Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
968/21.3T8OER.L2-6
Relator: NUNO LOPES RIBEIRO
Descritores: FALTA DE CITAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Para a verificação do vício de falta de citação, determinante da verificação de nulidade principal, cumpre ao destinatário da citação pessoal provar que não chegou a ter conhecimento do acto, por facto que não lhe seja imputável.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa

I. O relatório
A
interpôs a presente acção comum, contra
B,
peticionando:
A. Condenar a Ré a pagar à Autora a quantia de 7.234,12€, pelo capital mutuado, acrescida de juros vencidos e vincendos pela constituição em mora desde 28-01-2021, nos termos dos artigos 1142.º (2a parte) e 1148.º, n.º 1, ambos do Código Civil;
B. Subsidiariamente:
i. Declarar NULO o contrato de mútuo celebrado entre a Autora e a Ré; e
ii. Condenar a Ré a pagar à Autora a quantia de 7.234,12€, pela restituição do que foi prestado em falta, acrescida de juros vencidos e vincendos pela constituição em mora desde 28-01-2021, nos termos dos artigos 220.º, 286.º e 289.º, n.º 1, todos do Código Civil.
No dia 18/03/2021, o Tribunal remeteu uma citação por via postal para a sede da sita na Rua …, tal como indicado na petição inicial e confirmada que foi essa sede na base de dados do Registo Nacional de Pessoas Colectivas.
A referida citação foi recebida naquela morada por C, no dia 19/03/2021.
A ré apresentou, em 20/5/2021, contestação, terminando o articulado da seguinte forma:
a. Deve o Tribunal dar como verificada a nulidade da citação da ré para os termos destes autos e, consequentemente, admitir a presente contestação e considerar que a mesma é apresentada em tempo oportuno;
b. Deve a presente acção ser julgada improcedente, por não provada e a ré absolvida do pedido;
Em 25/5/2021, foi proferido o seguinte despacho:
Nos presentes autos de ação de processo comum, o (a) R., citado (a) pessoalmente, não contestou e não se verificam, no caso, quaisquer das exceções previstas no artigo 568º do CPC.
Pelo exposto considero confessados os factos articulados pelo (a) A. (cfr. artigo 567º nº 1 do Cód. de Processo Civil).
Faculte o processo nos termos e para os efeitos previstos no artigo 567º nº 2 do Cód. de Processo Civil.
A autora respondeu ao incidente de arguição de nulidade, terminando:
Nestes termos e nos melhores de direito, e sempre com o mui douto suprimento de V. Exa., deve ser julgada totalmente improcedente a invocada nulidade da citação
Após produção de prova indicada pelas partes e com data de 29/11/2022, foi proferido despacho com o seguinte dispositivo:
Nestes termos, e com tais fundamentos declara-se que a citação da Ré se encontra validamente efetuada por não se verificar qualquer nulidade processual.
Interposto recurso contra este despacho, foi proferido despacho pelo Exmo. Relator, no sentido da não admissão do mesmo.
Regressados os autos à 1ª instância, foi determinado o desentranhamento da contestação, por extemporânea e foi proferida sentença, em 27/11/2023, com o seguinte dispositivo:
Pelo exposto, julga-se a presente ação procedente por provada, e, em consequência:
a) Declara-se NULO o contrato de mútuo celebrado entre a Autora e a Ré; e
ii. Condena-se a Ré a pagar à Autora a quantia de €7.234,12, pela restituição do que foi prestado em falta (porque já restituída a quantia de €20.000,00), acrescida de juros vencidos e vincendos pela constituição em mora desde 28.01.2021, nos termos dos artigos 220.º, 286.º e 289.º, n.º 1, todos do Código Civil.
*
Inconformada, a ré interpôs recurso de apelação para esta Relação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:
1. Face a todo o exposto, é de concluir que o despacho de 29.11.2022 - que considera que a citação da Ré foi regularmente realizada e que não se verifica qualquer nulidade processual - incorre em erros na fixação da matéria de facto e em erros de interpretação e aplicação do direito que o inquinam, devendo por isso ser revogado e substituído por outro que determine a nulidade da citação da Ré e que receba a contestação por esta apresentada.
2. É igualmente de concluir que a sentença recorrida incorre em vício de nulidade por omissão de pronúncia e viola os princípios do contraditório e da igualdade das partes, devendo também ser revogada.
E isto porque:
OS VÍCIOS DO DESPACHO DE 29.11.2022 (REFERÊNCIA 137946739): Quanto à decisão sobre a matéria de facto:
3. O despacho recorrido dá como provados apenas três factos quando, face à prova documental produzida pela Recorrente e não impugnada pela Recorrida - que foi total, mas injustificadamente, desatendida na decisão recorrida - deveria ter dado também como provados os seguintes factos:
3.1. A sociedade Ré tem o capital social de €5.000,00 e tem como sócios G titular de uma quota no valor nominal de €3.000,00 representativa de 60% do capital da Ré e a sociedade E - Unipessoal, Lda. titular de uma quota no valor nominal de €2.000,00 representativa de 40% do capital da Ré;
3.2. A sócia da Ré E - Unipessoal, Lda. é detida em 100% e gerida em exclusivo por F;
3.3. F é o acionista largamente maioritário da Autora (detém 99,99% do capital) e o seu administrador único que vincula sozinho esta sociedade;
3.4. A sede da sociedade Ré situa-se no mesmo local da sede da sua sócia E - Unipessoal, Lda..
3.5. No dia 06/03/2021, às 11:53, G (gerente da Ré) enviou um e-mail a F com o seguinte teor:
Bom dia F,
Por forma a alterarmos a sede social da empresa, para a Rua … Lisboa, questiono se podemos fazer a prévia deliberação diretamente por ata?
Sendo a resposta positiva, enviaria nos próximos dias a ata para assinarem, uma vez que temos alguma urgência nesta alteração, considerando que vocês sairão das atuais instalações onde está esta sede até ao final do mês. Obrigado.
G
3.6. No dia 16 de março de 2021 a gerência da Ré enviou para a sociedade E uma carta registada contendo uma convocatória para uma assembleia geral de sócios da Ré a realizar no dia 31 de março de 2021 e com a seguinte ordem de trabalhos:
Ponto Único: Alteração da sede da sociedade, com alteração parcial do pacto social, no que diz respeito ao seu artigo 2º, n. º 1.
3.7. No dia 5 de fevereiro de 2021 às 11:28, X (X@....pt) enviou para Y um e-mail com o assunto
“correspondência B 5 de fevereiro” e com o seguinte teor:
Bom dia Y
Em anexo a correspondência recebida da ….
Vou também colocar no correio junto as outras.
Beijinhos
Obrigada
3.8. Nesse mesmo dia 5 de fevereiro de 2021 às 12:11, Y reencaminha o referido e-mail para G e nele inscreve a seguinte mensagem:
Bom dia,
Segue correspondência recebida
3.9. No dia 19 de março de 2021 às 09:54, X enviou para Y um e-mail com o assunto “NOVO BANCO - B” e com o seguinte teor:
Bom dia, Y
Segue correspondência da B.
Obrigada
3.10. Nesse mesmo dia 19  de março  de 2021 às 12:20, Y reencaminha o referido e-mail para G e nele inscreve a seguinte mensagem:
Segue o extrato bancário
3.11.    No dia 6 de abril de 2021 às 10:53, X enviou para Y um e-mail com o assunto “Carta registada para B - De: EMEL” e com o seguinte teor:
Y
Segue em anexo,
3.12. Nesse mesmo dia 6 de abril de 2021 às 11:14:21, Y reencaminha o referido   e-mail  para G e nele inscreve a seguinte mensagem:
G, como estás?
Segue em anexo uma guia para levantar uma carta registada da Emel.
Beijinho
3.13.    No dia 10 de maio de 2021 às 09:23:18 Y envia um e-mail para G com o assunto “Recolha de Correio” e com o seguinte teor:
Bom dia G espero que estejas bem.
Temos aqui algum correio, que ainda foi para a morada da … em Algés,
que peço que venham recolher nas nossas instalações atuais.

