Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
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| Relator: | INÊS MOURA | ||
| Descritores: | INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL CONTRADIÇÃO PEDIDO CAUSA DE PEDIR PROPRIEDADE HORIZONTAL USUCAPIÃO PARTE COMUM | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 04/10/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Texto Parcial: | N | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
| Sumário: | (art.º 663.º n.º 7 do CPC) 1. O pedido corresponde à pretensão formulada pelo A. e tem de assentar em fundamentos de facto concretos - causa de pedir - que de uma forma lógica permitem alcançar aquela pretensão, apresentando-se como compatíveis, sendo um o corolário do outro, e não como contraditórios, sob pena de ineptidão da petição inicial, nos termos do art.º 186.º n.º 2 al. b) do CPC. 2. A alegação factual da A. no sentido de que o espaço que ocupa não é, nem nunca foi parte comum do prédio onde tem as suas frações, antes se trata de espaço público, sendo dessa forma que o conheceu e o reconheceu, apresenta-se como totalmente contraditório com o pedido que formula, de reconhecimento do seu direito de propriedade exclusiva adquirido por usucapião sobre uma parte do logradouro do prédio constituído em propriedade horizontal, defendendo em simultâneo que tal espaço não integra o prédio que não tem logradouro e pedindo o reconhecimento de tal direito pelos RR. condóminos, bem como o suprimento judicial da vontade dos RR. que obstem à alteração do título constitutivo da propriedade horizontal. 3. A ineptidão da petição inicial por contradição entre o pedido e a causa de pedir apresenta-se como uma exceção dilatória que não é passível de ser suprida, por não corresponder a uma mera irregularidade do articulado ou a uma insuficiência ou imprecisão na exposição da matéria de facto, nos termos previstos no art.º 590.º n.º 3 e 4 do CPC, não justificando por isso o convite para que a A. providencie pelo suprimento de tal exceção dilatória ou pelo aperfeiçoamento do seu articulado, de acordo com o n.º 2 al. a) e b) de tal artigo. | ||
| Decisão Texto Parcial: | |||
| Decisão Texto Integral: | Acordam na 2ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa: I. Relatório AA vem instaurar a presente ação declarativa de condenação contra os RR. BB, CC, DD e EE, FF e GG, HH, II, JJ, KK e LL, MM, e o Condomínio do prédio sito na ... ..., pedindo que seja reconhecido o direito de propriedade da Autora sobre a área de cerca de 50m2 a tardoz do prédio, sito na ..., em ..., como fazendo parte da fração B, esta já sua propriedade, condenando-se os RR. a reconhecerem tal direito de propriedade e decretando-se o suprimento judicial da vontade dos RR., que obstem à alteração da competente alteração do título constitutivo da propriedade horizontal. Alega, em síntese, para fundamentar os seus pedidos, que é proprietária das frações autónomas designadas pelas letras A e B, do prédio urbano, constituído em regime de propriedade horizontal, sito na ..., da freguesia de ..., sendo os RR. os proprietários das restantes frações autónomas que integram o referido prédio. Mais alega que: a) a tardoz do prédio sempre existiu um espaço livre de cerca de 100 metros quadrados o qual, num momento inicial não era ocupado, desconhecendo, a A. e os seus vizinhos o seu proprietário. b) Nos documentos relativos ao prédio não existe qualquer referência a um logradouro ou espaço exterior pertença deste; c) Para a A. e para os habitantes dos prédios próximos tal espaço era baldio, em terra batida, onde cresciam algumas árvores e mato; d) Era a Junta de Freguesia que procedia à sua limpeza, sendo que qualquer transeunte acedia livremente àquela área; e) A A. chegou a ocupar metade de tal espaço para instalar uma esplanada no seu estabelecimento, tendo pedido tal autorização à Junta de Freguesia, que lhe foi concedida; f) Posteriormente, tal espaço foi vedado pelos habitantes das caves dos prédios que os utilizavam com uso exclusivo; g) Quando a A. deixou de ter a esplanada do seu estabelecimento, tal espaço foi ocupado pela proprietária da Cave Direita que passou a utilizá-lo apenas em seu proveito, tendo colocado uma vedação e um portão de acesso. h) A A. quando adquiriu a fração B