Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3/22.4JAFUN-A.L1-9
Relator: FRANCISCO SOUSA PEREIRA
Descritores: APREENSÃO DE SALDO BANCÁRIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/24/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: I-Nos termos do disposto no aludido artigo 178.º, n.° 1, do Código de Processo Penal, “São apreendidos (...) vantagens relacionadas com a prática de um facto ilícito típico, e bem assim todos os objetos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros suscetíveis de servir a prova”. A apreensão está concebida no Código de Processo Penal como uma medida cautelar que tem como escopo facilitar a instrução do processo, permitir a indisponibilidade  da coisa ou simultaneamente os dois fins, protegendo, portanto, a realização do direito criminal;
II-A apreensão enquanto meio de obtenção da prova serve a finalidade processual penal da descoberta da verdade e enquanto garantia processual da perda de vantagens, tem em vista a finalidade processual penal de realização de justiça. Trata-se de um importante instrumento de prevenção do perigo de aumento ou de reiteração da criminalidade, por via da reconstituição da esfera patrimonial do agente do crime, ao estágio anterior à prática do mesmo e como se este nunca tivesse sido praticado;
III- A apreensão distingue-se, portanto, do arresto, pelos seus requisitos formais e, sobretudo pelo seu âmbito de aplicação. Enquanto a apreensão atinge o património contaminado, decorrente da prática do facto ilícito típico, o arresto só atinge o património licito do arguido, ou seja, em vez de atingir ativos suspeitos de estarem relacionados com o crime, interfere com o património licito do arguido, justificando-se por isso maior cuidado na sua aplicação.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes da 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I RELATÓRIO:
No âmbito do Processo n.º 3/22.4JAFUN, do Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, Juízo de Instrução Criminal do Funchal, por despacho proferido no dia 07.1.2022, foi decidido indeferir a apreensão de saldo bancário requerida pelo Ministério Público.
Inconformado com tal decisão, dela veio o Ministério Público interpor o presente recurso, que, na sua motivação, após dedução das alegações, culmina com as seguintes conclusões e petitório (transcrição):
1. Investigam-se no presente inquérito factos suscetíveis de integrar a prática, do crime de burla qualificada, previsto e punido pelo artigo 218.°, n.ºs 1 e 2, alínea a) ex vi artigo 217.º, n.° 1 por referência ao artigo 202.°, alínea b), do Código Penal.
2. Considera a Mma. Juiz a quo que “(...) constando já dos autos conta documentação comprovativa da transferência da identificação do destinatário e até do modo de execução do engano a apreensão da conta em causa (...), o meio processual adequado é o previsto no art. 228.º do Código de Processo Penal e não o invocado” (a apreensão).
3. Entendendo que existiam nos autos indícios suficientes de que desconhecidos utilizando o email ………………@mail.com, determinaram a transferência do montante de € 118.629,04 (cento e dezoito mil, seiscentos e vinte e nove euros e quatro cêntimos) para conta do Banco ………………… (identificada nos autos) e se terão astuciosamente terão astuciosamente apropriado da mencionada quantia, e por estarem em causa bens fungíveis que facilmente podem ser dissipados, o Ministério Público requereu nos termos do disposto nos artigos 178.°, n.° 1, 181.°, n.° 1 e 268.°, n.° 1, alínea c), todos do Código de Processo Penal, a apreensão do saldo bancário da referida conta do Banco ……………, até ao limite de € 118.629,04 ( cento e dezoito mil, seiscentos e vinte e nove euros e quatro cêntimos) correspondente às transferências efetuadas pelo ofendido XXXXXXXXXXXXXXXXXX.
4. A apreensão é um meio de obtenção de prova, mas pode simultaneamente funcionar como meio de obtenção e conservação de prova e de segurança dos bens e para assegurar o cumprimento de certos efeitos de direito substantivo que estão associados à prática do ilícito penal, nomeadamente, a de garantir a execução ou a perda desses valores a favor do Estado.
5. É isso que, por outras palavras, afirma o Prof. Germano Marques da Silva quando refere que a apreensão não é apenas um meio de obtenção e conservação de provas, ma também de segurança de bens para garantir a execução, embora na grande maioria dos casos esses objetos sirvam também como meios de prova” (cfr. in Curso de Processo Penal, Tomo II, 4.ª Edição, a pag.242).
6. O dinheiro é coisa fungível e, por isso, suscetível de uma rápida dissipação.
7. Resultava do inquérito na data em que se promoveu fosse determinada a apreensão do saldo bancário, que o montante transferido ainda se encontrava na conta para onde foi creditado (cfr. Fls. 30).
