Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
19383/23.8T8SNT.L1-2
Relator: JOSÉ MANUEL MONTEIRO CORREIA
Descritores: NULIDADE
JULGAMENTO
NULIDADE DE SENTENÇA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
REJEIÇÃO
REEMBOLSO
ENCARGOS
TRANSCRIÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1.- A nulidade decorrente de ato praticado ou não praticado em violação da lei no decurso da audiência de julgamento constitui um vício subsumível à previsão do art.º 195.º, n.º 1 do CPC, carecendo, por isso, nos termos do art.º 197.º, de invocação e de invocação que, estando a parte presente, por si ou por mandatário, deve ocorrer, nos termos do art.º 199.º, no momento em que for cometida e enquanto o ato não terminar.
2.- Não sendo invocada de acordo com tal regime, preclude-se, nos termos do art.º 202.º do CPC, o direito da parte de o vir a fazer posteriormente, nomeadamente, em sede de recurso da decisão final do processo, até porque o recurso, pela sua natureza, constitui um mecanismo que, salvo o conhecimento oficioso de questões que o suscitem, se destina à reapreciação de decisão de tribunal de hierarquia inferior, o que não se verifica naquela situação.
3.- A valoração, na fundamentação da decisão da matéria de facto, de um aspeto do depoimento de uma testemunha como fator de exclusão da sua credibilidade traduz, não a apreciação de uma questão autónoma, mas o cumprimento, pelo tribunal, do dever de fundamentação previsto, nos procedimentos cautelares, nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs 295.º, 365.º, n.º 3 e 607.º, n.º 4 do CPC.
4.- Tal valoração pode e deve ser feita sem audição prévia das partes, não só por recair sobre assunto debatido em julgamento, em que as partes, nele patrocinadas por advogado, tiveram a oportunidade de exercer o contraditório sobre ele, como, também, por, nos termos do regime decorrente dos citados preceitos, a fundamentação da decisão da matéria de facto dever ter lugar sem o cumprimento de qualquer outra formalidade prévia.
5.- Sobre a parte que pretenda impugnar a decisão da matéria de facto constante da decisão final recorrida recai um duplo ónus de, por um lado, delimitar o objeto do recurso e fundamentar a sua impugnação; por outro lado, de facilitar o acesso da Relação aos meios de prova gravados por si (pelo impugnante) considerados mais relevantes.
6.- A impugnação da decisão da matéria de facto, nos termos do art.º 640.º, n.º 1, al. b) do CPC, deve ser rejeitada, sem possibilidade de prolação prévia de despacho de aperfeiçoamento, quando o impugnante alude à “documentação clínica”, à “prova direta” e às “presunções” que, na sua perspetiva, evidenciam os factos que pretende ver provados, por se tratar de alusão genérica a meios de prova que não permite a sua identificação, nem a sua associação a cada um dos factos que com eles se pretende provar.
7.- O adiantamento ou o reembolso de despesas a suportar ou suportadas pela parte que beneficie de apoio judiciário por parte do Instituto de Gestão Financeira e das Infraestruturas da Justiça, I.P. pressupõe, nos termos do disposto no art.º 19.º, n.º 1 do RCP, que tais despesas constituam algum dos encargos como tal catalogados no art.º 16.º, n.º 1 do RCP.
8.- Não constituindo o custo com a transcrição de depoimentos prestados em julgamento para efeitos de instrução de recurso algum daqueles encargos, não tem a parte que pretende recorrer da decisão da matéria de facto, ainda que beneficie de apoio judiciário, direito ao seu adiantamento ou reembolso por parte do Instituto de Gestão Financeira e das Infraestruturas da Justiça, I.P..
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: .- Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa os Juízes Desembargadores abaixo identificados,

I.- Relatório
1.- … instaurou o presente procedimento cautelar de arbitramento de reparação provisória contra … , pedindo que, pela sua procedência, seja fixada, a seu favor e a cargo da Requerida, uma renda mensal não inferior a € 800,00, a título de reparação provisória do dano.
Invocou, para tanto, e em síntese, que no dia … , em … , no entroncamento entre a Rua … e a Rua … , ocorreu um acidente de viação entre o motociclo com a matrícula …, que conduzia, e o veículo automóvel ligeiro de passageiros com a matrícula … , conduzido por …
Acrescentou que o acidente de viação deveu-se a culpa exclusiva da condutora do dito veículo automóvel, já que a mesma, circulando pela Rua … no sentido sul/norte e pretendendo aceder à Rua …, virou, para o efeito, à esquerda, no momento em que, em sentido contrário, circulava no seu motociclo, embatendo com a parte frontal esquerda do veículo na lateral esquerda deste.
Referiu, ainda, que, em consequência necessária e direta do acidente, e entre outras lesões, sofreu fratura da diáfise do fémur esquerdo fechada e fratura do pilão tibial à esquerda com perda de substância óssea, o que, posteriormente, resultou na amputação infra genicular da perna esquerda.
Invocou, finalmente, que, em consequência dos danos sofridos em virtude do acidente, encontra-se em situação de necessidade, justificando-se, por isso, o recurso ao presente procedimento por forma a que seja, no imediato, provisoriamente ressarcido.
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2.- Agendada a audiência final e citada a Requerida, apresentou esta, no início daquela diligência, a sua oposição, batendo-se pela improcedência do procedimento.
Assim, e em síntese, impugnou a dinâmica do acidente descrito pelo Requerente na petição, contrapondo outra em que a culpa pela sua ocorrência recaía sobre o Requerente.
Segundo a Requerida, a condutora do veículo nela seguro, ao aproximar-se do dito entroncamento, sinalizou a manobra de mudança de direção à esquerda e parou junto ao eixo da via, na hemi-faixa de rodagem direita, atento o seu sentido de marcha, aguardando a passagem dos veículos que circulavam em sentido oposto, a fim de efetuar a manobra que pretendia realizar, que era a de aceder à Rua …
Estando ainda, contudo, parada a aguardar a passagem do último veículo que circulava em sentido contrário, surgiu repentinamente, em manobra de ultrapassagem daquele veículo,  o o motociclo tripulado pelo Requerente, o qual, ocupando a hemi-faixa esquerda da faixa de rodagem, considerando o seu sentido de marcha, foi embater no seu veículo automóvel.
A Requerida reputou, ainda, o valor da renda mensal peticionado pelo Requerente excessivo.
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3.- A audiência final teve lugar durante quatro sessões, realizadas em 04-01-2024, em 16-01-2024, em 18-01-2024 e em 30-01-2024, contando todas elas com a presença dos ilustres mandatários das partes.
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4.- Concluída a audiência, foi proferida, em 09-02-2024, decisão final julgando o procedimento cautelar totalmente improcedente, por não provado, com a consequente ‘absolvição’ da Requerida do pedido.
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5.- Por requerimento de 16 de fevereiro de 2024, pediu o Requerente … ao tribunal que, pretendendo apresentar recurso da decisão proferida e carecendo para o efeito de transcrição das declarações gravadas em áudio, face ao benefício do apoio judiciário de que gozava na modalidade de pagamento das “despesas”, fosse ordenado o pagamento dos custos dessa transcrição pelos Cofres do Estado, conforme orçamento que, em anexo, apresentou.
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6.- Sobre tal pretensão recaíu o seguinte despacho, datado de 19-02-2024:
(…)   
O Requerente dos presentes autos beneficia de apoio judiciário, na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo (cfr. artigo 16.º, n.º 1, alínea a) da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho).
O artigo 16.º do Regulamento das Custas Processuais menciona os diversos tipos de encargos, sendo que a eventual despesa que decorra da transcrição da audiência de julgamento que, diga-se, é uma despesa opcional, na medida em que essa diligência pode ser levada a cabo pelo Mandatário da parte, não está compreendida nos encargos com o processo.
Assim, afigura-se-nos evidente que o requerido pelo Requerente, não tem qualquer cabimento legal, tendo necessariamente que ser indeferido.
(…)
Pelo exposto, indefere-se o requerido, por total ausência de fundamento legal.
(…)
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7.- Inconformado com a decisão final do procedimento referida em 3 e com o despacho referido em 5, deles veio o Requerente interpor o presente recurso, batendo-se pela revogação das decisões recorridas, formulando, para o efeito, as seguintes conclusões, assim transcritas:
“1.- A sentença que motiva o presente recurso é resultado de um trabalho invulgarmente deficiente que foi desenvolvido na condução dos trabalhos de produção de prova testemunhal e por esse motivo se requer a anulação do julgamento.
2.- A direção das audiências de inquirição de testemunhas condicionou o bom esclarecimento dos factos em prejuízo do trabalho de produção de prova que o requerente desta providência cautelar se propunha fazer.
3.- São testemunho dessa irregular condução dos trabalhos em prejuízo do requerente as sucessivas interrupções das testemunhas que depuseram em defesa das razões dele e o clima de suspeição a que as mesmas sempre estiveram sujeitas, com admoestações reiteradas, ameaças de procedimentos criminais, interrupções dos seus depoimentos e impedimentos ao espontâneo esclarecimento dos factos dirigidos às testemunhas, ao próprio requerente e até ao advogado seu mandatário.
4.- A primeira testemunha … foi sistematicamente admoestada no decorrer do seu depoimento:
Juiz: Volta 00:51:05: oh senhora intérprete, eu, é como digo, isto, não percebo muito bem o que se passa porque o senhor diz uma coisa e a seguir diz uma coisa exatamente contrária.
Volta 00:52:25: ele desenvolve muito as perguntas e depois acaba por responder coisas que não têm nada a ver.
Volta 00:53:25:
J – Olhe, diga ao senhor que ele há pouco disse que viu os senhores a levantar a mota; aliás, disse mais, aproximaram-se vários senhores e levantaram a mota, portanto, ou mentiu há bocado ou mentiu agora. Diga ao senhor, aliás, para ele não se esquecer que ele prestou juramento e explique-lhe que isto significa que se ele faltar à verdade, está ele a cometer um crime
J – Sra. … , explique-lhe que se o senhor faltar à verdade está a cometer um crime e se determina a extração de certidão para o ministério público, instauração de um procedimento criminal contra ele. Explique isto ao senhor se faz favor.