e desde 22 de fevereiro de 2001, ocupa cerca de 50 metros quadrados, a tardoz de tal fração, que vedou com rede, colocou muretes e mosaicos no chão, tendo nesse local os seus cães e plantas. i) Em 21 de Fevereiro de 2011, a Câmara Municipal solicitou um pedido de informação nos seguintes termos: «Pedido de informação sobre os logradouros existentes a tardoz dos edifícios situados na ... em ...» «Consultado os processos de licenciamento das construções, abaixo indicadas, conseguiu-se aferir que a área em causa é pública (…)». j) Em 13 de Março de 2011, a Autora teve conhecimento da notificação da Câmara Municipal de Loures no âmbito de tal fiscalização municipal, tendo a mesma o intuito de averiguar a situação dos logradouros “alegadamente de domínio público”. Antes de passar a enunciar o direito, refere ainda a A. nos art.º 40.º a 46.º da petição inicial: 40º O que fez concluir que os espaços a tardoz do prédio da ora Autora e dos contíguos, não estando descritos na propriedade horizontal, não são parte comum do prédio, tão pouco são afectos a alguma das fracções. 41º Com efeito, quer o condomínio e ou qualquer condómino, ou qualquer entidade, nunca obstaram a que a Autora usasse exclusivamente tal espaço como de seu se tratasse. 42º Motivo pelo qual estranhou o teor da carta datada de 22 de Setembro de 2021, por parte da Administração do Condomínio, cuja cópia se junta como Doc. 21. 43º Com efeito, analisada a escritura de propriedade horizontal, que ora se junta como Doc. 22, se verifica que não obstante a mesma referir que o prédio tem uma área coberta de 154m2 e a área descoberta de 100,80m2, tal documento não faz qualquer menção a logradouro. 44º Tão pouco refere que alguma dessa área descoberta esteja afecta a alguma ou algumas das fracções. 45º E a propriedade horizontal foi constituída tendo por base o Auto de Vistoria da Câmara Municipal de Loures de 19 de Junho de 2000, o Doc. 23, cuja cópia se junta, no qual se lê: “1- Que o prédio se compõe de dez, (10), frações destinadas a habitação e de uma, 01, fração destinada a ocupação (estabelecimento comercial).” “2- Que as dez, (10), frações destinadas a habitação são autónomas, constituem unidades independentes, distintas e isoladas entre si, tendo estas frações saída própria para a parte comum do prédio, (escada), e esta saída direta para a via pública e a fração de ocupação possui saída própria para a via pública, pelo que satisfaz os requisitos legais estabelecidos no artigo 1415º do Código Civil. 46º Por outro lado, analisada a Certidão da Conservatória do Registo Predial o Doc. 1, e caderneta predial actual o Doc. 2, as mesmas referem a existência de um logradouro com a área de 100,80m2, mas entrecruzada esta factualidade com a falta de clarificação na escritura de propriedade horizontal, e com a ausência no projecto de licenciamento Camarário, (vide as plantas juntas), dúvidas se levantam quanto à propriedade dos logradouros, e, em concreto, se são integrantes das áreas comuns do prédio sito da .... 47º Mais ainda, analisada a caderneta predial de 12 de Dezembro de 2000, o Doc. 24, da mesma não consta qualquer menção a logradouro. 48º Ora, mesmo que se entenda que o espaço em questão é logradouro do prédio, e assim sendo área comum do condomínio, certo é que a Autora, vem utilizando o mesmo como sendo seu, desde a data da aquisição da fracção A e da fracção B, que foi em 22 de Fevereiro de 2001. * Realizada a citação dos RR. e findos os articulados, foi proferido despacho a conferir às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre a ineptidão da petição inicial, por contradição entre causas de pedir e destas com os pedidos. A A., em resposta, vem dizer que a presente ação foi despoletada pela carta do condomínio para retirar do logradouro do prédio os seus cães e devolver o espaço, “arrogando-se assim o condomínio o proprietário do logradouro, o que não traduz a posição da Autora”, solicitando prazo para proceder ao aperfeiçoamento da petição inicial. O R. Condomínio pugnou pela verificação da exceção dilatória de ineptidão da Petição Inicial, com a consequente absolvição dos RR. da instância. Foi proferida decisão, que julgou verificada a ineptidão da petição inicial por contradição entre o pedido e a causa de pedir, que não dá lugar ao aperfeiçoamento