Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
11705/21.2T8LSB.L1-4
Relator: PAULA POTT
Descritores: ACORDO DE EMPRESA
RETRIBUIÇÃO
RETROACTIVIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Nulidade da sentença por omissão de pronúncia – Impugnação da matéria de facto – Cláusula de retroactividade inserida em Acordo de Empresa – Prestações de natureza pecuniária – Interpretação da cláusula do Acordo de Empresa – Artigos 9.º e 11.º do Código Civil – Artigo 478.º n.º 1 – c) do Código do Trabalho – Artigo 615. º do Código de Processo Civil.
(sumário da autoria da Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Recorrente/autor
SNM – Sindicato Nacional dos Motoristas, titular do número único de identificação fiscal e pessoa colectiva ..., com delegação na Avenida...
Recorrida/ré
Carris – Companhia Carris de Ferro de Lisboa S.A., titular do número único de identificação fiscal e pessoa colectiva ..., com sede na Rua...

Acordam em conferência, na 4.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
Sentença recorrida
1. Por sentença de 12.2.2024 (referência citius 431042109), o 6.º Juízo do Trabalho de Lisboa, Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, (doravante também Tribunal de primeira instância, Tribunal recorrido ou Tribunal a quo), proferiu a seguinte decisão:
“IV- Dispositivo:
Nestes termos, tudo visto e ponderado, julga-se a acção totalmente improcedente e, consequentemente, absolve-se a Ré de todos os pedidos contra si deduzidos.
Custas pelo Autor.”
Alegações do recorrente
2. Inconformado com a sentença mencionada no parágrafo anterior, o recorrente dela veio interpor o presente recurso (cf. referência citius 39031192 de 9.4.2024), formulando o seguinte pedido:
“(...) deverá ser anulada a douta decisão proferida, devendo o Tribunal conhecer sobre o conceito de tempo de trabalho aplicável aos associados do Autor, trabalhadores da Ré, a exercer as funções de motoristas de transportes públicos e guarda-freios, nomeadamente ordenando que a Ré fixe aos trabalhadores uma estação, onde possam efetivamente fardar-se e desfardar-se, contando tal ato como tempo de trabalho – como conta relativamente a outras categorias profissionais dentro da mesma empresa – bem como deve contar como tempo de trabalho o período em que daí se deslocam até ao local onde iniciam o serviço, e vice-versa, após a realização do serviço.
Devendo ainda o Tribunal ad quem determinar a retroatividade das rubricas de expressão pecuniárias constantes no AE aplicável, observando assim o disposto na Cláusula 2.ª do Acordo de Empresa.”
3. Nas suas alegações vertidas nas conclusões, o recorrente impugna a decisão recorrida com base nos argumentos que o Tribunal a seguir sintetiza:
Nulidade da sentença
• A sentença recorrida é nula por omissão de pronúncia/inobservância do disposto no artigo 608.º n.º 2 do Código de Processo Civil (CPC);
• Isto porque o Tribunal a quo não se pronunciou sobre todas as questões colocadas pelo autor/recorrente, em particular, quanto a saber se o acto de fardar e desfardar é ou não considerado tempo de trabalho, se deve ser incluído no horário de trabalho normal ou suplementar e qual o local exacto onde o trabalhador deve proceder ao acto de fardar e desfardar;
• O que constitui uma nulidade prevista no artigo 615.º n.º 1 – d) do CPC;
Impugnação da matéria de facto
• Os factos provados R, S, T e U devem ser incluídos entre os factos não provados;
• Os factos não provados 1 a 11 devem ser incluídos entre os factos provados;
Motivos da discordância: as regras gerais da experiência conjugadas com a apreciação dos depoimentos das testemunhas AA, BB e CC, cujos trechos o recorrente transcreve na motivação do recurso;
• Deve ser considerado provado que a Ré sempre retroagiu as atualizações salarias a 1 de Janeiro, como consta do pedido;
Motivos da discordância: a ré não impugnou essa alegação.
Erro de direito
• O Tribunal a quo incorreu em erro na interpretação e aplicação da cláusula 2.ª n.ºs 3 e 4 do Acordo de Empresa de 2018 celebrado entre as partes, por não ter julgado que a mesma abrange a eficácia retroactiva do pagamento dos valores dos subsídios de refeição, de falhas e de transporte, previstos no Acordo de Empresa de 2018.
Contra-alegações da recorrida
4. A recorrida contra-alegou (cf. referência citius 39310901 de 9.5.2024), pugnando pela improcedência do recurso e defendendo, em síntese, que:
• A sentença recorrida, na página 2, identificou o objecto do litígio e as questões a decidir de acordo com o pedido formulado pelo autor;
• Nas páginas 23, 25 e 26 da sentença recorrida, o Tribunal a quo pronunciou-se sobre as questões relativamente às quais o recorrente alega, indevidamente, ter existido omissão de pronúncia, nomeadamente, tendo aplicado a noção de autoridade de caso julgado;
• Pelo que não existe a invocada nulidade da sentença;
• O recorrente, nas alegações de recurso alterou o pedido formulado na petição inicial, invocando argumentos que não invocou ao propor a acção;
• Dos depoimentos das testemunhas, indicados pelo recorrente para fundamentar a discordância da decisão sobre a matéria de facto, não se extraem as pretendidas alterações.
Parecer do Ministério Público
5. O digno magistrado do Ministério Público junto ao Tribunal da Relação, emitiu parecer (cf. referência citius 20548334 de 2.10.2023), ao abrigo do disposto no artigo 87.º n.º 3 do Código de Processo do Trabalho (CPT), pugnado pela improcedência do recurso e defendendo, em síntese, que:
• Não existe a alegada nulidade da sentença uma vez que o Tribunal a quo se pronunciou sobre todas as questões suscitadas;
• Não existe o alegado erro na apreciação da matéria de facto;
• Não merece censura a sentença recorrida, que deve manter-se inalterada.
Delimitação do âmbito do recurso
6. Têm relevância para a decisão do recurso as seguintes questões, vertidas nas conclusões:
A. Nulidade da sentença recorrida
B. Impugnação da matéria de facto
C. Erro na interpretação e aplicação da cláusula 2.º n.ºs 3 e 4 do Acordo de Empresa de 2018
Factos
7. Os factos provados e não provados serão a seguir agrupados, respectivamente, em dois parágrafos, antecedidos da numeração/alíneas, pelas quais foram designados na sentença recorrida, para facilitar a leitura e remissões.
8. Factos provados
A. O Autor é uma pessoa colectiva de direito privado e sem fins lucrativos que tem por atribuição a representação e defesa comum dos interesses dos seus associados, em matérias laborais;
B. A Ré é uma empresa prestadora de serviço público de transporte rodoviário colectivo de passageiros no concelho de Lisboa, com ligações aos concelhos de Loures, Odivelas, Amadora, Oeiras e Almada;
C. A Ré faculta fardas e fatos de trabalho aos trabalhadores que são obrigados a executar as suas funções fardados;
D. A Ré faculta condições para que os trabalhadores oficinais, se possam fardar e desfardar, antes e depois da sua jornada de trabalho, nomeadamente, disponibilizando vestiários completamente equipados;
E. A 26 de Abril de 2014, a Ré emitiu a Norma NG0036, com efeitos a 30 de Abril de 2014, cujo objectivo é definir as condições de atribuição e utilização de fardamento, fatos de trabalho e equipamentos de protecção individual aos trabalhadores;
F. Sob o ponto 4., a Norma referida em E. estabelece considera-se fardamento o conjunto de peças de vestuário atribuído a um trabalhador cujas funções envolvam contacto com o Público ou impliquem actividades internas ou externas que recomendem a sua boa apresentação e uma identificação como trabalhador da Carris;
G. Sob o ponto 5., a Norma referida em E. estabelece, que a carris fornece gratuitamente aos seus trabalhadores as peças constantes desta norma, quando desempenhem as funções consideradas na mesma, que o uso de fardamento é obrigatório durante o serviço para os trabalhadores que desempenhem as funções mencionadas nos Anexos I a V e o uso de fardamento é autorizado no percurso de e para o domicílio, à entrada e saída do serviço;
H. Sob os anexos I a V. encontram-se as funções de Motorista e Guarda-freios;
I. Os trabalhadores da Ré, dentre eles os associados do Autor, estão obrigados a apresentarem-se ao serviço devidamente fardados, obrigados a fazer uso da gravata com camisa de manga comprida ou curta, sempre que se encontrem no exercício das suas funções;
J. Os motoristas e guarda-freios, na maioria das vezes, fazem as rendições em locais exteriores às instalações da Ré, como o sejam, as paragens de autocarros que se encontram espalhadas pela zona de exploração da Ré;
K. A Ré tem trabalhadores que iniciam o seu serviço nas Estações a que estão afectos (Musgueira, Pontinha, Santo Amaro, Cabo Ruivo e Miraflores) e terminam esse serviço em locais diferentes nos concelhos de Lisboa e de Oeiras;
L. Existem outros trabalhadores que iniciam o seu serviço fora das Estações a que estão alocados e terminam esse serviço nas respectivas Estações;
M. Existindo ainda outros que iniciam o seu serviço no concelho de Oeiras e terminam o seu serviço no concelho de Lisboa e vice-versa;
N. Os trabalhadores da Ré com as categorias profissionais de Motoristas de Serviços Público e Guarda‐freios, inclusive os associados do Autor, na maior parte das vezes, iniciam o seu trabalho num determinado local e o terminam noutro, quer seja com o acto da rendição (a qual é feita maioritariamente durante o percurso da carreira ou no términus da carreira), quer seja com o acto da recolha à Estação;
O. O local de trabalho dos motoristas de serviço público e guarda freios da Ré abrange toda a zona de exploração da Ré;
P. Os trabalhadores oficinais da Ré desempenham as suas funções nas oficinas da Ré, sitas nas instalações oficinais que se encontram dentro de cada uma das estações da Ré;
Q. Os motoristas de serviço público e guarda freios desenvolvem a sua actividade em toda a zona de exploração da Ré;
R. Os vestiários que existem em cada estação, são de livre acesso a todos os trabalhadores e podem ser utilizados por todos os trabalhadores, incluindo pelos motoristas e guarda freios;
S. Existem condições para fardar ou desfardar em todas as estações da Ré, com vestiários e balneários, com locais para tomar banho, para todos os trabalhadores da Ré;
T. O desfardamento dos trabalhadores oficinais é feito dentro do horário de trabalho, por costume da Ré, face aos trabalhos pesados que desempenham que envolvem suor e sujidade;
U. Os tripulantes podem, se quiserem, fardar-se ou desfardar-se nas estações da Ré;
V. O Autor e a Ré celebraram um Acordo de Empresa no dia 22 de Julho de 2018, publicado no Boletim do Trabalho e Emprego, 1.ª série, número 27 de 22 de Julho de 2018;
W. Sob a cláusula 2.ª, número 4 do Acordo de Empresa referido em V. ficou estabelecido que para efeitos desta cláusula, considera-se que a expressão «Tabela salarial», abrange as remunerações de base mínimas, bem como, outras formas de remuneração;
X. Com a celebração do Acordo de Empresa referido em V. foi criado e incluído como anexo II uma “tabela salarial de tráfego”, no qual se integrou o Subsídio de Agente Único a que os trabalhadores do tráfego tinham direito, dividido por níveis correspondentes às respectivas antiguidades;
Y. Sob a Cláusula 67.ª, número 2, do Acordo de Empresa referido em V. ficou estabelecido um subsídio de refeição no valor de € 10,00 por cada dia em que haja prestação de trabalho, (dez euros);
Z. Sob a Cláusula 67.ª, número 2, do Acordo de Empresa referido em V., ficou estabelecido que a empresa atribuirá um subsídio de alimentação caso o trabalhador preste cinco ou mais horas de trabalho suplementar;
AA. No acordo de Empresa de 2009, o subsídio de alimentação estava fixado em € 7,14, existindo um subsídio de pequena refeição de € 2,40;
BB. A Ré liquidou, até ao recibo de vencimento de Agosto de 2018, o subsídio de refeição considerando o valor estabelecido no Acordo de Empresa de 2009 e não procedeu ao pagamento dos montantes referentes aos retroactivos desde Janeiro de 2018 em nenhum dos recibos posteriores;
CC. Sob a Cláusula 38.ª, número 3, o Acordo de Empresa referido em V., estabelece que os motoristas de serviço público, os guarda-freios e os técnicos de tráfego e condução, no exercício da função de condução de veículos de transporte público, receberão um abono mensal para falhas no valor de 10,00 €;
DD. Com o acordado em CC., o subsídio de falhas foi aumentado em € 5,00;
EE. Até Julho de 2018 [**], a Ré continuou a pagar, aos associados do Autor, a título de subsídio de falhas, a quantia de € 5,00;
[**Na sentença recorrida escreveu-se 2028 por erro de escrita revelado no seu contexto, que é aqui rectificado nos termos do artigo 249.º do Código Civil.]