4. Todos os factos acima enunciados resultam demonstrados com base na análise conjugada das certidões comerciais das referidas três sociedades e do RCBE da Autora, bem como dos e-mails e convocatória para assembleia geral juntos pela Ré com a sua contestação com os números 1, 2, 3, 4, 6, 7, 8 e 9 respetivamente,
5. Os factos acima enunciados nos pontos 3.1 a 3.4 são relevantes na ponderação que o Tribunal deveria ter feito, e não fez, sobre:
5.1. O domínio de F sobre as várias sociedades e influência que tem em matéria de viabilização da alteração da morada da sede formal da Ré e envio à Ré da correspondência aí recebida;
5.2. O conhecimento que a Autora tinha de que a sociedade Ré não labora na morada da sua sede, nem aí exerce qualquer domínio ou controlo da correspondência recebida, pelo que sempre seria necessário entregar-lhe a citação recebida.
6. Ademais, os factos enunciados nos pontos 3.5 a 3.13 supra são relevantes porque infirmam totalmente a conclusão a que chegou o Tribunal a quo no sentido de que a Ré manteve uma postura de inércia da qual não deve tirar proveito, demonstrando, ao invés, que a Ré encetou diligências com vista à formalização da alteração da sede societária e, enquanto tal não sucedeu, procurou assegurar que a pouca correspondência que lhe era dirigida para a sua sede formal lhe era reencaminhada por e-mail, como está evidenciado nos documentos juntos aos autos, confiando que as funcionárias da E cumprissem esse procedimento informal e cortês que vinha sendo seguido.
Quanto à decisão sobre a matéria de direito:
7. O despacho de 29.11.2022 é nulo porque viola o disposto no artigo 615º, n.º, alínea b) do CPC (aplicável ex vi artigo 613º, nº 3 do CPC), uma vez que é totalmente omisso quanto aos fundamentos de direito que justificam a decisão final, pois não enuncia a lei aplicável, nem sequer aponta uma única disposição legal que sustente o entendimento no sentido de que a inércia de uma sociedade comercial, que não se encontra extinta, nem registou alteração da sede apenas a ela é imputável, e dela não deve tirar proveito, concluindo-se, assim, pela respetiva citação, não se potenciando, com este entendimento, a possibilidade de criação deliberada de formas de impedir ou retardar a citação pessoal das sociedade comerciais que são obrigadas a manter atualizada morada correspondente à respetiva sede, ficando a Recorrente sem compreender qual é a base e o enquadramento legal onde se baseia a decisão recorrida.
8. Sem conceder e caso se entenda que a nulidade plasmada na alínea b) do n.º 1 do artigo 615º do CPC só ocorre quando a omissão da fundamentação de direito é total (e não apenas profundamente deficiente e incompleta (como a que se transcreveu na conclusão anterior), então sempre terá de se concluir que o despacho recorrido é nulo nos termos previstos na alínea c) do nº 1 do artigo 615º do CPC, na medida em que os fundamentos de direito são de tal forma parcos e obscuros que tornam a decisão em matéria de direito totalmente ininteligível.
9. O despacho recorrido desconsidera de forma flagrante a prova documental que a Ré juntou com a sua contestação e que, em conjugação com a restante prova produzida e à luz das disposições legais aplicáveis, impunha decisão diversa da recorrida.
9.1. Concretamente, o Tribunal a quo não teve em conta:
9.1.1.   O teor do documento junto com a contestação como Doc. n.º 8 do qual resulta que a legal representante da Ré diligenciou efetivamente junto do outro sócio da sociedade Ré no sentido da alteração da sede da sociedade, tendo numa primeira fase proposto uma solução mais informal, por via da realização de uma ata de assembleia geral universal que circularia entre sócios;
9.1.2.   O teor do documento junto com a contestação como Doc. n.º 9 do qual resulta que a legal representante da Ré convocou formalmente, em 16 de Março de 2021, uma assembleia geral de sócios para o dia 31.03.2021 que tinha como ponto único da ordem de trabalhos a alteração da sede da sociedade Ré;
9.1.3.   O teor do documento junto com a contestação como Doc. n.º 6 do qual resulta que existia efetivamente um procedimento informal de aviso e entrega à legal representante da Ré da correspondência recebida na sede formal da sociedade;
9.1.4.   O teor do documento junto com a contestação como Doc. n.º 7, conjugado com o depoimento da testemunha Y, dos quais resulta que esse procedimento de entrega à legal representante da Ré da correspondência recebida na sede formal da sociedade não foi seguido pela funcionária da E, LDA. aquando da receção da citação para estes autos, tendo sido protelada a entrega da correspondência recebida porque a sociedade E se encontrava em mudanças e a correspondência recebida nessa altura (onde se inclui a citação para estes autos) foi colocada num caixote e só em Maio de 2021 foi entregue à legal representante da Ré;
9.1.5. O teor dos documentos juntos com a contestação como Doc. n.ºs 1, 2, 3 e 4 dos quais resulta demonstrada a estrutura societária da Ré, da sócia da Ré e da Autora, bem como o envolvimento e preponderância do legal representante da Autora nas decisões destas sociedades;
9.2. Ademais, o Tribunal também não ponderou de forma crítica e conjugada todo o acervo factual efetivamente carreado para o processo, fazendo uma apreciação superficial e incorreta, nem ponderou o enquadramento legal aplicável nomeadamente:
 9.2.1.  A existência de um conflito societário latente entre os dois sócios da sociedade Ré, que ficou admitido por acordo quer nos articulados, quer nas declarações prestadas por ambos os legais representantes na audiência de produção de prova;
9.2.2. O facto de o legal representante da Autora ter instaurado a presente ação judicial contra a Ré em 17.03.2021 indicando como morada para citação da Ré a morada onde bem sabe que a Ré não labora e onde não exerce qualquer domínio ou controlo da correspondência recebida;
9.2.3.   O facto de, neste contexto, o legal representante da Autora não ter cuidado de assegurar a efetiva receção da citação / correspondência por parte da legal da Ré;
9.2.4.   O facto de a alteração da sede de uma sociedade comercial não poder ser implementada pela Ré de forma autónoma e isolada, antes carecendo de prévia deliberação dos sócios no sentido da alteração dos estatutos da sociedade (sede);
9.2.5.   O facto de uma tal alteração dos estatutos carecer do voto favorável de 75% do capital social (artigo 265º do Código das Sociedades Comerciais), o que, no caso dos autos, faz com que a alteração da sede da Ré só possa ser concretizada com o voto favorável dos dois únicos sócios da sociedade, a saber:
• A legal representante da Ré, G, titular de 60% do capital da Ré;
• A sociedade E - Unipessoal, Lda., titular de 40% do capital da Ré e que tem como único sócio e gerente o Senhor F, que por sua vez é titular de 99,995% do capital social da Autora e é também o presidente do seu conselho de administração, vinculando-a isoladamente.
9.3. Tudo levando a concluir que não estamos perante uma situação de mera inércia de uma sociedade comercial, como se refere na decisão recorrida, mas sim de litígio societário que gerou discussão e entropias (até porque o legal representante da E, Lda, não concordava com esta alteração de sede, que considerava desnecessária), o que entorpeceu e retardou o processo de formalização da alteração da sede da sociedade.
10. Ao considerar que não há falta de citação e que a citação foi regularmente realizada, o Tribunal a quo viola o disposto no artigo 188.º, n.º 1, alínea e) do CPC, porquanto, como resultou demonstrado, a citação da Ré para os termos dos presentes autos foi entregue a C que não é a legal representante da Ré, nem é sua funcionária, nem está ao seu serviço, nem com esta tem qualquer vínculo, não tendo chegado oportunamente ao conhecimento da Ré por motivo que não lhe é imputável e que decorre:
10.1. Da existência de um conflito societário entre os sócios da sociedade Ré que protelou o processo de formalização da alteração da sede / estatutos da Ré;
10.2. Da não observância - sem que a legal representante da Ré o pudesse prever - por parte das funcionárias da E, Lda. da prática habitual que vinha sendo implementada desde que a legal representante da Ré deixou de frequentar as instalações da sede formal da Ré: toda a correspondência dirigida à Ré e rececionada nas instalações da sua sede formal (e sede da E Unipessoal, Lda.) era digitalizada e enviada, por email, para a sua gerente, conforme procedimento evidenciado no Doc. nº 6 junto com a contestação;
10.3. Isto sem prejuízo de a gerência da Ré ter procurado formalizar a alteração estatutária (mudança de sede), numa primeira abordagem de forma informal, o que não foi aceite pela outra sócia da Ré (cujo sócio único e gerente é o acionista e administrador único da Autora) e posteriormente por via da convocação de uma assembleia geral com um único ponto na ordem de trabalhos: a alteração da sede / estatutos da ré;
10.4.    E também sem prejuízo de o legal representante da Autora bem saber que a Ré não labora e não exerce qualquer domínio ou controlo da correspondência recebida na morada da sua sede formal, mas ainda assim ter indicado como morada para citação da Ré a sua sede formal e não ter sequer cuidado de assegurar que a citação fosse entregue à sua legal representante.