da petição, por se tratar de uma exceção dilatória insuprível. É com esta decisão que a A. não se conforma e dela vem interpor recurso, pedindo a sua revogação e substituição por outra que determine o prosseguimento dos autos, apresentando as seguintes conclusões, que se reproduzem: 1º A Recorrente não se conforma com a Douta Sentença proferida nos Autos a quo, pelo que dela recorre; 2º Entende a Recorrente que deverá ser submetida à apreciação deste Tribunal Superior, a sentença do Tribunal a quo que julgou verificada a nulidade processual de ineptidão da Petição Inicial, suscitada oficiosamente, por contradição do pedido e da causa de pedir, ao abrigo do disposto nos artigos 186.º, n.ºs 1 e 2, al. b), 278.º, n.º 1, al. b), 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, al. b) e 578.º todos do Código de Processo Civil, absolvendo os Réus, tendo assim o presente recurso como objecto matéria de direito. 3º Por tudo o que ficou exposto nas Motivações supra, o Tribunal a quo deveria, antes de decidir pela nulidade processual de ineptidão da Petição Inicial, ter permitido à Recorrente aperfeiçoar a sua Petição Inicial, tal como inclusive esta requereu. 4º No exercício do contraditório, a recorrente, ora Autora, além de se ter pronunciado, requereu prazo de 20 (vinte) dias para aperfeiçoar a Petição Inicial, não tendo o Tribunal a quo deferido ou indeferido tal requerimento. 5º O Tribunal fundamentou a sua decisão final considerando que as “versões fáticas distintas” quanto à propriedade do terreno e apresentadas pela Autora na P.I. resultavam numa evidente contradição entre o pedido e a causa de pedir, constituindo por isso uma exceção dilatória insuprível, e, por essa mesma razão, sem lugar a aperfeiçoamento da referida peça processual. 6º Ora, essas versões apresentadas pela Autora foram explanadas na sua Petição Inicial, visto ao longo dos mais de 30 (trinta) anos que vem habitando o prédio, terem sido levantadas, dúvidas quanto à titularidade do espaço a tardoz, objecto de discussão nos Autos. 7º Tendo sido, inclusive, uma carta do condomínio, arrogando- se este de proprietário (em que interpelou a Autora para que a mesma retirasse do logradouro os seus cães e uma vedação, e devolvesse ao condomínio em trinta dias esse espaço livre) que despoletou o caso sub judice, e maxime também para que a Autora visse dissipadas tais dúvidas. 8º Está a Recorrente em crer que não existe contradição entre o pedido e a causa de pedir, pelo que o que expôs a nível factual na respetiva Petição Inicial, quando muito poderá estar ferido de deficiência ou imprecisão, o que justificaria, tão só, um convite ao aperfeiçoamento. 9º Neste sentido a Jurisprudência: A existência de um quadro de contradição do objecto do processo por dedução de pedido substancialmente incompatível é sanável, por aplicação do regime vinculativo do dever de gestão processual estabelecido no n.º 2 do artigo 6.º e nos n.ºs 2 e 3 do artigo 590.º do Código de Processo Civil. (sublinhado nosso) – in Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 17/06/2021. 10º Sustenta ainda o Tribunal a quo que a incompatibilidade constante na Petição Inicial entre a causa de pedir e o pedido é reveladora de uma absoluta falta de nexo lógico, e que o pedido e a causa de pedir se negam reciprocamente, tese que, e salvo o devido respeito, não pode a Recorrente partilhar por entender ser pacificamente possível determinar qual o núcleo e sentido essencial da acusa de pedir na peça processual ora apresentada. 11º Mais, (…) II - Se, não obstante a confusão, obscuridade imperfeição, equivocidade, incorrecção ou deficiência, na exposição factual, tal determinação -vg. Pela própria posição assumida pelo réu - for possível, não deve o juiz declarar a ineptidão, mas antes convidar o autor a suprir e corrigir os vícios e as imperfeições detectadas, nos termos dos art°s 265°, 266° e 508° do CPC. (negrito nosso) – in Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 16 de Junho de 2009. 12º E ainda, “I– O nº 3 do art.º 186º do Código de Processo Civil exige, para afastar a procedência da excepção de ineptidão da petição inicial, que, além da dedução da contestação, o réu tenha interpretado convenientemente a petição inicial, aqui entendida como pretensão processualizada integrada pelo pedido e causa de pedir.” – in Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 27 de Abril de 2021. 