FF. Sob a Cláusula 40.ª, número 1, o Acordo de Empresa referido em V. estabelece que aos trabalhadores que se desloquem em serviço da empresa em automóveis próprios, será abonada, por quilómetro, uma importância igual à determinada no diploma legal para deslocações em serviço, desde que, previamente autorizada;
GG. Sob a Cláusula 40.ª, número 3, o Acordo de Empresa referido em V., estabelece que caso o sistema de transportes destinado ao pessoal que resida fora do conselho de Lisboa não seja possível de realizar, os trabalhadores que iniciem ou terminem o serviço entre a 1 hora e as 6 horas receberão um subsídio de transporte, único, por jornada de trabalho, no montante de 3 euros;
HH. Os trabalhadores receberam o valor relativo ao subsídio de transporte nos termos previstos no Acordo de Empresa de 2009 (0,26 do preço do litro da gasolina 98 octanas que vigorasse, por quilómetro percorrido), até ao mês de Julho de 2018;
II. Em Agosto de 2018, os montantes referidos em Y. e CC. foram actualizados, não tendo a Ré liquidado os retroactivos desde Janeiro de 2018;
JJ. O acordo referido em V. entrou em vigor a 28 de Julho de 2018;
KK. Sob a Cláusula 2.ª, número 3, do Acordo referido em V. ficou estabelecido que a tabela salarial produzirá efeitos de 01 de Janeiro a 31 de Dezembro de cada ano;
LL. Em 11 de Fevereiro de 2019, Autor e Ré celebraram protocolo de revisão do AE1/Carris, estabelecendo aumento na tabela remuneratória, alteração à cláusula relativa a férias e subsídio de férias e anuidades;
MM. Sob o ponto 5. do protocolo referido em LL. as partes acordaram que o presente protocolo tem produção de efeitos a 01.01.2019;
NN. Em 07 de Fevereiro de 2019, Autor e Ré celebraram protocolo de revisão do AE1/Carris, estabelecendo novas cláusulas, alterando as cláusulas referentes a reconversão profissional, a descanso semanal e feriados, ferias e subsídio de férias, faltas justificadas, subsídio de falhas, transporte, alimentação e exercício de funções em comissão de serviço;
OO. Sob o ponto 12. do protocolo referido em NN. as partes acordaram que o presente protocolo tem produção de efeitos a 01.01.2020;
PP. Sob o número 22065/17.6T8LSB correram termos, no Juízo de Trabalho de Lisboa (J8), uns autos de processo comum entre o aqui Autor e a aqui Ré;
QQ. Nos autos referidos em PP. foi dado como provado, sob o ponto 5. que “A regra da Ré na consideração do horário de trabalho é a seguinte: a) O tempo de deslocação de um trabalhador entre o local onde inicia o período de descanso após o primeiro período de trabalho e o local onde irá começar o segundo período de trabalho é considerado pela Ré como tempo de trabalho e incluído no seu horário normal de trabalho. b) O tempo de deslocação de um trabalhador entre o local onde terminou o seu trabalho e o local onde o iniciou não é considerado pela Ré como tempo de trabalho, nem incluído no horário normal de trabalho do trabalhador.”;
RR. Nos autos referidos em PP. foi dado como provado, sob o ponto 6. que “Todos os contratos individuais de trabalho celebrados entre a Ré Carris - Companhia de Carris de Ferro de Lisboa, EM, S.A. e os seus trabalhadores contêm uma cláusula que define o local de trabalho como abrangendo toda a «zona de exploração» da Carris, obrigando-se o trabalhador a prestar a sua actividade nos locais que forem determinadas por aquela”;
SS. Nos autos referidos em PP foi decidido que o local de trabalho contratualmente acordado de modo individual foi definido como sendo a zona de exploração da Ré;
TT. Nos autos referidos em PP foi decidido que “Após o final da prestação laboral e no percurso até ao início da mesma (se o quiser fazer, pois pode não ter de o fazer) o trabalhador já não está à disposição da entidade patronal, pode gerir total e livremente os seus interesses como os entender e nessa medida, pese embora possa importar um custo esse tempo de trajecto, é um custo que pode ser gerido livremente pelo trabalhador, e não está sujeito a subordinação jurídica. E nessa medida não pode ser tido como tempo de trabalho. Poder-se-á ainda argumentar pugnando pela injustiça decorrente desse custo, que no limite pode ser elevado, consoante o ponto de início de trabalho e final do mesmo na cidade de Lisboa. Mas esse custo está a coberto, ou deveria estar, do contrato celebrado, pois a R. ao contratar trabalhadores oferece condições salariais compatíveis com o que pede, e pede exactamente essa disponibilidade para trabalhar em toda a Lisboa, começando num local e terminando noutro. E os trabalhadores aceitam cientes que foi isso o contratado. E assim sendo cremos que o tempo de deslocação não pode ser tido como integrando o horário de trabalho, pelo que improcede de igual modo a pretensão da A. neste tocante”;
UU. A sentença proferida nos autos referidos em PP. foi confirmada por Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado 12 de Junho de 2019, onde se decidiu que (…) Após o final da prestação laboral o trabalhador deixa de estar numa situação de subordinação jurídica ao empregador, cessando aí a obrigatoriedade de dispor do seu tempo a favor deste. A partir daí o trabalhador pode gerir o seu tempo como entender, não estando sequer obrigado a regressar ao local onde iniciou a sua prestação de trabalho e que pode, no limite, variar diariamente, uma vez que em causa estão trabalhadores que não têm posto fixo. E ainda que o trabalhador tenha interesse em regressar ao local onde iniciou a sua jornada de trabalho, uma vez cessada esta já não está à disposição da sua entidade patronal e a ela subordinado, tendo adquirido a plenitude de ser humano livre, pelo que há que considerar que terminou o seu tempo de trabalho. Daí que se entenda que o tempo de deslocação entre o local do termo da prestação de trabalho e o local onde esta se iniciou não possa ser incluído no seu horário de trabalho”.