11. De igual forma, ao considerar que a citação não é nula e foi regularmente realizada, o Tribunal a quo viola o disposto nos artigos 191º e 223º do CPC, porquanto:
11.1. Considerando a decisão recorrida que está provado que a citação para este processo foi recebida:
11.1.1. Num local onde todos sabem que a Ré não labora e onde não exerce qualquer domínio ou controlo da correspondência recebida;
11.1.2. Por C, que não é a legal representante da Ré, nem é sua funcionária, nem com esta tem qualquer vínculo,
11.2. Impunha-se que declarasse a nulidade da citação por incumprimento das formalidades prescritas no artigo 223.º do CPC, o que não fez.
12. Em face do exposto, conclui-se que o despacho de 29.11.2022 padece dos vícios acima identificados e deverá ser revogado e substituído por outro que conclua pela nulidade da citação e que receba a contestação apresentada pela Ré.
OS VÍCIOS DA SENTENÇA RECORRIDA:
13. A fundamentação de facto da sentença recorrida reconduz-se ao seguinte:
III - Fundamentação
A) De facto
A Ré foi citada com a cominação de que a falta de contestação importava a confissão dos factos articulados pela Autora e não contestou, pelo que foram declarados como provados tais factos.
14. Ou seja, verifica-se que a sentença recorrida, assente em decisão prévia que determinou a regularidade da citação da Ré e a consequente apresentação extemporânea da contestação por parte da Ré, pura e simplesmente, assume a não apresentação de contestação, suprime a existência dessa contestação e não a atende minimamente, nem se pronuncia sobre qualquer aspeto contemplado na defesa apresentada pela Ré, dando como provados os factos alegados pela Autora.
15. No entanto, tendo em conta que a decisão prévia que determinou a regularidade da citação a Ré (o despacho de 29.11.2022) é manifestamente infundada e deverá ser revogada e substituída por outra que conclua pela efetiva nulidade da citação da Ré e pela consequente oportunidade e aproveitamento da contestação apresentada, não há motivo que justifique a não consideração da contestação apresentada nos autos e o não acolhimento da defesa que aí foi apresentada pela Ré.
16. Assim, desatendendo, em absoluto, a contestação que foi apresentada pela Ré nestes autos, como a faz a sentença recorrida, a sentença recorrida incorre em vício de omissão de pronúncia, dado que não aprecia questão que devia apreciar e que foi submetida à sua consideração (a defesa apresentada na contestação), o que determina a nulidade da sentença, conforme previsto no artigo 615º, n.º 1, alínea d) do CPC.
17. Do mesmo modo, decidindo como decidiu - desatendendo totalmente a defesa apresentada pela Ré - a sentença recorrida viola igualmente o princípio do contraditório plasmado no artigo 3º do CPC, na medida em que afasta indevidamente deste processo a versão dos factos e toda a defesa apresentada pela Ré, impedindo que esta faça valer a sua posição.
18. E também do mesmo modo, a sentença recorrida, decidindo como decidiu - desatendendo totalmente a defesa apresentada pela Ré - viola, pelos mesmos motivos, o princípio da igualdade das partes plasmado no artigo 4º do CPC, colocando a Ré numa posição de indefesa e de desvalorização relativamente à posição da Autora, a quem foi permitido apesentar o seu articulado e aí desenvolver toda a sua pretensão e fundamentos, sem que à Ré seja permitido responder de forma paritária.
19. Em face do exposto, ficam patentes os vícios da sentença final de que aqui se recorre, que deverá ser revogada pelo Tribunal superior, sendo determinado, em face da nulidade da citação e do recebimento da contestação apresentada pela Ré, o prosseguimento dos autos na primeira instância para tramitação dos seus normais termos após apresentação de contestação e até final,
Assim se promovendo a costumada justiça.
*
A autora contra-alegou, rematando com as seguintes conclusões:
1. A recorrente, não se conformando, com a Douta Sentença proferida nos autos, nem com o precedente despacho proferido em 29.11.2022 (Referência 137946739), vem interpor recurso.
QUANTO AO DESPACHO DE 29-11-2022 (REFERÊNCIA 137946739)
2. Alega a recorrente que o referido despacho se encontra ferido de nulidade, por não especificar os fundamentos de direito que justificam a decisão e por errónea interpretação da Lei, violando o disposto nos artigos 188.º, n.º 1 alínea e), 191.º, n.º 1 e 223.º do Código Processo Civil.
3. As alegações formuladas pela recorrente quanto à decisão da matéria de facto carecem de qualquer fundamento, pois nenhum reparo merece a Douta Sentença recorrida.
4. Vem a recorrente impugnar “a apreciação da matéria de facto”, referindo que considerou o Tribunal a quo, como provados apenas três factos quando no seu entender: “[...]se impunha, face à prova documental produzida, que considerasse como provados outros factos com relevo para a apreciação do objeto deste incidente. ”
5. E nesse sentido, pretende que, sejam aditados 13 novos factos, à matéria de facto dada como provada, que resultam, da análise das certidões comerciais permanentes das referidas sociedades e do RCBE da recorrida, bem como resultam da análise dos emails e convocatória juntos pela Recorrente em sede de contestação.
6. Ainda que seja aditada, ao elenco dos factos provados, a matéria de facto vertida nos supracitados pontos 1 a 13, esta não tem a virtualidade de levar o Tribunal a quo a proferir decisão diferente da que já foi proferida no douto despacho.
7. Tal não resulta da prova documental e testemunhal, produzida em sede de audiência de produção de prova, realizada no dia 01.06.2022. Senão vejamos,
8. As sociedades comerciais têm personalidade jurídica, são sujeitos de Direito distintos e autónomos face aos sujeitos dos respetivos sócios, com aptidão para ser titular em nome próprio de direitos e obrigações (Cfr. artigo 5.º do Código das Sociedades Comerciais).
9. Pelo que, não pode haver confusão entre a sociedade recorrente e as pessoas dos seus sócios, bem como entre a sociedade aqui recorrida e as pessoas dos seus acionistas.
10. Por conseguinte pouca ou nenhuma relevância terão as percentagens de capital social ou das ações, detidas por F, nas sociedades, recorrente, recorrida e na E, Unipessoal, Lda.(E), e que se encontram vertidas nos pontos 1 a 3, que a recorrente pretende que sejam aditados à matéria de facto provada.
11. Quanto ao facto vertido no ponto 5, resulta da prova documental junta pela recorrente com a contestação, sob o doc. n.º 8 que, a sua legal representante, em 06.03.2021 diligenciou pela alteração da morada da sede, por via da realização de uma ata de assembleia geral universal que circularia entre sócios.
12. E que, face à não anuência do outro sócio, aquela, em 16 de Março de 2021, convocou formalmente uma assembleia geral de sócios para o dia 31.03.2021, que tinha como ponto único da ordem de trabalhos a alteração da sede da sociedade Ré, conforme documento que se juntou com a contestação como Doc. n.º 9.
13. À recorrente não lhe assiste razão. Veja-se desde logo o que resulta do referido Doc. n.º 8, em concreto, a resposta de F, ao email enviado por G, representante legal da recorrente, relativo à alteração da morada da sede, ambos datados do dia 06.03.2021, em CC para a sua mandatária.
14. Assim sendo, fica claro, que a convocação da assembleia geral de sócios para o dia 31.03.2021, não resultou da não anuência do sócio da recorrente, nem o mesmo obstaculizou a essa alteração, tal não resulta da prova produzida nos autos, quer documental quer testemunhal.
15. Veja-se ainda o que resulta do Doc. n.º 10, de 16 de abril de 2021, junto igualmente pela recorrente com a contestação, onde PJ, em resposta à mandatária da recorrente, refere, estar de acordo com o ponto e solicita a ata para assinar.
16. O que é contraditório com o que é alegado pela recorrente, o sócio F, não criou quaisquer obstáculos à alteração da morada da sede da recorrente.
17. A recorrente não estava impedida de exercer domínio ou controlo sobre a sua correspondência, porém não o fez, e não o fez de forma consciente e desimpedida.