13º E a realidade é que os próprios Réus contestaram a Petição Inicial, defendendo-se também por impugnação, e pedindo a sua absolvição, o que bem demonstra que entenderam e interpretaram convenientemente a peça ora apresentada pela Autora. 14º Assim, entende a Autora que ao invés do Tribunal a quo ter decidido a nulidade processual por ineptidão da Petição Inicial, deveria ter aproveitado ao máximo a atividade processual já desenvolvida, ao abrigo dos artigos 6º do CPC (Dever de Gestão Processual) e 590º do CPC (Gestão inicial do processo), o que não fez. 15º Veja-se o teor dos preceitos com relevo para à presentes Conclusões: - Artigo 6º nº 2 do CPC: O juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo. - Artigo 590º nºs 2, 3, 4, 5 e 6 do CPC: (…) 2 - Findos os articulados, o juiz profere, sendo caso disso, despacho pré- saneador destinado a: (…) b) Providenciar pelo aperfeiçoamento dos articulados, nos termos dos números seguintes; (…) 3 - O juiz convida as partes a suprir as irregularidades dos articulados, fixando prazo para o suprimento ou correção do vício, designadamente quando careçam de requisitos legais ou a parte não haja apresentado documento essencial ou de que a lei faça depender o prosseguimento da causa. 4 - Incumbe ainda ao juiz convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido. 5 - Os factos objeto de esclarecimento, aditamento ou correção ficam sujeitos às regras gerais sobre contraditoriedade e prova. 6 - As alterações à matéria de facto alegada, previstas nos n.ºs 4 e 5, devem conformar-se com os limites estabelecidos no artigo 265.º, se forem 16º Entendendo-se assim, e salvo melhor opinião, que o Tribunal a quo violou ambos os referidos preceitos legais, o Artigo 6º nº 2 e o Artigo 590º nºs 2, 3, 4, 5 e 6, ambos do CPC. 17º Face ao exposto, o Tribunal a quo cometeu um erro de julgamento. 18º Impondo-se assim decisão diversa e diferente da agora recorrida; 19º Está a Recorrente em crer que pelo que expôs, deveria o Tribunal ter deferido o pedido de apresentação de Petição Inicial clarificada, e não ter de imediato passado a julgar a nulidade processual de Ineptidão daquela peça. Os RR. não vieram responder ao recurso. II. Questões a decidir São as seguintes as questões a decidir, tendo em conta o objeto do recurso delimitado pela Recorrente nas suas conclusões- art.º 635.º n.º 4 e 639.º n.º 1 do CPC - salvo questões de conhecimento oficioso- art.º 608.º n.º 2 in fine: - da ineptidão da petição inicial por contradição entre o pedido e a causa de pedir; - do convite ao aperfeiçoamento da petição inicial. III. Fundamentos de Facto Os factos relevantes para a decisão do presente recurso são os que constam do relatório elaborado. V. Razões de Direito - da ineptidão da petição inicial por contradição entre o pedido e a causa de pedir Alega a Recorrente que com a presente ação visa dissipar as dúvidas quanto à titularidade do espaço em questão que existem há mais de 30 anos, tendo sido a mesma despoletada com a carta do condomínio que a interpela a devolver o espaço que ocupa, não existindo contradição entre o pedido e causa de pedir, havendo quando muito uma imprecisão ou deficiência da matéria de facto, que pode ser corrigida, tendo os RR. entendido a petição inicial, como resulta das contestações que apresentaram. A decisão sob recurso pronunciou-se sobre esta questão da seguinte forma: “A ineptidão da Petição Inicial é uma excepção dilatória de conhecimento oficioso e, como tal, de pronúncia obrigatória – cfr. os arts. 186.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, alínea b) e 578.