VV. A sentença proferida nos autos referidos em PP. transitou em julgado em 06 de Setembro de 2019.
9. Factos não provados
1. Os Tripulantes (Motoristas e Guarda-freios) não são beneficiados com as condições referidas em D.
2. Caso esses trabalhadores não se encontrem devidamente fardados conforme a citada Norma, poderão ser alvo de procedimento disciplinar, cuja sanção disciplinar aplicável poderá chegar aos 10 dias de suspensão sem vencimento;
3. Não existem vestiários nos locais referidos em K.;
4. Para se apresentarem ao serviço e para poderem prestar trabalho junto da Ré, os associados do Autor estão obrigados a deslocarem-se das suas residências já devidamente fardados, para os postos de trabalho pré-determinados pela Ré para início dos seus serviços;
5. Os associados do Autor são obrigados a fardarem-se e desfardarem-se nos seus lares, fazendo o percurso entre a sua residência e o local de trabalho e vice-versa, completamente fardados;
6. O referido em 5. faz com que os trabalhadores não tenham liberdade para usufruir da totalidade do seu tempo pessoal e de lazer após terem terminado o seu serviço;
7. Os associados do Autor só poderão gerir total, eficaz e livremente os seus interesses e a sua vida pessoal e momentos de lazer conforme o comum cidadão, após terem procedido à troca da sua farda pelo seu vestuário de uso comum;
8. Caso os trabalhadores da Ré, inclusive os associados do Autor pretendessem ir, após a sua jornada de trabalho, directamente para um bar ou uma discoteca para se divertirem como qualquer outro cidadão, nomeadamente, consumindo bebidas alcoólicas, o mesmo poderia ser acusado de colocar em causa a boa imagem da Ré e a de todos os profissionais afectos à condução de veículos automóveis na via pública, sejam estes associados ou não do Autor, sem prejuízo do procedimento disciplinar a que poderiam estar sujeitos pela utilização da farda em situação diferente das permitidas pela Ré;
9. A Ré considera como tempo de trabalho o período para fardamento de alguns trabalhadores a quem são oferecidas condições para que o façam de forma adequada nas instalações da Ré;
10. O trabalhador fica na disponibilidade da Ré assim que sai da sua residência para se deslocar para o posto de trabalho definido pela Ré;
11. Os trabalhadores da Ré só estão autorizados a usar as suas Fardas de Trabalho no percurso compreendido entre o domicílio e o início da sua prestação de serviço, durante a sua prestação de serviço e no percurso entre o fim do seu serviço até ao seu domicílio;
12. Findo o processo negocial de 1995, mesmo antes da sua publicação no BTE 1ª série, nº 17 de 8 de Maio de 1995, a Ré procedeu ao pagamento das diferenças salariais de forma retroactiva, em relação às actualizações salariais acordadas, no recibo do mês de Março, indicando das rubricas respectivas com a letra “R” à frente das mesmas;
13. Findo o processo negocial de 1997, mesmo antes da sua publicação no BTE 1ª série, nº 30 de 15 de Agosto de 1997, a Ré procedeu ao pagamento das diferenças salariais de forma retroactiva, em relação às actualizações salariais acordadas, no recibo do mês de Março, indicando das rubricas respectivas com a letra “R” à frente das mesmas;
14. Findo o processo negocial de 1998, mesmo antes da sua publicação no BTE 1ª série, nº 30 de 15 de Agosto de 1998, a Ré procedeu ao pagamento das diferenças salariais de forma retroactiva, em relação às actualizações salariais acordadas, no recibo do mês de Março, indicando das rubricas respectivas com a letra “R” à frente das mesmas;
15. Findo o processo negocial de 1999, mesmo antes da sua publicação no BTE 1ª série, nº 29 de 8 de Agosto de 1999, a Ré procedeu ao pagamento das diferenças salariais de forma retroactiva, em relação às actualizações salariais acordadas, no recibo do mês de Abril, indicando das rubricas respectivas com a letra “R” à frente das mesmas;
16. Findo o processo negocial de 2001, mesmo antes da sua publicação no BTE 1ª série, nº 20 de 29 de Maio de 2001, a Ré procedeu ao pagamento das diferenças salariais de forma retroactiva, em relação às actualizações salariais acordadas, no recibo do mês de Abril, indicando das rubricas respectivas com a letra “R” à frente das mesmas;
17. Em 2002, não tendo havido celebração de acordo, a Ré procedeu à actualização dos vencimentos através de acto de gestão, e procedeu ao pagamento das diferenças salariais de forma retroactiva, em relação às actualizações salariais acordadas, no recibo do mês de Abril, indicando das rubricas respectivas com a letra “R” à frente das mesmas;
18. Em 2007, não tendo havido celebração de acordo, a Ré procedeu à actualização dos vencimentos através de acto de gestão, e procedeu ao pagamento das diferenças salariais de forma retroactiva, em relação às actualizações salariais acordadas, no recibo do mês de Março, indicando das rubricas respectivas com a letra “R” à frente das mesmas;
19. Findo o processo negocial de 2008, mesmo antes da sua publicação no BTE 1ª série, nº 17 de 8 de Maio de 2008, a Ré procedeu ao pagamento das diferenças salariais de forma retroactiva, em relação às actualizações salariais acordadas, no recibo do mês de Março, indicando das rubricas respectivas com a letra “R” à frente das mesmas;
20. No processo negocial de 2009, tão-só não houve lugar a quaisquer diferenças salariais pois o processo negocial terminou no dia 7 de Janeiro, tendo a Ré pago todas as actualizações imediatamente no mês de Janeiro, mesmo antes da sua publicação no BTE 1ª série, nº 15 de 22 de Abril de 2009, a Ré pagou de forma tempestiva os retroactivos devidos aos seus trabalhadores;
21. O Autor planeou toda a sua actuação e negociações junto da Ré relativamente ao AE2018 tendo em conta a aplicação retroactiva das actualizações salariais, confiando na interpretação dada às cláusulas aplicáveis e no comportamento reiterado da Ré;
22. Caso tivesse conhecimento da vontade da Ré em atribuir outra interpretação à norma relativa à produção de efeitos da tabela salarial, teria o Autor negociado condições diferentes para os seus associados;
23. A confiança e expectativas geradas pelo comportamento reiterado da Ré na esfera do Autor e dos seus associados ao longo de mais de 20 anos, foram frustradas com a recusa do pagamento das diferenças salariais no ano de 2018.
Quadro legal relevante
10. Para a apreciação do recurso tem relevo, essencialmente, o quadro legal seguinte:
Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia ou TFUE
Artigo 157.o
1. Os Estados-Membros assegurarão a aplicação do princípio da igualdade de remuneração entre trabalhadores masculinos e femininos, por trabalho igual ou de valor igual.
2. Para efeitos do presente artigo, entende-se por "remuneração" o salário ou vencimento ordinário, de base ou mínimo, e quaisquer outras regalias pagas, direta ou indiretamente, em dinheiro ou em espécie, pela entidade patronal ao trabalhador em razão do emprego deste último.
A igualdade de remuneração sem discriminação em razão do sexo implica que:
a) A remuneração do mesmo trabalho pago à tarefa seja estabelecida na base de uma mesma unidade de medida;
b) A remuneração do trabalho pago por unidade de tempo seja a mesma para um mesmo posto de trabalho.
3. O Parlamento Europeu e o Conselho, deliberando de acordo com o processo legislativo ordinário e após consulta ao Comité Económico e Social, adotarão medidas destinadas a garantir a aplicação do princípio da igualdade de oportunidades e da igualdade de tratamento entre homens e mulheres em matéria de emprego e de trabalho, incluindo o princípio da igualdade de remuneração por trabalho igual ou de valor igual.
4. A fim de assegurar, na prática, a plena igualdade entre homens e mulheres na vida profissional, o princípio da igualdade de tratamento não obsta a que os Estados-Membros mantenham ou adotem medidas que prevejam regalias específicas destinadas a facilitar o exercício de uma atividade profissional pelas pessoas do sexo sub-representado, ou a prevenir ou compensar desvantagens na sua carreira profissional.
Código Civil ou CC
Artigo 9.º
(Interpretação da lei)
1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
Artigo 10.º
(Integração das lacunas da lei)
1. Os casos que a lei não preveja são regulados segundo a norma aplicável aos casos análogos.
2. Há analogia sempre que no caso omisso procedam as razões justificativas da regulamentação do caso previsto na lei.
3. Na falta de caso análogo, a situação é resolvida segundo a norma que o próprio intérprete criaria, se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema.
Artigo 11.º
(Normas excepcionais)
As normas excepcionais não comportam aplicação analógica, mas admitem interpretação extensiva.
Artigo 350.º
(Presunções legais)
1. Quem tem a seu favor a presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz.
2. As presunções legais podem, todavia, ser ilididas mediante prova em contrário, excepto nos casos em que a lei o proibir.
Código o Trabalho ou CT
Artigo 3.º
Relações entre fontes de regulação
1 - As normas legais reguladoras de contrato de trabalho podem ser afastadas por instrumento de regulamentação colectiva de trabalho, salvo quando delas resultar o contrário.
2 - As normas legais reguladoras de contrato de trabalho não podem ser afastadas por portaria de condições de trabalho.
3 - As normas legais reguladoras de contrato de trabalho só podem ser afastadas por instrumento de regulamentação colectiva de trabalho que, sem oposição daquelas normas, disponha em sentido mais favorável aos trabalhadores quando respeitem às seguintes matérias:
a) Direitos de personalidade, igualdade e não discriminação;
b) Protecção na parentalidade;
c) Trabalho de menores;
d) Trabalhador com capacidade de trabalho reduzida, com deficiência ou doença crónica;
e) Trabalhador-estudante;
f) Dever de informação do empregador;
g) Limites à duração dos períodos normais de trabalho diário e semanal;
h) Duração mínima dos períodos de repouso, incluindo a duração mínima do período anual de férias;
i) Duração máxima do trabalho dos trabalhadores nocturnos;
j) Forma de cumprimento e garantias da retribuição, bem como pagamento de trabalho suplementar;
k) Teletrabalho;
l) Capítulo sobre prevenção e reparação de acidentes de trabalho e doenças profissionais e legislação que o regulamenta;
m) Transmissão de empresa ou estabelecimento;
n) Direitos dos representantes eleitos dos trabalhadores.
o) Uso de algoritmos, inteligência artificial e matérias conexas, nomeadamente no âmbito do trabalho nas plataformas digitais.
4 - As normas legais reguladoras de contrato de trabalho só podem ser afastadas por contrato individual que estabeleça condições mais favoráveis para o trabalhador, se delas não resultar o contrário.
5 - Sempre que uma norma legal reguladora de contrato de trabalho determine que a mesma pode ser afastada por instrumento de regulamentação colectiva de trabalho entende-se que o não pode ser por contrato de trabalho.
Artigo 258.º
Princípios gerais sobre a retribuição
1 - Considera-se retribuição a prestação a que, nos termos do contrato, das normas que o regem ou dos usos, o trabalhador tem direito em contrapartida do seu trabalho.
2 - A retribuição compreende a retribuição base e outras prestações regulares e periódicas feitas, directa ou indirectamente, em dinheiro ou em espécie.
3 - Presume-se constituir retribuição qualquer prestação do empregador ao trabalhador.
4 - À prestação qualificada como retribuição é aplicável o correspondente regime de garantias previsto neste Código.
Artigo 259.º
Retribuição em espécie
1 - A prestação retributiva não pecuniária deve destinar-se à satisfação de necessidades pessoais do trabalhador ou da sua família e não lhe pode ser atribuído valor superior ao corrente na região.