18. Resulta ainda do acervo documental e testemunhal, produzido na referida audiência de produção de prova, que:
19. A recorrida tem a sua sede sita em Rua …, e as senhoras C e Y não são funcionárias da recorrida, mas sim da sociedade E, Unipessoal, Lda.
20. A recorrente, sabendo que a sua sede social se encontrava na morada para a qual foi citada, e não desempenhando aí qualquer atividade, nem tendo ao seu serviço naquele local qualquer funcionário, ou contratado qualquer apoio administrativo para a entrega de correio, não diligenciou no sentido de proceder à verificação regular da existência de correio.
21. O que resulta dos emails juntos pela recorrente com a contestação, sob os docs. n.ºs 6 a 9, é ausência total de resposta aos emails remetidos pelas funcionárias da E despreocupação total com a correspondência da sociedade, não existe um único email que tenha sido remetido pela recorrente, e cujo teor seja relativo à correspondência da sociedade.
22. A haver tal prova, ou seja, da conduta diligente da recorrente relativamente à sua correspondência, esta teria sido junta pela recorrente em sede de contestação, ou em sede de produção de prova, relativa à nulidade de citação por aquela invocada, o que não sucedeu.
23. Da prova testemunhal, resultou que, a recorrente, desde outubro de 2020 que tinha conhecimento que a sociedade E Unipessoal, Lda. iria deixar as instalações, na Rua …, em março de 2021, disso foi relembrada em 28 janeiro de 2021.
24. Não resulta da prova produzida, tal como alegado pela recorrente e vertido nos pontos 6 a 13, dos factos que pretende ver aditados à matéria de facto provada, a existência de um procedimento informal instituído, de aviso e entrega à legal representante da recorrente da correspondência recebida, na sua sede.
25. O que ficou demonstrado na audiência de produção de prova é que não cabia a nenhum funcionário da sociedade E, nem à recorrida, o envio e digitalização do correio para a legal representante da recorrente, nem esta havia contratado serviços administrativos de reenvio de correspondência.
26. Da prova resultou ainda, que, em finais de 2019, a recorrente arrendou um espaço, sito na Rua …, em Lisboa, local onde funciona o seu escritório, mas não assegurou o recebimento da correspondência a si dirigida, nomeadamente através da reexpedição do correio ou através do levantamento do mesmo na sede da empresa.
27. Em nome da transparência, confiança e segurança que deve imperar no comércio jurídico, tem de existir uma conexão ou relação permanente, visível e estreita entre a sede da empresa e a sua atividade, estrutura e organização.
28. Não o tendo feito, não pode vir invocar a nulidade de citação, o que sempre constituiria um abuso de direito, nos termos do artigo 334.º do Código Civil, por a recorrente vir sustentar a sua tese num quadro factual e jurídico que ela própria, de uma forma direta ou indireta, criou.
29. Da análise do documento n.º 2, junto pela recorrida em 13.09.2021, por requerimento com a referência Citius 39815349, não impugnado pela recorrente resulta que, a sociedade E, não é parte interveniente, nos presentes autos, as colaboradoras identificadas nos autos não tinham conhecimento que a recorrida havia intentado uma ação contra a recorrente.
30. Nem, o seu acionista, F, igualmente, sócio da E, havia dado disso conhecimento às mesmas, pois havia viajado para África do Sul em dezembro de 2020 e regressado a Portugal em 30.03.2021.
31. A legal representante da recorrente propôs ao sócio-gerente da sociedade E, em 06.03.2021, ou seja, mais de um ano após a sua saída daquelas instalações, a realização de uma assembleia sem que fossem obedecidas as formalidades legais das convocatórias para esse fim, e fê-lo não por preocupação com a alteração da sede da sociedade, mas antes sim motivada pela saída iminente da sociedade E Unipessoal, Lda., daquelas instalações.
32. Quanto ao alegado pela recorrente, que após a realização da referida assembleia a ata foi entregue nos escritórios da mandatária da sócia para ser assinada, e que até à presente ainda não foi devolvida, para que a legal representante da recorrente promovesse pelo respetivo registo, mais uma vez, a recorrente distorce a realidade dos factos, porquanto tal como resulta do documento n.º 3, junto pela recorrida em 13.09.2021, requerimento com a referência Citius 39815349, não impugnado pela recorrente que, a referida ata encontra-se á sua disposição para levantamento.
33. Em suma, o que resultou da produção de prova, é que a recorrente nunca diligenciou no sentido de se certificar da existência de correio, quer deslocando-se ao local da sua sede, quer questionando telefonicamente ou via e-mail sobre a existência de correspondência.
34. A recorrente não pediu a reexpedição do seu correio.
35. A recorrente não demonstrou qualquer preocupação com a eventual correspondência que viesse a receber.
36. Numa postura de inércia, a recorrente ficava à espera de que a existência de correio lhe fosse comunicada e enviada por terceiros, que não tinham qualquer relação ou obrigação para com aquela.
37. Analisados os factos elencados nos pontos 1 a 13, e que a recorrente considera que deveriam ser aditados aos factos provados, nunca poderia decorrer, por parte do Tribunal a quo, juízo diferente daquele que se encontra vertido na decisão de que a recorrente agora recorre, porquanto, tais factos, em nada alterariam esse juízo, apenas o confirmam.
38. A recorrente não logrou provar, que, a falta de citação para a ação dos presentes autos, não se ficou a dever a facto que lhe é inteiramente imputável, nem afastou a postura de inércia, ou até mesmo negligente, que demonstrou ter adotado desde finais de 2019 até à presente data.
39. Não merece qualquer juízo de censura, a Douta Sentença ao declarar que a citação da Ré, aqui recorrente, se encontra validamente efetuada por não se verificar qualquer nulidade processual.
40. E que, decisão diversa iria possibilitar a “criação deliberada de formas de impedir ou retardar a citação pessoal das sociedades comerciais que são obrigadas a manter atualizada morada correspondente à respetiva sede”. DO RECURSO SOBRE A MATÉRIA DE DIREITO
41. Vem nas suas Doutas Alegações a Recorrente arguir no ponto A, “a nulidade da decisão recorrida nos termos do artigo 615.º, n.º 1 alínea b), e caso assim não se entenda, do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea c) do CPC”, e ainda no ponto B, “A errada aplicação da lei e violação ao disposto nos artigos 188.º, n.º 1, alínea e), 191.º, nº 1 e 223.º do CPC:”
42. O despacho recorrido não padece do alegado vício de nulidade, até porque decisão judicial concisa não se confunde com ausência absoluta de fundamentação, veja-se o constante no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 08.10.2020, no Proc. 5243/18.8T8LSB.L1.S1, (Nuno Pinto Oliveira). Disponível em www.dgsi.pt.
43. À decisão recorrida era apenas exigível fundamentação perfuntória, o que se verifica, não existindo qualquer violação ao disposto no Artigo 607.º, n.º 3 e 4 do C.P.C. Veja-se igualmente o que resulta do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 10.03.2022, no Proc. 8027/14.7T8PRT.P1, (Filipe Caroço). Disponível em www.dgsi.pt.
44. Quanto à alegada ambiguidade ou obscuridade da decisão recorrida, igualmente não pode a mesma proceder, nesse sentido veja-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 08.10.2020, no Proc. 5243/18.8T8LSB.L1.S1, (Nuno Pinto Oliveira). Disponível em www.dgsi.pt.
45. Para além de que, da leitura das alegações de recurso apresentadas pela aqui recorrente, decorre que a fundamentação da decisão recorrida não é de tal forma insuficiente que não tenha permitido à recorrente apreender o enquadramento legal e o fundamento de direito que a sustentam, ou que não tenha sequer compreendido as razões substantivas que estão na base da mesma, isso decorre do ponto B das suas alegações, quando, a aqui recorrente alega que o Tribunal a quo interpretou erradamente a lei, em violação do disposto nos Artigos 188.º, n.º 1, al. e), 191.º, n.º 1 e 223.º do C.P.C.
46. O sentido da decisão não é ambíguo ou obscuro, pelo que a decisão não se encontra ferida de nulidade.
47. Quanto à alegada aplicação errada da lei e violação do disposto nos Artigos 188.º, n.º 1, al. e), 191.º, n.º 1 e 223.º do C.P.C., não resulta qualquer evidência, do contexto de facto apresentado pela aqui recorrente, que ocorreu nulidade por falta de citação da Ré,
48. Igualmente não se encontra provada a preterição das formalidades da lei para a citação de pessoas coletivas, não incorrendo a decisão recorrida em violação das disposições supra identificadas.
