conta, bem como a emitir cheques, atento o incumprimento reportado pelo Requerido na Central de Responsabilidades do Banco de Portugal.
Ademais, pelo mesmo motivo, o Requerente está impedido de requisitar cheques, solicitar financiamentos, abrir contas, entre outras operações bancárias em seu nome, e viu diminuído o seu prestígio junto das entidades bancárias.
De resto, os acionistas da “MA.....SA.” já levantaram a questão da destituição, com justa causa, do Requerente, caso esta situação não seja resolvida brevemente, bem como, atribuição de responsabilidades pelos danos causados ao mesmo.
Ordenada a citação do Requerido, este apresentou oposição, que termina pugnando pela improcedência do requerido, mantendo-se a situação de incumprimento comunicada à Central de Responsabilidades do Banco de Portugal.
O Requerente foi convidado a aperfeiçoar o RI, o que fez, tendo o Requerido exercido o contraditório.
Realizou-se audiência final, e, em 16.2.2024, foi proferida sentença que decidiu deferir a providência cautelar requerida e, em consequência: 1. Determinou que o Requerido Banco Bilbao Vizcaya Argentaria, S.A., Sucursal em Portugal, no prazo máximo de 8 (oito) dias a contar da notificação da presente decisão, proceda à retirada do incumprimento do Requerente A da Central de Responsabilidades do Banco de Portugal; 2. Fixou uma sanção pecuniária compulsória no valor de 500,00 (quinhentos euros) por cada dia de atraso no cumprimento do determinado em 1.
Não se conformando com o teor da decisão, apelou o Requerido, formulando, a final, as seguintes conclusões, que se reproduzem:
a. O presente recurso vem interposto da douta sentença de 16 de Fevereiro de 2024, com a ref.ª 432517619, proferida no processo à margem referenciado, em que é Recorrente Banco Bilbao Vizcaya Argentaria, S.A., Sucursal Em Portugal e Recorrido A que deferiu a providência cautelar requerida e, em consequência, determinou que o ora Recorrente procedesse à retirada do incumprimento do Recorrido A da Central de Responsabilidades do Banco de Portugal, no prazo máximo de 8 (oito) dias a contar da notificação da decisão, fixando ainda uma sanção pecuniária compulsória no valor de 500,00 € por cada dia de atraso no cumprimento.
b. Entendeu, a este propósito o Tribunal a quo que se encontram verificados os cinco requisitos para o decretamento de providência cautelar, desde logo, quanto à verificação do fumus boni iuris, entendeu que se afigura manifesto que esta interpelação, realizada com referência aos planos homologados nos processos de revitalização das sociedades, não preenche os requisitos previstos no citado artigo 218.º, n.º 1, al. a) do CIRE, quanto à verificação do periculum in mora, entendeu o Tribunal a quo que o registo do incumprimento do Recorrido na referida Central de Responsabilidades não atinge apenas a sociedade “MA.....SA.”, mas também o Recorrido a nível profissional, não só porque o seu trabalho depende do regular funcionamento e atividade da sociedade, mas também porque corre o risco de ser afastado do cargo de administrador, tratando-se ambas de lesão grave e de difícil recuperação.
c. Salvo o devido respeito, que é muito, a douta sentença recorrida não faz uma correta interpretação da lei e dos factos, vejamos:
DO FUMUS BONI IURIS
DA APLICAÇÃO DO PLANO HOMOLOGADO AO RECORRENTE E CONSEQUENTE INCUMPRIMENTO
d. O Recorrido constituiu e administrou as sociedades BT......,SA, CALÇADOS TO YOU, S.A e ZT Two Image - Comércio de Calçado, S.A, tendo estas sido alvo de diversos Processos Especiais De Revitalização desde, pelo menos, 2012, tendo acabado por ser declaradas insolventes em 03/12/2018, 18/09/2018 e 12/08/2022, respetivamente.
e. Sendo certo que, no âmbito de todos os processos referidos, o ora Recorrente pôde sempre, de forma atempada, reclamar os seus créditos, pois, estes sempre constaram da relação apresentada nas respetivas Petições Iniciais, tendo sido para tanto citado e recebido comunicação para participar nas respetivas negociações.
f. Acresce que, o Recorrido requereu em 23/11/2018 o início do Processo Especial para Acordo de Pagamento (PEAP), que correu os seus termos na Comarca de Braga - Juízo de Comércio de Guimarães – Juiz 3 sob o nº 6772/18.9T8GMR e, esse âmbito, não incluiu, nem deu qualquer conhecimento, por notória má-fé, dos créditos do ora Recorrente, que bem sabia existirem e estarem em incumprimento, não tendo este sido sequer citado para reclamar créditos.
g. Certamente porque, bem sabia o Recorrido que, tendo o Recorrente a possibilidade de participar nas negociações, nunca votaria a favor de um plano com os contornos com que acabou por ser homologado, como aliás ocorreu no âmbito do processo 479/13.0TBGMR em que o ora Recorrente se opôs à homologação.
h. Acresce que, o ora Recorrente não teve conhecimento do referido PEAP, como bem resulta evidenciado pelas declarações da Testemunha … (cfr. min 00:15:56 a min 00:16:14), (cfr. min 00:16:59 a min 00:17:52) e (cfr. 00:18:37)
i. O Recorrente apenas veio a saber da existência de tal PEAP por ocasião da interpelação que remeteu, de boa-fé, ao ora Recorrido em 31/08/2022 (cfr. doc. nº 8 junto à Petição Inicial), sendo certo que o Recorrido por um lado não entrou em contacto com o Recorrente, com vista ao cumprimento do prazo de 5 (cinco) dias previsto no mencionado Plano, por outro lado, apesar de interpelado, o Recorrido também não procedeu ao pagamento dos valores em dívida, nem do total, nem dos 5% conforme definido no Plano aprovado.
j. Ora, naquela data, o Recorrente não tinha, nem tem, como saber se o plano homologado se encontra(va), ou não, integralmente cumprido para com os restantes credores, por forma a averiguar se era, ou não, aplicável aos seus créditos.
k. Acresce que, e como julgou, e bem, a sentença recorrida, o Recorrente nunca transmitiu ao Recorrido que não lhe iria ser exigido o pagamento dos créditos em dívida enquanto avalista, contrariamente ao alegado na petição inicial.
l. Certo é que o Recorrido em 2022 (volvidos 4 anos da homologação do plano) e apesar de interpelado para cumprir as suas obrigações, não demonstrou a sua disponibilidade para as cumprir, nem tampouco questionou quais os montantes que se encontravam em dívida - montantes estes que eram do seu conhecimento, visto que foram sempre reclamados (e consequentemente atualizados), no âmbito dos diversos processos das empresas que o Recorrido administrava.
m. Tanto que, apenas em 01/09/2023, i.e. um ano após a interpelação enviada pelo Recorrente, procedeu o Recorrido à transferência de € 11.792,16 (onze mil, setecentos e noventa e dois euros e dezasseis cêntimos) por conta dos referidos créditos.
n. Ora, o n.º 10 do Artigo 222.º-F CIRE determina a aplicabilidade ao acordo de pagamento do regime do incumprimento previsto no artigo 218.º CIRE, apenas remetendo para o seu nº1 “Salvo disposição expressa do plano de insolvência em sentido diverso, a moratória ou o perdão previstos no plano ficam sem efeito: a) Quanto a crédito relativamente ao qual o devedor se constitua em mora, se a prestação, acrescida dos juros moratórios, não for cumprida no prazo de 15 dias após interpelação escrita pelo credor; (…)”.
o. Nestes termos, o Recorrente interpelou o Recorrido na base do que era o seu conhecimento – ou seja, que inexistiria um plano aprovado em sede de PEAP - e o Recorrido foi incapaz de proceder ao pagamento das quantias que seriam devidas, ainda que correspondessem apenas a 5% dos valores indicados pelo Recorrente na interpelação – releve-se que, apesar da homologação do plano em 2018, nunca deu tal conhecimento ao Recorrente, pese embora os subsequentes processos que envolveram as empresas que administrava, e apenas por ocasião da interpelação enviada em 2022 é que se dignou a informar que existiria um plano – e mesmo assim, foram necessários 5 (cinco) anos para que pagasse o que quer que fosse.
p. Neste conspecto, e salvo melhor opinião, o perdão previsto no plano fica sem efeito nos termos do previsto no artigo 218.º CIRE, permanecendo em dívida a totalidade das quantias vencidas.
q. E, bem assim, existindo valores em dívida por força da ineficácia do perdão concedido no PEAP, existe incumprimento e, consequentemente, o Recorrente limitou-se ao cumprimento das suas obrigações, enquanto entidade bancária, para com o Banco de Portugal.
r. Acresce que, não é indubitável a existência do direito invocado pelo Recorrido, desde logo porque este se limita a alegar que o plano homologado no âmbito do PEAP foi cumprido quanto a todos os credores, não apresentando, porém, qualquer prova dessa alegação.
DO DIREITO À “REPUTAÇÃO”
s. Resulta cabalmente provado que as empresas outrora geridas pelo Recorrido (BT......,SA, CALÇADOS ......,SA e Z.......CALÇADO,SA) foram votadas à insolvência por culpa exclusiva do Recorrido
t. E está plenamente assente que o Recorrente, enquanto instituição bancária, tem obrigação de comunicar ao Banco de Portugal as situações de incumprimento.
u. No caso concreto, salvo melhor opinião, o “bom” nome do Recorrido, se neste momento se encontra ferido, deve-se única e exclusivamente a culpa sua e não é a retirada do seu nome da Central de Responsabilidades que apagará a sua reputação.
v. O reporte ao Banco de Portugal constitui um dever imposto por lei da instituição bancária – existindo, inclusivamente, um regime sancionatório das infrações às obrigações decorrentes do decreto-lei Decreto-Lei n.º 204/2008 – e visa acautelar as instituições possibilitando uma rigorosa avaliação do risco mediante análise da situação financeira dos clientes.
w. Assim, o Recorrente está obrigado a reportar a situação objeto dos autos porquanto a dívida, como melhor exposto supra, não se encontra saldada.
x. Por outro lado a retirada do incumprimento do Banco de Portugal mais não é que a diminuição dessa garantia às instituições que deixam de ter a informação de que estão a contratar com um potencial incumpridor.
y. Mais se diga que o Recorrido, não é titular de um direito a que os Bancos não possam comunicar ao Banco de Portugal prestações contratuais não pagas.
z. Por todo o exposto, forçoso será concluir que o Recorrido não demonstra qualquer direito, nem sequer a sua mera aparência.