2 - O valor das prestações retributivas não pecuniárias não pode exceder o da parte em dinheiro, salvo o disposto em instrumento de regulamentação colectiva de trabalho.
Artigo 478.º
Limites do conteúdo de instrumento de regulamentação colectiva de trabalho
1 - O instrumento de regulamentação colectiva de trabalho não pode:
a) Contrariar norma legal imperativa;
b) Regulamentar actividades económicas, nomeadamente períodos de funcionamento, regime fiscal, formação dos preços e exercício da actividade de empresas de trabalho temporário, incluindo o contrato de utilização;
c) Conferir eficácia retroactiva a qualquer cláusula que não seja de natureza pecuniária.
2 - O instrumento de regulamentação colectiva de trabalho pode instituir regime complementar contratual que atribua prestações complementares do subsistema previdencial na parte não coberta por este, nos termos da lei.
Acordo de Empresa entre a Companhia Carris de Ferro de Lisboa, EM, S A e o Sindicato Nacional dos Motoristas – Revisão Global, publicado no Boletim do Trabalho e Emprego n.º 27, de 22.7.2018 ou AE de 2018
Cláusula 2.ª
(Vigência)
1- Este A.E. entra em vigor 5 dias após a sua publicação no Boletim do Trabalho e Emprego.
2- O presente AE vigorará por um período não inferior a 60 meses.
3- A tabela salarial produzirá efeitos de 1 de janeiro a 31 de dezembro de cada ano.
4- Para efeitos desta cláusula, considera-se que a expressão «Tabela salarial», abrange as remunerações de base mínimas, bem como, outras formas de remuneração.
Cláusula 36.ª
(Retribuição do trabalho)
1- A retribuição compreende a remuneração base e todas as outras prestações regulares e periódicas feitas, direta ou indiretamente, em dinheiro ou em espécie.
2- As remunerações mínimas para os trabalhadores abrangidos por este acordo, são as constantes dos anexos I e II.
3- Sempre que um trabalhador substitua outro de categoria superior, por período não inferior a 1 dia completo de trabalho, receberá, durante a substituição, um vencimento igual ao vencimento base da categoria correspondente à função desempenhada pelo trabalhador substituído.
4- Nas categorias profissionais em que se verifique a existência de dois ou mais escalões de retribuição em função da antiguidade, sempre que um trabalhador substitua outro de categoria superior, receberá, durante a substituição, um vencimento igual ao desse trabalhador, ou, se tiver menos anos de profissão na empresa, o vencimento que corresponder ao
seu número de anos de atividade.
5- Para as funções de chefia, as normas constantes dos dois números anteriores só se aplicarão, quando a substituição se
der durante um período igual ou superior a 5 dias úteis, contando-se neste caso, o pagamento a partir do primeiro dia.
6- O valor da retribuição horária será calculado segundo a seguinte fórmula:
Rm x 12
52 x n
em que Rm é o valor da retribuição mensal e n o período normal de trabalho semanal.
Cláusula 37.ª
(Diuturnidades)
1- Para além das remunerações fixas, os trabalhadores auferem as seguintes diuturnidades, não cumulativas entre si,
que farão parte integrante da retribuição e que terão em conta a respetiva antiguidade na empresa, a saber:
Mais de 12 anos - 100,02 €;
Mais de 16 anos - 133,36 €;
Mais de 20 anos - 166,70 €;
Mais de 24 anos - 200,04 €;
Mais de 28 anos - 233,38 €.
2- O valor de cada diuturnidade será de 4,3 % do escalão G da tabela do anexo I.
3- É atribuída uma anuidade por ano de antiguidade até ao máximo de 11 anuidades, com o valor unitário de 8,33 €. Os efeitos indexantes das anuidades serão os mesmos das diuturnidades e após o trabalhador completar 12 anos de antiguidade entrará no regime geral de diuturnidades.
Cláusula 38.ª
(Subsídio para falhas de dinheiro)
1- Os trabalhadores que normalmente movimentam avultadas somas de dinheiro, receberão um abono mensal para falhas de 35,00 €.
2- Para os trabalhadores que, eventualmente, se ocupam da venda de senhas de passes, o abono previsto no número anterior será pago proporcionalmente em relação ao número de dias ocupados nessa venda, sem prejuízo do que a seguir se estabelece:
a) Se durante o mês o trabalhador não ocupar mais de cinco dias na venda de senhas de passe, receberá, por cada dia 5,00 €;
b) O trabalhador que, no desempenho daquela tarefa, ocupar mais de cinco dias, nunca poderá receber menos de
15,00 €.
3- Os motoristas de serviço público, os guarda-freios e os técnicos de tráfego e condução, no exercício da função de condução de veículos de transporte público, receberão um abono mensal para falhas no valor de 10,00 €.
Cláusula 40.ª
(Subsídio de transporte)
1- Aos trabalhadores que se desloquem em serviço da empresa em automóveis próprios, será abonada, por quilómetro, uma importância igual à determinada no diploma legal para deslocações em serviço, desde que, previamente autorizada.
2- A empresa compromete-se a pôr em funcionamento, um sistema de transporte destinado ao pessoal que resida fora do concelho de Lisboa, o qual apenas funcionará nas horas em que não existam outros transportes públicos.
3- Caso o sistema de transportes referido no número anterior não seja possível de realizar, os trabalhadores que iniciem ou terminem o serviço entre a 1 hora e as 6 horas receberão um subsídio de transporte, único, por jornada de trabalho, no montante de 3 euros.
Cláusula 67.ª
(Subsídio de alimentação)
1- A empresa obriga-se a por à disposição dos seus trabalhadores um serviço de bar, refeitório, sem carácter lucrativo.
2- A empresa atribuirá um subsídio de refeição no valor de 10,00 € por cada dia em que haja prestação de trabalho.
3- A empresa atribuirá um subsídio de refeição caso o trabalhador realize cinco, ou mais, horas de trabalho suplementar num dia
Doutrina e jurisprudência que o Tribunal leva em conta
11. O Tribunal leva em conta os seguintes elementos, mencionados na fundamentação:
Doutrina
António Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 21.ª Edição, Almedina
Maria do Rosário Palma Ramalho, Tratado de Direito do Trabalho, Parte II, 9.ª Edição, Almedina
Jurisprudência
Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 294/14, disponível em tribunalconstitucional.pt
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo 5815/20.0T8ALM.S1, disponível em dgsi.pt
Apreciação do recurso
A. Nulidade da sentença
12. A título liminar o Tribunal começa por recordar que os preceitos do Código de Processo Civil a seguir mencionados sem outra referência, são aplicáveis no presente caso, por força do disposto no artigo 1.º n.º 2 – a) do CPT.
13. Feita esta clarificação, na motivação do recurso a recorrente invoca a nulidade da sentença por omissão de pronúncia, sintetizando os motivos da sua discordância na conclusão 11 a seguir citada:
“11. No caso, ficaram por responder pedidos concretos formulados pelo Autor, e que eram adicionais face ao restante pedido de análise, nomeadamente ficou-se por saber se o ato de fardar e desfardar é ou não considerado tempo de trabalho, e se é, quais as consequências daí advenientes, nomeadamente se esse tempo tem ou não que estar incluído no horário normal de trabalho, ou se é considerado como trabalho suplementar, e qual o local exato onde o trabalhador procede ao ato de fardar e desfardar.”
14. Para saber se o Tribunal omitiu o dever de ser pronunciar sobre os pedidos mencionados no parágrafo anterior, importa verificar se os mesmos foram formulados na petição inicial. A esse propósito, foram os seguintes os pedidos feitos pelo autor/recorrente, na petição inicial, junta com a referência citius 29235913 de 13.5.2021:
“(...) deve a Ré ser condenada a:
a) A alocar a cada Motorista de Serviço Público e Guarda-freio da Ré associados do Autor à Estação à qual estão adstritos como local de trabalho, para efeitos de início e fim da sua jornada de trabalho;
b) Caso assim não se entenda, considerar como tempo de trabalho, o tempo despendido nas deslocações entre a residência por cada Motoristas de Serviço Público e Guarda-freios associados do A e o local que a Ré pré-determinou com início do seu respetivo serviço e vice-versa.
c) Ao pagamento das diferenças salariais relativas à não aplicação retroativa das atualizações fixadas no AE 2018, no total a liquidar;
d) Ao pagamento de sanção compulsória de 100€ pela R ao A por cada dia até ao integral cumprimento da sentença.
À totalidade do montante do pedido deverão acrescer juros à taxa legal, desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.”
15. Do acima exposto nos parágrafos 13 e 14 resulta que na petição inicial o recorrente/autor não pediu ao Tribunal que declarasse que o acto de se fardar e desfardar deve ser considerado tempo de trabalho, a ser incluído no horário normal ou suplementar de trabalho, nem que declarasse qual o local exacto onde o trabalhador se deve fardar e desfardar.
16. No que releva para a apreciação da presente questão, o que foi pedido ao Tribunal foi, em substância, que condenasse a recorrida a definir o local de trabalho para efeito de início e fim da jornada de trabalho ou, subsidiariamente, considerasse tempo de trabalho o tempo despendido pelos trabalhadores em deslocações entre a respectiva residência e o local pré-determinado pela recorrida para o início do serviço e vice-versa – cf. pedidos a) e b) acima transcritos no parágrafo 14.
17. Ora, os pedidos a) e b) acima transcritos no parágrafo 14 foram apreciados pelo Tribunal a quo, no trecho da sentença recorrida do qual o Tribunal aqui cita uma parte que elucida essa apreciação, remetendo, no mais, para o seu teor integral:
“Pretende o Autor a condenação da Ré a alocar cada motorista de serviço público e Guarda-Freio ao seu serviço à estação à qual estão adstritos como local de trabalho, para efeitos de início e fim de jornada de trabalho.
Subsidiariamente, peticiona que se considere como tempo de trabalho, o tempo despedido nas deslocações entre a residência por cada motorista de Serviço Público e Guarda-Freios seus associados e o local que a Ré pré-determinou como como início do seu respectivo serviço e vice-versa.
(...)
Temos, assim, que a questão relativa à definição do local de trabalho dos associados do Autor, da existência de subordinação jurídica no período em que efectuam a deslocação de e para o local de início de funções e de o tempo despendido em deslocação ser considerado tempo e trabalho, existindo uma situação de submissão à autoridade da Ré, foi já apreciado e decidido, por sentença transitada em julgado, que vincula as partes e impede que novamente se discutam tais questões.