49. Não resulta do acervo documental junto nem da prova testemunhal produzida, que a aqui recorrente não tomou conhecimento do ato de citação por facto que não lhe seja imputável.
50. Resulta antes o contrário, ou seja, que a Ré não encetou esforços para que a correspondência enviada para a sua morada formal lhe fosse remetida, fosse pela via da reexpedição do correio, para a sua nova morada, fosse pela recolha frequente do mesmo naquela morada.
51. Quanto 3º facto dado como provado na decisão recorrida, veja-se nesse sentido a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, no Proc. 3073/16.0T8STB- A.E1.S2, de 28.03.2019, (Maria do Rosário Morgado), Disponível em www.dgsi.pt.
52. O facto de a citação ter sido recebida por terceiro, não afasta a presunção do conhecimento dos elementos deixados a terceiro, pelo destinatário da citação, ou sequer ilide a presunção do Artigo 188.º, n.º 3, do C.P.C.
53. A aqui recorrente, nas suas alegações, em técnica linguística discursiva e repetitiva, sequer abordou quaisquer factos que pudessem demonstrar ao Tribunal ad quem que a recorrente não teve conhecimento da citação dos autos por facto que não lhe é imputável.
54. Muito pelo contrário. Em todo o acervo documental já junto e não impugnado, e da prova testemunhal, resultou provado que o comportamento da Ré, relativamente ao tratamento da sua correspondência foi displicente para não dizermos negligente.
55. Resultou claro da prova produzida, que a recorrente, desde finais de 2019, que não exerce qualquer domínio ou controlo da correspondência na morada da sua sede formal, que durante esse período não diligenciou no sentido de receber a sua correspondência na sua nova morada, socorrendo-se dos meios ao seu dispor, nomeadamente através de reexpedição de correio, ou de a recolher com regularidade, ou ainda de proceder à alteração da sua sede formal, no decorrer do ano de 2020, ou de questionar os colaboradores da E da existência de correspondência.
56. Pelo que, a conceder o Tribunal, como pretende a aqui recorrente, a nulidade da citação dos autos, estar-se-ia claramente a legitimar o abuso do direito.
57. Nesse sentido veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, no Proc. 02B827, de 18.02.2002, (Ferreira de Almeida), Disponível em www.dgsi.pt.
58. Pelo que, se concorda em absoluto com a Douta Tribunal Sentença do Tribunal a quo.
QUANTO AOS VÍCIOS DA SENTENÇA FINAL PROFERIDA
59. Por fim alega a recorrente que, assentando a sua premissa, numa prévia decisão inválida tal determinaria "a nulidade da sentença, conforme o previsto no artigo 615.º, nº 1, alínea d) do CPC."
60. A recorrente, nas suas alegações de recurso não logrou demonstrar, como lhe cabia, que da apreciação critica da prova produzida, quer documental, quer testemunhal, se impunha decisão diferente daquela que foi proferida pelo douto Tribunal a quo.
61. A livre apreciação da prova não significa apreciação arbitrária, irrefletida ou leviana, mas antes o exercício de um pendente juízo de convicção de acordo com as regras da experiência e da lógica, tudo devidamente motivado de forma a poder ser sindicado pelas partes e pelos tribunais de recurso (cf. Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, n.º 949 05.4TBOVR-AL1-8, Relator: BRUNO DA COSTA). Sumário
62. Ora foi precisamente na credibilidade da prova apresentada que a recorrente falhou, e não como resultado da violação do princípio do contraditório, que de facto não houve.
63. Veja-se que, invocada pela recorrente a nulidade de citação, o Tribunal a quo, determinou por despacho datado de 15.09.2021 (referência 132683425), que o incidente carecia de produção de prova, tendo sido agendada, audiência de produção de prova, para o dia 01.06.2022 pelas 13:45 horas, para inquirição das testemunhas arroladas pelas partes, tendo ainda solicitado à recorrente que indicasse qual a prova documental por si junta que se destinava à decisão sobre o referido incidente.
64. O que de facto se passou foi que nenhuma prova apresentada pela recorrente foi suficientemente credível para demonstrar que não chegou a ter conhecimento do ato de citação por facto que não lhe seja imputável.
65. Do exposto resulta que não houve qualquer limitação de meios probatórios, não se vislumbrando, por isso, qualquer violação dos princípios do contraditório ou da igualdade das partes, nos termos do disposto nos artigos 3.º e 4.º do CPC.
66. Por conseguinte, não padece a douta sentença recorrida de quaisquer vícios, pelo que, deve a mesma ser mantida pelo Tribunal ad quem, sendo ainda confirmada, a regularidade da citação da recorrente e do desentranhamento da contestação por esta apresentada, condenando-se aquela no pagamento à recorrida do valor de €7.234,12 (sete mil duzentos e trinta e quatro euros e doze cêntimos) acrescido de juros vencidos e vincendos até integral e efetivo pagamento.
*
O recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida de imediato, nos autos e efeito meramente devolutivo.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II. O objecto e a delimitação do recurso
Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.
De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.
Por outro lado, ainda, o recurso não é uma reapreciação ‘ex novo’ do litígio (uma “segunda opinião” sobre o litígio), mas uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a incorrecta fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito aplicável). Daí que não baste ao recorrente afirmar o seu descontentamento com a decisão recorrida e pedir a reapreciação do litígio (limitando-se a repetir o que já alegara na 1ª instância), mas se lhe imponha o ónus de alegar, de indicar as razões porque entende que a decisão recorrida deve ser revertida ou modificada, de especificar as falhas ou incorrecções de que em seu entender ela padece, sob pena de indeferimento do recurso.
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, são as seguintes as questões a resolver por este Tribunal:
Impugnação da matéria de facto apurada no despacho de 19/11/2022.
Nulidade do mesmo despacho.
Correcção formal da citação efectuada.
Nulidade da sentença final.
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III. Os factos
Receberam-se da 1ª instância os seguintes factos provados, no despacho de 29/11/2022:
1- Os presentes autos deram entrada em juízo em 17.03.2021.
2- No dia 18.03.2021, o Tribunal remeteu uma citação por via postal para a sede da Ré (mas onde a Ré não labora e onde não exerce qualquer domínio ou controlo da correspondência recebida) sita na ….
- A referida citação foi recebida naquela morada por C, que não é legal representante, nem funcionário da Ré, nem com esta tem qualquer vínculo, no dia 19.03.2021.
E da sentença final:
A Ré foi citada com a cominação de que a falta de contestação importava a confissão dos factos articulados pela Autora e não contestou, pelo que foram declarados como provados tais factos.
*
A impugnação da matéria de facto.
Dispõe o art.º 662º n.º 1 do Código de Processo Civil:
A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Tem sido entendido que, ao abrigo do disposto no citado preceito, a Relação tem os mesmos poderes de apreciação da prova do que a 1ª instância, por forma a garantir um segundo grau de jurisdição em matéria de facto.
Donde, deve a Relação apreciar a prova e sindicar a formação da convicção do juiz, analisando o processo lógico da decisão e recorrendo às regras de experiência comum e demais princípios da livre apreciação da prova, reexaminando as provas indicadas pelo recorrente, pelo recorrido e na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto.
Neste sentido, vide António Santos Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, pág. 287:
O actual art.º 662º representa uma clara evolução no sentido que já antes se anunciava. Como se disse, através dos nºs 1 e 2, als. a) e b), fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia.
O Tribunal não está vinculado a optar entre alterar a decisão no sentido pugnado pelo recorrente ou manter a mesma tal como se encontra, antes goza de inteira liberdade para apreciar a prova, respeitando obviamente os mesmos princípios e limites a que a 1ª instância se acha vinculada.
*
Sobre o ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, dispõe o art.º 640º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto:
1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos nºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.
Assim, os requisitos a observar pelo recorrente que impugne a decisão sobre a matéria de facto, são os seguintes:
- A concretização dos pontos de facto incorrectamente julgados;
- A especificação dos meios probatórios que no entender do recorrente imponham uma solução diversa;
- A decisão alternativa que é pretendida.
A este respeito, cumpre recordar duas restrições a uma leitura literal e formal destes ónus processuais inerentes ao exercício da faculdade de impugnação da matéria de facto.