5.- A senhora Juiz queixa-se que a testemunha desenvolve muito as perguntas mas ele tinha muito mais coisas para dizer se não fosse impedido:
Talvez ele pudesse explicar por que motivo não constam como testemunhas no relatório policial o nome dele e de outros que chegaram ao local logo a seguir à colisão. Talvez até pudesse explicar os motivos de alguma exaltação que se seguiu após a retirada da viatura mas ficou logo condicionado no seu espontâneo depoimento com as diversas admoestações de que foi alvo. E Talvez pudesse esclarecer as questões relativas às morada que tanto peso teve na decisão.
6.- A testemunha … foi sistematicamente interrompida e impedida de esclarecer factos relevantes, como seriam as condições de vida do requerente, a sua residência, as suas relações com as demais testemunhas e outros factos que sendo acessórios foram decisivos para a decisão de considerar falsos todos os testemunhos produzidos ao longo das audições.
7.- Esta mesma testemunha foi repetidamente admoestada. Foi avisada no inicio do interrogatório que estava sob juramento, o que é da praxe, e mais à frente:
Volta 00:02:34
Juiz: Muito bem, então não se esqueça de que estar sob juramento e apesar dessa circunstância,
que a une ao mandatário do requerente circunstâncias laborais e essa circunstância de conhecer o senhor requerente tem que ter presente que está sob juramento. Se faltar à verdade comete um crime e, portanto.
Resposta: Já me tinha dito isso!
8.- Mas que mal fez esta testemunha para merecer tal repreensão? Tanto quanto se sabe ser funcionária de advogado não é crime nem motivo de suspeições.
9.- O próprio mandatário do requerente, de forma muito pouco elegante - como se os senhores juízes não devessem respeito recíproco aos advogados - foi sistematicamente interrompido e instado a desistir do processo com ameaças de litigância de má fé, o que ocorreu na sessão de 18 de janeiro de 24, trecho 3, Volta 00:02:45:
Juiz: Sr. Dr. O requerente pretende mesmo avançar?, é que temos 5 testemunhas para ouvir ou 4.
Adv requerente: Pretendo, pretendo avançar
Juíza: Sr. Dr. É que advirto-o já desta, desta circunstância e isto não tem de ser sequer objeto contraditório nem nada mais nem nada disso mas o tribunal ponderará sem sombra de dúvida da litigância de má fé do requerente porque quer dizer, Sr. Dr. Isto é, Adv: sem problema Srª Drª Juiz
Juíza: Sem problema não Sr. Dr.
Adv: (sorriso)
Juiz: O apoio judiciário não me parece que cubra essa condenação.
Adv: se se provar que há litigância de má fé vamos ver até de que lado está., nós não ouvimos a prova, não sabemos como é que ...
Juiz: não, não eu estou a falar, a ação até pode ser procedente e eu considerar que há litigância de má fé do autor, não tem nada a ver uma coisa com a outra.
Adv: é verdade.
Juiz: a litigância de má fé não tem necessariamente, não tem sequer a ver com o mérito da causa, há pessoas que são absolvidas e são condenadas por litigância de má fé. Não tem necessariamente, não tem sequer a ver com o mérito da ação
Adv: Eu gostava de perceber como é que um homem que ficou sem uma perna, está incapacitado para o trabalho e precisa de comer e beber todos os dias, litiga de má fé por pedir uma pensão para a sua sobrevivência.
Juíza: oh senhor dr. Quer mesmo pôr a coisa nesses termos? É que não são Sr Dr falar de um homem que recebeu uma indemnização por parte da sua entidade patronal pelo menos de 4500 euros, disse ele, deixe-me acabar agora Sr Dr. Se faz favor.
Estamos a falar disso não fala no requerimento inicial, estamos a falar de uma pessoa que alegou no requerimento inicial, estamos a falar de uma pessoa que alegou no requerimento inicial que tinha um projeto de vida e emigrou para os países europeus e portanto esta questão também xxxx esse projeto de vida essa xxx esse projeto de vida essa xxx toda que é obviamente relevante e que não é verdade.
Advogado: e que não se prova.
Juiz: não é que não se prova Sr Dr. é que não é verdade. É que foi alegado um facto que não corresponde à verdade porque é um facto que o próprio tem conhecimento e o próprio disse que veio para Portugal com um projeto de life time. Este exprimiu até disse em inglês. (advogado: sim é verdade).
Juiz: na língua dele lifetime. Esta expressão nem sequer foi na língua dele: lifetime.
Disse que praticava desporto que fazia não sei o quê em Portugal nunca.
Advogado: é verdade. Ele não disse que praticava desporto em Portugal. Peço desculpa. Ele alegou que praticava desportos.
Juíz: há um ano e meio até isso nem é relevante para agora.
Com forte angústia constata que muito ficou condicionado e mesmo incapacitado para atividades que praticava antes do acidente, tais como, prática de desportos náuticos, criquet, outros desportos há pelo menos um ano e meio, disse ele que estava em Portugal, não praticava estes desportos.
Sr Dr. Não me venha dizer que a litigância de mé fé é por um senhor que perdeu a perna e que vem pedir dinheiro. Não é disso que estamos a falar Sr Dr.. Sr Dr. Bem saberá e terá percebido ao longo da produção da prova que estamos a falar (advogado: não, não me percebi).
Juíza: oh senhor Dr. Então não sei. Não leu o mesmo requerimento inicial que eu e não ouviu as declarações de parte.
Advogado: eu admito que haja alguma gafe nomeadamente na emigração para a Suécia.
Juíza: não, não há.
10.- Em resultado desta condução desconsertada da audiência sobrou uma inconsistente  suspeição sobre tudo quanto foi dito pelas testemunhas arroladas pelo apelante e, a avaliar pela
motivação da sentença, tudo porque a senhora juiz concluiu erradamente que todas elas viviam na mesma casa, com exceção da … (parece), cujo depoimento também é suspeito por ser funcionária do advogado.
11.- As circunstancias referidas configuram objetivas violações dos princípios da igualdade de armas e de todos os cidadãos perante a lei, independentemente das suas origens ou credos, e do  contraditório que motivam a nulidade da decisão, o que se requer decidido nesta via de recurso.
12.- O apelante sentiu-se enxovalhado, discriminado e constrangido pelo tratamento a que foi sujeito nestas audiências, incluindo quando a senhora juiz lhe perguntou, com alguma insistência, se ele já procurou trabalho, descurando que ele tem menos uma perna a qual perdeu neste acidente há cerca de 6 meses, está ainda em convalescença e em tempo de adaptação a prótese, está deslocado do seu país, não fala português e aquela perna era essencial para exercer a atividade de condução de motociclo que exercia antes do acidente.
Trecho 3 iniciado 10:52 volta 00:55.20:
Juiz: desde que teve o acidente nunca mais procurou trabalho?
R: Não
Juiz: Pergunte se ele não se sentia capaz da fazer um trabalho sentado, p. ex., numa loja de telemóveis?
R: Sim
Juiz: Então porque é que não fez?
Trecho 4 iniciado 11h47 volta 00:3:45
Juiz: Pergunte se ele depois do acidente já procurou trabalho?
13.- Talvez a senhora Juiz não tenha percebido a extrema gravidade das lesões documentadas  nos documentos médicos juntos aos autos.
14.- Também em consequência de uma pré formulação de juízos sobre a dinâmica do acidente o tribunal a quo construiu um cenário do evento ao arrepio da prova produzida em audiência.
15.- Foi esvaziado todo o conteúdo do depoimento da testemunha … com o argumento de que ele não estava presente no momento da colisão mas há provas abundantes de que ele chegou ao local nos instantes que o sucederam, a começar pelo depoimento da outra condutora, … :
A condutora, apesar de dizer que o … não viu o acidente também afirma que ele se abeirou pouco tempo após ele ter ocorrido:
Volta 39:30 – advogado do requerente pergunta: quanto tempo depois é que a pessoa chegou ao local?
Resposta: Foi muito pouco tempo depois.
16.- O … afirma que quando chegou ao local viu o lesado com a perna no ar a ser auxiliado pela testemunha … :
Volta 00:23:06
Advogado do requerente – Olhe, quando chegou ao local, quantas pessoas estavam no local concretamente do acidente e se sabe quem eram essas pessoas?
R – O sr. vai identificar, o sr. estava uma pessoa que agarrou na perna do senhor e levantou-a e estava também um senhor muito próximo do …
A testemunha … afirma que estava com o … a uma distancia (que é possível verificar on line) entre 40 a 50 metros do local e vieram a correr, tendo o … de imediato iniciado a sua intervenção de assistência ao sinistrado, levantando-lhe a perna para fazer um garrote.
Volta 00:18:00: viemos a correr, vimos o rapaz no chão.
18.- É plausível que o levantar a perna do sinistrado seja a ação inicial quando chegou o …
19.- O … afirma que vinha apeado da igreja em direção ao local onde ocorreu o sinistro e a cerca de 100 metros desse local viu o carro a bater na mota.
20.- Por sua vez, os depoimentos da condutora do ligeiro e das testemunhas … são um arrazoado de contradições e afirmações de mera conveniência para sustentar teses contraditórias.
21.- A testemunha … disse que não conhece a condutora de lado nenhum mas em determinada altura do seu depoimento fala na …
22.- A condutora do ligeiro apresenta duas versões do acidente:
- Uma: no dia do acidente através do depoimento escrito que instrui o Doc 1 junto a pi, onde declarou que não sabe por que motivo o motociclo veio embater na sua viatura.
- Outra: para suportar a tese da Contestação vertida no artigo 9: Estando ainda parada a aguardar a passagem do último veículo ligeiro que circulava pela Rua … no sentido Norte – Sul, contrário ao do … , surgiu de forma repentina, em ultrapassagem a tal ligeiro, o aqui Requerente, tripulando o motociclo de matrícula …
23.- Nesta segunda versão a condutora já percebe que afinal o motociclista vinha a ultrapassar uma das inúmeras viaturas que seguiam de permeio.
24.- Porém, as testemunhas … negam esse cenário de ultrapassagem e até a confluência de trânsito; instado o …:
Volta 12:08:
Advogado do requerente: O trânsito era intenso?
R: Não!
Advogado do requerente: Havia pouco trânsito? Pouco, muito pouco?