8. Nos termos do disposto no aludido artigo 178.º, n.° 1, do Código de Processo Penal, “São apreendidos (...) vantagens relacionadas com a prática de um facto ilícito típico, e bem assim todos os objetos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros suscetíveis de servir a prova
9. A apreensão está concebida no Código de Processo Penal como uma medida cautelar que tem como escopo facilitar a instrução do processo, permitir a indisponibilidade da coisa ou simultaneamente os dois fins, protegendo, portanto, a realização do direito criminal,
10. A apreensão enquanto meio de obtenção da prova serve a finalidade processual penal da descoberta da verdade e a apreensão enquanto garantia processual da perda de vantagens tem em vista a finalidade processual penal de realização de justiça.
11. Trata-se de um importante instrumento de prevenção do perigo de aumento ou de reiteração da criminalidade, por via da reconstituição da esfera patrimonial do agente do crime, ao estágio anterior à prática do mesmo e como se este nunca tivesse sido praticado,
12. É defendido pela jurisprudência que o instituto processual da apreensão tutela não só a necessidade de recolha e conservação de prova para efeitos de instrução do processo, mas tem igualmente aplicação nas situações em que importa, única e exclusivamente, a segurança dos bens apreendidos.
13. De acordo com o disposto no artigo 178.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, devem ser apreendidos os bens que constituam produto, lucro, preço ou recompensa de um crime, o que, neste caso coreto, se afigura ser constituído pelo saldo bancário cuja apreensão se promoveu.
14. Havendo razões para acreditar que determinado ativo foi obtido com a prática de um crime, deve logo proceder-se à sua apreensão cautelar, razão pela qual no presente caso é pedida a apreensão do saldo bancário, pois existem indícios que o montante depositado da conta bancária, de cujo saldo se promoveu a apreensão, pode derivar da prática de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelo artigo 218.º, n.ºs 1 e 2, alínea a) ex vi artigo 217.º, n.° 1 por referência ao artigo 202.º, alínea b), do Código Penal, em virtude do montante para ali transferido ter sido obtido na sequência de engano astuciosamente provocado sobre o ofendido.
15. Ao contrário da apreensão, em que está em causa a própria coisa aprendida, o arresto, enquanto mera garantia de um determinado quantum, permite a substituição dos bens por outros de igual valor.
16. Com o arresto preventivo, permite-se que o ‘património licito’ do arguido seja utilizado para garantir aquilo que não é possível garantir com o ‘património ilícito’. Uma vez que não se consiga apreender as próprias coisas ou objetos que constituam produto, lucro, preço ou recompensa de um crime, o Ministério Publico promove o arresto preventivo de bens equivalentes, seja qual for a sua origem.
17. Ou seja, o arresto preventivo procura salvaguardar a possibilidade de executar o ‘património licito’ do arguido, pois para o património comprovadamente resultante do crime já existe a apreensão.
18. Nos temos do disposto no artigo 228.°, n.º 1, 1.ª Parte, do Código de Processo Penal, “Para garantia das quantias referidas no artigo anterior [artigo 227.º – garantir o pagamento da pena pecuniária, das custas do processo ou de qualquer outra divida para com o Estado
relacionada com o crime, o pedido de indemnização civil e outras obrigações civis derivadas daquele e, a perda do valor dos instrumentos, produtos e vantagens da prática do facto ilícito típico], a requerimento do Ministério Público ou do lesado, pode o juiz decretar o arresto, nos termos da lei do processo civil”, sendo que, em fase de inquérito, a legitimidade para apresentação de tal requerimento cabe apenas 4º Ministério Público (ex vi artigo 194.°, n.’ I, do Código de Processo Penal).
19. O arresto a que se refere o artigo 228.° do Código Penal, enquanto medida de garantia patrimonial tem pressupostos de aplicação mais exigentes do que a apreensão, pois é a medida de garantia patrimonial mais gravosa, que gera um vinculo de indisponibilidade mais ou menos extenso sobre o património do visado.
20. Na verdade, não basta o preenchimento dos pressupostos da Lei Civil para que seja decretado o aresto, exigindo-se ainda no âmbito do artigo 228.° do Código de Processo Penal que o requerido alegue e demonstre a existência de indícios suficientes da prática de um crime pelo requerido, gerador de responsabilidade, cujo crédito deva ser assegurado através deste procedimento, porquanto apenas esta conclusão é compatível com a finalidade processual penal do arresto preventivo.