Deve-se considerar a tendência consolidada da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, no sentido de não se exponenciarem os efeitos cominatórios previstos no art.º 640º e realçado a necessidade de extrair do texto legal soluções capazes de integrar os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, dando prevalência aos aspectos de ordem material, na expressão de Abrantes Geraldes, ob. cit., pg. 171 (nota 279) e 174.
Por fim, qualquer alteração pretendida pressupõe em comum um pressuposto: a relevância da alteração para o mérito da demanda.
A impugnação de factos que tenham sido considerados provados ou não provados e que não sejam importantes para a decisão da causa, não deve ser apreciada, na medida em que alteração pretendida não é suscetível de interferir na mesma, atenta a inutilidade de tal acto, sendo certo que de acordo com o princípio da limitação dos atos, previsto no art.º 130.º do Código de Processo Civil não é sequer lícita a prática de atos inúteis no processo.
Veja-se o Acórdão do STJ de 17/05/2017 (Fernanda Isabel Pereira), também disponível em www.dgsi.pt:
“O princípio da limitação de actos, consagrado no artigo 130º do Código de Processo Civil para os actos processuais em geral, proíbe a sua prática no processo – pelo juiz, pela secretaria e pelas partes – desde que não se revelem úteis para este alcançar o seu termo.
Trata-se de uma das manifestações do princípio da economia processual, também aflorado, entre outros, no artigo 611º, que consagra a atendibilidade dos factos jurídicos supervenientes, e no artigo 608º n.º 2, quando prescreve que, embora deva resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, o juiz não apreciará aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Nada impede que também no âmbito do conhecimento da impugnação da decisão fáctica seja observado tal princípio, se a análise da situação concreta em apreciação evidenciar, ponderadas as várias soluções plausíveis da questão de direito, que desse conhecimento não advirá qualquer elemento factual, cuja relevância se projecte na decisão de mérito a proferir.
Com efeito, aos tribunais cabe dar resposta às questões que tenham, directa ou indirectamente, repercussão na decisão que aprecia a providência judiciária requerida pela(s) parte(s) e não a outras que, no contexto, se apresentem como irrelevantes e, nessa medida, inúteis.”
E, ainda, os Acórdãos da Relação de Guimarães, de 15/12/2016 (Maria João Matos) e desta Relação de 26/09/2019 (Carlos Castelo Branco), também da citada base de dados:
Não se deverá proceder à reapreciação da matéria de facto quando os factos objecto de impugnação não forem susceptíveis, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação, de ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe ser inútil, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processuais (arts. 2º, nº 1, 137º e 138º, todos do C.P.C.).
*
Neste enquadramento genérico, que flui do texto legal interpretado pela jurisprudência dos Tribunais Superiores, analisemos a impugnação deduzida.
Ora, como infra se desenvolverá, a factualidade que a recorrente pretende seja considerada provada, em aditamento à considerada no despacho de 29/11/2022 mostra-se irrelevante para a apreciação do mérito da questão, a validade ou correcção da citação efectuada à ré.
Daí a improcedência da impugnação da matéria de facto.
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IV. O Direito
A. O despacho de 29/11/2022
i) Da nulidade do despacho
Invoca a recorrente a nulidade do despacho em causa, nos seguintes termos:
7. O despacho de 29.11.2022 é nulo porque viola o disposto no artigo 615º, n.º, alínea b) do CPC (aplicável ex vi artigo 613º, nº 3 do CPC), uma vez que é totalmente omisso quanto aos fundamentos de direito que justificam a decisão final, pois não enuncia a lei aplicável, nem sequer aponta uma única disposição legal que sustente o entendimento no sentido de que a inércia de uma sociedade comercial, que não se encontra extinta, nem registou alteração da sede apenas a ela é imputável, e dela não deve tirar proveito, concluindo-se, assim, pela respetiva citação, não se potenciando, com este entendimento, a possibilidade de criação deliberada de formas de impedir ou retardar a citação pessoal das sociedade comerciais que são obrigadas a manter atualizada morada correspondente à respetiva sede, ficando a Recorrente sem compreender qual é a base e o enquadramento legal onde se baseia a decisão recorrida.
8. Sem conceder e caso se entenda que a nulidade plasmada na alínea b) do n.º 1 do artigo 615º do CPC só ocorre quando a omissão da fundamentação de direito é total (e não apenas profundamente deficiente e incompleta (como a que se transcreveu na conclusão anterior), então sempre terá de se concluir que o despacho recorrido é nulo nos termos previstos na alínea c) do nº 1 do artigo 615º do CPC, na medida em que os fundamentos de direito são de tal forma parcos e obscuros que tornam a decisão em matéria de direito totalmente ininteligível.
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O despacho em crise tem o seguinte conteúdo fundamentador:
A carta para citação da Ré foi enviada para a sede da Ré indicada pela Autora e confirmada pela Secção de Processos na verificação da mesma junto da base de dados do Registo Nacional de Pessoas Coletivas.
Entendemos que inércia de uma sociedade comercial, que não se encontra extinta, nem registou alteração da sede apenas a ela é imputável, e dela não deve tirar proveito, concluindo-se, assim, pela respetiva citação, não se potenciando, com este entendimento, a possibilidade de criação deliberada de formas de impedir ou retardar a citação pessoal das sociedade comerciais que são obrigadas a manter atualizada morada correspondente à respetiva sede.
Nestes termos, e com tais fundamentos declara-se que a citação da Ré se encontra validamente efetuada por não se verificar qualquer nulidade processual.
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A fundamentação do despacho
Invoca a recorrente a nulidade da decisão recorrida, por falta de fundamentação e inintelegibilidade.
Dispõe o artigo 615º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe «Causas de nulidade da sentença»:
“1. É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.”
As nulidades previstas nas alíneas b) e c) reconduzem-se a vícios formais que respeitam à estrutura da sentença e as previstas nas alíneas d) e e) referem-se aos seus limites.
Repare-se que, como nos recorda o Supremo Tribunal de Justiça, em Acórdão de 3/3/2021 (Leonor Rodrigues), disponível em www.dgsi.pt:
I. Há que distinguir as nulidades da decisão do erro de julgamento seja de facto seja de direito. As nulidades da decisão reconduzem-se a vícios formais decorrentes de erro de actividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal; trata-se de vícios de formação ou actividade (referentes à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão) que afectam a regularidade do silogismo judiciário, da peça processual que é a decisão e que se mostram obstativos de qualquer pronunciamento de mérito, enquanto o erro de julgamento (error in judicando) que resulta de uma distorção da realidade factual (error facti) ou na aplicação do direito (error juris), de forma a que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou à normativa, traduzindo-se numa apreciação da questão em desconformidade com a lei, consiste num desvio à realidade factual -nada tendo a ver com o apuramento ou fixação da mesma- ou jurídica, por ignorância ou falsa representação da mesma.
Como ensinava José Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, 1981, Vol. V, págs. 124 e 125, o magistrado comete erro de juízo ou de julgamento quando decide mal a questão que lhe é submetida, ou porque interpreta e aplica erradamente a lei, ou porque aprecia erradamente os factos; comete um erro de actividade quando, na elaboração da sentença, infringe as regras que disciplinam o exercício do seu poder jurisdicional. Os erros da primeira categoria são de carácter substancial: afectam o fundo ou o efeito da decisão; os segundos são de carácter formal: respeitam à forma ou ao modo como o juiz exerceu a sua actividade.
E, como salienta Antunes Varela, in Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 2ª edição, 1985, pág. 686, perante norma do Código de Processo Civil de 1961 idêntica à actual, o erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade a não conformidade com o direito aplicável, não se incluiu entre as nulidades da sentença.
No que se refere à nulidade por falta de fundamentação, a mesma ocorre quando não se especifiquem os fundamentos de facto e de direito em que se funda a decisão, cumprindo ao juiz demonstrar que da norma geral e abstracta soube extrair a disciplina ajustada ao caso concreto, posto que as partes precisam de conhecer os motivos da decisão, em particular a parte vencida, a fim de, sendo admissível o recurso, poder impugnar o respectivo fundamento.
Esse dever de fundamentação, causa de nulidade da sentença, respeita à falta absoluta de fundamentação, como nos ensina Antunes Varela, ob. cit., pág. 687:
Para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente e incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito.
E, como afirmava José Alberto dos Reis, ob. cit., pág. 140:
Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeitando-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto. Se a sentença especificar os fundamentos de direito, mas não especificar os fundamentos de facto, ou vice-versa, verifica-se a nulidade.