DO DIREITO DA “MARGEM ASTUTA S.A.”
aa. Nesta sede, sempre se dirá que os hipotéticos constrangimentos ao financiamento da empresa da qual é sócio – MA.....SA. – não consubstanciam um direito do Recorrido, pelo que, resulta, desde logo, prejudicada a verificação do requisito do fumus boni júris.
Sem prescindir,
bb. Não logrou o Recorrido provar que efetivamente foi discutida em Assembleia a sua eventual destituição, nem tampouco logrou o Tribunal a quo ficar convicto da espontaneidade e seriedade do depoimento da testemunha … .
cc. Até porque, apesar de a Testemunha ter acompanhado as todas as empresas que foram geridas pelo Recorrido ao longo de, pelo menos, 12 anos, ousou afirmar que não tem qualquer relação pessoal com o Recorrido… Cfr. min 01:01:38 a min 01:01:58
dd. Ademais, não foi junta qualquer ata aos presentes autos, nem foram chamados a testemunhar os acionistas da referida sociedade – o que se nos afigura até bastante improvável, que um assunto de tamanha importância para a vida da sociedade tenha sido tratado com a leveza retratada pela Testemunha.
ee. Pelo referido depoimento (cfr. min 01:14:33 a 01:15:22, min 01:16:33 a 01:17:00 e min 01:18:39 a 01:19:03), dir-se-á que a questão é tão tão grave para a sociedade, que, além de ser alegadamente abordada num “almoço pré-férias” nem sequer foi um assunto que constasse da ordem de trabalhos da assembleia, ou sequer ficasse registada em ata…
ff. Face ao exposto, não se encontra, mais uma vez, verificado o primeiro requisito para o decretamento da providência: o fumus boni iuris
DO PERICULUM IN MORA
gg. O Recorrido alegou que o incumprimento comunicado ao Banco de Portugal lhe causou “prejuízos incalculáveis” sem que, em algum momento, os concretize ou sequer prove indiciariamente.
hh. Conforme tem sido pacífica e reiteradamente admitido na doutrina e jurisprudência dos tribunais superiores, o periculum in mora tem de ser objeto de um juízo de certeza e de realidade com base em prova completa a fazer pelo requerente, e não pode assentar em simples conjeturas, em meras suposições ou em juízos puramente subjetivos.
DOS “PREJUÍZOS” SOFRIDOS PELO RECORRIDO
ii. Primeiramente, em momento algum foi provado ou sequer alegado pelo Recorrido que o seu trabalho depende do regular funcionamento da sociedade, desconhece-se até se esta é, ou não, a única atividade de sustento do Recorrido.
jj. Ademais, nada impede o Recorrido de permanecer na sociedade, continuando a exercer nela funções, mesmo que seja destituído da posição de administrador único – especialmente quando detém, ainda que indiretamente, mais de 80% do capital social.
kk. Muito se estranha como diminuiu o alegado “prestígio” do Recorrido junto das instituições bancárias por culpa do BBVA, quando levou, pelo menos três das empresas geridas por si à insolvência…
ll. Mais se diga que a situação de incumprimento reportada pelo BBVA ao Banco de Portugal data pelo menos de 25/08/2016 sendo que, a constituição da Margem Astuta S.A ocorreu em 29/09/2017, não tendo isso inibido os restantes sócios de aceitar participar na sociedade ao lado do Recorrido.
Mas mais,
mm. Atentando à estrutura acionista da Margem Astuta S.A. (cfr. doc. nº1), evidenciamos que esta é composta por:
ZT TWO IMAGE – uma das sociedades constituídas e atualmente geridas pelo Recorrido;
FLEXDEAL-SIMFE, S.A. – a única sociedade que não tem participação do ora Recorrido (e cuja quota representa 12,50€ do capital…);
ZOZO LOPHITIS – membro do concelho de administração da ZT TWO IMAGE - COMÉRCIO DE CALÇADO S.A (cfr. doc. nº2);
… - O “Diretor administrativo e financeiro” da Margem Astuta S.A. e Testemunha no presente processo;
NV - GESTÃO E DETENÇÃO DE MARCAS, UNIPESSOAL LDA – com 40.557,50 € do capital, sociedade da qual é sócio, pasme-se, o ora Recorrido.
nn. Ou seja, o Recorrido detém, ainda que indiretamente, 41.045,00 € do capital social, i.e. 82,09 %, pelo que, certamente estará nas mãos do Recorrido deliberar pela sua própria destituição enquanto administrador único da sociedade!
oo. Ora, com todo o respeito, não nos parece, de todo, que exista um perigo iminente de lesão grave e dificilmente reparável.
pp. Tal não passa de um “perigo” meramente hipotético, tanto que, por um lado, a destituição do cargo depende da vontade do Recorrido e mesmo fora do cargo de Administrador Único, o Recorrido continuaria a poder participar na referida Sociedade. (Veja-se neste sentido o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 19-12-2017, proc. nº 219/17.5BELSB)
DOS “PREJUÍZOS” SOFRIDOS PELA MARGEM ASTUTA S.A.
qq. O Recorrido entende que “é essencial e imprescindível” à sociedade Margem Astuta S.A., a concessão de crédito por parte das instituições bancárias sem que, para tal, alegue ou junte qualquer prova relativa à atual situação financeira e contabilística da empresa - e, reitere-se, tal consubstancia, quando muito, um direito e, consequentemente, um prejuízo que afeta a própria sociedade, e não o Recorrido do presente Procedimento Cautelar.
rr. Todavia, da prova junta e produzida nos presentes autos não resulta, sequer indiciariamente, que há uma recusa de concessão de crédito à empresa, nem tampouco demonstra que essa recusa seja generalizada.
ss. Não alegando, ou provando, ainda, o Recorrido a impossibilidade ou inexistência de outros quaisquer meios de financiamento à referida empresa – desde logo através dos restantes sócios – tal como não concretiza nem demonstra o Recorrido o que entende por “enormes transtornos”.
tt. Em suma, não alegou nem provou factos que permitam aferir da dimensão dos prejuízos que derivam da comunicação do incumprimento ao Banco de Portugal, e em que medida haveria uma diminuição da sua atividade e diminuição de receitas, pois que, também não demonstrou a concreta situação financeira, nem se existe risco de incumprimento de obrigações perante os seus empregados e colaboradores, os seus fornecedores e os seus financiadores. (Veja-se neste sentido o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 16.06.2023 - proc. 02564/19.6BEPRT-B)
uu. Por fim, muito se estranha que atenta a estrutura acionista da Margem Astuta S.A – que, inclusivamente, incorpora uma sociedade declarada insolvente em 2022 – só agora a se tenha deparado com “enormes transtornos” por força dos incumprimentos reportados ao Banco de Portugal pelo Recorrente - pelo que, tal consideração não passa de um juízo meramente subjetivo e sem qualquer apoio em factos concreto.
NÃO SER O PREJUÍZO RESULTANTE DA PROVIDÊNCIA SUPERIOR AO DANO QUE COM ELA SE PRETENDE EVITAR
vv. Por último, sempre se dirá que o prejuízo que advém do decretamento da providência – isto é, a retirada do incumprimento reportado à Central de Responsabilidades do Banco de Portugal, atenta a sua função de difundir a informação recebida das entidades participantes sobre o endividamento dos seus clientes, por forma a prevenir o sobre endividamento dos clientes e evitar os prejuízos para as instituições – atenta a, atrevemo-nos a dizer, inexistência de perigo de lesão do “direito” do Recorrido, afigura-se-nos superior ao dano que com o decretamento da providência se pretende evitar.
ww. Falecem, assim, todos os requisitos essenciais ao decretamento da providência pretendida.
Termina pedindo que a sentença recorrida seja revogada e substituía por outra que julgue improcedente a providência cautelar requerida, mantendo-se a situação de incumprimento comunicada à Central de Responsabilidades do Banco de Portugal .
O apelado contra-alegou, pugnando pela improcedência da apelação e manutenção da decisão recorrida.
QUESTÕES A DECIDIR
Sendo o objeto do recurso balizado pelas conclusões do recorrente (arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), as questões a decidir prendem-se com a verificação (ou não) dos requisitos para o decretamento da providência cautelar requerida.
Cumpre decidir, corridos que se mostram os vistos.
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
O tribunal recorrido julgou indiciariamente provados os seguintes factos:
1. Em 15 de dezembro de 2004, entre o Requerido, a sociedade “ZT Two Image – Comércio de Calçado, S.A.” e o Requerente, também designado como “Garante”, foi celebrado o acordo escrito, denominado “contrato de financiamento à importação”, de que se encontra junta cópia como documento n.º 3 do requerimento inicial, para cujo teor se remete e aqui se dá por reproduzido, nos termos do qual o Requerido declarou aprovar a favor da aludida sociedade e a seu pedido “um crédito até ao limite, em capital de € 100.000,00 (Cem mil Euros)”, que esta “utilizará, sob forma de empréstimos” para “liquidação de pagamentos de importações”.
2. Da cláusula nona do escrito mencionado em 1. ficou a constar o seguinte:
1. Em garantia do bom e integral cumprimento de todas as obrigações assumidas pelo CLIENTE no presente contrato, este obriga-se a obter a favor do BANCO uma LIVRANÇA subscrita em branco pelo CLIENTE com o AVAL ao subscritor do GARANTE, que o BANCO fica desde já autorizado pelo subscritor e pelo GARANTE a preencher pelo capital em dívida, juros, demais encargos e despesas, com o vencimento na data que melhor lhe convenha, mesmo à vista, no caso deste contrato não ser pontualmente cumprido em todas as suas cláusulas e obrigações, fazendo deste título o uso que melhor entenda na defesa dos interesses e sem que, por esse facto, se opere novação do crédito ora concedido.”.