º do Código de Processo Civil – que se verifica quando (i) falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir, quando (ii) o pedido esteja em contradição com a causa de pedir ou quando (iii) se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis. «A contradição entre o pedido e a causa de pedir, geradora de ineptidão da petição inicial, só ocorre quando se verifique uma incompatibilidade formal entre o pedido e a causa de pedir reveladora de uma absoluta falta de nexo lógico, quando o pedido e a causa de pedir se neguem reciprocamente» – cfr. o Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães, de 31.10.2019, proc. 4180/18.0T8BRG.G1 (disponível em www.dgsi.pt). Ora, compulsada a Petição Inicial verifica-se que a A. peticiona o reconhecimento do seu direito de propriedade da Autora sobre a área de cerca de 50m2 a tardoz do prédio, sito na ..., como fazendo parte da fracção B, esta já sua propriedade após alegar que (i) desconhece a identidade do proprietário do espaço; (ii) que o mesmo é público e que (iii) o mesmo pertencer ao prédio sito na ..., como parte comum do edifício, sem que qualquer destas alegações tenha carácter subsidiário. Certo é que a A. não alega em momento algum na sua Petição Inicial ser proprietária da fracção, muito menos que esta faça parte da fracção autónoma B. Aliás, atenta a sua alegação, não se descortinando, face às múltiplas hipóteses aventadas, da titularidade do direito de propriedade da fracção, não é realizada qualquer alegação no sentido da referida área integrar a fracção B, antes que se trata de terreno público, de proprietário desconhecido ou logradouro do prédio. Face ao exposto, resulta evidente a existência de contradição entre o pedido e a causa de pedir, o que constitui uma excepção de ineptidão da Petição Inicial a qual não dá lugar ao aperfeiçoamento da mesma, por ser uma excepção dilatória insuprível – cfr. o art.º 186.º, n.º 2, al. b), do Código de Processo Civil. Pelo exposto, e ao abrigo do disposto no art.º 186.º, n.ºs 1 e 2, al. b), 278.º, n.º 1, al. b), 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, al. b) e 578.º do Código de Processo Civil, julgo verificada a nulidade processual de ineptidão Petição Inicial por contradição do pedido e da causa de pedir e, em consequência, absolvo os RR. da instância.” É o art.º 186.º do CPC que alude à ineptidão da petição inicial, dispondo: 1.É nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial. 2. Diz-se inepta a petição: a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir; b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir; c) Quando se cumulem causas de pedir incompatíveis ou pedidos substancialmente incompatíveis. 3. Se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na alínea a) do número anterior, a arguição não é julgada procedente quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial. 4. No caso da alínea c) do nº 2, a nulidade subsiste, ainda que um dos pedidos fique sem efeito por incompetência do tribunal ou por erro na forma do processo.” Sobre a contradição entre o pedido e a causa de pedir, já dizia Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil anotado, Vol. I, pág. 309: “O pedido deve ser o corolário ou a consequência lógica da causa de pedir ou dos fundamentos em que assenta a pretensão do autor, do mesmo modo que, num silogismo, a conclusão deve ser a emanação lógica das premissas. Se em vez disso o pedido colidir com a causa de pedir, a ineptidão é manifesta.” O pedido corresponde à pretensão formulada pelo A. e tem de assentar em fundamentos de facto concretos - causa de pedir - que de uma forma lógica permitem alcançar aquela pretensão, apresentando-se como compatíveis, sendo um o corolário do outro, e não contraditórios, sob pena de ineptidão da petição inicial, nos termos do art.º 186.º n.º 2 al. b) do CPC. De acordo com o disposto no art.º 5.º n.º 1 do CPC, à parte cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir, constituindo requisito da petição inicial, a exposição dos factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à ação, como expressamente prevê o art.º 552.º n.º 1 al. d) do CPC. Na situação em presença a A. formula três pedidos: o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre a área de cerca de 50m2 a tardoz do prédio, como fazendo parte da fração B, esta já sua propriedade; a condenação dos RR. a reconhecerem tal direito de propriedade; o suprimento judicial da vontade dos RR., que obstem à alteração do título constitutivo da propriedade horizontal. Na exposição dos factos com que pretende fundamentar aqueles pedidos, a A. refere que adquiriu o direito de propriedade sobre o espaço em questão, por via da usucapião, alegando ao mesmo tempo que com a presente ação visa dissipar as dúvidas sobre a titularidade do espaço que ocupa, afirmando em simultâneo: que se trata de um espaço do domínio público e era