É entendimento pacífico que apenas a falta absoluta de fundamentação, entendida como a total ausência de fundamentos de facto e de direito, gera a nulidade prevista na al. b) do nº 1 do citado artigo 615º.
A fundamentação deficiente, medíocre ou errada afeta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.
A nulidade verifica-se, assim, quando o tribunal julga procedente ou improcedente um pedido, mas não especifica os fundamentos de facto ou de direito que foram relevantes para essa decisão, violando assim o dever de motivação ou fundamentação das decisões judiciais.
Questão diferente da falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito na sentença, prevista no n.º 3 do art.º 607.º do Código de Processo Civil, é a falta de fundamentação ou de motivação da decisão de facto, prevista no n.º 4 do mesmo artigo, como se alertou no Acórdão desta Relação de 5/3/2020 (Inês Moura), disponível em www.dgsi.pt.
Quando está em causa uma deficiente ou insuficiente fundamentação da decisão de facto, na explicação dada pelo tribunal para a formação da sua convicção e para a decisão que proferiu ao considerar provados e não provados os factos controvertidos, tal não determina a nulidade da sentença nos termos do citado art.º 615.º n.º 1 al. b), apenas havendo lugar à remessa do processo ao tribunal de 1ª instância, para que fundamente algum facto essencial para o julgamento que não esteja devidamente fundamentado, conforme prevê expressamente o art.º 662.º n.º 2 al. d) do mesmo Código ao dar a possibilidade à Relação de, mesmo oficiosamente, “determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados.
Não se pode dizer que haja falta absoluta de fundamentação, pois o despacho surge fundamentado de forma concisa, mas assertiva, quer quanto aos factos considerados provados ou não quer quanto à aplicação do Direito a esses factos.
Não padece, por isso, o despacho proferido de nulidade, por falta de fundamentação.
*
A inteligibilidade da decisão.
Em segundo lugar e quanto à inteligibilidade da decisão, o dispositivo apresenta o seguinte teor:
Nestes termos, e com tais fundamentos declara-se que a citação da Ré se encontra validamente efetuada por não se verificar qualquer nulidade processual.
Como decidiu o STJ, em Acórdão de 11/4/2002 (Simas Santos), disponível em www.dgsi.pt:
Uma sentença é obscura ou ambígua quando for ininteligível, confusa ou de difícil interpretação, de sentido equívoco ou indeterminado, traduzindo-se a obscuridade na ininteligibilidade e a ambiguidade na possibilidade de à decisão serem razoavelmente atribuídos dois ou mais sentidos diferentes.
Ora, a decisão recorrida mostra-se clara e de evidente apreensão: considera-se a citação da ré validamente efectuada e julga-se não verificada a invocada nulidade processual.
Improcede, pois, esta arguida nulidade do despacho recorrido.
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ii) A validade da citação efectuada.
Este despacho tem por objecto o requerimento de arguição de nulidade da citação da ré, apresentado logo no primeiro acto praticado nos autos pela mesma, incorporado no articulado de contestação.
O que nos remete para o regime das nulidades principais, nomeadamente a que decorre de falta de citação, estatuindo a alínea a), do art.º 187º, do Código de Processo Civil, ser “nulo tudo o que se processe depois da petição inicial, salvando-se apenas esta: a) quando o réu não tenha sido citado”.
Acrescenta a alínea e), do nº. 1, do normativo seguinte – 188º - ocorrer “falta de citação: e) quando se demonstre que o destinatário da citação pessoal não chegou a ter conhecimento do ato, por facto que não lhe seja imputável”.
Como se refere no Acórdão desta Relação de 7/3/2022 (Arlindo Crua), disponível em www.dgsi.pt:
V – para a verificação do vício de falta de citação, nos termos da alín. e), do nº. 1, do art.º 188º, do Cód. de Processo Civil, determinante da verificação de nulidade principal, exige-se que se demonstre que o destinatário da citação pessoal não chegou a ter conhecimento do ato, por facto que não lhe seja imputável;
VI – não bastando à invocante a alegação de que não teve conhecimento do acto de citação, sendo ainda mister que alegue, e prove, não só que tal aconteceu, mas ainda que sucedeu por circunstâncias que não lhe são imputáveis.    
Para a análise do caso, assume particular relevo o prescrito no artigo 246º do Código de Processo Civil, o qual estatui que:
1 - Em tudo o que não estiver especialmente regulado na presente subsecção, à citação de pessoas coletivas aplica-se o disposto nas subsecções anteriores, com as necessárias adaptações.
2 - A carta referida no n.º 1 do artigo 228.º é endereçada para a sede da citanda inscrita no ficheiro central de pessoas coletivas do Registo Nacional de Pessoas Coletivas.
3 - Se for recusada a assinatura do aviso de receção ou o recebimento da carta por representante legal ou funcionário da citanda, o distribuidor postal lavra nota do incidente antes de a devolver e a citação considera-se efetuada face à certificação da ocorrência.
4 - Nos restantes casos de devolução do expediente, é repetida a citação, enviando-se nova carta registada com aviso de receção à citanda e advertindo-a da cominação constante do n.º 2 do artigo 230.º, observando-se o disposto no n.º 5 do artigo 229.º.
5 - O disposto nos n.ºs 3 e 4 não se aplica às citandas cuja inscrição no ficheiro central de pessoas coletivas do Registo Nacional de Pessoas Coletivas não seja obrigatória.
6 - Quando a citação for efetuada por via eletrónica, nos termos do n.º 5 do artigo 219.º, não é aplicável a dilação a que se refere o artigo anterior.
E, nomeadamente e com especial enfoque, o disposto no transcrito nº. 2, ao consagrar a regra segundo a qual a carta registada com aviso de recepção destinada a citar a pessoa colectiva é endereçada para a sede inscrita no Registo Nacional de Pessoas Colectivas.
Apreciando acerca da sequência das diligências de citação, nos casos em que o citando está sujeito a inscrição obrigatória no ficheiro central de pessoas colectivas, referencia Rui Pinto, in Notas ao Código de Processo Civil, Vol. I, 2ª Edição, Coimbra Editora, pág. 225 e 226  que “a primeira modalidade é a citação (pessoal) postal inicial do artigo 228º mas com as especialidades do nº. 2: citação na sede da citanda inscrita no ficheiro central de pessoas colectivas do Registo Nacional de Pessoas Colectivas”.
Acrescenta que nos casos em que se frustre tal citação, por motivo diferenciado do mencionado no nº. 3 – recusa da assinatura do aviso de recepção ou do recebimento da carta por representante legal ou funcionário da citanda -, “procede-se à repetição da citação postal mediante envio de nova carta registada com aviso de receção”.
Situação em que “(i) a citação considera-se efectuada por depósito na caixa do correio na data certificada pelo distribuidor do serviço postal devendo o distribuidor do serviço postal certificar a data e o local exato em que depositou o expediente e remeter de imediato a certidão ao tribunal ; ou (ii) no caso de ter sido deixado aviso por impossibilidade de depósito ao abrigo do artigo 229º nº 5 in fine a citação considera-se efectuada no 8º dia posterior a essa data, presumindo-se que o destinatário teve oportuno conhecimento dos elementos que lhe foram deixados – a carta, de modelo oficial, contendo cópia de todos os elementos referidos no artigo 227º”.
Acrescentam Paulo Ramos Faria e Ana Luísa Loureiro in Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, 2014, 2ª Edição, Vol. I, Almedina, pág. 241 que “o regime previsto neste artigo está desenhado à imagem das pessoas colectivas, refletindo a sua natureza especial. A criação de uma pessoa coletiva – ou a participação numa – comporta ónus e deveres, subjectivamente imputáveis ao ente colectivo, assim se explicando a relevância aqui dada ao registo obrigatório da sede”.
Por sua vez, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1º, 4ª Edição, Almedina, pág. 495 e 496 referenciam que “acompanhando a evolução verificada no âmbito do direito das sociedades, o DL 329-A/95 introduziu a sede de facto (local onde funciona normalmente a administração) como local onde pode ser efectuada a citação (ou notificação) da pessoa colectiva, em alternativa à citação na sede estatutária e antes de se tentar a citação na residência ou no local de trabalho do representante”.
Todavia, acrescentam, que com as alterações introduzidas no Código de Processo Civil em 2013, “cessa a alternativa e regressa-se à citação na sede estatutária, constante do ficheiro central do Registo Nacional de Pessoas Colectivas (…)”.