(...)
Em face do exposto, não pode a pretensão do Autor de se alocar os seus associados a uma estação como local de trabalho, deixar de improceder, por falta de fundamento legal.
A sua pretensão subsidiária, no sentido de se entender como tempo de trabalho, o período despendido nas deslocações de e para casa, por força do que anteriormente fora decidido – e que supra se deixou amplamente despendido-, igualmente não pode voltar ser apreciado nestes autos.
Ainda que assim não se entendesse, haveria sempre que relembrar que não estando o trabalhador a exercer qualquer actividade, não estando adstrito à realização de uma qualquer prestação (cfr. estabelecido no artigo 197º, n.º1, do Código do Trabalho) e não configurando o referido percurso nenhuma das interrupções ou intervalos referidas no n.º2, do mesmo preceito legal, forçoso se torna concluir não nos encontrarmos perante tempo de trabalho.
Soçobra, assim, por força de tudo quanto supra se deixa exposto, a pretensão do Autor elencada nas alíneas a) e b) do seu petitório.”
18. Pelo que, não houve omissão de pronúncia, não se verifica a alegada infracção ao artigo 608.º do CPC, nem a sentença recorrida enferma da nulidade prevista no artigo 615.º n.º 1 – d) do CPC.
19. Motivos pelos quais improcede este segmento da argumentação do recorrente.
B. Impugnação da matéria de facto
20. A recorrente defende que o Tribunal a quo não podia (sem violar as regras gerais da experiência) dar como provado que os trabalhadores da recorrida, tripulantes, podem fardar-se e desfardar-se nas estações quando se apurou que frequentemente esses trabalhadores não iniciam nem terminam a jornada de trabalho no mesmo local, podendo iniciá-la e terminá-la em paragens situadas em concelhos distintos e onde não há estações. Para motivar a sua discordância da decisão de facto a recorrente pede ao Tribunal da Relação que reaprecie os depoimentos das testemunhas AA, BB e CC, em particular os trechos desses depoimentos transcritos nas alegações de recurso.
21. Na óptica da recorrente, os factos provados R, S, T e U devem ser incluídos nos factos não provados e os factos não provados 1 a 11, devem ser incluídos entre os factos provados.
22. O Tribunal a quo fundamentou como se segue a sua convicção sobre o tema probatório impugnado referido no parágrafo anterior:
“Estribou o Tribunal a sua convicção no que respeita aos factos elencados em D., R. a U. (inclusive) e em 1., 3., 4., 5., 8., 10., 11., na análise cotejada dos depoimentos das testemunhas CC (directora de recursos humanos na Ré) e DD que, de forma clara, coerente e credível, porque fundamentada no seu conhecimento pessoal por força das funções quotidianas que desempenham, corroboraram o ali mencionado.
CC disse, de forma clara, que existem balneários e vestiários em todas as estações da Ré e, bem assim, que os mesmos são de acesso livre a qualquer trabalhador da Ré (sem excepção), possuindo armários com altura suficiente para que se pendure a roupa diária e se guardem os pertences pessoais.
O assim relatado foi corroborado pelo depoimento de DD que relatou a existência de balneários e vestiários em todas as estações, de livre acesso aos trabalhadores, tendo armários que permitem que se pendure a roupa e se guardem os pertences pessoais.
CC esclareceu, ainda, que muito embora os balneários sejam mais usados pelos trabalhadores das oficinas, por força da natureza das suas funções, estão abertos ao uso de qualquer trabalhador que pretenda utilizá-los.
Do cotejo destes depoimentos concluiu o Tribunal pela ausência de prova que corroborasse o elencado em 1., 3. e 4., na medida em que nenhuma prova se produziu no sentido de que os tripulantes, para exercerem as suas funções, tenham que vir fardados de casa, por impossibilidade de se mudarem nas estações.
Não esquece o Tribunal o depoimento de AA, no sentido de que o cacifo existente é demasiado pequeno (referindo que nem um par de sapatos ali cabe), e o de BB no sentido de que tem onde se trocar mas não tem armário onde deixar a sua roupa.
No entanto, no confronto destes depoimentos com o de CC e o de DD não nos mereceram maior credibilidade do que a destas duas últimas testemunhas que, de forma segura e credível, declararam existirem armários, balneários e vestiários para qualquer um dos trabalhadores que o assim o pretenda. Tanto mais que corroboraram a existência de cacifos com as características mencionadas pela testemunha AA mas acrescentaram serem duas situações diferentes que se cumulam, sendo estes últimos pensados para que os motoristas possam ali guardar os bilhetes, a carteira ou os capacetes de mota que utilizam na suas deslocações.
Cotejados estes depoimentos concluiu o Tribunal pela existência de prova sustentada do elencado em D., R. a U. e pela ausência de prova cabal e sustentada do mencionado em 1. e 3..
Ponderou, igualmente, o Tribunal o depoimento de CC, DD e EE para formar a sua convicção quando elencado em 4., 5., 8., 10. e 11..
CC foi clara no seu depoimento, referindo a possibilidade de os trabalhadores tratarem de assuntos pessoais ou de se deslocarem onde quisessem fardados, nada existindo, dentro das normas da empresa que os impeça de o fazer.
Também DD referiu essa possibilidade e esclareceu que a identificação como trabalhador da carris se encontra num alfinete que, de forma fácil e simples (a testemunha exemplificou em audiência), se retira, ficando o trabalhador a envergar um fato azul que em nada se distingue de um qualquer ordinário fato azul escuro.
EE corroborou este depoimento, tendo sido possível ao tribunal constatar que a gravata que faz parte do fardamento se revela de fundo azul escuro com um desenho da rede em azul claro, mas sem traços distintivos e sem dizeres que permitam reconhecer o traçado de estações. Acresce que as testemunhas referiram, igualmente, a possibilidade de tirar a gravata, ficando o tripulante a envergar um fato azul que em nada se distingue de um normal fato azul escuro utilizado por um qualquer transeunte na rua.
Não esqueceu, uma vez mais, o Tribunal o depoimento de AA e de BB, no sentido de que as pessoas na rua os reconhecem e que isso os deixa constrangidos. Não conseguiram, no entanto, estas testemunhas esclarecer como é que tal ocorre (quando as peças de vestuário que envergam - com excepção da gravata e do alfinete com o seu nome e número de funcionário, ambas amovíveis e que deixam de ser obrigatórias findo o turno – não possuem qualquer logotipo ou dizer que os identifique com a carris).
Estas testemunhas não referiram, no entanto, que se encontravam impossibilitados de tratar de assuntos pessoais ou de se deslocarem onde quisessem após terem terminado o seu turno, envergando o fardamento.
Acresce que as testemunhas CC e DD foram claros quanto à possibilidade de uso de vestiários e balneários nas estações por parte destes tripulantes e de os trabalhadores tratarem de assuntos seus ou de se deslocarem onde quiserem com o seu fardamento, desde que não estejam dentro do seu horário de turno escalado, assim se produzindo prova sustentada e cabal que expressamente contraria o exarado em 1., 3., 4., 5., 8., 10. e 11., tendo-se produzido prova no sentido de que os tripulantes podem, caso assim o entendam, optar por fardar-se apenas nas estações e depois se deslocarem para os locais onde, de acordo com a escala de turno, iniciarão as suas funções e que podem, ainda em fardamento, deslocar-se onde quiserem quando não estão no seu horário de turno. Nenhuma prova credível e sustentada se produziu – e nem a norma referida em E., assim o dita -, que comprove o referido em 4., 5.,10. e 11.
Cotejados estes depoimentos entre si concluiu o Tribunal não ter o Autor carreado aos autos, como lhe competia (cfr. artigo 342º, do Código Civil), prova que sustentasse o exarado em 6., e 7., na medida em que da prova testemunhal produzida resultou poderem os trabalhadores efectuar a sua vida normal após terem concluído o turno ou antes de o iniciarem e, bem assim, que existem condições para, caso assim pretendam, que se fardem ou desfardem nas estações existentes, apenas se deslocando delas para os locais iniciais de turno em farda.
(...)
Quanto ao mencionado em 2. e em 9., atentou o Tribunal na total ausência de prova que os corroborasse, na medida em que nenhuma testemunha os mencionou e/ou revelou possuir conhecimento consubstanciado e credível sobre o ali mencionado e nenhum elemento documental, capaz de comprovar o ali mencionado, foi trazido aos autos pelo Autor.
23. Após reapreciação dos meios de prova testemunhal indicados nos parágrafos 20 e 22 o Tribunal da Relação ficou convicto da realidade dos factos provados R, S, T e U e não ficou convicto da realidade dos factos não provados 1 a 11. A esse propósito, no seu juízo autónomo, o Tribunal da Relação acompanha integralmente a análise critica e detalhada dos meios de prova feita pelo Tribunal a quo, acima citada no parágrafo 22, que inclui a análise dos meios de prova testemunhal indicados pelo recorrente na motivação do recurso.
24. O Tribunal recorda que a prova testemunhal em causa está sujeita ao princípio da livre apreciação – cf. artigo 396.º do Código Civil (CC). À luz desse princípio, a apreciação feita no parágrafo 22 não infringe as regras gerais da experiência e não é diversa da reapreciação feita pelo Tribunal da Relação.
25. O recorrente alega ainda que os factos provados J, K, L, M e N estão em contradição, (segundo o Tribunal julga perceber) com o facto provado U. Porém, não existe a alegada contradição, pois o facto de os motoristas e guarda freios fazerem rendições em paragens de autocarro/locais exteriores às instalações da recorrida e de haver trabalhadores que iniciam o serviço em estações e/ou paragens diferentes daquelas em que o terminam e/ou em concelhos diferentes (cf. factos provados J a N), não está em contradição com o facto de existirem vestiários nas estações, que os motoristas podem usar para se fardar ou desfardar se quiserem (cf. facto provado U).