assim visto por todos; que foi interpelada pelo condomínio para desocupar o espaço, embora diga que o mesmo não corresponde a uma parte do prédio; que o espaço faz parte da fração B de que é proprietária. Os factos que a mesma invoca como suscetíveis de fundamentar o seu alegado direito, apresentam-se como totalmente contraditórios com os pedidos que formula, antes revelando, de acordo com a perspetiva da A. que é exposta na p.i., que a área em questão corresponde a um terreno público, não só não a reconhecendo a A. como uma parte comum do seu prédio, mas ainda contestando que assim seja, ao afirmar que os documentos que apresenta relativos ao prédio não o revelam, sempre afirmando as dúvidas quanto à titularidade daquele espaço. A A. alega que o espaço a tardoz do prédio era baldio, de acesso público e que era a Junta de Freguesia que procedia à sua limpeza; que chegou a ocupar metade de tal espaço para instalar uma esplanada no seu estabelecimento, tendo pedido para tal autorização à Junta de Freguesia, que lhe foi concedida; que quando adquiriu a fração B, de que antes era arrendatária, passou a ocupar cerca de 50 m2 a tardoz de tal fração, que vedou com rede, colocou muretes e mosaicos no chão, tendo nesse local os seus cães e plantas; que a Câmara Municipal em 2011 solicitou um pedido de informação sobre os logradouros existentes a tardoz dos edifícios situados na ... Pereira Jardim, nº 3, 5, 7, 9 e 11 em ..., pelo facto considerar que a área em causa é pública, pela consulta dos processos de licenciamento das construções, indicadas. Mais refere a A., que os espaços a tardoz do seu prédio, não estando descritos na propriedade horizontal, não são parte comum do prédio, nem tão pouco são afetos a alguma das frações (art.º 40.º da p.i.); a escritura de propriedade horizontal, que junta, não faz qualquer menção a logradouro (art.º 43.º) nem refere que alguma área descoberta esteja afeta a alguma ou algumas das frações (art.º 44.º); da caderneta predial do prédio não consta qualquer menção a logradouro. (art.º 47.º), concluindo no art.º 48.º da p.i. “mesmo que se entenda que o espaço em questão é logradouro do prédio, e assim sendo área comum do condomínio, certo é que a Autora, vem utilizando o mesmo como sendo seu, desde a data da aquisição da fracção A e da fracção B, que foi em 22 de Fevereiro de 2001.” A alegação factual apresentada pela A. é no sentido de que o espaço que ocupa não é, nem nunca foi parte comum do prédio onde tem as suas frações, antes se trata de espaço público, sendo dessa forma que o conheceu e o reconheceu, o que se apresenta como totalmente contraditório com o pedido que formula, de reconhecimento do seu direito de propriedade exclusiva adquirido por usucapião sobre uma parte do logradouro do prédio constituído em propriedade horizontal, que alega não existir, pedindo o reconhecimento de tal direito pelos RR., bem como o suprimento judicial da vontade dos RR. que obstem à alteração do título constitutivo da propriedade horizontal, quando ela própria afirma que não se está perante um espaço comum que integre o prédio. Avaliando os factos alegados pela A. na petição inicial, como fundamento dos pedidos que formula, verifica-se que os mesmos não se apresentam como compatíveis com tais pedidos, não permitindo a causa de pedir invocada, de uma forma lógica, suportar os pedidos formulados, antes os contrariando. Não merece por isso censura a decisão recorrida quando considera que existe uma contradição entre os pedidos e a causa de pedir, suscetível de determinar a ineptidão da petição inicial, nos termos do art.º 186.º n.º 1 e 2 do CPC. - do convite ao aperfeiçoamento da petição inicial Defende a Recorrente que quando muito “existirá uma deficiência ou imprecisão na matéria de facto alegadas, em resultado de ter levantado dúvidas sobre a titularidade do espaço”, que justifica o convite ao aperfeiçoamento da petição inicial. A decisão sob recurso entendeu que, integrando-se a situação no art.º 186.º n.º 2 al. b) do CPC, se está perante uma exceção dilatória insuprível que não dá lugar ao aperfeiçoamento. O art.º 6 do CPC que alude ao “Dever de gestão processual” estabelece: “1. Cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adotando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável. 2.O juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo.”