3. Nos termos da cláusula décima terceira do aludido escrito o seguinte:
1. O GARANTE aceita expressamente todos os termos e condições do presente contrato, assumindo solidariamente, com o CLIENTE a responsabilidade pelo cumprimento pontual de todas as obrigações pecuniárias dele decorrentes, renunciando, desde já e expressamente ao benefício da excussão prévia relativamente ao património do CLIENTE, nomeadamente daquele que está dado em garantia ao BANCO, bem como a qualquer prazo ou benefício que, de algum modo, possa limitar, restringir ou anular as obrigações ora assumidas.
2. O GARANTE obriga-se consequentemente, a reembolsar o BANCO pelas importâncias devidas ou que venham a ser, por força deste contrato, logo que este lhe exija por escrito o seu pagamento em capital, juros, encargos e despesas, ficando o BANCO irrevogavelmente autorizado a operar compensação com os saldos credores que apresentem quaisquer contas bancárias que o GARANTE seja titular junto do BANCO.”.
4. No âmbito do aludido acordo, foi entregue ao Requerido a livrança de que se encontra junta cópia como documento n.º 1 da oposição, no valor de € 230.849,19, vencida em 31/10/2012, subscrita por “ZT Two Image – Comércio de Calçado, S.A.”, tendo no seu verso sido apostos os dizeres “dou o meu aval à firma subscritora”, seguidos da assinatura do ora Requerente.
5. Em 15 de julho de 2005, entre o Requerido, a sociedade “X... – Calçado Unipessoal, Lda.” (posteriormente denominada “Calçados to You, S.A.”) e o Requerente, também designado como “Garante”, foi celebrado o acordo escrito, denominado “contrato de financiamento à exportação”, de que se encontra junta cópia como documento n.º 1 do requerimento inicial, para cujo teor se remete e aqui se dá por reproduzido, nos termos do qual o Requerido declarou aprovar a favor da aludida sociedade e a seu pedido “um crédito até ao limite, em capital de EUR 125.000,00 (cento e vinte e cinco mil Euros)”, que esta “utilizará, sob a forma de empréstimos” para “financiamentos à exportação em Euros”.
6. Da cláusula nona do escrito mencionado em 5. ficou a constar o seguinte:
1. Em garantia do bom e integral cumprimento de todas as obrigações assumidas pelo CLIENTE no presente contrato, este obriga-se a obter a favor do BANCO uma LIVRANÇA subscrita em branco pelo CLIENTE com o AVAL ao subscritor do GARANTE, que o BANCO fica desde já autorizado pelo subscritor e pelo GARANTE a preencher pelo capital em dívida, juros, demais encargos e despesas, com o vencimento na data que melhor lhe convenha, mesmo à vista, no caso deste contrato não ser pontualmente cumprido em todas as suas cláusulas e obrigações, fazendo deste título o uso que melhor entenda na defesa dos interesses e sem que, por esse facto, se opere novação do crédito ora concedido.”.
7. Nos termos da cláusula décima terceira do aludido escrito o seguinte:
1. O GARANTE aceita expressamente todos os termos e condições do presente contrato, assumindo solidariamente, com o CLIENTE a responsabilidade pelo cumprimento pontual de todas as obrigações pecuniárias dele decorrentes, renunciando, desde já e expressamente ao benefício da excussão prévia relativamente ao património do CLIENTE, nomeadamente daquele que está dado em garantia ao BANCO, bem como a qualquer prazo ou benefício que, de algum modo, possa limitar, restringir ou anular as obrigações ora assumidas.
2. O GARANTE obriga-se consequentemente, a reembolsar o BANCO pelas importâncias devidas ou que venham a ser, por força deste contrato, logo que este lhe exiga por escrito o seu pagamento em capital, juros, encargos e despesas, ficando o BANCO irrevogavelmente autorizado a operar compensação com os saldos credores que apresentem quaisquer contas bancárias que o GARANTE seja titular junto do BANCO.
(…)”.
8. No âmbito do aludido acordo, foi entregue ao Requerido a livrança de que se encontra junta cópia como documento n.º 1 da oposição, no valor de € 227.073,94, vencida em 01/08/2012, subscrita por “X... – Calçado Unipessoal Lda.”, tendo no seu verso sido apostos os dizeres “dou o meu aval à firma subscritora”, seguidos da assinatura do ora Requerente.
9. Em 17 de maio de 2010, entre o Requerido, como Primeiro Contraente, a sociedade “X... – Calçado, S.A.” (posteriormente denominada “Calçados to You, S.A.”), na qualidade de Segundo Contraente, e o Requerente, na qualidade de Terceiro Contraente, também designado como “Garante”, foi celebrado o acordo escrito, denominado “contrato de mútuo”, de que se encontra junta cópia como documento n.º 1 do requerimento inicial, para cujo teor se remete e aqui se dá por reproduzido, nos termos do qual o primeiro declarou conceder à segunda, a solicitação desta “um mútuo no montante, em capital, de EUR 125.000,00 (cento e vinte cinco mil euros”, quantia de que a segunda desde logo se confessou devedora, com o acréscimo de “juros e demais encargos”.
10. Da cláusula décima sétima do escrito referido em 9. ficou a constar o seguinte:
1. O(s) GARANTE(S) aceita(m) expressamente todos os termos e condições do presente contrato, assumindo solidariamente com a CLIENTE a responsabilidade pelo cumprimento pontual de todas as obrigações pecuniárias dele decorrentes, renunciando desde já, e expressamente, ao benefício da excussão prévia relativamente ao património da CLIENTE, nomeadamente daquele que está dado em garantia ao BANCO, bem como a qualquer prazo ou benefício que, de algum modo, possa limitar, restringir ou anular as obrigações ora assumidas.
2. O(s) GARANTE(S) obriga(m)-se, consequentemente, a reembolsar o BANCO pelas importâncias devidas, ou que o venham a ser, por força deste contrato, logo que o BANCO lhe(s) exija por escrito o seu pagamento em capital, juros, encargos e despesas, ficando o BANCO irrevogavelmente, autorizado a debitar qualquer conta de que o(s) GARANTE(S) seja(m) ou venha(m) a ser titular(es), por todas as importâncias em dívida, operando assim compensação independentemente da verificação dos pressupostos da compensação legal.”.
11. Mais ficou a constar da cláusula décima oitava do aludido escrito o seguinte:
As obrigações assumidas pela CLIENTE ao abrigo do presente contrato estão caucionadas por:
a) LIVRANÇA subscrita pela CLIENTE, com o AVAL ao(s) subscritor(es) do(s) GARANTE(S), que o BANCO fica desde já autorizado a preencher pelo saldo em dívida do capital, juros, demais encargos e despesas, com o vencimento na data que melhor lhe convenha, mesmo à vista, no caso deste contrato não ser pontualmente cumprido em todas as suas cláusulas e obrigações, fazendo deste título o uso que melhor entender na defesa dos seus interesses, e sem que, por esse facto se opere a novação do mútuo concedido.”.
12. No âmbito do aludido acordo, foi entregue ao Requerido a livrança de que se encontra junta cópia como documento n.º 1 da oposição, no valor de € 42.127, 27, vencida em 01/08/2012, subscrita “X... – Calçado, S.A.”, tendo no seu verso sido apostos, além do mais, os dizeres “dou o meu aval ao subscritor”, seguido da assinatura do ora Requerente.
13. O Requerente apresentou-se a Processo Especial para Acordo de Pagamento (PEAP), que correu termos sob o n.º 6772/18.9T8GMR, no Tribunal Judicial da Comarca de Braga - Juízo de Comércio de Guimarães - Juiz 3.
14. No âmbito dos referidos autos, por despacho proferido em 26 de abril de 2019, transitado em julgado em 20 de Maio de 2019, foi homologado o acordo de pagamentos apresentado pelo Requerente, que previa, além do mais, o seguinte relativamente aos “créditos comuns”:
1. Consolidação dos créditos pelo valor reclamado e reconhecido na lista de credores, a qual deverá ser paga nos termos a seguir descriminados:
2. Perdão de um valor correspondente a noventa e cinco (95) por cento, do crédito fixado nos termos em 1 supra;
3. Pagamento do valor correspondente a cinco (5) por cento, do crédito fixado, nos termos em 1 supra, no prazo de 5 dias, a contar do trânsito em julgado da sentença de homologação do presente plano de pagamentos (…)”.
15. O Requerido não reclamou créditos no âmbito dos mencionados autos de PEAP.
16. O Requerido remeteu ao Requerente escrito datado de 31 de agosto de 2022, de que se encontra junta cópia como documento n.º 8 do requerimento inicial, designadamente com o seguinte teor:
N/Ref.ª: Proc. n.º 479/13.0TBGMR – Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro
Juízo Comércio de Aveiro – Juiz 3
Assunto: Dívidas ao Banco Bilbao Vizcaya Argentaria, S.A., Sucursal em Portugal
Incumprimento do Plano de Recuperação
(…)
foram definitivamente incumpridos os planos de pagamento homologados nos processos de revitalização das sociedades X... CALÇADO, S.A. (atualmente CALÇADOS TO YOU S.A.) e ZT TWO IMAGE – COMÉRCIO DE CALÇADO, S.A.
Assim, à data de 28/08/2022 os valores em dívida ascendiam, respetivamente, aos montantes globais de € 38.529,26 (trinta e oito mil, quinhentos e vinte e nove euros e vinte e seis cêntimos) e € 215.387,39 (duzentos e quinze mil, trezentos e oitenta e sete euros e trinta e nove cêntimos), a que acrescem juros vincendos, encargos e despesas, respeitante à amortização do crédito do N/Cliente, nos termos do plano de recuperação homologado no processo especial de revitalização (PER) acima identificado.
Assim, vimos interpelar V. Exa. para, nos termos do acordo de pagamentos homologado no processo em assunto, proceder ao dos valores em dívida, no prazo de 15 dias a contar da receção desta carta, sob pena de se considerar haver incumprimento definitivo do plano, nos termos da alínea a), do n.º 1, do art. 218.º, aplicável por via do n.º 12 do art. 17.º-F do CIRE, passando a V. Exa. a ser responsável pelo pagamento imediato da totalidade dos créditos do N/Cliente, caso em que o BBVA irá, sem mais aviso prévio, promover ação executiva contra V. Exa.