21. Assim, o decretamento da referida medida de garantia patrimonial depende cumulativamente da probabilidade da existência do crédito e do justo receio de que o devedor inutilize, oculte ou se desfaça dos seus bens, que em princípio integram a garantia do credor e têm como finalidade processual garantir o pagamento da pena pecuniária, das custas do processo ou do pagamento de qualquer dívida, indemnização ou obrigação civil derivadas do crime, sendo aplicável no decurso do processo pelo juiz desde que se verifiquem os pressupostos gerais de aplicação das medidas de coação e de garantia patrimonial, e os  pressupostos materiais que estão subjacentes á aplicação de tais medidas em concreto.
22. No que respeita ao justo reveio, é essencial que exista um receio concretamente justificado, não bastando o receio subjetivo, fundado em simples conjeturas.
23. O presente inquérito encontra-se num estado incipiente da investigação, ainda com poucos elementos probatórios, importando ainda proceder a diversas diligências de recolha de prova, não sendo possível considerar a nosso ver, reunidos os pressupostos de que depende o deferimento do arresto preventivo.
24. Para fundamentar o arresto o Ministério Publico deve invocar factos certos reais e  concretos. Nos autos não existem arguidos constituídos. Sendo certo que se o sério risco para o fim ou a eficácia do arresto, podem ser suficientes para dispensar a prévia constituição do suspeito como arguido, o perigo ia frustração das finalidades do aresto tem que resultar dos  factos indiciados e alegados e deve ser ainda refletido no despacho que decretar o arresto. Ora, dos elementos existentes nos autos não resultam, pelo menos com a suficiência exigida, tais factos.
25. Mas mais importante que a constituição como arguido do visado, será o seu interrogatório/inquirição, ainda que posterior, para que seja cumprida a exigência mínima de contraditório/defesa. Sucede que nos autos, para além da informação quanto à titularidade da referida conta é muitíssimo escassa qualquer outra informação relativamente à pessoa do  visado. E tal não permite desde logo assegurar o contraditório e ao mesmo tempo garantir os valores fundamentais de celeridade e eficácia da justiça.
26. A apreensão distingue-se, portanto, do arresto, pelos seus requisitos formais e, sobretudo pelo seu âmbito de aplicação. Enquanto a apreensão atinge o património contaminado, decorrente da prática do facto ilícito típico, o arresto só atinge o património licito do arguido, ou seja, em vez de atingir ativos suspeitos de estarem relacionados com o crime, interfere com o património licito do arguido, justificando-se por isso maior cuidado na sua aplicação.
27. Apesar da proximidade dos dois mecanismos, consideramos que a apreensão e o aresto são realidades distintas e que visam igualmente objetivos diversos. O Ministério Publico e o Juiz não podem escolher um destes instrumentos, segundo incontroláveis juízos de mera oportunidade. Ao aplicar o direito à situação sub judicio (artigo 9.º do Código de Processo Penal) as instâncias forais de controlo podem apreender, impor uma caução ou arrestar, atenta a lei e as circunstâncias concretas do caso.
28. No momento em que se promoveu a preensão do saldo bancário, era manifesto que não se encontravam preenchidos os requisitos legais do arresto preventivo descritos no artigo 228.° do Código de Processo Penal, importando ainda recolher elementos probatórios adicionais da prática do crime de burla qualificada, previsto e punido pelo artigo 218.º, n.ºs 1 e 2, alínea a) ex vi artigo 217.º, n.º 1 por referência ao artigo 202.º, alínea b), do Código Penal e da sua autoria, razão pela qual se promoveu a apreensão do saldo bancário e não o seu arresto preventivo nos termos do disposto no artigo 228.° do Código Penal.
Temos em que, deverá ser concedido provimento ao recurso interposto e, consequentemente, ser a decisão recorrida revogada e substituída por outra que determine a apreensão do saldo bancário nos termos em que havia sido promovida.”
Neste Tribunal da Relação a Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer em que, acompanhando a argumentação do recurso, aduziu o seu entendimento de que este deve ser julgado procedente.
Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, cumprindo conhecer e decidir.
II ÂMBITO OBJETIVO DO RECURSO (QUESTÕES A DECIDIR):
É hoje pacífico o entendimento doutrinário e jurisprudencial de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí inventariadas (elencadas/sumariadas) as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no art. 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (ulteriormente designado, abreviadamente,
CPP)1 2.
Assim sendo, no caso vertente enuncia-se a seguinte questão que importa decidir:
A – Saber se estão verificados os requisitos legais para que possa ser decretada a apreensão requerida pelo Ministério público.
III APRECIAÇÃO:
Dada a sua relevância para o enquadramento e decisão da questão suscitada pelo recurso, importa verter aqui o despacho recorrido na íntegra:
“O Ministério Público requereu que, ao abrigo do disposto no art. 181.°, n.° 1 do Código de Processo Penal se proceda à apreensão de € 118.629,04 na Conta n.º PT 50003300000000583637950 do Banco Millenium BCP.