. O art.º 590.º do CPC vem concretizar os termos em que deve ter lugar a gestão inicial do processo, dispondo: “1- Nos casos em que, por determinação legal ou do juiz, seja apresentada a despacho liminar, a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, exceções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente, aplicando-se o disposto no artigo 560.º. 2 - Findos os articulados, o juiz profere, sendo caso disso, despacho pré-saneador destinado a: a. Providenciar pelo suprimento de exceções dilatórias, nos termos do n.º 2 do artigo 6.º; b. Providenciar pelo aperfeiçoamento dos articulados, nos termos dos números seguintes; c. Determinar a junção de documentos com vista a permitir a apreciação de exceções dilatórias ou o conhecimento, no todo ou em parte, do mérito da causa no despacho saneador. 3 - O juiz convida as partes a suprir as irregularidades dos articulados, fixando prazo para o suprimento ou correção do vício, designadamente quando careçam de requisitos legais ou a parte não haja apresentado documento essencial ou de que a lei faça depender o prosseguimento da causa. 4 - Incumbe ainda ao juiz convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido. 5 - Os factos objeto de esclarecimento, aditamento ou correção ficam sujeitos às regras gerais sobre contraditoriedade e prova. 6 - As alterações à matéria de facto alegada, previstas nos n.ºs 4 e 5, devem conformar-se com os limites estabelecidos no artigo 265.º, se forem introduzidas pelo autor, e nos artigos 573.º e 574.º, quando o sejam pelo réu. 7 - Não cabe recurso do despacho de convite ao suprimento de irregularidades, insuficiências ou imprecisões dos articulados.”. A questão que se põe é então a de saber se em vez do indeferimento liminar da petição inicial, deve ter lugar um despacho de aperfeiçoamento, com a finalidade de possibilitar que a A. venha suprir os vícios da petição inicial. Diz-nos o Acórdão do TRL de 23-04-2013, in www.dgsi.pt a respeito do anterior artigo 508.º do CPC, que tem correspondência no atual art.º 590.º do CPC: “O aperfeiçoamento dos articulados, a que se reporta o art.º 508.º, n.º1, al. b) e n.ºs 2 e 3, do C. P. Civil, porque de aperfeiçoamento se trata, pressupõe a sua aptidão para o fim em vista e a existência de alguma irregularidade (n.º 2) ou de alguma insuficiência ou imprecisão (n.º 3) que, não contendendo com essa aptidão, todavia, a podem melhorar, se corrigidas.” Também o Acórdão do TRC de 18-10-2016 no proc. 203848/12.2YIPRT.C1 in www.dgsi.pt refere, com toda a pertinência a este respeito: “O poder de mandar aperfeiçoar os articulados para serem supridas insuficiências ou imprecisões na exposição e concretização da matéria de facto alegada (art.º 590 nº4 do CPC) tem de ser entendido em rigorosos limites, e isto porque este convite se realiza apenas quando existam as apontadas insuficiências ou imprecisões que possam ser resolvidas com esclarecimentos, aditamentos ou correcções. Ou seja, anomalias que não ponham em causa, em absoluto, o conhecimento da questão jurídica e a decisão do seu mérito, mas que possam facilitar que este conhecimento e decisão sejam realizados de forma mais eficaz. Assim, cremos que não se deve mandar aperfeiçoar uma petição inepta mas apenas a que seja deficiente, sendo o critério decisivo para distinguir, o que se decide no saber se a petição permite ou não, como foi apresentada, o conhecimento e a decisão sobre o mérito do pedido.”. No caso em presença, não estamos perante uma mera insuficiência da causa de pedir, que pudesse ficar suprida se a A. viesse complementar ou esclarecer os fundamentos de facto que alegou na petição inicial, na medida em que os factos por ela invocados se apresentam como contraditórios com os pedidos que formula. No caso, como se viu a petição inicial é inepta, por verificação da previsão da al. b) do art.º 186.º n.º 2 do CPC e não da al. a), caso em que poderia haver justificação para um convite ao aperfeiçoamento. Na distinção entre as situações previstas nas al. a) e b) do n.º 2 do art.º 186.º do CPC, diz-nos ainda de forma clara e fundamentada o Acórdão do TRL de 20.12.2022 no proc. 20802/21.3T8LSB.L1-7 in www.dgsi.pt : “O vício respeitante à falta ou ininteligibilidade do pedido ou da causa de pedir (art.