(…)”.
17. O Requerido comunicou à Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal que o Requerente se encontrava em incumprimento, sendo o valor “em dívida” de €31.200,69 e a data da entrada em incumprimento de 25/08/2016.
18. Na decorrência da referida comunicação, o Requerente remeteu ao Requerido, em 1 de Setembro de 2023, carta registada com aviso de receção, cuja cópia se encontra junta ao requerimento inicial como documento n.º 12, para cujo teor se remete e aqui se dá por reproduzido, nomeadamente o seguinte:
(…) tenho vindo a tentar esclarecer que recorri a um Processo Especial para Acordo de Pagamento (PEAP), tendo sido aprovado e homologado um acordo de pagamento (…)
O certo é que foi aprovado um perdão de 95% no PEAP e o crédito a considerar é à data de 28.11.2018. Ora, V. Exas. nunca me informaram qual o valor dos créditos a essa data (apenas me informaram a dívida a 28.08.2022 na vossa notificação que me peticionam os valores integrais) e dado que não reclamaram créditos no PEAP, desconheço qual seja o montante, algo que me tem impossibilitado de cumprir.
(…)
Assim, informo V. Exas. que provisionei às contas abaixo referidas para pagamento dos valores devidos a V. Exas. ao abrigo do plano de pagamentos aprovado e homologado no meu PEAP:
- (…) para pagamento do valor de € 1.926,46 decorrente da dívida da sociedade “Calçados to You, S.A.”;
- (…) para pagamento do valor de € 9.865,70 decorrente da dívida da sociedade “ZT Two Image – Comércio de Calçado, S.A.”.
Considerando o pagamento efetuado, solicito que no prazo máximo de 10 dias retirem o incumprimento comunicado por V. Exas. ao Banco de Portugal, bem como, procedam à entrega das livranças por mim avalizadas.
(…).”.
19. Em 1 de Setembro de 2023 o Requerente transferiu a quantia de € 11.792,16 para o Requerido por conta dos créditos elencados no escrito a que se alude em 16.
20. O Requerido manteve o reporte do incumprimento do Requerente, a que se alude em 17., na Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal após a transferência mencionada em 19.
21. O Requerente é administrador único da sociedade “MA.....SA.”.
22. A sociedade “MA.....SA.” tem conta bancária aberta no Bankinter.
23. A sociedade “MA.....SA.” adquiriu o direito de distribuição dos produtos sob a marca “ALDO” por acordo formalizado em 13 de outubro de 2023.
24. O Bankinter recusou a abertura de nova conta bancária e requisição de cheques pela aludida sociedade devido ao incumprimento comunicado pelo Requerido à Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal relativamente ao Requerente.
25. Alguns acionistas da sociedade “MA.....SA.” transmitiram ao Requerente que, caso se mantivesse a aludida comunicação de incumprimento, não poderia manter-se no cargo de Administrador da sociedade.
*
E considerou como indiciariamente não provados:
A) O Requerido transmitiu ao Requerente que não lhe iria ser exigido o pagamento dos créditos das sociedades “ZT Two Image- Comércio de Calçado, S.A.” e “Calçados to You, S.A.” enquanto avalista.
B) O Requerente enviou carta ao Requerido a convidá-lo a participar nas negociações no âmbito do PEAP.
C) O reporte do incumprimento ao Banco de Portugal efetuado pelo Requerido diminuiu o prestígio do Requerente junto das entidades bancárias.
D) A sociedade “MA.....SA.” tentou abrir conta junto do Millennium BCP, tendo-lhe sido negada tal abertura.
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
QUESTÃO PRÉVIA
Com as suas alegações de recurso o apelante juntou 3 documentos, concretamente, 3 extratos de registo comercial, sem que tenha alegado o motivo da sua junção apenas nesta fase.
Por força do disposto no art. 293º, nº 1, do CPC, ex vi do disposto no art. 365º, nº 3, do mesmo diploma legal, na oposição ao procedimento cautelar, deve o Requerido apresentar os meios de prova.
Em fase de recurso, dispõe o nº 1 do art. 651º do CPC que “As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância”.
Dispõe, por seu turno, o art. 425º do CPC, que “Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento”.
Da conjugação destes artigos resulta que a junção de documentos em fase de recurso só é admissível em 2 situações, a saber: a) por se ter tornado necessária a junção em virtude do julgamento proferido na 1ª instância; b) por não ter sido possível a sua apresentação até ao encerramento da discussão em 1ª instância.
Conforme se sumaria no Ac. do STJ de 30.4.2019, P. 22946/11.0T2SNT-A.L1.S2 (Catarina Serra), em www.dgsi.pt, “I. Da leitura articulada dos artigos 651º, nº 1, 425º do CPC decorre que as partes apenas podem juntar documentos em sede de recurso de apelação, a título excecional, numa de duas hipóteses: superveniência do documento ou necessidade do documento revelada em resultado do julgamento proferido na 1.ª instância. I. No que toca à superveniência, há que distinguir entre os casos de superveniência objetiva e de superveniência subjetiva: aqueles devem-se à produção posterior do documento; estes ao conhecimento posterior do documento ou ao seu acesso posterior pelo sujeito. III. Quando o acesso ao documento está ao alcance da parte, a instrução do processo com a sua apresentação é um ónus, devendo desconsiderar-se a inacessibilidade que seja imputável à falta de diligência da parte, sob pena de se desvirtuar a relação entre a regra e a exceção ditada, nesta matéria, pelo legislador. IV. No que toca à necessidade do documento, os casos admissíveis estão relacionados com a novidade ou imprevisibilidade da decisão, não podendo aceitar-se a junção de documentos quando ela se revele pertinente ab initio, por tais documentos se relacionarem de forma direta e ostensiva com a questão ou as questões suscitadas nos autos desde o primeiro momento.”.
Como referido, o apelante nada alegou a justificar a necessidade de junção dos documentos nesta fase, sendo certo que o deveria ter feito.
Os documentos juntos, embora emitidos em 6.3.2024, respeitam a publicações de atos efetuadas em 20.3.2019, 11.3.2019 e 18.12.2023.
Ou seja, as duas primeiras datas são anteriores à apresentação da oposição (30.10.2023), e todas são anteriores à audiência final que se realizou em 31.1.2024, pelo que os documentos poderiam ter sido juntos com a oposição, ou até ao encerramento da audiência final, mediante o pagamento de multa (art. 423º, nº 3, do CPC).
Não se verifica, pois, nenhuma das situações em que a lei permite a junção de documentos em fase de recurso, pelo que não se admite a junção dos documentos apresentados com as alegações de recurso, sendo de ordenar o seu “desentranhamento”, com consequente condenação do apelante nas custas do incidente a que deu causa.
*
O apelante insurge-se contra a decisão do tribunal recorrido, sustentando que não se mostram verificados os pressupostos para o decretamento da providência requerida, ao contrário do que entendeu o tribunal recorrido.
Dispõe o art. 2º, nº 2, do CPC que “A todo o direito, exceto quando a lei determine o contrário, corresponde a ação adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente, bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da ação”.
Os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da ação são os procedimentos cautelares.
Como escrevia o Alberto dos Reis, no CPC Anotado, Vol. I, págs. 624/625, “Convém, evidentemente, que a justiça seja pronta; mas, mais do que isso, convém que seja justa; O problema fundamental de política processual consiste exatamente em saber encontrar o equilíbrio razoável entre as duas exigências: a celeridade e a justiça. … Tudo isto vem para dizer que a demora no julgamento final e definitivo é, dentro de limites razoáveis, um facto normal impossível de remover. Mas essa demora pode, em certas circunstâncias, criar um estado de perigo, porque pode expor o titular do direito a danos irreparáveis; pode, na verdade, suceder que até à altura da emanação da decisão final se produzam ocorrências graves, suscetíveis de comprometer a utilidade e eficácia da sentença. O processo foi instruído, discutido e julgado com a ponderação indispensável para se obter uma decisão justa, mas essa decisão porque vem muito tarde, já não serve de nada, ou serve de muito pouco: o interessado obrigado a esperar longo tempo pelo reconhecimento do seu direito, foi vítima de prejuízos que a sentença já não pode apagar. … A função das providências cautelares consiste justamente em eliminar o periculum in mora, em defender o presumido titular do direito contra os danos e prejuízos que lhe pode causar a formação lenta e demorada da decisão definitiva. … Qual o mecanismo da providência cautelar? Como consegue ela prover ao fim a que se destina, isto é, eliminar o periculum in mora? Muito simplesmente: submetendo a relação jurídica litigiosa a um exame sumário, e por isso rápido, tendente a verificar se a pretensão do requerente tem probabilidades de êxito e se, além disso, da demora do julgamento final pode resultar, para o interessado, dano irreparável ou, pelo menos, considerável”.
Abrantes Geraldes, em Temas da Reforma de Processo Civil, III Volume, 3ª ed., pág. 35, escreve que “Os procedimentos cautelares são um instrumento processual privilegiado para proteção eficaz de direitos subjetivos ou de outros interesses juridicamente relevantes. A sua importância prática não resulta da capacidade de resolução autónoma e definitiva de conflitos de interesses, antes da sua utilidade na antecipação de determinados efeitos das decisões judiciais, na prevenção da violação grave ou dificilmente reparável de direitos, na prevenção de prejuízos ou na preservação do statu quo, enquanto demorar a decisão definitiva do conflito de interesses. Representam uma antecipação ou garantia de eficácia relativamente ao resultado do processo principal ...”, e mais adiante, na pág. 43 conclui que “… os procedimentos cautelares constituem mecanismos jurisdicionalizados, expeditos e eficazes, que permitem assegurar os resultados práticos da ação, evitar prejuízos graves ou antecipar a realização do direito (instrumentalidade hipotética), de forma a obter, na medida do possível, a conciliação dos interesses da celeridade e da segurança jurídica”.