Alega que tal montante foi transferido da conta do Centro Social e Paroquial de São Bento da Ribeira Brava mediante engano produzido por meio informático e pode ser facilmente dissipado.
Estabelece o art. 181.°, n.° l do Código de Processo Penal que “o juiz procede à apreensão em bancos ou outras instituições de crédito de documentos, títulos, valores, quantias e quaisquer outros objectos, mesmo que em cofres individuais, quando tiver fundadas razões para crer que eles estão relacionados com um crime e se revelarão de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, mesmo que não pertençam ao arguido ou não estejam em seu nome’.
No caso dos autos investiga-se a prática de um crime de burla, p. e p. pelos arts. 217.°, n.º 1 e 218.º, n.º 2, alínea a) do Código Penal resultando dos elementos probatórios já recolhidos, designadamente do teor conjugado do depoimento do denunciante e dos documentos juntos que através da utilização abusiva de email o referido Centro foi induzido a transferência para conta pertencente ao suspeito.
Ora, constando já dos autos conta documentação comprovativa da transferência da identificação do destinatário e até do modo de execução do engano a apreensão da conta em causa não é essencial à prova, mas antes a acautelar os direitos do ofendido como aliás resulta da alegação do Ministério Público que o seu propósito é evitar a dissipação.
Para esse fim, o meio processual adequado é o previsto no art. 228. º do Código de Processo Penal e não o invocado, o qual está de resto gizado para os casos em que haja que proceder a busca em entidade bancária – presidida por juiz – e se mostre necessária a salvaguarda da prova.
Assim sendo, e considerando ainda que no requerimento do Ministério Público não foram alegados os factos integradores de todos os pressupostos específicos do arresto, indefiro a requerida apreensão.”
Vejamos então.
O art. 181.°, n.° 1, do CPP dispõe que: “O juiz procede à apreensão em bancos ou outras instituições de crédito de documentos, títulos, valores, quantias e quaisquer outros objectos, mesmo que em cofres individuais, quando tiver fundadas razões para crer que eles estão relacionados com um crime e se revelarão de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, mesmo que não pertençam ao arguido ou não estejam depositados em seu nome.”
Em comentário a esta norma refere João Conde Correia que “Tal como em todos os restantes casos (supra § 4 da anotação ao art. 178.º), a apreensão em estabelecimento bancário tanto serve finalidades exclusivamente probatórias como finalidades exclusivamente conservatórias. Como refere o ac. TC 294/08 «a apreensão é também um meio de segurança dos bens que tenham servido ou estivessem destinados a servir a prática do crime, ou que constituam o seu produto, lucro, preço ou recompensa, como forma de garantir a execução da sentença penal, o que também justifica a conservação dos objetos à ordem do processo até à decisão final» (no mesmo sentido, JOÃO CONDE CORREIA, 2015, pp. 56 e ss. E MANUEL DA COSTA ANDRADE/MARIA JOÃO ANTUNES, 2017, p. 360). Interpretação que saiu reforçada com as alterações introduzidas no art. 178.°/1, pela L 30/2017, de 30.05, que alinhou a terminologia penal com a terminologia processual. Ficou agora mais claro que a apreensão pode servir estas as duas finalidades independentes ou mesmo apenas uma delas.”3
Na mesma linha, como se dá nota na motivação do recurso, sustenta o Prof. Germano Marques da Silva4 que “a apreensão não é apenas um meio de obtenção e conservação de provas, mas também de segurança de bens para garantir a execução, embora na grande maioria dos casos esses objectos sirvam também como meios de prova.”
Também a jurisprudência tem sufragado idêntico entendimento, como por ex. o Ac. RE de 01-07-20085 em que se consignou: “No sentido da sua caracterização como meio de prova aponta o facto de o artigo 181°, n.° 1, permitir a apreensão de valores depositados em estabelecimentos bancários, não apenas quando se encontrem relacionados com o crime, mas também cumulativamente quando se revelem de «grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova», o que faz supor que as quantias apreendidas podem apresentar um valor probatório específico que deva ser tido em consideração na fase de julgamento.
Por outro lado, a apreensão é também um meio de segurança dos bens que tenham servido ou estivessem destinados a servir a prática do crime, ou que constituam o seu produto, lucro, preço ou recompensa, como forma de garantir a execução da sentença penal, o que também justifica a conservação dos objectos ou direitos apreendidos à ordem do processo até à decisão final.”