º 186, nº 2, al. a), do C.P.C.) será passível de superação se, tendo o réu contestado, se verificar que o mesmo interpretou convenientemente a petição inicial, ainda que tenha arguido a ineptidão com esse fundamento, caso em que não se julgará procedente a arguição (art.º 186, nº 3). Salvo esta, todas as demais situações de ineptidão serão, em princípio, insanáveis. A esta conclusão não obstará o disposto no nº 2 do art.º 6 do C.P.C. de 2013 (em parte correspondente ao anterior nº 2 do art.º 265 do C.P.C. de 1961) visto que ao juiz apenas cumpre providenciar pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação. Segundo António Abrantes Geraldes, ainda que no domínio do C.P.C. revogado: “(...) a única situação de ineptidão que é passível de superação através de actuações processuais deriva expressamente do art.º 193, nº 3. No que concerne às demais situações de ineptidão são insanáveis, não cabendo, pois, ao juiz empreender qualquer diligência nesse sentido face ao disposto no art.º 265º, nº 2. (…).” José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre assinalam também como efetiva situação passível de sanação a constante da a) do nº 2 do art.º 186, face ao teor expresso do nº 3 do preceito.”. A ineptidão da petição inicial por contradição entre o pedido e a causa de pedir apresenta-se como uma exceção dilatória que não é passível de ser suprida, por não corresponder a uma mera irregularidade do articulado ou a uma insuficiência ou imprecisão na exposição da matéria de facto, nos termos previstos no art.º 590.º n.º 3 e 4 do CPC, não justificando por isso o convite para que o A. providencie pelo suprimento de exceção dilatória ou pelo aperfeiçoamento do seu articulado, de acordo com o n.º 2 al. a) e b) de tal artigo – neste sentido vd. ainda António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, pág. 222. Não cabe ao tribunal substituir-se à A. e indicar-lhe os factos que devem ser invocados, até porque os factos concretos necessários ao preenchimento de um conceito de direito podem não existir, ou a parte deles não ter conhecimento e não os pode inventar, sendo que, além do mais, tal pode configurar uma violação do principio do dispositivo consagrado no art.º 5.º n.º 1 do CPC de acordo com o qual cabe à parte alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas. Conforme o disposto no art.º 5.º n.º 1 e 552.º n.º 1 al. d) do CPC ao autor cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir, pelo que na sua petição inicial a A. estava obrigada a invocar os factos concretos que, a provarem-se, permitiriam a procedência dos pedidos que formula. O n.º 4 do art.º 590.º do CPC prevê tão só o suprimento de insuficiência ou imprecisão na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, não fazendo sentido que a parte seja chamada a completar ou concretizar matéria de facto que foi articulada e que se apresenta como contraditória com o pedido formulado. Como refere o Acórdão do STJ de 01-04-2014 in www.dgsi.pt : “Cabe ponderar que, no que respeita à matéria de facto, o convite à correcção só tem cabimento para “falhas menores” que não comprometam a apreciação do mérito da acção, a clarificar ou a concretizar exposição confusa, imprecisa, vaga e conclusiva, não se destinando a suprir falhas essenciais da alegação, nomeadamente quando pura e simplesmente se omite essa mesma factualidade, ou quando se omite facto essencial à procedência (ou à defesa) na configuração dada ao litígio.” O convite ao aperfeiçoamento não tem assim a amplitude pretendida pela Recorrente, sendo que, no caso concreto, a constatada contradição entre os pedidos e a causa de pedir é insuscetível de sanação através do convite ao aperfeiçoamento. Impõe-se assim a confirmação da decisão recorrida, quando considera que estamos perante exceção dilatória insuprível, contradição entre o pedido e a causa de pedir, nos termos do art.º 186.º n.º 2 al. b) do CPC, que determina o indeferimento liminar da petição inicial VI. Decisão: Em face do exposto, julga-se o presente recurso interposto pela A. totalmente improcedente, mantendo-se a decisão proferida. Custas pela Recorrente por ter ficado vencida – art.º 527.º n.º 1 e 2 do CPC. Notifique. * Lisboa, 10 de abril de 2025 Inês Moura João Paulo Raposo Paulo Fernandes da Silva |