Dispõe o art. 362º, nº 1, do CPC, que “Sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável do seu direito, pode requerer a providência, conservatória ou antecipatória, concretamente adequada a assegurar a efetividade do direito ameaçado”.
Por seu turno, o art. 364º, nº 1, do CPC, dispõe que “Exceto se for decretada a inversão do contencioso [3], o procedimento cautelar é sempre dependência da causa que tenha por fundamento o direito acautelado e pode ser instaurado como preliminar ou como incidente de ação declarativa ou executiva”.
Processados os autos de procedimento cautelar nos termos dos arts. 365º a 367º, do CPC, “a providência é decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão” (art. 368º, nº 1, do CPC).
Requisitos do procedimento cautelar em causa são a probabilidade séria da existência do direito do requerente (fumus boni iuris), o fundado receio de que outrem, antes de proposta a ação principal ou na pendência dela, cause lesão grave ou dificilmente reparável ao direito ameaçado (periculum in mora), a adequação da providência solicitada para evitar a lesão (nº 3 do art. 362º do CPC), e não ser o prejuízo resultante da providência superior ao dano que com ela se pretende evitar (nº 2 do art. 368º do CPC).
O procedimento cautelar comum visa obter uma decisão que decrete uma providência, conservatória ou antecipatória [4], que assegure ao requerente que o seu direito não será lesado, de forma grave e dificilmente reparável, enquanto não for proferida uma sentença definitiva a reconhecer esse mesmo direito [5].
O procedimento cautelar não reconhece de forma definitiva o direito do requerente, nem resolve, de forma definitiva o litígio, visa, tão só, acautelar o direito do requerente - cuja probabilidade séria de existência resulta demonstrada nos autos -, decretando medidas conservatórias ou antecipatórias que tal assegurem, enquanto não houver uma decisão definitiva, e porque, muitas vezes, a delonga na administração da justiça não se compadece com a necessidade de uma atuação rápida, única que permite evitar uma violação irremediável do direito.
Feitas estas considerações gerais, apreciemos o caso sub judice.
O tribunal recorrido concluiu pela verificação dos requisitos referidos e decretou a providência cautelar requerida.
O apelante sustenta que não se verifica nenhum dos requisitos do procedimento cautelar em causa, pelo que não podia ter sido decretada a providência cautelar requerida.
Apreciemos, começando por esclarecer que a factualidade a ponderar é a indiciariamente dada como provada pelo tribunal recorrido, uma vez que o apelante não impugnou a decisão sobre a matéria de facto, sendo, pois, irrelevante, nesta fase, o que disseram as testemunhas ouvidas, carecendo de fundamento a reprodução que o apelante faz dos respetivos depoimentos, e basear-se nos mesmos.
1. O tribunal recorrido concluiu estar verificado o requisito do fumus boni iuris com a seguinte fundamentação: “Resulta da factualidade indiciada sob 1. a 12. que o Requerente se constituiu fiador das sociedades ZT Two Image – Comércio de Calçado, S.A. e X...-Calçado, S.A. no âmbito dos contratos de mútuo celebrados entre estas e o Requerido e, nesse mesmo âmbito, deu o seu aval às livranças subscritas por cada uma das aludidas sociedades no âmbito de tais contratos. Donde, é desde logo de atentar que a fonte dos créditos do Requerido não é unicamente cartular, o que, aliás, se extrai da própria alegação do Requerente, pelo que nunca poderia considerar-se que os créditos do Requerido se encontram extintos por prescrição com fundamento no artigo 77.º da Lei Uniforme das Letras e Livranças, como veio suscitar o Requerente em resposta à oposição. Em todo o caso, a questão da prescrição das livranças tinha que ser suscitada no requerimento inicial, não sendo de atender a invocação posterior, uma vez que é o próprio Requerente que alega que na origem dos créditos do Requerido estão, além do mais, os avais que prestou em tais livranças (neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 6/10/1997, proc. n.º 9750475, cujo sumário se encontra acessível em www.dgsi.pt). Mais se encontra sumariamente provado que em data posterior à constituição dos créditos do Requerido, o Requerente apresentou-se a Processo Especial para Acordo de Pagamento (doravante PEAP), processo que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga - Juízo de Comércio de Guimarães - Juiz 3, sob o n.º 6772/18.9T8GMR e em cujo âmbito foi aprovado e homologado o plano de pagamentos descrito em 14., nos termos do qual se encontrava previsto um perdão do valor correspondente a 95% dos créditos reclamados e reconhecidos, sendo o pagamento do valor correspondente a 5%, do crédito fixado efetuado no prazo de 5 dias, a contar do trânsito em julgado da sentença de homologação do presente plano de pagamentos. Além disso, encontra-se igualmente indiciariamente provado que o Requerido não reclamou créditos no âmbito dos mencionados autos de PEAP, mas sendo certo que não se apurou, ainda que sumariamente, que o mesmo tenha sido convidado pelo Requerente a participar nas negociações. Importa, por isso, verificar se existe uma probabilidade séria do direito do Requerente em não constar da lista de devedores da Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal, por incumprimento perante o Requerido, o que demanda a análise do regime do PEAP. Este processo encontra-se regulado nos artigos 222.º-A a 222.º-J do Código da Insolvência e da Recuperação das Empresas (doravante CIRE). Conforme preceitua o artigo 222.º-A, n.º 1 deste diploma legal, este processo “destina-se a permitir ao devedor que, não sendo uma empresa e comprovadamente se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes acordo de pagamento.”, iniciando-se pela manifestação de vontade do devedor e de pelo menos um dos seus credores, por meio de declaração escrita, de encetarem negociações conducentes à elaboração de um acordo de pagamento (cfr. artigo 222.º-C, n.º 1 do CIRE), tendo o devedor que apresentar no tribunal competente o requerimento de abertura do PEAP, nos termos do artigo 222.º-C, n.º 3 do CIRE. Para lograr tal acordo de pagamento é nomeado um administrador judicial provisório através de despacho proferido pelo juiz (cfr. artigo 222.º-C, n.º 4 do CIRE), tendo o devedor, logo que notificado de tal despacho, que comunicar por carta registada a todos os seus credores que se deu início a negociações com vista à elaboração de acordo de pagamento, convidando-os a participar em tais negociações (artigo 222.º-D, n.º 1 do CIRE). Por sua vez, nos termos do n.º 2 do citado artigo 222.º-D, os credores dispõem de 20 dias contados da publicação no portal Citius do despacho que nomeia o administrador judicial provisório para reclamar créditos. No caso, como se referiu, encontra-se sumariamente demonstrado que o Requerido não reclamou créditos no âmbito daqueles autos, mas a verdade é que não se apurou que tenha sido convidado a participar nas negociações. A este propósito estabelece o artigo 222.º-F, n.º 8 do CIRE que “A decisão de homologação vincula o devedor e os credores, mesmo que não hajam reclamado os seus créditos ou participado nas negociações, relativamente aos créditos constituídos à data em que foi proferida a decisão prevista no n.º 4 do artigo 222.º-C [de nomeação do administrador judicial provisório] e é notificada, publicitada e registada pela secretaria do Tribunal”. Em face do teor do citado preceito, é de considerar que, independentemente de ter existido ou não a comunicação do devedor aos seus credores de que deu início a negociações com vista à elaboração de acordo de pagamento, convidando-os a participar, caso assim o entendam, nas negociações em curso, aquele fica vinculado ao plano de pagamentos homologado pelo juiz, uma vez que: - a lei não distingue, afirmando expressamente que ficam vinculados a tal acordo os credores que não tenham reclamado créditos ou participado em negociações; - é publicado no Citius o despacho de nomeação de administrador provisório – onde após publicação é dado aos credores um prazo de 20 dias para reclamarem os seus créditos; - a lista provisória de créditos e o próprio acordo são publicados no Citius, pelo que mesmo sem a comunicação feita pelo devedor os credores têm acesso à informação que corre um PEAP contra o devedor e que, se assim o quiserem, devem reclamar os créditos junto do administrador. Com efeito, como se ponderou no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 24/03/2022 (processo n.º 59664/21.9YIPRT.E1, disponível em www.dgsi.pt), “[o]nde o legislador não distingue não caberá ao intérprete distinguir. Credores afetados pelo plano de revitalização, serão assim todos e não apenas os indicados pelo devedor, ou incluídos pelo administrador judicial provisório em função da contabilidade apresentada, desde que constituídos anteriormente.”, relativamente ao PER, mas cujo entendimento é integralmente transponível para o PEAP, o qual, como sustenta o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 26/10/2023 (processo n.º 756/23.2T8VCT.G1, disponível em www.dgsi.pt, citando o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 04/07/2019, processo n.º 3774/17.6T8AVR.P1.S2), traduz “mecanismo que é em tudo idêntico ao regime do PER para os devedores empresários (…) não admirando, por isso, que se afirme que “o PEAP não é, na verdade, outra coisa senão “o PER não empresários”, configurando-se o seu regime como o regime do antigo PER deslocado para outra parte do Código”. Na decorrência do expendido, há, pois, que considerar que, ainda que o Requerente tenha incumprido o disposto no artigo 222.º-D, n.º 1 do CIRE relativamente ao Requerido, o mesmo encontra-se vinculado ao conteúdo do plano de pagamentos. Ora, atento o conteúdo do plano de pagamentos, o Requerido apenas poderia exigir do Requerente o pagamento do valor correspondente a 5% dos créditos de que era detentor à data em que foi proferido o despacho de nomeação de administrador judicial provisório. Sustenta ainda o Requerido que, ainda que assim seja, como se considerou ser, uma vez que o Requerente, interpelado pelo mesmo para pagamento dos créditos, não liquidou quantia correspondente a 5% do valor dos créditos do Requerido, o perdão previsto no plano fica sem efeito. Neste circunspecto, rege o artigo 218.º, n.º 1, al. a) do CIRE (ex vi artigo 222.º-F, n.