Entendemos que esta interpretação do n.º 1 do art. 181.º do CPP é a correcta.
Efectivamente, essa é a interpretação que melhor se harmoniza com o disposto no art.  178.°, n.° 1, do CPP, que contém a regra geral no que concerne ao objeto e pressupostos da apreensão – “São apreendidos os instrumentos, produtos ou vantagens relacionados com a prática de um facto ilícito típico, e bem assim todos os animais, as coisas e os objetos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros suscetíveis de servir a prova.”
E é ainda acolhida pela letra da lei, que não restringe – no que ao caso importa – a admissibilidade da apreensão de títulos, valores e quantias à verificação da sua relevância
para a prova mas também quando revestir grande interesse para a “descoberta da verdade”, como assinala João Conde Correia na obra citada (a pág.s 686), “incluindo a verdade patrimonial”.
Por isso que concordamos com o entendimento perfilhado pelo Ministério Público nas conclusões do recurso quando diz que havendo razões para acreditar que determinado ativo foi obtido com a prática de um crime, deve logo – e posto que se reconheça o seu grande interessa para a descoberta da verdade ou para a prova - proceder-se à sua apreensão cautelar.
Até porque, a não ser assim e a sufragar-se o entendimento propugnado no despacho recorrido, ocorreriam necessariamente situações em que pelo menos durante um certo hiato de tempo nem estariam reunidos os requisitos da mencionada apreensão nem os pressupostos do arresto regulado no art. 228.º do CPP pois, como bem refere o Ministério Público, aqui exige-se por norma a prova do fundado receio de perda da garantia patrimonial o que, também por via de regra, é dificilmente alcançável numa fase incipiente do processo (como sucede na situação sub judice).
No caso em análise, estão em investigação factos suscetíveis de integrar a prática, do crime de burla qualificada, previsto e punido pelo artigo 218.º, n.ºs 1 e 2, alínea a) ex vi do artigo 217.º, n.° 1 por referência ao artigo 202.º, alínea b), do Código Penal - existindo nos autos indícios de que desconhecidos utilizando o email identificado determinaram a transferência do montante de € 118.629,04 para conta do Banco XXXXXXXXXXX nos autos identificada e ter-se-ão astuciosamente apropriado da mencionada quantia -, sendo manifesto o interesse da apreensão requerida (porquanto estão em causa bens fungíveis que facilmente se podem dissipar), para acautelar o cumprimento de certos efeitos de direito substantivo que estão associados à prática do ilícito penal, nomeadamente, garantir as (eventuais) execução ou perda desses valores a favor do Estado.
Concluindo, deve ser provido o recurso.

IV - DISPOSITIVO:
Pelo exposto, acordam os Juízes da 9.ª Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Lisboa em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, revoga-se o despacho recorrido e determina-se a sua substituição por outro que decrete a apreensão do saldo bancário da conta do Banco XXXXXXXXXX com o IBAN YYYYYYYYYYYYYYYYYYY, beneficiária da transferência em causa, titulada por AA até ao limite de € 118.629,04 (cento e dezoito mil, seiscentos e vinte e nove euros e quatro cêntimos).
Sem custas.
Notifique (art. 425.°, n.° 6, do CPP).
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Lisboa, 24 de Fevereiro de 2022,
Francisco de Sousa Pereira
Lídia Renata Goulart Whytton da Terra
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1 Cf., neste sentido e a título de exemplo, Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, 3.` Edição Actualizada, UCE, 2009, anot. 3 ao art. 402.º, págs. 1027/1028; António Henriques Gaspar e outros, Código de Processo Penal Comentado, 3.` Edição Revista, Almedina, 2021, anot. 3 ao art. 403.º, pág. 1265.
2 Acórdão de fixação de jurisprudência n.° 7/95, DR-I, de 28.12.1995.
3 Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, 3.` Edição, Tomo II, Almedina, pág.s 684/685
4 Curso de Processo Penal II, 4.` Edição, pag. 242
5 Proc. 1548/08-1; no mesmo sentido v., para além do Ac. da RL de 25.10.2017 indicado na motivação do recurso, Ac. RL de 23.10.2007, Proc. 7123/2007-5, e Ac. RL de 22.01.2020, Proc. 77/10.0TELSB-I.LL-3 onde se expendeu que “Mesmo que cessada a sua utilidade probatória, ainda assim, a apreensão terá de manter-se se for de manter, indiciária ou comprovadamente (consoante a fase do processo), a qualificação dos objectos, bens ou valores apreendidos como ilícitos, na acepção de usados para a prática de crimes ou provenientes do seu cometimento.” todos in www.dgsi.pt