26. Por fim, o recorrente defende o seguinte (cf. conclusão 31 da motivação do recurso):
“31. O Tribunal não dá como provado – mas devia - que a Ré sempre retroagiu as atualizações salarias a 1 de janeiro conforme consta no pedido, porquanto a Ré nem tão pouco impugnou tal alegação, pelo que deveria ter ficado assente que assim é.”
27. O recorrente não indica qual o artigo da petição inicial em que alega o facto mencionado no parágrafo anterior. Pretende que tal facto seja considerado provado por não ter sido impugnado. Segundo o Tribunal julga perceber, esse facto foi alegado no artigo 103 da petição inicial (cf. referência citius 29235913 de 13.5.2021). Ora, contrariamente ao que alega o recorrente, a ré/recorrida impugnou especificadamente o facto alegado no artigo 103 da petição inicial, no artigo 108 da contestação (cf. referência citius 29462938 de 7.6.2021). Pelo que, à luz do disposto no artigo 574.º n.º 2, a contrario, do CPC, o facto acima mencionado no parágrafo 26 (alegado no artigo 103 da contestação) não se considera admitido por acordo.
28. Motivos pelos quais improcede totalmente a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
C. Erro na interpretação e aplicação da cláusula 2.º n.ºs 3 e 4 do Acordo de Empresa de 2018
29. O recorrente defende que o Tribunal a quo incorreu em erro na aplicação e interpretação da cláusula 2.ª n.ºs 3 e 4 do Acordo de Empresa de 2018 celebrado entre as partes, por não ter julgado que, com base nessa cláusula, há lugar ao pagamento retroactivo dos valores dos subsídios de refeição, de falhas e de transporte, previstos nesse acordo de empresa, com efeitos entre 1 de janeiro de 2018 e a data da entrada em vigor do Acordo de Empresa de 2018 mencionado no parágrafo seguinte.
30. Com efeito, o recorrente invoca a aplicação do acordo de empresa celebrado entre as partes intitulado Acordo de Empresa entre a Companhia Carris de Ferro de Lisboa, EM, S A e o Sindicato Nacional dos Motoristas – Revisão Global, publicado no Boletim do Trabalho e Emprego n.º 27, de 22.7.2018, doravante designado apenas por AE de 2018.
31. A esse propósito, é o seguinte o teor das conclusões 29 e 30 da motivação do recurso:
“29. Quanto ao pagamento das diferenças salariais relativas à não aplicação retroativa das atualizações salariais convencionalmente acordadas, o Tribunal a quo deu como provado que a convenção coletiva outorgada pelo A e pela R, determinam que para efeitos da cláusula 2ª (e só para estes efeitos) a tabela salarial abrange as remunerações de base mínimas, bem como, outras formas de remuneração; que ficou estabelecido que a empresa atribuirá um subsídio de alimentação caso o trabalhador preste cinco ou mais horas de trabalho suplementar; que o subsídio de alimentação previsto no Acordo de Empresa de 2009 estaria fixado em €7,14, existindo um subsídio de pequena refeição de €2,40; que a Ré liquidou, até ao recibo de vencimento de Agosto de 2018, o subsídio de refeição considerando o valor estabelecido no Acordo de Empresa de 2009 e não procedeu ao pagamento dos montantes referentes aos retroativos desde Janeiro de 2018 em nenhum dos recibos posteriores; que os motoristas de serviço público, os guarda-freios e os técnicos de tráfego e condução, no exercício da função de condução de veículos de transporte público, receberão um abono mensal para falhas no valor de 10,00€; que o subsídio de falhas foi aumentado em 5,00€; que até julho de 2028 (salvo douto entendimento – deverá de se ler 2018), a Ré continuou a pagar, aos associados do Autor, a título de subsídio de falhas, a quantia de 5,00€; que os trabalhadores que iniciem ou terminem o serviço entre a 1 hora e as 6 horas receberão um subsídio de transporte, único, por jornada de trabalho, no montante de 3 euros; que o nº 3 da Clª 2ª do Acordo prevê que a tabela salarial produz efeitos de 1 de janeiro a 31 de Dezembro de cada ano.
30. O Tribunal a quo não disse que, o nº 4 da aludida cláusula dispõe o seguinte: “Para efeitos desta cláusula, considera-se que a expressão «Tabela Salarial», abrange as remunerações de base mínimas, bem como, outras formas de remuneração.” Ora a aludida cláusula não discrimina nem exclui qualquer rubrica de expressão pecuniária, seja parte integrante ou não da retribuição.
32. A cláusula 2.º do AE 2018, cuja interpretação é posta em crise, tem a seguinte redacção:
“Cláusula 2.ª
(Vigência)
1- Este A.E. entra em vigor 5 dias após a sua publicação no Boletim do Trabalho e Emprego.
2- O presente AE vigorará por um período não inferior a 60 meses.
3- A tabela salarial produzirá efeitos de 1 de janeiro a 31 de dezembro de cada ano.
4- Para efeitos desta cláusula, considera-se que a expressão «Tabela salarial», abrange as remunerações de base mínimas, bem como, outras formas de remuneração.”
33. O Tribunal a quo julgou improcedente a argumentação do recorrente acima enunciada no parágrafo 31 com base na seguinte fundamentação, da qual o recorrente discorda:
“Pretende, ainda, o Autor a condenação da Ré no pagamento das diferenças salariais relativas à não aplicação retroactiva do Acordo de Empresa de 2018.
Para tanto, sustenta que o referido Acordo estabeleceu novos montantes para o subsídio de alimentação, para o subsídio de falhas e para o subsídio de transporte, devendo ter sido aplicado retroactivamente, com efeitos a Janeiro de 2018.
Sustenta o Autor que apenas assim se conseguirá interpretar o Acordo de Empresa em conformidade com o que foi a efectiva pretensão dos seus outorgantes, na medida em que ao esclareceram a que se referiam as tabelas salariais e ao expressamente consagrarem que as tabelas salariais produziriam efeitos de 01 de Janeiro a 31 de Dezembro de cada ano, quiseram, de forma clara, estabelecer que as suas alterações seriam aplicadas a partir de Janeiro de 2018.
Apreciando e decidindo.
A convenção colectiva de trabalho, enquanto fonte específica laboral, com base constitucional (cfr. artigos 1º, 2 e 476º, do Código do Trabalho e artigo 56º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa) encontra-se subordinada à lei e deve ser interpretada em conformidade com os critérios fixados pelo artigo 9º, do Código Civil. – Neste sentido, vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Abril de 2014, com o número de processo 3230/11.6TTLSB.S1, de 27 de Março de 2015, com o número de processo 3243/11.8TTLSB.S1 e de 28 de Setembro de 2017, com o número de processo 1148/16.5TBBRG.G1.S2 , disponíveis para consulta in www.dgsi.pt.
Como qualquer outro instrumento normativo, os instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho apenas dispõem para futuro. Neste sentido e em consonância com o previsto pelo regime geral (cfr. artigo 12º, do Código Civil), o artigo 478º, n.º 1, alínea c), do Código do Trabalho estabelece que estes instrumentos não podem conferir força retroactiva às suas cláusulas.
A única excepção possível a esta regra geral são as cláusulas de natureza pecuniária que podem ter efeito retroactivo, sendo que em causa estão apenas as cláusulas de conteúdo retributivo (retribuição em sentido estrito e respectivos complementos de natureza retributiva ou meramente remuneratória) e não outras cláusulas que possam ter conteúdo ou efeitos pecuniários. Uma vez que a norma consagra uma excepção a um princípio geral (no caso, o princípio da não retroactividade dos actos normativos), impõe-se a sua interpretação restritiva. – Maria do Rosário Palma Ramalho, in Tratado de Direito do Trabalho, Parte III, 3.ª Edição, pág. 288-289.
Estando em causa apenas as cláusulas de natureza retributiva em sentido estrito, encontramo-nos no âmbito da denominada retribuição-base (correspondente à parcela retributiva contratualmente devida que condiz com o exercício da actividade desempenhada pelo trabalhador de acordo com o período normal de trabalho que tenha sido definido), das diuturnidades e demais prestações pecuniárias pagas regularmente como contrapartida da actividade (como, por exemplo, a compensação a título de isenção de horário de trabalho, subsídio de turno, subsídio de trabalho nocturno, subsídio de isolamento, subsídio de risco, complemento por isenção de horário). Estas prestações, habitualmente denominados “complementos salariais”, assumem igualmente carácter de obrigatoriedade. Assim, além da retribuição base, são normalmente ajustadas outras parcelas retributivas que cabem igualmente no conceito de retribuição. - Pedro Romano Martinez, in “Direito do Trabalho”, 11.ª Ed., págs. 576 e s..
A retribuição é, destarte, constituída pelo conjunto de valores (pecuniários ou não) que a entidade empregadora está obrigada a pagar, regular e periodicamente ao trabalhador, em razão da actividade por ele desenvolvida, ou, mais rigorosamente, da força de trabalho por ele oferecida. Quanto às atribuições patrimoniais de carácter variável, para estas integrarem o conceito de retribuição, para além de constituírem a contrapartida do trabalho, devem ser auferidas regular e periodicamente.
No que respeita à característica de periodicidade e regularidade da retribuição, essencial para que uma determinada atribuição patrimonial concedida ao trabalhador seja considerada retribuição e, nessa medida, para se aferir se deve ser considerada para efeitos do cálculo do montante a pagar a título de férias, subsídio de férias e subsídio de natal, mostra-se jurisprudencialmente resolvida, estando assente que, para que uma prestação seja considerada como regular e periódica, se revela necessário que seja paga, durante o período de um ano, pelo menos durante 11 meses. – Neste sentido, vide Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 14/2015, de 01 de Outubro de 2015, publicado no DR 1.ª série, de 29/10/15, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 16 de Novembro de 2015, com o número de processo 548/12.4TTGDM.P1, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Março de 2016, com o número de processo 3921/13.7TTKSB.L1.S1, de 03 de Novembro de 2016, com o número de processo 3921/13.7TTKSB.L1.S1, todos disponíveis para consulta in www.dgsi.pt.
Tendo em mente o que assim se deixa explanado, haverá que atentar que o que pelo Autor é peticionado é o pagamento de retroactivos relativamente ao aumento de subsídio de alimentação, subsídio para falhas de dinheiro e subsídio de transporte.