º 10) que “Salvo disposição expressa do plano de insolvência em sentido diverso, a moratória ou o perdão previstos no plano ficam sem efeito (…) Quanto a crédito relativamente ao qual o devedor se constitua em mora, se a prestação, acrescida dos juros moratórios, não for cumprida no prazo de 15 dias após interpelação escrita pelo credor;”. No caso, resulta da factualidade indiciada sob 16. que o Requerido interpelou o Requerente para proceder, no prazo de 15 dias, ao pagamento dos “valores em dívida” com referência aos planos de recuperação homologados no processo especial de revitalização (PER) das sociedades X... Calçado S.A. e ZT Image – Comércio de Calçado S.A., indicando que os montantes globais em dívida “à data de 28/08/2022” eram de € 38.529,26 e € 215.387,39, a que acrescem juros vincendos, encargos e despesas. Ora, afigura-se-nos manifesto que esta interpelação, realizada com referência aos planos homologados nos processos de revitalização das sociedades, não preenche os requisitos previstos no citado artigo 218.º, n.º 1, al. a) do CIRE relativamente ao acordo de pagamento homologado no PEAP do Requerente. Com efeito, esta interpelação não é manifestamente para cumprimento, relativamente aos créditos do Requerido, do acordo de pagamento homologado no âmbito do PEAP, mas sim para o cumprimento dos planos de recuperação das aludidas sociedades. Note-se que o Requerido em momento algum indica o valor da prestação em dívida por aplicação do aludido acordo de pagamentos, não atendendo nem ao perdão aí previsto, nem ao valor dos créditos que detinha por reporte àquela data. Acresce que, para este efeito, é indiferente se o Requerente cumpriu ou não o acordo de pagamento relativamente aos demais credores, resultando do teor literal da norma em apreço que o perdão apenas fica sem efeito quanto “a crédito relativamente ao qual o devedor se constitua em mora” (destaque nosso). A Central de Responsabilidades de Crédito tem enquadramento legal no Decreto-Lei n.º 204/2008, de 14 de Outubro, “constitui[ndo], no essencial, uma base de dados que foi criada com o objetivo de apoiar as instituições financeiras na avaliação do risco na concessão de crédito, permitindo-lhes consultar informação agregada sobre o endividamento de quem lhes peça a concessão de crédito. Assim, sempre que alguém – pessoa singular ou coletiva – pede um crédito, a instituição financeira irá consultar a informação disponibilizada pelo Banco de Portugal. São dados disponíveis os montantes totais em dívida e se estão regularizados ou não, pelo que a instituição financeira poderá mais facilmente avaliar se quem lhe solicita o crédito tem capacidade para contrair mais um empréstimo e se tem os pagamentos em dia.” - Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 25/10/2018, proc. 900/17.9T8GMR.G1. Nos termos do artigo 2.º, n.º 4 do citado Decreto-Lei n.º 204/2008, de 14 de Outubro, “A informação divulgada pelo Banco de Portugal, constante da Central de Responsabilidades de Crédito, é da responsabilidade das entidades que a tenham transmitido, cabendo exclusivamente a estas proceder à sua alteração ou retificação, por sua iniciativa ou a solicitação dos seus clientes, sempre que ocorram erros ou omissões.”. No caso, não tendo o Requerido reclamado os seus créditos no âmbito do PEAP, nem interpelado o Requerente para o cumprimento do acordo de pagamentos homologado naquela sede relativamente aos respetivos créditos, considera-se que a comunicação à Central de Responsabilidade do Banco de Portugal de que o Requerente se encontrava em incumprimento, sendo o valor “em dívida” de € 31.200,69 e a data da entrada em incumprimento de 25/08/2016, foi realizada de forma indevida. Encontra-se assim verificado o primeiro requisito para o decretamento da providência: o fumus boni iuris.”.
O apelante sustenta que não se verifica o requisito em causa porquanto:
- o apelado conhecia plenamente a sua condição de devedor perante o apelante, mas excluiu-o voluntariamente do PEAP, não lhe deu conhecimento da homologação do plano em 2018, pese embora os subsequentes processos que envolveram as empresas que administrava, apenas por ocasião da interpelação enviada em 2022 pelo apelante é que se dignou informar que existiria um plano, e foi necessário mais um ano para que procedesse ao pagamento do que quer que fosse, pelo que, nesses termos, o perdão previsto no plano fica sem efeito, nos termos do previsto no artigo 218.º CIRE, permanecendo em dívida a totalidade das quantias vencidas;
- existindo incumprimento, permaneceu reportado na Central de Responsabilidades do Banco de Portugal o incumprimento da dívida a título de capital (excluindo os juros remuneratórios e moratórios e despesas), conforme instruções do Banco de Portugal;
- resulta provado que as empresas outrora geridas pelo apelado (BT......,SA, CALÇADOS ......,SA  e Z.......CALÇADO,SA) foram votadas à insolvência por culpa exclusiva do Recorrido, tendo tais circunstâncias determinado que fosse reportado ao Banco de Portugal pelo apelante e pelas restantes entidades bancárias com quem assumiu responsabilidades, ao longo de todos estes anos, o incumprimento, pelo que, se o “bom” nome do apelado se encontra “ferido”, tal deve-se única e exclusivamente a culpa sua e não é a retirada do seu nome da Central de Responsabilidades que apagará a sua reputação;
- os hipotéticos constrangimentos ao financiamento da empresa da qual é sócio –  MA.....SA. - não consubstanciam um direito do apelado, mas sim, um direito da própria empresa;
- a possibilidade de destituição do cargo de Administrador daquela sociedade não foi, sequer, um assunto que constasse de ordem de trabalhos da assembleia, ou registado em ata, a demonstrar a pouca gravidade da situação.
Vejamos.
O DL nº 204/2008, de 14.10, estipula no seu art. 1º, nº 1, que “A Central de Responsabilidades de Crédito (CRC), assegurada pelo Banco de Portugal, nos termos da sua Lei Orgânica, aprovada pela Lei n.º 5/98, de 31 de Janeiro, tem por objeto: a) Centralizar as responsabilidades efetivas ou potenciais de crédito concedido por entidades sujeitas à supervisão do Banco de Portugal ou por quaisquer outras entidades que, sob qualquer forma, concedam crédito ou realizem operações análogas; b) Divulgar a informação centralizada às entidades participantes; c) Reunir informação necessária à avaliação dos riscos envolvidos na aceitação de empréstimos bancários como garantia no âmbito de operações de política monetária e de crédito intradiário”, sendo entidades participantes as que estão “sujeitas à supervisão do Banco de Portugal que concedam crédito, sucursais de instituições de crédito com sede no estrangeiro e atividade em Portugal e outras entidades designadas pelo Banco de Portugal que, de algum modo, exerçam funções de crédito ou atividade com este diretamente relacionada.” (art. 2º, nº 1).
De acordo com o disposto no art. 2º, nº 4, do referido decreto lei, “A informação divulgada pelo Banco de Portugal, constante da Central de Responsabilidades de Crédito, é da responsabilidade das entidades que a tenham transmitido, cabendo exclusivamente a estas proceder à sua alteração ou retificação, por sua iniciativa ou a solicitação dos seus clientes, sempre que ocorram erros ou omissões.”, prevendo-se no art. 3º o conteúdo do dever de comunicação das entidades participantes, que devem, em cada mês, atualizar a informação, podendo retificá-la.
Há assim uma obrigação dos Bancos de enviarem mensalmente ao Banco de Portugal todos os créditos e respetivas situações, sendo responsáveis pelas comunicações efetuadas, o que permite uma atualização mensal da informação constante de tal Central de Responsabilidades.
Nesta conformidade, não está em causa qualquer direito do apelado a não ver comunicado ao Banco de Portugal a sua situação de incumprimento [6], como sustenta o apelante, mas o seu direito a ver retificada/alterada essa comunicação se não se verificar o incumprimento comunicado ou se o mesmo já não se verificar.
O que nos leva à questão do incumprimento do apelado.
E nesta matéria, sufragamos o entendimento do tribunal recorrido, não assistindo razão ao apelante.
O Processo Especial de Acordo de Pagamento foi introduzido no CIRE pelo DL nº 79/2017, de 30.6, aditando-lhe os arts. 222º-A a 222º-J [7], sendo-lhe aplicáveis as exigências de publicitação para o processo de insolvência (art. 222º-C, nºs 4 e 5), dispondo qualquer credor do prazo de 20 dias, contados da publicitação no portal Citius do despacho de nomeação do administrador judicial provisório, para reclamar créditos (art. 222º-D, nº 2).
Ao contrário do que sustenta o apelante, o desconhecimento do PEAP relativo ao apelado apenas ao apelante é imputável, na medida em que a publicitação referida se destina, precisamente, a tornar pública a pendência do processo e a permitir a qualquer credor (a todos os credores) reclamar nele os seus créditos por forma a ter participação ativa na aprovação do acordo de pagamento que vier a ser aprovado (art. 222º-F do CIRE).
Publicidade que é efetuada, ainda, relativamente à lista provisória de créditos (art. 222º-D, nº 3, do CIRE), ao acordo de pagamento aprovado em que não intervieram todos os credores (art. 222º-F, nº 2, do CIRE), e à decisão de homologação do acordo de pagamento (art. 222º-F, nº 8, do CIRE).
Ou seja, não era ao apelado que incumbia dar conhecimento ao apelante da pendência do processo, do acordo de pagamento aí aprovado e da sua homologação, prevendo a lei ampla publicitação de forma a que tais factos sejam conhecidos dos credores, devendo as entidades bancárias ter meios de controle da situação dos seus devedores, conforme instruções do BdeP.
Questão distinta é a obrigação prevista no art. 222º-D, nº 1, do CIRE, do devedor comunicar, por carta registada, a todos os credores que não hajam subscrito a declaração de vontade de encetarem negociações conducentes à elaboração de acordo de pagamento e que dá início ao processo (art. 222º-C, nº 1, do CIRE), que deu início às negociações com vista à elaboração de acordo de pagamento e convidando-os a participarem nelas.
No caso não resultou provado que o apelado tenha remetido a mencionada carta ao apelante, contudo tal omissão não interfere com o seguimento do processo, nem afeta o valor dos atos nele praticados, sendo certo que, como já referido, não é a partir dessa notificação que se conta o prazo de reclamação de créditos, nem o necessário conhecimento da pendência do processo [8].