R: Praticamente nulo.
25.- A testemunha … encontrou como escapatória para afirmar a sua supervisão sobre tudo o que se passou naquele dia, antes e depois da colisão, local e arredores o argumento que foi alertado pelo barulho da mota para olhar para o local e ver e ouvir:
1. Ouviu o ruído da mota antes do embate e começou a olhar para o local onde a seguir iria ocorrer o acidente (não se sabe a quantos metros da colisão a testemunha começou a olhar mas devem ter sido muitos a acrescentar àquele local onde se encontrava a observar).
2. Depois viu a mota aos SS (também não se sabe a quantos metros da colisão a testemunha começou a ver a mota aos SS).
3. Depois viu o automóvel parado paralelamente à via (09:00 Eu lembro-me de o carro estar direito, paralelamente à via)
26.- Porém, tal visão é incompatível com o cenário descrito da existência de trânsito abundante como refere a condutora e que iria abafar o tal “esganiçado” barulho da mota e eventualmente cortar a visão da testemunha (ele estava a conversar numa perpendicular à estrada onde ocorreu o acidente).
27.- A testemunha … confessou logo que estava de costas, não viu o acidente e só olhou depois de ouvir o estrondo do embate.
28.- Não sem que também tenha declarado à polícia, em perfeita sintonia com o … que a viatura ligeira estava “imobilizada”, expressão também utilizada pela condutora, talvez por mera coincidência e “paralelamente”, idem.
29.- Não se debruça a sentença num, ainda que ligeiro, esforço para avaliar os efeitos e consequências da retirada da viatura do local, das consequências dessa ocultação de uma prova fundamental para a descoberta da verdade e da reação dos presentes no local, nomeadamente dos amigos e conhecidos da vítima face a essa circunstância. Embora se refira que se verificou uma certa alteração da ordem com o cerco a condutora e diversas interpelações.
30.- Embora o tribunal a quo tenha retirado a única ilação que o … só pretendia saber como ocorreu o acidente.
31.- Claramente que aqui, o ambiente criado contra as testemunhas foi propício a ficar na penumbra aquilo que parecendo à primeira vista matéria despicienda seria bastante elucidativa das circunstâncias fundamentais que se seguiram ao embate, nomeadamente, a retirada da viatura do local, a recolha e exclusão de testemunhas por parte da polícia, etc.
32.- E as conclusões mirabolantes que se podem retirar da sentença:
- O requerente vive desafogadamente
- As testemunhas vivem todas na mesma casa, incluindo o apelante...
- Não se sabe quem levantou a mota, etc.
33.- E o resultado: um emigrante asiático amputado, a viver em Portugal, com gravíssimas lesões na coxa, impossibilitado de angariar o seu sustento, a viver da caridade de amigos quase acusado de litigar dolosamente.
34.- Os factos e circunstâncias referidos nos números antecedentes militam contra os factos dados como provados nos itens 8 e ss da sentença e a documentação clínica junta aos autos comprova todas as circunstancias de sofrimento e de vida do requerente. Devendo essas matérias ser alteradas em conformidade.
35.- Não existem nos autos provas nem indícios delas que possam justificar o recurso ao mecanismo das presunções judiciais e muito menos a invocação do principio da livre apreciação da prova. Quando,
36.- para considerar provada a matéria que consta dos itens 7 e ss por absoluto défice de evidências de os acontecimentos terem ocorrido da forma descrita na contestação apresentada pela requerida.
37.- Pelo contrário, confrontam-se teses antagónicas quer na prova produzida pelo apelante em contraste com as produzidas pela apelada, quer nas versões apresentadas pela segurada da demandada quer nas forçadas contradições da prova no seu conjunto conforme se referiu já.
38.- Ora, se for legitimo, como se afigura, concluir que a decisão da causa resulta do facto lateral e insólito das moradas das testemunhas e do requerente, pelo menos no que diz respeito à total desconsideração dos seus depoimentos, sendo esta uma questão marginal e não essencial na perspetiva da causa de pedir, e por isso uma questão nova que emergiu na audiência de produção de prova testemunhal, tal questão só podia ser dirimida com garantias de contraditório por parte do requerente, revelando-se aqui uma violação sub-reptícia do dever de transparência que também deve nortear a atuação do julgador.
39.- Trata-se, portanto de uma nulidade processual a determinar a anulação do julgamento, o que se requer.
40.- Deve ser alterada a matéria de facto dada como provada e anulados os factos elencados nos itens 7. e ss da sentença
41.- Salvo o devido respeito e melhor opinião, as apontadas contradições e imprecisões não autorizam a prova ainda que indiciaria dos factos considerados provados nos itens 7. e ss da sentença, pelo que deverão os mesmos ser anulados e considerados não provados.
42.- O requerente apresentou a testemunha … que, segundo referiu encontrava-se em marcha apeada na direção do local da colisão, a uma distância que, pelo que foi possível apurar seria mais ou menos o dobro da das testemunhas … .
43.- Esta testemunha chegou ao local nos instantes que se seguiram ao acidente:
44.- Não se alcança da motivação da sentença a possibilidade de retirar conclusões sólidas sobre a alegada falsidade desse depoimento, para além da lacónica que se alcança da decisão: a testemunha e o requerente viviam na mesma casa.
45.- Tal conclusão é absolutamente precipitada e despropositada e não resulta objetivamente da prova produzida
46.- Aliás tal conclusão constitui uma “decisão surpresa” na medida em que caso tivesse sido dada a oportunidade ao requerente, ou revelado o interesse, de fazer prova ou contraprova desse facto – que é absolutamente supérfluo – ter-lhe-ia sido muito fácil demonstrar que se trata de um lamentável equivoco. Até porque na contingência da situação de crise em que se encontrava a vida do requerente e a urgência da situação, outras prioridades haveria além da procura das exatas residências das testemunhas.
47.- Verifica-se uma insuficiente indagação da realidade protagonizada pela direção da audiência conducente a uma situação de Iliquidez sobre a forma como ocorreu o acidente.
48.- Da forma como conduziu a audiência a Sra Juiz entravou o cabal esclarecimento da realidade dos factos.
49.- Embora se acredite que o requerente provou de forma clara que a colisão ocorreu por culpa da condutora do ligeiro em virtude de ter obstruído a passagem do motociclo e colidido contra o pé do seu condutor, ainda que, por hipótese – e sem conceder - se considere não provada a sua versão, nem tal circunstancia legitima a versão da seguradora que, de forma alguma se mostra coerente.
50.- A senhora juiz divagou sobre as residências das pessoas, o extrato bancário da Wise e outras questões paralelas e obliterou a prova sobre o essencial – a dinâmica do acidente.
51.- A decisao que aqui se contesta resulta de um ambiente de pré suspeição sobre a produção de prova por parte do requerente ao ponto de ter ameaçado tudo e todos, incluindo o mandatário do requerente para ele desistir de continuar com o processo.
52.- Nesta medida a direção da audiência condicionou visivelmente a produção de prova do requerente em beneficio da requerida com violação de princípios estruturais do processo civil
53.- Devido ao ambiente de pressão criado as testemunhas foram condicionadas e até impedidas de falar e prestar os seus depoimentos.
54.- Em resultado dessa direção dos trabalhos não foram devidamente esclarecidas questões que, embora marginais facilmente obteriam esclarecimento se tivesse havido a serenidade de questionar sem ambiguidades as pessoas que o podiam fazer.
55.- Foi produzida prova abundante do estado de necessidade do requerente e as conclusões recolhidas na sentença parecem apontar para um estatuto de grande prosperidade da vitima.
56.- A documentação clinica apresentada pelo requerente basta para indiciar o seu estado de dependência e ansiedade e as limitações que não ficaram indiciadas e estão elencadas nas alíneas g) e seguintes.
57.- Circunstancias que, com o devido respeito, terão de se considerar provadas por prova direta e pelo mecanismo das presunções.
58.- Pelas razões já aduzidas deve anular-se a decisão de considerar não provados os factos elencados nas alíneas g. e seguintes dos factos não indiciariamente provados.
59.- Face às incongruências apontadas conclui-se que os depoimentos das testemunhas arroladas pelo requerente são credíveis e coerentes com as suas declarações de parte.
60.- Não se alcança dos autos qualquer indicio de terem essas testemunhas deposto de forma tão parcial, confusa, e contraditória que tenha retirado qualquer credibilidade aos seus depoimentos.
61.- A assumida credibilidade dos depoimentos das testemunhas arroladas pela requerida (a assumida coerência desses depoimentos) esbarra com as inúmeras incongruências já assinaladas, em especial no que se refere:
- à intensidade do transito; havia muito como refere a condutora do ligeiro a pontos de poder afetar a visão e a audição da testemunha … ? ou não havia nenhum como este refere para se defender de algum obstáculo condicionador desses seus sentidos de visão e audição?
- à eventual manobra de ultrapassagem do motociclo que só é referida pela condutora - e in extremis - para avalisar a versão da contestação, mas é negada por todos os demais intervenientes processuais.
- ao ruido produzido por esse intenso transito que retiraria toda a credibilidade à afirmação da testemunha … quando refere que viu tudo porque foi alertado para o acidente que iria ocorrer a seguir, pelo barulho da mota.
- Não é coerente a versão apresentada pelo …:
00:01:40: eu estava a conversar com a testemunha …, eu estava virado para o entroncamento quando vejo o carro da … parado para virar à esquerda e de repente ouço o barulho de uma motorizada e chamou-me a atenção como é obvio e começo a olhar e qual é o meu espanto quando o vejo a acertar no carro;
- Onde está a lógica de chamar a atenção o barulho de uma mota, em especial num contexto de transito abundante e a coerência de ter começado a olhar alertado por esse barulho?
- à ocultação da prova da ocorrência gerada pela retirada súbita e prematura da viatura do local, ficando-se sem se saber se foi “por ordem” de algum condutor de ambulância como refere a contestação, ou a pedido do condutor de um autocarro como referem as testemunhas … .
- aos motivos da exaltação dos amigos do requerente aquando da retirada dessa viatura.
- ao posicionamento da viatura ligeira no momento que antecedeu o embate, quando as referidas testemunhas afirmam perentoriamente que ela estava “imobilizada” e “paralelamente” à via, quando pelo menos o … não presenciou esse posicionamento.