Nenhum destes elementos integra o conceito de retribuição base e nenhuma prova se efectuou no sentido de que, sendo pagos de forma regular e periódica, podem ser classificados como complementos salariais.
Acresce que, de acordo com o artigo 260º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, do Código do Trabalho, o abono para falhas não se considera retribuição, salvo quando tais importâncias, na parte que exceda os montantes normais, tenham sido previstas no contrato ou se devam considerar pelos usos como elemento integrante da retribuição do trabalhador.
Recorde-se que o trabalho prestado é a causa determinante da retribuição, sendo as duas prestações de carácter correspectivo e sinalagmático: retribui-se quem trabalha, trabalha-se porque se é retribuído. Este carácter de correspectividade da retribuição faz excluir do seu campo certas atribuições patrimoniais que não têm causa no serviço prestado, e em que não está presente a causa-função de troca de serviços por dinheiro, mas que assumem outra função jurídico-prática. Queremos referir-nos especialmente às compensações por prejuízos que o trabalhador sofre por causa do trabalho (p. ex., abonos para falhas). Um dos exemplos mais frisantes é o do abono para falhas, concedido a cobradores e caixas, já que, como dizem os nossos tribunais, «tal abono não tem carácter remuneratório do trabalho prestado, mas indemnizatório do risco a que na sua actividade aqueles empregados estão sujeitos». Na verdade, neste tipo de trabalhos pode suceder com alguma frequência que o trabalhador tenha de responder por quantias em falta decorrentes de uma errada manipulação ou de uma deficiente contabilização dos valores com que quotidianamente lida. Daí a ideia de que estes «abonos para falhas» têm, normalmente, uma função compensatória de uma responsabilidade específica da actividade em causa. - Bernardo Lobo Xavier, in Direito do Trabalho, Verbo, 2011, pág. 547 e 563.
Determinada prestação, ainda que paga de forma regular e periódica não constituirá retribuição se tiver uma causa específica e individualizável, diversa da remuneração do trabalho ou da disponibilidade da força de trabalho.
É o que ocorre com o subsídio para falhas de dinheiro, na medida em que esta nada mais visa do que compensar o trabalhador pelos riscos inerentes às funções de – como expressamente se retira da cláusula 38.ª do Acordo de Empresa de 2018 “trabalhadores que normalmente movimentem avultadas somas de dinheiro e motoristas de serviço público, guardas-freio e técnicos de tráfego e condução, no exercício da função de condução - e à responsabilidade que advém para o trabalhador decorrente de eventuais falhas nessas funções.
Em causa não está, destarte, remunerar o trabalho, ou a disponibilidade para o trabalho, mas sim compensar o risco decorrente das específicas funções desempenhadas.
Donde se conclui que o valor recebido a título de subsídio para falhas não representa ganho para o trabalhador, já que em caso de falhas nos recebimentos e/ou pagamentos o trabalhador terá que suportar as mesmas.
Nesta sequência, ainda que se verificasse a natureza regular e periódica do subsídio para falhas, o mesmo não constitui uma contrapartida da prestação do trabalho, pelo que não integra a retribuição.
O mesmo raciocínio se efectua para o subsídio de transporte (cfr. cláusula 40.ª do Acordo de Empresa de 2018), na medida em que este se destina a comparticipar a despesa de deslocação, no caso de a rede de transportes próprios não estar implementada, em face da eventual dificuldade em encontrar forma de transporte àquela hora específica.
Não encontra, assim, uma ligação intrínseca à prestação do trabalho ou à disponibilidade do trabalhador, antes assumindo a natureza de uma ajuda na despesa, de comparticipação nos custos ou despesas.
Encontramo-nos, assim, fora do âmbito do carácter retributivo.
A igual conclusão se chega no que respeita ao subsídio de alimentação, na medida em que, em conformidade com o estabelecido pelo artigo 260º, n.º1, alínea a) e n.º2, não se considera este retribuição, a não ser que nos deparemos com quantias excedentes aos montantes normais e tenham estas sido previstas no contrato ou devam considerar-se pelos usos como elemento integrante da retribuição do trabalhador.
Nestes casos específicos, cabe ao Autor provar que tais importâncias excediam os montantes normais e que, nessa parte, tinham sido previstas no contrato de trabalho ou que deviam considerar-se pelos usos como elemento integrante da retribuição do trabalhador.
O Autor nada disto alegou ou provou.
Tudo ponderado, concluímos que as alterações em causa, cuja eficácia retroactiva o Autor pretende se não reconduzem, afinal, a cláusulas de natureza retributiva em sentido estrito, pelo que a excepção prevista pelo artigo 478º, alínea c), do Código do Trabalho se não lhes mostra aplicável.
Improcede, assim, a pretensão do Autor.
34. Para resolver a discordância do recorrente com a solução pela qual optou o Tribunal a quo, citada no parágrafo anterior, importa distinguir, por um lado, o âmbito de aplicação da excepção à não retroactividade prevista no artigo 478.º n.º 1 – c) do Código do Trabalho (CT) e, por outro lado, o âmbito de aplicação da cláusula 2.º do AE de 2018.
35. No que respeita ao artigo 478.º n.º 1 – c) do CT, esse preceito consagra uma regra geral de proibição da retroactividade das cláusulas dos instrumentos de regulamentação colectiva do trabalho, mas admite, excepcionalmente, a retrocatividade das cláusulas de natureza pecuniária inseridas em qualquer tipo de instrumento de regulamentação colectiva de trabalho – cf. António Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 21.ª Edição, Almedina, página 979 e Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 294/14.
36. Na medida em que consagra uma norma excepcional, o artigo 478.º n.º 1 – c) do CT não comporta aplicação analógica, mas admite interpretação extensiva – cf. artigo 11.º do CC.
37. À luz dos elementos de interpretação previstos no artigo 9.º do CC, o Tribunal leva em conta que a razão de ser da retroactividade consagrada no artigo 478.º n.º 1 – c) do CT é obviar a que a demora nas negociações do instrumento de regulamentação colectiva do trabalho conduza à perda de valor do salário real durante esse período e/ou permitir a recuperação de níveis de retribuição precedentes que não tenham acompanhado a subida do custo de vida (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 294/14, ponto 7 e doutrina aí citada).
38. O elemento literal do artigo 478.º n.º 1 – c) do CT alude, porém, a “cláusula de natureza pecuniária” e não à noção de “retribuição” constante do artigo 258.º do CT. Ou seja, tomando por base o elemento literal, é forçoso constatar que a expressão “cláusula de natureza pecuniária” usada no artigo 478.º n.º 1 – c) do CT não coincide necessariamente com a noção de “retribuição” constante do artigo 258.º do CT.
39. O problema que se coloca é então o de saber se a prestação pecuniária a que alude o artigo 478.º n.º 1 – c) do CT abrange apenas a noção de retribuição consagrada no artigo 258.º do CT ou a noção de retribuição com o sentido amplo consagrado no artigo 157.º n.º 2 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), segundo o qual, para efeitos da igualdade de remuneração entre trabalhadores masculinos e femininos pela prestação de trabalho igual, entende-se por "remuneração" o salário ou vencimento ordinário, de base ou mínimo, e quaisquer outras regalias pagas, directa ou indirectamente, em dinheiro ou em espécie, pela entidade patronal ao trabalhador em razão do emprego deste último.
40. Ou seja, a noção ampla de retribuição consagrada no artigo 157.º n.º 2 do TFUE engloba o conjunto das vantagens patrimoniais de que beneficia o trabalhador em razão do contrato de trabalho, quer estas sejam ou não contrapartida do trabalho prestado.
41. Dito isto, afigura-se que a letra do artigo 478.º n.º 1 – c) do CT (“prestação pecuniária”) abrange prestações/regalias incluídas noção ampla de retribuição consagrada no artigo 157.º do TFUE desde que tenham natureza pecuniária. Acresce que, a razão de ser da excepção da retroactividade das cláusulas pecuniárias consagradas nos instrumentos de regulamentação colectiva do trabalho, acima mencionada (evitar ou recuperar a erosão da retribuição), verifica-se em relação a todas as vantagens patrimoniais de que o trabalhador beneficia em razão do seu contrato de trabalho quer sejam ou não contrapartida do trabalho prestado.
42. Em abono desta solução, é elucidativa a situação em causa no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 294/14 em que se discute a aplicação retroactiva de cláusulas constantes de uma portaria de extensão que abrangem a tabela salarial, o subsídio de alimentação e o subsídio de turno, sem que aí seja posta em causa a natureza pecuniária de todas essas cláusulas.
43. Pelo que, com base na análise dos elementos de interpretação acima mencionados, o Tribunal julga que o que releva para a aplicação do disposto no artigo 478.º n.º 1 – c) do CT é a natureza pecuniária das cláusulas do instrumento de regulamentação coletiva do trabalho cuja aplicação retroactiva está em causa e que isso pode abranger todas as vantagens patrimoniais de que o trabalhador beneficia em razão do seu contrato de trabalho, quer sejam ou não contrapartida do trabalho prestado.
44. Em consequência, afigura-se que às cláusulas aqui em litígio, respeitantes aos valores dos subsídios de refeição, transporte e falhas, pode ser atribuída eficácia retroactiva à luz do disposto no artigo 478.º n.º 1 – c) do CT ainda que tais vantagens patrimoniais não sejam contrapartida do trabalho prestado no sentido estrito previsto no artigo 258.º do CT. O que sucede é que, para que tais cláusulas tenham eficácia retroactiva é necessário, adicionalmente, que as partes que intervieram na negociação colectiva, tenham previsto isso mesmo. Ora, é essa questão que será resolvida a seguir à luz do disposto na cláusula 2.ª do AE de 2018.
45. Assim, para saber se na cláusula 2.º n.ºs 3 e 4 do AE de 2018 as partes previram a retroactividade das cláusulas relativas aos subsídios de refeição, transporte e falhas há que interpretar o conteúdo normativo da cláusula 2.ª do AE de 2018 à luz do disposto no artigo 9.º do CC. A esse propósito, o Tribunal recorda que os instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho são fontes de direito (cf. artigos 1 a 3.º do CT) cujo conteúdo normativo deve ser interpretado de acordo com os critérios previstos no artigo 9.º do CC (cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no processo 5815/20.0T8ALM.S1).