Por outro lado e como refere o tribunal recorrido, a lei é clara ao estabelecer que o acordo de pagamento aprovado e homologado por decisão judicial vincula o devedor e todos os credores, mesmo aqueles que não hajam reclamado créditos ou participado nas negociações (art. 222º-F, nº 8, do CIRE).
Assim carece de qualquer fundamento a alegação do apelante de que só tomou conhecimento da aprovação da homologação do acordo de pagamento por ocasião da interpelação enviada em 2022, tendo-se limitado a notificar o apelado de acordo com o conhecimento (ou desconhecimento) que tinha.
Tal desconhecimento não lhe aproveita, e o que é certo é que a notificação enviada não pode ser entendida como a interpelação a que alude o art. 218º, nº 1, al. a), do CIRE [9], como entendeu o tribunal recorrido.
Atente-se que o art. 222º-F, nº 8, do CIRE estipula que “A decisão vincula o devedor e todos os credores, mesmo que não hajam reclamado os seus créditos ou participado nas negociações, relativamente a créditos constituídos à data em que foi proferida a decisão prevista no nº 4 do art. 222º-C, …”, ou seja, constituídos à data em que foi proferida decisão de nomeação de administrador judicial provisório (no caso, 28.11.2018), ainda que não tenha reclamado o seu crédito.
Ora, na notificação referida no ponto 16 da fundamentação de facto o apelante interpela o apelado ao pagamento da dívida, referente aos valores em dívida à data de 28/08/2022, sem qualquer referência ao acordo de pagamento aprovado e homologado, ao capital e juros em dívida, mas, antes, por referência ao valor total em dívida àquela data (de 28.8.2022), e por incumprimento definitivo dos planos de pagamento homologados nos processos de revitalização das sociedades C…..CALÇADO,S.A. (atualmente CALÇADOS …. S.A.) e Z………E CALÇADO, S.A.
Não reunindo a referida interpelação os requisitos exigidos pelo art. 218º, nº 1, al. a), do CIRE, não fica sem efeito o acordo de pagamento aprovado e homologado relativamente ao apelante, como este pretende, sendo certo que é indiferente a prova de ter o apelado pago aos restantes credores, pois, o mencionado preceito tem aplicação individual, como resulta dos seus termos [10].
E o que é certo é que não resulta demonstrado, nem o apelante tal alega, que, posteriormente, tenha interpelado o apelado a pagar indicando os montantes em dívida nos termos exigidos, não obstante informado do acordo de pagamento aprovado e homologado [11], acabando o apelado por provisionar as contas que indicou para pagamento dos valores devidos  tendo em conta o acordo de pagamento aprovado e homologado (com valores por si calculados e na falta de indicação concreta dos mesmos), e com vista a que o seu nome fosse retirado da Central de Responsabilidades de Crédito.
Nesta conformidade resulta indiciariamente demonstrado o direito do apelado a que o incumprimento seja retirado da Central de Responsabilidades de Crédito, sob pena de violação do bom nome do Requerente e da credibilidade na sua capacidade para cumprir as suas obrigações.
Alega o apelante que o “direito à reputação” do apelado se mostra já posta em causa pela sua atuação ao longo dos últimos anos, mas não resulta demonstrada a factualidade em que o apelante sustenta a sua alegação, nomeadamente que as empresas outrora geridas pelo apelado ( BT......,SA, CALÇADOS ......,SA e Z.......CALÇADO,SA) foram votadas à insolvência por culpa exclusiva deste [12], e que estas circunstâncias determinaram que fosse reportado ao Banco de Portugal, ao longo destes anos, o incumprimento e o nome do apelado, não só pelo apelante, como pelas restantes entidades bancárias com quem assumiu responsabilidades, sendo-lhe imputável tal situação.
Tal factualidade não resulta demonstrada nos autos, sendo que o mapa de responsabilidades do apelado que foi junto com o RI respeita a “agosto de 2023”, e do mesmo apenas consta o incumprimento comunicado pelo apelante.
Tal como concluiu o tribunal recorrido, mostra-se indiciariamente demonstrado, segundo juízo de verosimilhança, o direito do Requerente, verificando-se, pois, o requisito em causa.
 2. O tribunal recorrido concluiu pela verificação do requisito do periculum in mora com a seguinte fundamentação: “… In casu, consta da matéria indiciada que a sociedade “MA.....SA.”, da qual o Requerente é administrador único, viu recusada a abertura de nova conta bancária e a emissão de cheques pelo Bankinter, devido ao incumprimento comunicado pelo Requerido à Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal relativamente ao Requerente, contexto em que alguns acionistas daquela sociedade lhe transmitiram que, caso se mantivesse a aludida comunicação de incumprimento, não poderia manter-se no exercício do cargo. Ainda que apenas tenha resultado indiciada a aludida recusa por parte de uma instituição bancária, é previsível que outras assumam a mesma postura, não apenas relativamente à sociedade, mas também ao próprio Requerente, em consonância, de resto, com o desiderato da Central de Responsabilidades de Crédito. Na verdade, sendo o administrador uma figura nuclear na gestão da sociedade é normal que os incidentes que o afetam se repercutam na mesma, desde logo no acesso a produtos bancários, que são, consabidamente, de grande importância para o regular desenvolvimento da atividade societária, em particular no âmbito da distribuição (cfr. facto indiciado sob 23.). Acresce que o registo do incumprimento do Requerente na referida Central de Responsabilidades não atinge apenas a sociedade “MA.....SA.”, mas também o Requerente a nível profissional, não só porque o seu trabalho depende do regular funcionamento e atividade da sociedade, mas também porque corre o risco de ser afastado do cargo de administrador, tratando-se ambas de lesão graves e de difícil recuperação, que impõem uma tutela antecipatória, sob pena destas lesões efetivarem-se na esfera do Requerente durante o decurso normal da ação principal, em virtude do período necessário à prolação de uma decisão definitiva. Na verdade, como sustentado no Acórdão do Tribunal de Relação de Lisboa de 22/06/2017 (processo n.º 4267/17.7T8LSB-A.L1-8, disponível em www.dgsi.pt), a manutenção da comunicação feita pode atingir maior gravidade com o passar do tempo, mostrando-se justificado o receio na não reparação integral dos danos que daí possam advir. O que significa que a continuidade da comunicação do Requerente enquanto incumpridor, expõe-no a uma análise de maior “risco” e, nessa medida, expõe também a sociedade “MA.....SA.” a situações de recusa de abertura de contas e de recusa de requisição de cheques, essenciais para o desenvolvimento da sua atividade comercial e da sua expansão enquanto sociedade. O facto dos demais acionistas estarem, de acordo com a factualidade indiciada, a ponderar o afastamento do Requerente do cargo de administrador da sociedade é, também, demonstrativo da importância e urgência na obtenção de uma decisão célere, sob pena de se correr o risco de ficar afetada, de forma grave, a sua situação profissional, dimensão da vida do Requerente que, em si mesma, devem merecer particular tutela, pelo que se considera ser suficientemente fundado o receio da lesão do direito do Requerente, pois as consequências que tal registo na Central de Responsabilidades acarretam para este são de uma magnitude elevada.”.
O apelante sustenta que não se verifica este requisito porquanto:
- não resulta provado, nem foi alegado, que o trabalho do apelado depende do regular funcionamento da sociedade, desconhece-se se esta é a sua única atividade de sustento, sendo certo que nada o impede de permanecer na sociedade continuando a exercer funções, mesmo que seja destituído da posição de administrador único, especialmente quando detém, ainda que indiretamente, mais de 80% do capital social, sendo o perigo de lesão meramente hipotético uma vez que a destituição do cargo depende da sua vontade e pode continuar a participar na sociedade;
- para além de não ter resultado provado que há uma recusa, generalizada, de concessão de crédito à sociedade Margem Astuta S.A. (o que consubstanciaria apenas um prejuízo da própria sociedade e não do apelado), também não resultou provada a impossibilidade ou inexistência de outros quaisquer meios de financiamento à referida empresa, nem se existe risco de incumprimento de obrigações perante os seus empregados e colaboradores, os seus fornecedores e os seus financiadores.
Carece de fundamento a alegação do apelante de que o apelado “controla”, indiretamente, a sociedade Margem Astuta, SA, atenta a estrutura acionista desta sociedade, reportando-se o apelante à anterior constituição da sociedade que já não se verifica, o que põe em causa, também, a alegada possibilidade de o apelado poder continuar a participar na empresa.
Por outro lado, quando o tribunal recorrido escreve que “o registo do incumprimento do Requerente na referida Central de Responsabilidades não atinge apenas a sociedade “MA.....SA.”, mas também o Requerente a nível profissional, não só porque o seu trabalho depende do regular funcionamento e atividade da sociedade, mas também porque corre o risco de ser afastado do cargo de administrador …”, não pretende significar que o exercício da atividade do apelado na sociedade é o único sustento dele, mas que só pode exercer a atividade de administrador único da sociedade se esta funcionar regularmente.
Feitas estas observações, aquilatemos se, perante a factualidade que resultou indiciariamente provada, se pode concluir pela verificação do alegado periculum in mora, como entendeu o tribunal recorrido, adiantando-se que se perfilha tal entendimento.
Conforme referido supra, o procedimento cautelar comum visa obter uma decisão que decrete uma providência, conservatória ou antecipatória, que assegure ao requerente que o seu direito não será lesado, de forma grave e dificilmente reparável, enquanto não for proferida uma sentença definitiva a reconhecer esse mesmo direito.
É ao requerente da providência que cumpre alegar factos, objetivos [13], que permitam concluir que existe um perigo de lesão grave e dificilmente reparável.
Como escrevem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, no CPC Anotado, Vol. 2º, 4ª ed., págs. 7/8, “Dadas a provisoriedade da medida cautelar e a sua instrumentalidade perante a ação de que é dependência, bastar-lhe-á fazer prova sumária da existência do direito ameaçado …; mas já não basta a prova sumária no que respeita ao periculum in mora, que deve revelar-se excessivo: a gravidade e a difícil reparabilidade da lesão receada apontam para um excesso de risco relativamente àquele que é inerente à pendência de qualquer ação; trata-se de um risco que não seria razoável exigir que fosse suportado pelo titular do direito”.