- ao facto de ter sido dito que alguém pediu à condutora do ligeiro para retirar a viatura que impedia a circulação automóvel quando a foto junta à contestação mostra uma possibilidade de transito alternado sem qualquer embaraço. Poderá questionar-se se a viatura impedia a circulação do transito só podia ser por estar atravessada na estrada a impedir essa circulação e depois ter recuado, eventualmente para a posição da foto.
62.- Como vem sendo entendimento jurisprudencial “O julgador é livre, ao apreciar as provas, embora tal apreciação seja “vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório”.
“A livre convicção não pode confundir-se com a íntima convicção do julgador, impondo-lhe a lei que extraia das provas um convencimento lógico e motivado, avaliadas as provas com sentido da responsabilidade e bom senso, e valoradas segundo parâmetros da lógica do homem médio e as regras da experiência.”
“O princípio da livre apreciação da prova nunca atribui ao juiz “o poder arbitrário de julgar os factos sem prova ou contra as provas”, ou seja, a livre apreciação da prova não pode confundir-se “com uma qualquer arbitrária análise dos elementos probatórios”, sendo “antes uma conscienciosa ponderação desses elementos e das circunstâncias que os envolvem”.
63.- Só no indicado sentido pode ser interpretado o artigo 607 nº 5 do CPC, contrariando a interpretação conferida na sentença cuja motivação não fornece elementos objetivos que cimentem as conclusões de facto e de direito que foram adotadas.
64.- No caso em analise foram ultrapassados todos os limites que as normas legais balizam para a afirmação daquele princípio.
65.- Decidindo-se da forma descrita o apelante considera que foi alvo de um tratamento por parte da justiça em tudo diferenciado do que seria o de um cidadão de origem, em violação dos artigos 13º, 15º e 20º da Constituição da Republica.
66.- Da mesma forma mostram-se violados os princípios da tutela jurisdicional efetiva, do contraditório, da igualdade de armas e os artigos 4º, 7º, 9º e 615º nº 1 als b) e c) do CPC pelo que deve decidir-se pela revogação da sentença que julgou a improcedencia da providência Cautelar substituindo por decisão que julgue não provados os factos relativos à forma como ocorreu o acidente e que constam dos itens 7º ao 13º da referida sentença, que devem ser considerados não provados, devendo igualmente julgar-se comprovados os factos constantes das alineas g) a m), decidindo-se, em alternativa, pela anulação do julgamento, tudo com as legais consequencias.
67.- Deve também ser revogado o despacho que indeferiu o pagamento da transcrição dos depoimentos produzidos em audiência, por se tratar de documento essencial à defesa do requerente, e cuja fidelidade e rigor não está ao alcance dos serviços do mandatário.
68.- O auxilio financeiro devido pelo Estado na situação de insuficiência económica dos cidadãos compreende a disponibilização dos meios técnicos essências à defesa como é o caso da transcrição dos depoimentos produzidos em audiência.
69.- O despacho viola o princípio da tutela jurisdicional efetiva, configurando uma situação de denegação de justiça, por inviabilizar, ou tornar bastante difícil o trabalho do mandatário da parte
70.- São termos em que R. a revogação do despacho que deve ser substituído por decisão que ordene o pagamento requerido, assim se fazendo a costumada Justiça”
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8.- A Requerida respondeu ao recurso, sustentando, sem formular conclusões:
i.- que o Recorrente, no que tange à impugnação da decisão da matéria de facto, não cumpriu os ónus previstos nas alíneas b) e c) do n.º 1 do art.º 640.º do CPC, o que deve conduzir à inadmissibilidade dessa impugnação;
ii.- que o tribunal a quo apreciou devidamente a prova produzida em audiência e aplicou corretamente o direito tendo por base os factos apurados;
iii.- que as despesas de transcrição dos depoimentos prestados em audiência final não cabem nos encargos definidos como reembolsáveis no âmbito do apoio judiciário;
iv.- que ambas as decisões recorridas devem, por conseguinte, manter-se.
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9.- O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo e assim recebido nesta Relação, que o considerou corretamente admitido e com o efeito legalmente previsto.
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10.- Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II.- Das questões a decidir
O âmbito dos recursos, tal como resulta das disposições conjugadas dos art. ºs 635.º, n.º 4, 639.º, n.ºs 1 e 2 e 641.º, n.º 2, al. b) do Código de Processo Civil (doravante, CPC), é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente.
Isto, com ressalva das questões de conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado ou das que se prendem com a qualificação jurídica dos factos (cfr., a este propósito, o disposto nos art. ºs 608.º, n.º 2, 663.º, n.º 2 e 5.º, n.º 3 do CPC).
Neste pressuposto, as questões que, neste recurso, importa apreciar e decidir são as seguintes:
i.- da nulidade decorrente da forma como foi dirigida a audiência final e conduzidos os trabalhos de produção de prova nela levados a cabo;
ii.- da nulidade consubstanciada na valoração da ‘morada’ do Recorrente e das testemunhas por este arroladas na decisão da matéria de facto em violação do princípio do contraditório;
iii.- da alteração da decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida quanto aos factos provados n.ºs 7 a 13, no sentido da sua consideração como factos não provados e quanto aos factos não provados das alíneas g) a m), no sentido da sua consideração como factos provados.
iv.- das consequências a extrair na definição do direito aplicável ao litígio dos autos, em caso de resposta positiva à questão enunciada em iii;
v.- do direito do Recorrente a que, beneficiando do apoio judiciário, lhe seja pago, pelos ‘Cofres do Estado’, o valor da transcrição dos depoimentos prestados em audiência, para efeitos de instrução deste recurso.
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III.- Da Fundamentação
III.I.- Na decisão recorrida e alvo deste recurso foram considerados indiciados os seguintes factos:
1.- No dia …, ocorreu um acidente de viação, no  entroncamento entre a Rua … e a Rua …, em que foram intervenientes o motociclo de matrícula … , conduzido pelo Requerente, e o veículo automóvel ligeiro de matrícula … , conduzido por … .
2.- A condutora do veículo … transferiu a responsabilidade civil por danos causados a terceiros resultantes da circulação estradal do referido veículo para a Requerida, através do contrato de seguro titulado pela apólice n.º …, em vigor à data do acidente.
3.- No local do acidente, a Rua … dispõe de piso betuminoso e é composta por uma via de trânsito em cada sentido, separadas por traçado central descontínuo, medindo a faixa de rodagem, incluindo as linhas contínuas divisórias da berma, cerca de 8,00 metros de largura.
4.- A estrada, no local do acidente, apresenta uma configuração plana, em reta, com boa visibilidade e o piso encontrava-se em bom estado e seco.
5.- Pelas 17 horas, o Requerente conduzia o motociclo de matrícula … pela Rua… no sentido Norte – Sul, circulando em sentido contrário o automóvel ligeiro de matrícula …, conduzido por …
6.- A condutora do veículo automóvel pretendia virar à esquerda para aceder à Rua …
7.- Ao aproximar-se do referido entroncamento, a condutora do veículo automóvel sinalizou a manobra de mudança de direção à esquerda que pretendia realizar e parou o veículo junto ao eixo da via, dentro da hemi-faixa de rodagem direita, atento o seu sentido de marcha.
8.- A condutora … ficou a aguardar a passagem de veículos que circulavam em sentido contrário, para poder dar início à manobra que pretendia realizar e, assim, aceder à Rua …
9.- Estando ainda parada, a aguardar a passagem do último veículo ligeiro que circulava pela Rua …, contrário ao que fazia, surgiu, de forma repentina, o Requerente, no motociclo referido.
10.- O Requerente invadiu a hemi-faixa esquerda da faixa de rodagem, atento o sentido que seguia, pela meia faixa de rodagem onde se encontrava parado o veículo conduzido por ….
11.- Ao aperceber-se de que iria embater no veículo automóvel, o Requerente ainda tentou retomar a sua direita, o que não conseguiu, vindo a embater com a perna esquerda e a lateral esquerda do motociclo na zona frontal e lateral esquerda (esquina) daquele veículo automóvel.
12.- Acabando o Requerente, em consequência da sua manobra e do embate no veículo automóvel, por cair no chão, para o lado direito da via.
13.- O embate deu-se junto ao eixo da via, estando o veículo automóvel parado na hemi-faixa de rodagem direita, atento o seu sentido, onde permaneceu após o embate.
14.- Nas imediações do local onde ocorreu o acidente dos autos existe uma clínica de hemodiálise.
15.- Na sequência do acidente, e com o trânsito a acumular-se, a condutora do veículo automóvel foi abordada por um dos condutores de um dos veículos parados atrás do seu, que solicitou que a mesma retirasse o seu veículo da via por forma a permitir que o trânsito pudesse fluir.
16.- Após o acidente, tanto o Requerente, como a condutora do veículo automóvel, foram conduzidos ao Hospital …, a segunda apenas para realizar
17.- (…)
18.- Em consequência do acidente, o Requerente sofreu …
19.- Após ter sido transferido, no dia …, para a …, por evidência de …, foi realizada, no dia …, a … com colocação de ….
20.- No dia … , foi transferido para o Hospital …, por ser o hospital da sua área de residência.
21.- Desde, pelo menos, o dia …, o Requerente tinha ….
22.- No dia …, o Requerente …
23.- No dia 7 de julho de 2022, o Requerente celebrou com a … um acordo denominado “contrato para a realização de atividade profissional como profissional liberal”, do qual constam, designadamente, as seguintes cláusulas:
(…)
24.- À data do acidente, a condutora do veículo seguro encontrava-se a recuperar de ….
25.- A …, seguradora que, à data do sinistro, garantia o risco de circulação do motociclo conduzido pelo Requerente, custeou a reparação dos danos verificados no veículo automóvel conduzido por …
26.- A … pagou ao Requerente, após o acidente, pelo menos o montante de € 4.200,00.