46. Dito isto, a cláusula 2.º n.º 3 do AE de 2018 prevê que a tabela salarial produz efeitos de 1 de Janeiro a 31 de Dezembro de cada ano. Da letra desse preceito resulta que o mesmo prevê a aplicação retroactiva da tabela salarial, objecto do AE de 2018, com efeitos a 1 de Janeiro de 2018.
47. Porém, a solução do presente litígio depende sobretudo da interpretação da cláusula 2.º n.º 4 do AE de 2018 que prevê que, para efeitos dessa cláusula, se considera que a expressão “Tabela salarial”, abrange as remunerações de base mínimas, bem como outras formas de remuneração. Ou seja, importa saber quais são as prestações incluídas no âmbito das remunerações de base mínimas e outras formas de remuneração.
48. Atenta a natureza excepcional da retroactividade prevista na cláusula 2.º do AE de 2018, o Tribunal leva em conta que se aplica à sua interpretação a proibição da analogia constante do artigo 11.º do CC. Além disso, o Tribunal aplica os critérios de interpretação previstos no artigo 9.º do CC, em particular, o elemento literal, a razão de ser da retroactividade, o elemento histórico, as circunstâncias em que foi adoptada a cláusula 2.ª do AE de 2018 e a unidade do sistema jurídico ponderada à luz das cláusulas 36.ª, 37.ª. 38.ª. 40ª e 67.ª do AE 2018 e dos artigos 258.º e 260.º do CT, na medida em que estes preceitos do CT não tenham sido afastados pelo AE de 2018 – cf. artigo 3.º n.º 1 do CT.
49. Começando pelo elemento literal, é forçoso constatar que não existe uniformidade terminológica no AE de 2018 uma vez que o termo remuneração (“remuneração de base mínima”) é usado na cláusula 2.º n.º 4 para designar a mesma prestação designada por retribuição na cláusula 36.º e que aí corresponde à noção de retribuição consagrada no artigo 258.º do CT. De onde resulta que, no que respeita ao uso dos termos retribuição e remuneração, o elemento literal não é esclarecedor na medida em que não é usado no AE de 2018 de um modo que corresponda inequivocamente à distinção doutrinal entre remuneração (que abrange todas as vantagens patrimoniais do trabalhador obtidas em razão do contrato de trabalho, quer sejam ou não contrapartida do trabalho prestado) e retribuição (que abrange apenas as prestações de natureza patrimonial que sejam contrapartida do trabalho) – cf. sobre a distinção doutrinal entre os dois conceitos, Maria do Rosário Palma Ramalho, Tratado de Direito do Trabalho, Parte II, 9.ª Edição, Almedina, página 610.
50. Não sendo o elemento literal suficientemente esclarecedor, coloca-se a questão de saber se a cláusula 2.º n.º 4 do AE de 2018 comporta aplicação analógica ou extensiva, na medida em que a interpretação defendida pelo recorrente tem um mínimo de expressão na letra dessa cláusula apesar desse teor literal não ser esclarecedor, como foi explicado no parágrafo anterior. Pelos mesmos motivos já acima indicados a propósito do artigo 478.º n.º 1 – c) do CT, consagrando a cláusula 2.º n.ºs 3 e 4 do AE de 2018 uma excepção à regra da proibição da retroactividade prevista no artigo 478.º n.º 1 – c) do CT, tal cláusula não comporta aplicação analógica. Porém, é possível fazer uma interpretação extensiva – cf. artigo 11.º do CC. A aplicação analógica distingue-se da interpretação extensiva na medida em que o intérprete recorre à analogia quando existe uma lacuna (cf. artigo 10.º do CC) e recorre à interpretação extensiva quando o legislador (neste caso as partes que negociaram o AE de 2018) disseram menos do que aquilo que queriam dizer.
51. Na situação em análise, não sendo possível a aplicação analógica da cláusula 2.ª n.ºs 3 e 4 do AE de 2018, importa verificar se nessa cláusula, as partes que intervieram na negociação colectiva disseram menos do que queriam dizer. Para isso, o Tribunal socorre-se dos restantes critérios de interpretação previstos no artigo 9.º do CC.
52. No que respeita à razão de ser da retroacividade das cláusulas de natureza pecuniária, é válida a análise acima feita no parágrafo 41. Dessa análise resulta que as partes podem atribuir às cláusulas aqui em litígio efeito retroactivo. Porém, por si só esse factor não é decisivo para saber se, no caso concreto, as partes quiseram abranger os subsídios de falhas, transporte e alimentação na cláusula 2.º n.ºs 2 e 3 do AE de 2018.
53. Quanto ao elemento histórico, pelos motivos acima explicados na análise da questão B, o recorrente não logrou provar que a prática da recorrida era a de retroagir a 1 de Janeiro a actualização dos subsídios de falhas, transporte e alimentação.
54. No que respeita à unidade do sistema jurídico, o Tribunal leva em conta o seguinte. A cláusula 36.º do AE de 2018, que tem por epígrafe “Retribuição do trabalho”, consagra no n.º 1 uma definição de retribuição idêntica à prevista no artigo 258.º n.º 2 do CT; por seu lado, o n.º 2 dessa cláusula remete expressamente para as remunerações mínimas dos trabalhadores constantes dos anexos I (“Escalões de vencimento”) e II (“Tabela salarial”) do AE de 2018. A cláusula 37.ª do AE de 2018, que tem por epígrafe “Diuturnidades”, prevê expressamente que as diuturnidades fazem parte integrante da retribuição, solução que é idêntica à consagrada no artigo 262.º n.º 2 – b) do CT, que qualifica as diuturnidades como prestação retributiva. Em consequência, tanto as prestações previstas nos anexos I e II, como as diuturnidades previstas na cláusula 37ª, do AE de 2018, estão cobertas pela definição de “tabela salarial e remunerações de base mínimas e outras formas de remuneração”, a que alude a cláusula 2.º n.º 4 do AE de 2018.
55. Já as cláusulas 38.ª, com a epígrafe “Subsídio para falhas de dinheiro”, 40.ª “Subsídio de transporte” e 67.ª “Subsídio de alimentação”, do AE de 2018, não contêm a previsão expressa de que essas quantias fazem parte da retribuição. Em consequência, tais cláusulas não afastam a aplicação do disposto no artigo 260.º n.ºs 1 e 2 do CT, o que as partes podiam ter feito, ao abrigo do artigo 3.º n.º 1 do CT mas não fizeram. Ora, não tendo sido afastada a aplicação do artigo 260.º n.ºs 1 e 2 do CT, afigura-se que, por força de tal preceito legal, as prestações previstas nas cláusulas 38.ª, 40ª e 67.ª do AE de 2018 não se consideram retribuição. Adicionalmente, as partes não previram a aplicação retroactiva da actualização dos valores aqui em causa quando reviram o acordo de empresa em 2019 (cf. facto provado OO).
56. Do contexto da negociação colectiva mencionado no parágrafo anterior, resulta que a prática foi não atribuir efeito retroactivo às actualizações dos subsídios de transporte, alimentação e falhas. Em tais circunstâncias, se por um lado é compreensível que o recorrente defenda a aplicação retroactiva das cláusulas de natureza pecuniária respeitantes aos subsídios de falhas, transporte e alimentação, a fim de impedir a erosão das contrapartidas patrimoniais dos trabalhadores, por outro lado, convém recordar que o recorrente não pode obter pela via da interpretação da cláusula 2.º n.º 3 e 4 do AE de 2018 o que não lhe foi possível alcançar pela via da negociação (cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no processo 5815/20.0T8ALM.S1).
57. Acresce que, tal como refere a sentença impugnada, o recorrente não ilidiu a presunção de que as quantias em litígio não se consideram retribuição, como lhe cabia (cf. artigo 260.º n.º 1 segunda parte e n.º 2 do CT e artigo 350.º do CC).
58. À luz dos factores acima mencionados, não se afigura que as partes no AE de 2018 tenham dito menos do que queriam dizer.
59. Em consequência, tendo em conta a falta de uniformidade terminológica do AE de 2018 e os restantes critérios previstos no artigo 9.º do CC acima analisados, não existe fundamento para interpretar extensivamente a cláusula 2.º n.º 4 do AE de 2018 de modo a abranger no seu âmbito os subsídios de transporte, falhas e alimentação; tais prestações, ainda que consagradas em cláusulas de natureza pecuniária para efeitos do artigo 478.º n.º 1 – c) do CT, não foram, neste caso, abrangidas pela retroactividade estipulada pelas partes na cláusula 2.º n.ºs 3 e 4 do AE de 2018.
60. Motivos pelos quais improcede o recurso e se mantém a sentença impugnada.
Custas
61. As custas do recurso são da responsabilidade do recorrente que nele decaiu totalmente – cf. artigo 527.º do CPC, ex vi artigo 87.º n.º 1- a) do CPT. Estando o recorrente isento de custas não é condenado no seu pagamento, sem prejuízo de responder, a final, pelos encargos a que deu origem no processo – cf. artigo 4.º n.º 1 – f) e n.º 6 do Regulamento das Custas Processuais (RCP).
Em síntese
62. Não houve omissão de pronúncia, nem se verifica a alegada infracção ao artigo 608.º do CPC. A sentença recorrida não enferma da nulidade prevista no artigo 615.º n.º 1 – d) do CPC.
63. Improcede a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
64. Não obstante o carácter pecuniário (para efeitos da aplicação do artigo 478.º n.º 1 – a) do CT) das cláusulas do AE de 2018, aqui em litígio, que estabelecem os subsídios de falhas, transporte e alimentação, o certo é que as partes não previram na negociação colectiva que tais cláusulas estejam abrangidas pela retroactividade consagrada na cláusula 2.º n.ºs 3 e 4 do AE de 2018.
65. Motivos pelos quais improcede o recurso e se mantém a sentença impugnada.
Decisão
Acordam os Juízes desta secção em:
I. Julgar improcedente o recurso e manter a sentença recorrida.
II. Não condenar o recorrente nas custas do recurso por delas estar isento, sem prejuízo do disposto no artigo 4.º n.º 6 do RCP.

Lisboa, 20 de Novembro de 2024
Paula Pott  
Sérgio Almeida
António Alves Duarte