Marco Filipe Carvalho Gonçalves, em Providências Cautelares, 2017, 3ª ed., págs. 196/198, escrevem que “O periculum in mora, enquanto “paliativo das demoras do processo”, constitui um requisito processual de natureza constitutiva da providência cautelar concretamente requerida – já que a falta desse requisito obsta, por via de regra, ao decretamento efetivo da providência – e traduz-se no prejuízo que pode advir para o requerente em consequência da demora na tutela definitiva do seu direito. Dito de outra forma, o periculum in mora refere-se ao perigo de retardamento da tutela jurisdicional, procurando-se evitar que, por causa do tempo necessário para o julgamento definitivo do mérito da causa, o direito que se pretende fazer valer em juízo acabe por ficar irremediavelmente comprometido. Caberá assim ao requerente “provar que não pode aguardar a decisão do processo principal sem sofrer um prejuízo de consequências graves e irreparáveis”.
Abrantes Geraldes, em Temas da Reforma do Processo Civil, Vol. III, Procedimento Cautelar Comum, 3ª ed.,  pág. 99, sublinha que “não é toda e qualquer consequência que previsivelmente ocorra antes de uma decisão definitiva que justifica o decretamento de uma medida provisória com reflexos imediatos na esfera jurídica da contraparte. Só lesões graves e dificilmente reparáveis têm essa virtualidade de permitir ao tribunal, mediante solicitação do interessado, a tomada de uma decisão que o coloque a coberto da previsível lesão”.
A proteção cautelar em causa abarca lesões na esfera imaterial ou moral do titular do direito, por natureza irreparáveis ou de difícil reparação, bem como as que se repercutem na sua esfera material, mas sendo estas, em regra, passíveis de ressarcimento através de reconstituição natural ou de indemnização, o respetivo critério de aferição é mais restrito (Abrantes Geraldes, na ob. cit., pág. 101).
Volvendo ao caso em apreço, resulta da factualidade indiciariamente provada que:
- o Requerido comunicou à Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal que o Requerente se encontrava em incumprimento, sendo o valor “em dívida” de € 31.200,69 e a data da entrada em incumprimento de 25/08/2016, e manteve esse reporte de incumprimento mesmo depois do Requerente ter provisionado a conta no Requerido com a quantia de €11.792,16, por conta dos créditos reclamados por carta de 22.8.2022;
- O Requerente é administrador único da sociedade “MA.....SA.”, a qual tem conta bancária aberta no Bankinter;
- A sociedade “MA.....SA.” adquiriu o direito de distribuição dos produtos sob a marca “ALDO” por acordo formalizado em 13 de Outubro de 2023.
- O Bankinter recusou a abertura de nova conta bancária e requisição de cheques pela aludida sociedade devido ao incumprimento comunicado pelo Requerido à Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal relativamente ao Requerente.
- Alguns acionistas da sociedade “MA.....SA.” transmitiram ao Requerente que, caso se mantivesse a aludida comunicação de incumprimento, não poderia manter-se no cargo de Administrador da sociedade.
Desta factualidade resulta que a manutenção (indevida) da situação de incumprimento do apelado comunicada pelo apelante à Central de Responsabilidades de Crédito teve, desde logo a consequência do Bankinter ter recusado a abertura de nova conta bancária e requisição de cheques pela sociedade MA …., SA, uma vez que o apelado é administrador único da mesma.
Ou seja, sendo o apelado administrador único da mesma é ele que gere a sociedade (art. 406º do CCom.), e a vincula perante terceiros (art. 408º do CCom.), estando obrigado a especiais deveres de lealdade e cuidado (art. 64º do CCom.), sendo, portanto, a figura nuclear da sociedade,  como referiu o tribunal recorrido.
E sendo o administrador único a figura nuclear da sociedade, os incidentes, nomeadamente, bancários que o afetam, repercutem-se nesta, como resultou demonstrado.
É certo que não resultou demonstrada a recusa de crédito à mencionada sociedade, nem que lhe foi negada a abertura de conta junto do Millennium BCP, conforme o apelado havia alegado, mas a recusa de abertura de nova conta e de emissão de cheques junto da entidade bancária com quem a sociedade já trabalhava com o fundamento referido faz antever a possibilidade de recusa de concessão de crédito e de acesso a produtos bancários essenciais ao desenvolvimento da atividade da sociedade, quer pelo Bankinter, quer por outras entidades bancárias com o mesmo fundamento, dificilmente se configurando, hoje em dia, que tal atividade se desenvolva sem recurso a tais produtos bancários, para mais quando a sociedade, por acordo formalizado em 13.10.2023, adquiriu o direito de distribuição dos produtos sob a marca “ALDO”, a implicar expansão da sua atividade.
É certo que esta situação constitui um prejuízo da própria sociedade, mas, ao contrário do alegado pelo apelante, também se repercute, prejudicialmente, a nível profissional no requerente, uma vez que, na sequência do registo do incumprimento na Central de Responsabilidades de Crédito e da recusa do Bankinter, corre o risco de ser afastado do referido cargo de administrador, com os inerentes prejuízos daí resultantes a nível profissional (com eventual responsabilização pelos danos causados) e do seu bom nome, o que consubstancia uma lesão grave e de difícil reparação, a implicar uma decisão cautelar.
Por outro lado, e como referiu o tribunal recorrido parafraseando acórdão desta Relação, a manutenção da comunicação feita à Central de Responsabilidades de Crédito pode atingir maior gravidade com o passar do tempo, mostrando-se justificado o receio na não reparação integral dos danos que daí possam advir, quer para o Requerente, quer para a sociedade que administra.
Em conclusão, verifica-se o requisito do periculum in mora.
3. Por último, o apelante sustenta que o prejuízo que advém do decretamento da providência (tendo em conta a função da Central de Responsabilidades de Crédito), atenta a inexistência de perigo de lesão do “direito” do Recorrido, afigura-se superior ao dano que com o decretamento da providência se pretende evitar.
Dispõe o art. 368º, nº 2, do CPC, que “A providência pode, não obstante, ser recusada pelo tribunal quando o prejuízo dela resultante para o requerido exceda consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar.”.
O que se equaciona no mencionado preceito é o prejuízo que pode advir para o requerido com o decretamento da providência, tendo a lei inserido um “travão a decisões formalmente adequadas mas substancialmente injustas”, estabelecendo um requisito negativo, que consagra um critério de proporcionalidade (Abrantes Geraldes, na ob. cit., págs. 242/243).
Ora, tal como entendeu o tribunal recorrido, na situação em apreço, o decretamento da providência não tem qualquer repercussão negativa para o apelante, ao contrário do que acontece para o apelado.
Em conclusão, improcede a apelação na totalidade, devendo manter-se a sentença recorrida.
As custas da apelação são a cargo do apelante, por ter ficado vencido (art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC).

DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em:
a) julgar improcedente a apelação, mantendo-se, em consequência, a decisão recorrida;
b) rejeitar a junção de documentos com as alegações, condenando-se o apelante nas custas do incidente a que deu causa, fixando-se a taxa de justiça no mínimo.  
Custas pelo apelante, nos termos referidos.
*
Lisboa, 2024.06.04
Cristina Coelho
Alexandra Rocha
Micaela de Sousa
_______________________________________________________
[1] O qual, por despacho de 15.11.2023, se declarou territorialmente incompetente para conhecer da ação e ordenou a remessa dos autos ao Juízo Local Cível de Lisboa.
[2] Conforme síntese da sentença recorrida.
[3] Regulado no art. 369º do CPC, que, no caso, não tem aplicação.
[4] As medidas conservatórias “visam acautelar o efeito útil da ação principal, assegurando a permanência da situação existente quando se despoletou o litígio ou aquando da verificação da situação de periculum in mora”, nos dizeres de Abrantes Geraldes, na ob. cit., pág. 107, e nas medidas antecipatórias, o tribunal, atenta a urgência da situação carecida de tutela, antecipa a realização do direito que previsivelmente será reconhecido na ação principal e que será objeto de execução (Abrantes Geraldes, na ob. cit., pág. 109).
[5] Ou a negar a sua existência, se houver inversão do contencioso e o requerido intentar a respetiva ação nos termos do art. 371º do CPC.
[6] O que contrariaria obrigação legal.
[7] Em termos em grande parte idênticos ao estabelecido para o PER, sendo considerado como “o PER dos não empresários” – cfr. Ac. do STJ de 19.3.2019, P. 4231/17.6T8BRR.L1.S1 (Pinto de Almeida), acessível no site do STJ, caderno “Processo Especial de Revitalização (PER) e Processo Especial para Acordo de Pagamento (PEAP) na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça”.
[8] Com interesse sobre lugar paralelo no PER, consultar Carvalho Fernandes e João Labareda, em CIRE Anotado, 3ª ed., pág. 150, em anotação ao art. 17º-D, nº 1.
[9] Aplicável ex vi do disposto no art. 222º-F, nº 10, e que estipula que “Salvo disposição expressa do plano de insolvência em sentido diverso, a moratória ou o perdão previstos no plano ficam sem efeito: a) Quanto a crédito relativamente ao qual o devedor se constitua em mora, se a prestação, acrescida dos juros moratórios, não for cumprida no prazo de 15 dias após interpelação escrita do credor”.
[10] Criticando, precisamente, esta opção do legislador, ver Carvalho Fernandes e João Labareda, na ob. cit., págs. 795/796.
[11] Como resulta da carta a que alude o ponto 18 da fundamentação de facto.
[12] Sendo certo que do Plano de Pagamento e respetivo Anexo I, apresentados pelo Requerente no PEAP, nos termos e para efeitos do disposto no art. 222º-F, nº 2, do CIRE (conforme certidão do referido processo junta com o RI), resulta alegado que a insolvência da Brito Horizontes, SGPS, S.A. e da Calçados To You, S.A. foram consideradas fortuitas.
[13] Como refere Abrantes Geraldes, na ob. cit., pág. 103, “Não bastam, pois, simples dúvidas, conjeturas ou receios meramente subjetivos ou precipitados assentes numa apreciação ligeira da realidade, …”.