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.- Na decisão recorrida não foram considerados indiciados os seguintes factos:
a) Ao chegar ao entroncamento da Rua … com a Rua…, … mudou de direcção à esquerda, quando o Requerente, motociclista, seguia a sua marcha na confluência desse entroncamento.
b) A condutora do veículo automóvel ligeiro virou à esquerda e não cedeu passagem ao Requerente que circulava pela sua faixa de rodagem, e se apresentava à direita daquela.
c) O veículo automóvel ligeiro cortou a linha de marcha seguida pela Requerente e embateu com a parte frontal esquerda na lateral esquerda do motociclo, no estribo – poisa pés – e de seguida, em vez de imobilizar a viatura, continuou a sua marcha pela Rua … para ir estacionar na Praceta …
d) O automóvel bateu com o pára-choques frontal lateral na perna esquerda do Requerente, projetando o motociclo e o seu condutor que ficaram caídos, encostados à berma do lado direito, considerando o sentido de marcha prosseguido pelo motociclo.
e) O embate da viatura automóvel no pé do Requerente actuou como um objecto contundente e com tão violenta contundência que provocou fractura exposta com perda de substância óssea.
f) A condutora do automóvel ligeiro, após fazer embater a viatura no Requerente, seguiu a sua marcha e foi estacionar a viatura na …
g) O Requerente ficou …
h) O Requerente aguarda com grande ansiedade o seu regresso à vida activa na esperança de recuperar alguma mobilidade que … lhe possa vir a proporcionar.
i) Uma das actividades que fica condicionada é o exercício da condução automóvel, considerando o défice de sensibilidade de que está afetado para conduzir em segurança.
j) O Requerente, em consequência da …, jamais poderá exercer atividades como praticar desportos, correr, saltar e andar de bicicleta.
k) Antes do acidente o Requerente era uma pessoa saudável e vivia feliz.
l) O Requerente vive amargurado e triste.
m) Com forte angústia constata que ficou muito condicionado ou mesmo incapacitado para atividades que praticava antes do acidente, tais como prática de desportos …
n) Em …, o Requerente decidiu emigrar para Portugal e procurar na Europa as condições de vida que o seu país nunca lhe proporcionaria.
o) Pelos serviços que prestasse o Requerente emitia faturas que periodicamente apresentava à … e recebia em conformidade.
p) Durante os meses em que exerceu a sua atividade, entre …, o Requerente recebeu da … o total de ….
q) O Requerente garantiu, nesses meses, uma média mensal superior a ….
r) Desde a data do acidente que o Requerente não recebe qualquer quantia da …, nem de outrem, nem tem qualquer outra fonte de rendimento que não seja o seu trabalho.
s) Dada a sua situação de incapacidade total para o trabalho, o Requerente desfez-se de todas as suas economias e só vai conseguindo sobreviver à custa de alguns amigos que lhe vão facultando alojamento, muito precário, e alimentação.
t) Os amigos do Requerente que o estão a apoiar também vivem em situação muito precária e com grandes dificuldades económicas.
u) O Requerente não consegue um quarto partilhado por menos de 300,00 € por mês.
v) Para o seu sustento carece, no mínimo, de igual quantia.
w) O Requerente tem de suportar também outras despesas, de água, luz, telefone, medicamentos, necessitando também de serviços de internet para procura de trabalho e contactos profissionais, o que tudo junto ultrapassa um encargo de 200,00 € mensais.
x) O Requerente está afetado de uma incapacidade geral para o trabalho, que agora é … e que no futuro se consolidará na ordem de …
y) As poucas actividades que pode desenvolver, como actividades de secretaria, são escassas e de difícil acesso, em especial para um estrangeiro como é o caso do Requerente.
z) No seu país, para onde não conta voltar, não tem qualquer outra perspectiva de futuro.
aa) É previsível que durante os próximos doze meses o Requerente não consiga entrar no mercado de trabalho e exercer actividade remunerada, capaz de garantir a sua subsistência.
bb) O Requerente está a endividar-se perante os amigos que agora o estão a auxiliar financeiramente.
cc) A possibilidade de voltar a conduzir um motociclo e voltar a exercer a actividade que exercia para a … é muito remota, pelo menos a curto prazo.
dd) É escassa a possibilidade de o Requerente conseguir um trabalho consentâneo com a sua incapacidade física.
ee) À data do acidente o Requerente tinha garantido um rendimento mensal na ordem de 2.000,00 € mensais, com tendência para aumentar, o que se traduz num rendimento anual de 24.000,00 €.
ff) O Requerente tem em curso um pedido de legalização da sua situação em Portugal, mas o seu objectivo é emigrar para a … , onde tem garantido trabalho e uma remuneração que ultrapassa duas vezes os seus rendimentos em Portugal.
gg) Quando tomou a decisão de emigrar, o Requerente projetou auxiliar os seus pais que sofrem de doenças incapacitantes e vivem em situação de absoluta indigência.
hh) A mãe do Requerente, …, sofre de … desde … , e o seu pai também sofre de …
ii) Com os rendimentos que auferia, o Requerente conseguiu fazer envios para os seus pais, …
jj) Face à situação descrita, o Requerente viu-se obrigado a cessar o apoio financeiro que vinha fazendo aos seus pais.
kk) O Requerente contabiliza prejuízos já consolidados equivalentes a cinco meses de rendimentos do trabalho (Agosto, Setembro, Outubro, Novembro e Dezembro 2023) no total de 10.000,00 €.
ll) O Requerente pretendia ultrapassar um veículo ligeiro que estava à sua frente antes do embate.
mm) Após o acidente, quem abordou a condutora do veículo automóvel para que esta o retirasse foi um condutor de uma das várias ambulâncias que ali começaram a chegar com destino à dita clínica.
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III.III.- Do objeto do recurso
1.- Da nulidade decorrente da forma como foi dirigida a audiência final e conduzidos os trabalhos de produção de prova nela levados a cabo
Insurge-se o Recorrente no seu recurso contra a forma como a Sr. Juíza que julgou o procedimento dirigiu a audiência final e conduziu a produção de prova que nela teve lugar.
Na sua perspetiva, fê-lo de forma deficiente e com prejuízo do esclarecimento dos factos que o próprio se propunha fazer, daí sobrevindo uma nulidade que deve conduzir à anulação do julgamento.
Ora, independentemente da questão de saber se se verificou ou não o vício invocado pelo Recorrente, sempre estaria vedado o seu conhecimento neste recurso.
Na verdade, o vício em causa diz respeito, de acordo como foi estruturada a sua invocação no recurso, a atos realizados ou não realizados na audiência final e não a vícios da decisão final recorrida.
Este tipo de vício, não constituindo nenhum dos catalogados nos art.ºs 186.º, 188.º, 191.º, 193.º e 194.º, é um dos genericamente previstos no art.º 195.º, n.º 1 do CPC; isto é, um vício que decorre da prática de um ato que a lei não admite ou da omissão de ato ou formalidade que a lei prescreva e que seja rotulado como nulidade pela lei ou em que a irregularidade correspondente possa influir no exame ou na decisão da causa.
Tal vício, não estando contemplado no art.º 196.º do CPC, não é de conhecimento oficioso, pressupondo antes a sua invocação, nos termos do art.º 197.º do CPC, pelo interessado na observância da formalidade ou na repetição ou eliminação do ato.
Na sua invocação, deve ser observado o condicionalismo e o limite temporal previstos no art.º 199.º, n.º 1 do CPC, ou seja: se a parte estiver presente, por si ou por mandatário, deve ser invocado no momento em que for cometida a nulidade e enquanto o ato não terminar; se não estiver presente, terá o prazo de 10 dias – v. art.º 149.º do CPC – para o fazer, prazo esse contado do dia em que, depois de cometida a nulidade, a parte interveio em algum ato praticado no processo ou foi notificado para qualquer termo dele, mas, neste último caso, só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou quando dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência.
No caso, o Recorrente esteve presente, pelo menos através do seu mandatário, em todas as sessões da audiência de julgamento em que, segundo o mesmo, foi cometido o vício contra o qual se insurge neste recurso.
Estando presente no ato em que alegadamente foi praticado o vício, era nele, mais concretamente até ao seu terminus, que o devia ter invocado.
O Recorrente, contudo, não o fez, pelo que, atento o estatuído no art.º 202.º do CPC, precludiu-se o direito de o fazer posteriormente, nomeadamente em sede de recurso da decisão final do procedimento, tal como o faz aqui.
Acresce ao que acaba de ser dito que o recurso é, pela sua natureza, um mecanismo processual com o qual, salvo o conhecimento oficioso de questões que o suscitem, se visa a reapreciação, por um tribunal de hierarquia superior, de uma decisão proferida por um tribunal de hierarquia inferior.
Exige, assim, “por definição (…) uma prévia decisão desfavorável, incidente sobre uma pretensão colocada pelo recorrente perante o Tribunal recorrido”, na certeza de que “[s]ó se recorre de uma decisão que analisou uma questão colocada pela parte e a decidiu em sentido contrário ao pretendido” (v., neste sentido, Acórdão da Relação de Guimarães de 08-11-2018, proferido no processo 212/16.5T8PTL.G1, disponível na internet, no sítio com o endereço www.dgsi.pt; v., também, entre muitos outros, no mesmo local, os Acórdãos do STJ de 07-04-2015, no processo n.º 3468/03 e de 08-10-2020, no processo n.º 4261/12.4TBBRG-A.G1.S1 e da Relação de Coimbra de 22-10-2013, no processo n.º 221/12.3TBTMR-A.C1).
No caso, constata-se que o Recorrente surge no recurso a invocar vícios reportados a atos ou omissões do tribunal a quo que, contudo, não suscitou junto do mesmo, pelo que do que se trata aqui é da invocação junto do tribunal de recurso de uma questão sobre a qual, porque não suscitada junto do tribunal a quo, não recaíu qualquer decisão deste.
A questão em análise constitui, por conseguinte, uma “questão nova” que, enquanto tal, e não sendo de conhecimento oficioso, não pode ser conhecida aqui.
Poderia sê-lo, sim – e posto que o Recorrente funda o recurso na violação dos princípios da igualdade e do contraditório, não sendo caso, portanto, de aplicação da restrição prevista no n.º 2 do art.º 630.º do CPC – se incidisse sobre despacho do tribunal a quo a apreciá-la, mas não numa situação em que, como a dos autos, tal não aconteceu e em que não há sequer despacho de que recorrer.
Não há, pois, em suma, que tomar conhecimento da nulidade em apreço.
***
2.- Da nulidade decorrente da valoração da ‘morada’ do Recorrente e das testemunhas por este arroladas na decisão da matéria de facto em violação do princípio do contraditório
Insurge-se o Recorrente, também, contra o facto de o tribunal a quo, na decisão da matéria de facto, ter valorado o tema da ‘morada’ da sua residência e da das testemunhas que arrolou em violação do princípio do contraditório.
Ou seja, e se bem se percebe a alegação do Recorrente, na perspetiva deste o tribunal a quo estribou a decisão da matéria de facto, mormente no que diz respeito à desconsideração dos respetivos depoimentos, na questão da ‘morada’ da sua residência e da das ditas testemunhas, sem, contudo, lhe dar a oportunidade de exercer o contraditório sobre essa decisão.
Ora, a propósito desta nulidade, cumpre salientar, em jeito liminar, que a mesma, apesar de, em último termo, dizer respeito a atos processuais que, nos termos alegados, deveriam ter precedido a prolação da sentença e não, portanto, a vício da própria sentença, não está sujeita à limitação de conhecimento da primeira nulidade supra apreciada.
Na verdade, de acordo com a forma como o Recorrente estrutura a questão em apreço, o vício que invoca diz respeito a uma nulidade que decorre do facto de o próprio juiz do processo, ao proferir a sentença, ter omitido uma formalidade de cumprimento supostamente obrigatório.
Trata-se aqui, assim, de um caso em que, como refere Abrantes Geraldes, a invocada “nulidade é revelada apenas através da prolação da decisão com que a parte é confrontada”, pelo que exigir-se a sua reclamação prévia poderia implicar, pelas repercussões que essa reclamação poderia ter para a subsistência da sentença proferida, que o próprio juiz do processo - que, nos termos do art.º 613.º do CPC, vira extinto o poder jurisdicional relativamente ao mérito da causa -, pudesse revogar ou modificar a sua própria decisão.
O recurso é, por conseguinte, o meio adequado para se reagir de um vício com tais características, tanto mais que, decorrendo o seu conhecimento pela parte prejudicada da prolação da própria sentença, a mesma, de acordo com o mesmo autor, “nem sequer dispôs da possibilidade de arguir a nulidade processual correspondente à omissão do ato, [sendo o recurso, assim], a via ajustada a recompor a situação, integrando-se no seu objeto a arguição daquela nulidade” (in Recursos em Processo Civil, 2022, p. 26).
Nada obsta, pois, ao conhecimento da nulidade em apreço neste recurso.
E conhecendo-se tal nulidade, afigura-se-nos que a mesma não se verifica, de todo.
Assim, o assunto da morada do Recorrente e das testemunhas sobreveio e foi discutido em sede de audiência de julgamento, na qual o Requerente sempre esteve representado por mandatário, pelo que o mesmo sempre teve ao seu dispor a possibilidade de, a respeito dele, dizer o que se lhe oferecesse, o mesmo é dizer… de exercer o contraditório.
Acresce que, na decisão da recorrida, o tribunal aludiu à morada do Recorrente e das testemunhas, não enquanto questão autónoma, mas enquanto fator de ponderação do relevo probatório dos respetivos depoimentos.
Ou seja, a morada do Recorrente e das testemunhas surge no contexto da decisão recorrida como (mais um) critério de que o tribunal a quo se socorreu para aferir da credibilidade dos depoimentos prestados em audiência e não como questão, com substrato factual e relevo autónomo na definição do direito aplicável ao caso, a se.
Do que se tratou foi, pois, do cumprimento, pelo tribunal a quo, do dever de fundamentação da decisão quanto à matéria de facto, no que tange, designadamente, à apreciação crítica das provas produzidas e à enunciação dos elementos decisivos para a formação da sua convicção que lhe incumbia fazer, nos termos impostos pelas disposições conjugadas dos art.ºs 295.º, 365.º, n.º 3 e 607.º, n.º 4 do CPC.
Ora, como decorre do regime fixado em tais normativos, a fundamentação da decisão da matéria de facto que ao tribunal incumbe fazer após a realização do julgamento tem lugar sem necessidade de audição ou contraditório prévios de qualquer das partes, o que, de resto, se compreende, já que a mesma incide sobre a prova produzida num julgamento em que as partes tiveram oportunidade de se pronunciar sobre ela e, inclusive, de contribuir para a sua produção.
A abordagem que o tribunal a quo fez da questão em apreço mais não traduziu, assim, do que o cumprimento de um dever (de fundamentação), no âmbito da fase processual que o Código de Processo Civil estabelece para o efeito e sem que, a precedê-la, tivesse omitido qualquer formalidade legal.
Não há, em suma, nulidade atendível, em razão do que improcede a pretensão do Recorrente.
***
3.- Da impugnação da decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida
O presente recurso versa, também, sobre a decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida.
Os termos em que a Relação pode conhecer da matéria de facto impugnada em sede de recurso constam, no essencial, do art.º 662.º do Código de Processo Civil.
De acordo com o disposto no n.º 1 deste preceito, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Por seu turno, nos termos do n.º 2, a Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:
a) ordenar a renovação da produção da prova quando houve dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;
b) ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;
c) anular a decisão proferida na 1.ª Instância quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração proferida sobre a decisão da matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta;
d) determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados.
Da leitura de tais dispositivos legais resulta que à Relação é, em sede de recurso em que esteja em causa a impugnação da matéria de facto, conferido um grau de autonomia especialmente relevante.
Na realidade, se, confrontada com a prova globalmente produzida, o seu juízo decisório for diverso do da 1.ª Instância, à Relação incumbe hoje, não a faculdade ou a simples possibilidade, mas um verdadeiro dever de introduzir as alterações que tenha por convenientes ou acertadas.
Por outro lado, se, confrontada com essa mesma prova, reputá-la insuficiente ou mesmo inconsistente, deverá, mesmo sem impulso das partes nesse sentido, o mesmo é dizer oficiosamente, ordenar a renovação de prova já produzida ou mesmo a produção de novos meios de prova.
Em sede de reapreciação da matéria de facto, cabe à Relação, por conseguinte, formar a sua própria convicção quanto à prova produzida, convicção essa que, caso divirja da firmada em 1.ª instância, prevalecerá sobre esta.
Ou seja, e como refere António Santos Abrantes Geraldes, a Relação atua nesta sede com “autonomia decisória” e “como verdadeiro tribunal de instância”, ao qual compete “introduzir na decisão da matéria de facto impugnada as modificações que se justificarem, desde que, dentro dos poderes de livre apreciação dos meios de prova, encontre motivo para tal” (in Recursos em Processo Civil, Almedina, 2022, p. 334).
A posição que a Relação deve adotar quando confrontada com um recurso em matéria de facto deve, pois, ser a mesma da da 1.ª Instância aquando da apreciação da prova após o julgamento, valendo para ambos o princípio da livre apreciação da prova, conforme resulta, aliás, do disposto nos art. ºs 607.º, n.º 5 e 663.º, n.º 2 do CPC.
O mesmo é dizer, com Remédio Marques, que a “Relação tem o poder-dever de formar a sua convicção própria sobre a prova produzida e sobre a correção do julgamento da matéria de facto, não se devendo escusar a fazê-lo com base no princípio da livre convicção do julgador da 1.ª instância” (in Acção declarativa à luz do Código revisto, p. 637-638, apud José Lebre de Feitas, Armando Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. 3.º, p. 172).
Só assim se garantirá, de resto, a efetiva sindicância, por parte da Relação, do julgamento da matéria de facto levado a cabo em 1.ª instância e, com isso, o princípio fundamental do duplo grau de jurisdição (v., neste sentido, e entre muitos outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24-09-2013, de 26-05-2021 e de 04-11-2021, todos disponíveis na internet, no sítio com o endereço www.dgsi.pt).
A autonomia decisória com que a Relação deve encarar a reapreciação da matéria de facto não pode implicar, contudo, a consideração genérica e indiscriminada de todos os factos e meios de prova já tidos em conta pela 1.ª Instância, como se aquela reapreciação impusesse a realização de um novo julgamento.
Dispõe, com efeito, o art.º 640.º, n.º 1 do CPC que quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
.- os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados (alínea a);
.- os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnada  diversa da recorrida (alínea b);
.- a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (alínea c).
Por outro lado, de acordo com a alínea a) do n.º 2, sempre que os meios de prova que, nos termos da alínea b) do n.º 1 devem ser especificados, tenham sido gravados, incumbe ao recorrente indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.  
Resulta de tais normativos legais que sobre o recorrente que pretenda ver sindicado pela Relação o julgamento da matéria de facto feito em 1.ª instância recai o ónus de, não só circunscrever e delimitar a concreta matéria de facto de cujo julgamento discorda, como o de enunciar os meios de prova que deveriam ter conduzido a decisão diversa - apontando, neste caso, em se tratando de depoimentos gravados, as passagens da gravação ou procedendo à transcrição dos excertos relevantes - e, ainda, o de indicar o sentido da decisão que, na sua perspetiva, deve ser proferida.
O sistema adotado pelo legislador quanto ao julgamento da matéria de facto pela Relação, ao invés de uma solução pautada pela simples “repetição dos julgamentos” e “pela admissibilidade de recursos genéricos contra a decisão da matéria de facto”, consiste, pois, num sistema caracterizado “por restringir a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente”, como corolário do “princípio do dispositivo que se revela através da delimitação do objeto do recurso (da matéria de facto) através das alegações” (v., neste sentido, António Santos Abrantes Geraldes, in ob. cit., p. 195 e 341).
Isto, aliás, com reflexos na aferição da própria admissibilidade do recurso em matéria de facto, já que, como decorre expressamente do corpo do preceito que acaba de ser transcrito, o ónus que recai sobre o recorrente deve ser cumprido sob pena de rejeição do próprio recurso.
Do sistema assim concebido pelo legislador podemos entrever, em suma, e como se referiu no Acórdão do STJ de 29-10-2015, um “ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação”, bem como de “um ónus secundário – tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes” (sublinhados nossos; Acórdão disponível na internet, no sítio com o endereço www.dgsi.pt).
Neste recurso, como resulta das conclusões do Recorrente (v. conclusão n.º 66), este pretende a alteração da decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida quanto a dois grupos de factos distintos:
.- quanto aos factos provados n.ºs 7 a 13, no sentido da sua consideração como factos não provados; e
.- quanto aos factos não provados das alíneas g) a m), no sentido da sua consideração como factos provados.
A este respeito, e levando-se em linha de conta as considerações acima expendidas sobre a admissibilidade do recurso em matéria de facto, importa começar por dizer que se impõe a rejeição da impugnação da decisão da matéria de facto no que tange ao segundo grupo de factos que acaba de ser referido, relativo aos factos não provados das alíneas g) a m).
E isto, pela razão de que o Recorrente não cumpriu, quanto a eles, o ónus de especificação dos concretos meios de prova que, na sua perspetiva, impunham decisão diversa da recorrida (cfr. a citada alínea b) do n.º 1 do art.º 640.º do CPC).
Na verdade, a respeito deste grupo de factos, aquilo que o Recorrente invocou para justificar as razões da sua discordância quanto à decisão do tribunal a quo foi o seguinte:
.- “(…) a documentação clínica junta aos autos comprova todas as circunstancias de sofrimento e de vida do requerente. Devendo essas matérias ser alteradas em conformidade.”;
.- “Foi produzida prova abundante do estado de necessidade do requerente e as conclusões recolhidas na sentença parecem apontar para um estatuto de grande prosperidade da vitima”;
.- “A documentação clinica apresentada pelo requerente basta para indiciar o seu estado de dependência e ansiedade e as limitações que não ficaram indiciadas e estão elencadas nas alíneas g) e seguintes”;
.- “Circunstancias que, com o devido respeito, terão de se considerar provadas por prova direta e pelo mecanismo das presunções.”;
.- “Pelas razões já aduzidas deve anular-se a decisão de considerar não provados os factos elencados nas alíneas g. e seguintes dos factos não indiciariamente provados.”
Ora, tais afirmações não passam de alegações vagas, conclusivas e genéricas sobre a posição do Recorrente quanto à decisão recorrida relativamente aos factos em apreço.
Na verdade, e desde logo, reportam-se à “documentação clínica” em geral, sem especificar que documentação é essa - a menção de que se tratava de documentação “clínica” é irrelevante para afastar essa conclusão, dada a enorme quantidade de documentos juntos aos autos que podem ser qualificados como tal.
Aludem, também, a factos que resultariam de “prova direta” e do “mecanismo das presunções”, mas não especifica que “prova direta” seja essa, o que, por si só, afasta, atento o disposto no art.º 349.º do CC, a aplicabilidade das presunções judiciais.
Finalmente, não faz qualquer associação específica entre a documentação clínica e cada um dos factos a que se refere na sua impugnação, desconhecendo-se, assim, que relevo probatório é que, na sua perspetiva, os documentos deviam ter na demonstração de cada um deles.
O recurso da decisão da matéria de facto quanto ao grupo de factos em apreço é, pois, genérico e mais não traduz do que a manifestação de um inconformismo relativamente à decisão do tribunal a quo a respeito deles.
O Recorrente não cumpriu, assim, quanto a estes factos, o ónus previsto no referido art.º 640.º, n.º 1, alínea b) do CPC, em razão do que, sendo inadmissível, nesta sede, despacho de aperfeiçoamento da sua peça recursória (v. art.ºs 639.º, n.º 3 e 652.º, .º 1, alínea a) do CPC), importa rejeitar o recurso nesta parte.
É o que se decide.
No mais, isto é, quanto aos factos provados n.ºs 7 a 13, mostram-se individualizados os concretos pontos de facto que o Recorrente reputa incorretamente julgados pela 1.ª instância e indicado o sentido da decisão que que deve ser proferida quanto a eles.
Outrossim, apesar da profusão das alegações do Recorrente, que, a espaços, estão no limiar da ininteligibilidade, ainda é possível entrever um mínimo de enunciação, por referência aos meios de prova produzidos em julgamento, dos motivos que, na ótica do Recorrente, os factos em causa mereciam julgamento diverso.
O Recorrente indica, ainda, relativamente aos depoimentos gravados, as passagens da gravação em que funda o recurso.
Ademais, como decorre do recente Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Plenário das Secções Cíveis do STJ de 17-10-2023, a ponderação sobre a admissão ou rejeição do recurso em matéria de facto deve ser feita no quadro dos “princípios da proporcionalidade e da razoabilidade”, pelo que, cumprido o essencial do ónus a cargo do recorrente, o princípio será o da admissão da impugnação em matéria de facto “se da conduta processual do recorrente resultar de forma clara e inequívoca o que o mesmo pretende com a interposição do recurso”.
E é esse, quanto a nós, o caso dos autos, em que da leitura da peça recursória do Recorrente resulta evidenciado aquilo que o mesma visa com a impugnação da decisão recorrida, no que toca aos factos aqui em causa.
Cumpriu o mesmo, em suma, o ónus que o acima citado art.º 640.º do CPC fazia recair sobre si, nada obstando ao conhecimento do recurso nesta parte.
Apreciemos, pois, a sua pretensão relativamente aos factos acima destacados.
Estão aqui em causa, como se disse já, os factos provados constantes dos n.ºs 7 a 13.
Tais factos têm a seguinte redação:
7.- Ao aproximar-se do referido entroncamento, a condutora do veículo automóvel sinalizou a manobra de mudança de direção à esquerda que pretendia realizar e parou o veículo junto ao eixo da via, dentro da hemi-faixa de rodagem direita, atento o seu sentido de marcha.
8.- A condutora … ficou a aguardar a passagem de veículos que circulavam em sentido contrário, para poder dar início à manobra que pretendia realizar e, assim, aceder à Rua …
9.- Estando ainda parada, a aguardar a passagem do último veículo ligeiro que circulava pela Rua …, contrário ao que fazia, surgiu, de forma repentina, o Requerente, no motociclo referido.
10.- O Requerente invadiu a hemi-faixa esquerda da faixa de rodagem, atento o sentido que seguia, pela meia faixa de rodagem onde se encontrava parado o veículo conduzido por…  
11.- Ao aperceber-se de que iria embater no veículo automóvel, o Requerente ainda tentou retomar a sua direita, o que não conseguiu, vindo a embater com a perna esquerda e a lateral esquerda do motociclo na zona frontal e lateral esquerda (esquina) daquele veículo automóvel.
12.- Acabando o Requerente, em consequência da sua manobra e do embate no veículo automóvel, por cair no chão, para o lado direito da via.
13.- O embate deu-se junto ao eixo da via, estando o veículo automóvel parado na hemi-faixa de rodagem direita, atento o seu sentido, onde permaneceu após o embate.
Dizem respeito, como se vê, à dinâmica do acidente de viação dos autos e a sua consideração como provados materializa a adesão do tribunal a quo, em função da prova produzida em audiência, à versão da Recorrida quanto a essa dinâmica.
Relativamente a tais factos – que analisaremos em bloco, dada a ligação intrínseca entre todos eles – cumpre-nos dizer que, analisados os elementos de prova, mormente documental, constante dos autos e ouvidos os depoimentos prestados em audiência, mormente os das testemunhas …, tudo devidamente sopesado à luz das regras da experiência comum, concluímos que, efetivamente, resultaram provados.
Assim, a testemunha …, condutora do veículo automóvel interveniente no acidente, referiu que, estando na Rua … e pretendendo “virar” à esquerda a fim de seguir para sua casa, parou o veículo na sua hemi-faixa de rodagem, com o “pisca à esquerda” acionado, a aguardar que os “muitos carros” que circulavam em sentido contrário o permitissem.
Repentinamente, depois de um dos carros passar por si, surgiu o motociclo conduzido pelo Requerente na sua direção, dando-lhe a ideia de que pretendendo “ultrapassar o carro que ia à sua frente”, indo embater no seu veículo, sendo que, depois disso, “só viu a mota e o Sr. … a serem lançados para trás para o meu lado esquerdo”.
Realçou que foi o motociclo que foi embater no seu carro e que o embate se verificou dentro da sua hemi-faixa de rodagem (da testemunha), estando o veículo imobilizado, veículo que, após o embate, ficou na posição retratada no fotograma junto com a oposição sob o n.º 2.
Mais referiu a testemunha que o Requerente “não era o último da fila de carros que tinha que aguardar que passassem”, sendo que houve um carro “que teve que se atravessar na via para não embater em nós e os outros carros atrás dele travaram também”.
A testemunha …, por seu turno, referiu que estava com um amigo (a testemunha …) a conversar nas imediações do local, “virada para o cruzamento”, sendo que, de repente, ouviu “o barulho de uma motorizada, que lhe chamou a atenção”, vendo-a então a “acertar no carro”, que estava “imobilizado, no eixo da via, no lugar dele, no lugar em que deve estar”, precisando que “do lado direito da faixa”, atento o sentido do veículo.
Ou seja, ambas as testemunhas, com a especial razão de ciência decorrente do facto de ter intervindo no acidente (a primeira) e/ou de o ter presenciado (a segunda), atestaram a dinâmica do acidente de viação dos autos em conformidade com o que consta dos factos aqui em apreço.
Além de atestarem os factos, fizeram-no de forma credível.
Desde logo, por se tratar de depoimentos de pessoas desinteressadas do desfecho do processo e totalmente alheias às partes nele envolvidas, sendo de realçar, inclusive, a evidência do sentimento de “compaixão” de ambas pelas nefastas consequências advindas do acidente para a integridade física do Requerente (que viu amputada uma perna).
Depois, por se tratar de depoimentos perfeitamente consentâneos com a restante prova produzida e com a própria normalidade das coisas.
Assim, estando a testemunha … imobilizada a aguardar que o “cortejo” de veículos em sentido contrário ao seu passasse, por forma a que pudesse virar à esquerda e seguisse em frente, o natural que ocorresse era, não que se “atravessasse” à frente do motociclo, pois que, nesse caso, provavelmente arriscaria embater num dos outros veículos, mas que, como consta dos factos provados, estivesse imobilizada e que fosse o motociclo que, mercê de condução desadequada, fosse embater no seu veículo.
Acresce que, como era assente nos autos e flui expressivamente do fotograma junto com a oposição como documento n.º 3, o veículo conduzido pela testemunha … sofreu estragos no canto esquerdo da sua frente, na zona do farol esquerdo, portanto.
Ora, tais estragos, não só são compagináveis com a versão do embate descrita pelas referidas testemunhas, como afastam, por si só, que o embate pudesse ter ocorrido de outro modo e, designadamente, do modo descrito pelo Requerente, já que se o veículo, como alegado por este, tivesse “cortado a sua linha de marcha”, a zona do veículo embatida teria sido certamente outra, nomeadamente, a frontal.
De referir, também, que a versão dos factos narrada pelas referidas testemunhas não foi contrariada por qualquer outro dos depoimentos prestados em audiência.
Assim, a testemunha … pura e simplesmente não viu o acidente, tendo chegado ao local quando o Requerente, seu amigo, já estava “no chão”.
A testemunha …, por seu turno, referiu que viu o acidente e que “foi o carro que bateu na mota”, mas o seu depoimento revelou-se absolutamente carecido de relevo probatório.
Com efeito, a testemunha estaria, segundo a própria, a “100 metros” do local e, portanto, a uma distância significativa e certamente impeditiva de visionar o desenrolar do acidente.
Por outro lado, ter-se-ia apercebido do acidente “pelo barulho”, pelo que, se realmente viu alguma coisa, não foi certamente o modo como se processou o embate.   
Finalmente, confrontada com os fotogramas que constituem os documentos juntos com a petição inicial sob os n.ºs 2 e 3, situou o local do embate junto das pessoas visíveis nas fotografias, o que não é, de todo, compatível, como, aliás, se concluiu na decisão recorrida, com os danos do veículo e com o facto de, além do motociclo conduzido pelo Requerente, haver, aquando do acidente, outros veículos em circulação em sentido contrário.
A testemunha … também não viu o acidente e estribou o seu depoimento naquilo que o Requerente lhe dissera quando, na qualidade de funcionária do seu Advogado (do Requerente), o foi visitar ao hospital com o Sr. Advogado para, de acordo com a própria, “falar sobre o acidente”.
Ou seja, a testemunha nenhum conhecimento de causa revelou, sendo que, mesmo que o tivesse revelado, nunca o seu depoimento poderia ser valorado, já que, enquanto colaboradora de advogado e agindo nessa qualidade, sempre estaria sujeita ao sigilo profissional, não podendo o seu depoimento valer como prova em juízo (v. art.º 92.º, n.ºs 1, 5 e 7 do EOA).
Quanto às restantes testemunhas inquiridas, nenhuma delas revelou conhecimento sobre a dinâmica com que se processou o acidente.
Finalmente, e quanto às declarações de parte do Requerente, vale aqui tudo que, quanto a elas, foi dito, com propriedade e pertinência, na decisão recorrida, isto é, que:
No que diz respeito às declarações de parte do Requerente (…) pareceram-nos também pouco sinceras, e demasiado contraditórias para serem credíveis.
Veja-se, logo quanto ao acidente, que o mesmo começou por referir que não viu o veículo automóvel parado, mas apenas o viu no momento da colisão. Esta versão é, em tudo, mais consentânea com a versão trazida pela Requerida, sendo que se existiu alguma distracção, parte do Requerente, e este veio a embater no veículo automóvel, é natural que apenas o visse no momento do embate.
Porém, após, o Requerente alterou a sua versão e referiu que a condutora do veículo automóvel vinha com velocidade elevada e virou para a esquerda sem fazer o pisca, atingindo-o.
Ora, as duas versões não são minimamente compatíveis, sendo, aliás, totalmente contraditórias.
Como se disse acima, também nos parece que os danos causados no veículo automóvel são muito mais compatíveis com a versão dada pela condutora deste do que pelo condutor do motociclo, o aqui Requerente.
De resto, o presente recurso evidencia que nem o próprio Recorrente acredita na sua versão da dinâmica do acidente de viação dos autos, já que surge aqui a bater-se por que não se considere provados os factos alegados a esse respeito pela Recorrida, mas não se bate, sequer, pela consideração como provados dos factos que o próprio alegara a esse respeito.
Refere o Recorrente que o depoimento da testemunha …, a condutora do veículo, não deveria ter merecido credibilidade, pelo facto de a mesma ter apresentado duas versões do acidente: “uma, no depoimento escrito que apresentou à polícia e que instrui o relatório do evento” junto como documento n.º 3 com a petição inicial; outra, que foi exposta em audiência final.
Tal argumento, contudo, não tem razão de ser, valendo aqui o que, a esse respeito, foi dito, mais uma vez com propriedade e pertinência, na decisão recorrida:
“O facto de a testemunha … ter referido, no depoimento escrito, que não tinha percebido o porquê de o motociclo ter embatido na sua viatura, não é contraditório com o facto de ter dito, em sede de audiência, que pensa que o Requerente pretendia ultrapassar um carro que vinha à sua frente. A testemunha não apresentou isto como uma certeza, mas como uma hipótese.
Além disso, um depoimento escrito, em meia dúzia de linhas, não se compara a um depoimento prestado em sede de audiência, em termos de elaboração e completude.
Argumenta o Recorrente, também, que os depoimentos das testemunhas … são contraditórios entre si num aspeto essencial como foi o da existência (segundo a primeira) ou inexistência (de acordo com a segunda) de trânsito intenso na via aquando do acidente.
Mais uma vez, na decisão recorrida dá-se resposta cabal a esta questão, quando ali se diz: “[D]issentiram estas duas testemunhas, sobretudo, na questão do volume de tráfego que, note-se, para além de não ser um aspecto com muita relevância, os seus depoimentos também não foram totalmente contraditórios neste conspecto, uma vez que a testemunha … referiu não ter a certeza se passaram carros à frente da mota ou não.
De salientar, ainda, a este propósito, que a credibilidade do depoimento destas testemunhas, além de tudo quanto, a esse propósito, já se disse acima, decorreu, ainda, no que tange à testemunha …, do facto de, questionada sobre um aspeto essencial da dinâmica do acidente como era o de saber se a condutora do veículo tinha o “pisca” acionado, não só não ter caído na tentação de dizer que sim, como afirmou abertamente que não se lembrava se tal ocorrera.
De resto, as testemunhas em causa, além de desinteressadas no desfecho do processo, não evidenciaram sequer ter qualquer ligação entre si, o que afasta a ideia de que pudessem ter deposto concertadamente.
Em suma: os factos em apreço resultaram evidenciados pela prova produzida em audiência, nenhuma censura merecendo, por conseguinte, a decisão do tribunal a quo.
Improcede, pois, quanto a eles, a impugnação da decisão da matéria de facto constante da decisão recorrida, decisão esta que, por conseguinte, se deve manter e manter na íntegra, posto que a reapreciação do caso do ponto de vista do direito aplicável estava dependente, de acordo com a forma como foi estruturado o recurso, da procedência do recurso em matéria de facto.
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4.- Do direito do Recorrente ao reembolso do valor que despendeu com a transcrição dos depoimentos prestados em audiência a fim de instruir o recurso
Neste recurso, insurge-se o Recorrente, ainda, como decorre dos pontos 5 e 6 do relatório deste Acórdão, contra o despacho do tribunal a quo de 19-02-2024, que lhe negou a pretensão de, beneficiando do apoio judiciário, ser pago, pelos ‘Cofres do Estado’, dos custos da transcrição dos depoimentos prestados em audiência final, de que carecia para instruir o recurso.
Nenhuma censura merece, contudo, o despacho recorrido.
Na verdade, o adiantamento ou o reembolso de despesas a suportar ou suportadas pela parte que beneficie de apoio judiciário por parte do Instituto de Gestão Financeira e das Infraestruturas da Justiça, I.P. pressupõe, nos termos do disposto no art.º 19.º, n.º 1 do RCP, que tais despesas constituam encargos.  As despesas que constituem encargos estão catalogadas no art.º 16.º, n.º 1 do RCP e nesse elenco não estão previstas quaisquer despesas com a transcrição de depoimentos.
Trata-se aqui, aliás, de solução compreensível, já que a transcrição de depoimentos, como se infere do disposto no art.º 640.º, n.º 2, alínea a) do CPC, não é essencial ao exercício do direito do recorrente que impugna a decisão da matéria de facto.
Pelo contrário, a transcrição dos depoimentos prestados em audiência constitui um “ónus” do recorrente, como, de resto, resulta da jurisprudência dos Acórdãos do Tribunal Constitucional com os n.ºs 473/2007, de 02-11-2007 e 405/04, de 02-06-2004, em que, apesar de debruçados sobre a questão suscitada em processo penal, se concluiu, com cabimento aqui, que não eram inconstitucionais as interpretações da norma do art.º 412.º, n.º 4 do CPP, no sentido, respetivamente: (i) de não ser obrigatório, para efeitos de interposição de recurso em matéria de facto, o fornecimento pelo tribunal da transcrição da gravação da prova produzida em julgamento; (ii) de que incumbe ao recorrente o ónus da transcrição ali previsto.
Neste mesmo sentido foi decidido nos Acórdãos da Relação de Évora de 09-02-2021, proferido no processo 2351/18.9T9STB.E1 e de 26-05-2022, proferido no processo n.º 2055/13.9TBABF.E1 (ambos disponíveis na internet, no sítio com o endereço acima referenciado).
A pretensão do Recorrente não tem, pois, acolhimento legal, nenhuma censura merecendo o despacho recorrido que assim o decidiu e que, como tal, há que manter.
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Porque vencido, é o Recorrente responsável pelas custas da apelação (art.ºs 527.º e 529.º do CPC), sem prejuízo, contudo, do benefício do apoio judiciário de que goza.
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IV.- Decisão
.- Termos em que se decide julgar totalmente improcedentes, quer o recurso interposto da decisão final proferida no presente procedimento cautelar em 09-02-2024, quer o recurso interposto do despacho proferido pelo tribunal a quo em 19-02-2024, assim se mantendo, na íntegra, tais decisões.
Custas da apelação pelo Recorrente, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário de que goza.
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Lisboa, 9 de maio de 2024
José Manuel Correia
Arlindo José Colaço Crua
Paulo Fernandes da Silva