Assim, nos casos descritos no nº. 4 de tal normativo, em que a evolução do expediente ocorre por motivo diferenciado do previsto no nº. 3 - recusa da assinatura do aviso de recepção ou do recebimento da carta por representante legal ou funcionário da citanda -, “é deixado aviso, se possível, aplicando-se os nºs. 5 e 7 do art.º 228. Devolvido o expediente, também se se tratar de pessoa colectiva cuja inscrição no Registo Nacional de Pessoas Colectivas é obrigatória, é repetida a citação, mediante nova tentativa de citação postal, desta vez com a cominação de que a citação se considera efetuada na data certificada pelo distribuidor do serviço postal, ou, se tiver que ser deixado aviso, no 8º dia posterior a essa data (art.º 230-2). Não sendo de novo possível a entrega da carta, por motivo diferente de recusa, o distribuidor postal deposita a carta em local que certifica ou, sendo isso impossível, deixa aviso nos termos do art.º 228-5 (art.º 229-5), considerando-se feita a citação (pessoal (…)) na data referida no art.º 230-2. Também este ponto de regime é, pois, idêntico ao da citação em domicílio convencionado (art.º 229, nºs. 4 e 5)”.
Entendimento que é replicado por Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2019, Reimpressão, pág. 283, acrescentando que, “nos termos do nº. 2, incumbe à secretaria aceder à base de dados e averiguar qual a sede estatutária da pessoa colectiva para onde será remetida a citação postal, observando-se o disposto nos arts. 227º e 228º, nº. 1”.
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Encontrando-se a localização da sede do recorrente sujeita a registo obrigatório junto do Registo Nacional de Pessoas Colectivas, a carta registada com aviso de recepção com vista à sua citação, foi remetida para a sede estatutária, constante do ficheiro central do Registo Nacional de Pessoas Colectivas e aí recebida.
Invocou a recorrente extenso catálogo factual, que entende deveria ser considerado provado; qual seja:

Sucede que todos esses factos se mostram irrelevantes para afastar o juízo de imputabilidade à própria ré efectuado pelo Tribunal recorrido, com o qual concordamos.
Por todos, veja-se o Acórdão desta Relação, de 17/11/2015 (Rosa Ribeiro Coelho), disponível em www.dgsi.pt, que define ter passado a recair sobre as pessoas colectivas “o ónus de garantir a correspondência entre o local inscrito como sendo a sua sede e aquele em que esta se situa de facto, atualizando-o com presteza, a fim de evitar que à sua citação se venha a proceder em local correspondente a uma sede anterior”.
Donde, poder afirmar-se ter deixado de “ser tolerada uma situação de “clandestinidade”, com a manutenção indefinida, voluntariamente ou por simples negligência dos órgãos competentes, de uma sede desatualizada, em prejuízo de terceiros ou do Estado”.
Assim, a vigente previsão legal “passou a fazer impender sobre a pessoa coletiva o ónus de garantir que chegue ao seu conhecimento, em tempo oportuno, uma citação que lhe seja enviada por um tribunal, o que poderá fazer por qualquer meio à sua escolha, como sejam, a periódica e regular inspeção do seu antigo recetáculo postal, o acordo estabelecido com o novo detentor do local das suas anteriores instalações, no sentido do aviso de recebimento ou da entrega do expediente, ou a contratação do serviço de reexpedição junto dos CTT.
Todavia, porque nenhum destes meios – ou outros que possam conceber-se – tem relevância legal, o risco da sua eventual falha sempre correrá por conta da entidade citanda que poderá vir a ser citada sem disso tomar efetivo conhecimento”.
Ressalva que tal exigência não se configura como “insuportável ou particularmente severa, pois que no caso teria bastado que a ré tivesse tomado a deliberação de mudança de sede e procedido ao seu registo em tempo devido”.
Pelo que, “não o tendo feito, deve-se a motivo que lhe é imputável o facto de não ter tido conhecimento da citação realizada, não podendo ter-se como verificada a hipótese de falta de citação prevista na al. e) do nº 1 do art.º 188º
Invoca a ré, em extensas conclusões, como argumentos fundamentais e sintetizadores, que:
10.1.    Da existência de um conflito societário entre os sócios da sociedade Ré que protelou o processo de formalização da alteração da sede/estatutos da Ré;
10.2.    Da não observância - sem que a legal representante da Ré o pudesse prever - por parte das funcionárias da E, Lda. da prática habitual que vinha sendo implementada desde que a legal representante da Ré deixou de frequentar as instalações da sede formal da Ré: toda a correspondência dirigida à Ré e rececionada nas instalações da sua sede formal (e sede da E, Unipessoal, Lda.) era digitalizada e enviada, por email, para a sua gerente, conforme procedimento evidenciado no Doc. nº 6 junto com a contestação;
10.3.   Isto sem prejuízo de a gerência da Ré ter procurado formalizar a alteração estatutária (mudança de sede), numa primeira abordagem de forma informal, o que não foi aceite pela outra sócia da Ré (cujo sócio único e gerente é o acionista e administrador único da Autora) e posteriormente por via da convocação de uma assembleia geral com um único ponto na ordem de trabalhos: a alteração da sede / estatutos da ré;
10.4.    E também sem prejuízo de o legal representante da Autora bem saber que a Ré não labora e não exerce qualquer domínio ou controlo da correspondência recebida na morada da sua sede formal, mas ainda assim ter indicado como morada para citação da Ré a sua sede formal e não ter sequer cuidado de assegurar que a citação fosse entregue à sua legal representante.
Desta argumentação resulta que a ré não alterou a sua sede, pelo que a ré foi correctamente citada no local da sua sede, nos termos das supra citadas disposições legais.
Cabe aos legais representantes da ré proceder à formalização de uma eventual alteração da sede – o que não ocorreu – e, enquanto tal não se concretizar, diligenciar pela recolha de correspondência no local.
Inexistindo qualquer falha, incúria ou negligência por parte quer da autora quer do Tribunal, pela simples razão que a ré sempre deveria ser citada nos termos em que o foi.
Noutras palavras, a autora apenas podia indicar como local de citação a sede da ré e o Tribunal apenas podia tentar e realizar a primeira diligência de citação no local dessa mesma sede.
Qualquer eventual litígio e confusão (no sentido de exercício cumulativo de funções ou qualidade societária pela mesma pessoa singular, em distintas pessoas colectivas) entre os sócios ou representantes de ambas as partes não afastam a conclusão a que se chegou.
Conclusão contrária conduziria a um resultado que ultrapassa a necessária segurança jurídica que fundamenta o regime legal de citação de pessoas colectivas.
Ficando em aberto eventual responsabilização civil por parte das pessoas concretas envolvidas no evento de citação, verificados que sejam os respectivos pressupostos indemnizatórios, em sede própria, ou seja, em acção própria e distinta desta.
Sendo que, nestes autos, nenhum reparo há a fazer à citação efectuada.
Sendo factualidade irrelevante, acompanha-se a conclusão do Tribunal recorrido, no sentido da improcedência da nulidade por falta de citação, arguida pela ré na contestação.
Improcedendo, pois, a apelação relativamente ao despacho proferido em 29/11/2022.
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B. Da sentença recorrida.
No que tange à sentença recorrida, invoca a recorrente o seguinte:
16. Assim, desatendendo, em absoluto, a contestação que foi apresentada pela Ré nestes autos, como a faz a sentença recorrida, a sentença recorrida incorre em vício de omissão de pronúncia, dado que não aprecia questão que devia apreciar e que foi submetida à sua consideração (a defesa apresentada na contestação), o que determina a nulidade da sentença, conforme previsto no artigo 615º, n.º 1, alínea d) do CPC.
17. Do mesmo modo, decidindo como decidiu - desatendendo totalmente a defesa apresentada pela Ré - a sentença recorrida viola igualmente o princípio do contraditório plasmado no artigo 3º do CPC, na medida em que afasta indevidamente deste processo a versão dos factos e toda a defesa apresentada pela Ré, impedindo que esta faça valer a sua posição.
18. E também do mesmo modo, a sentença recorrida, decidindo como decidiu - desatendendo totalmente a defesa apresentada pela Ré - viola, pelos mesmos motivos, o princípio da igualdade das partes plasmado no artigo 4º do CPC, colocando a Ré numa posição de indefesa e de desvalorização relativamente à posição da Autora, a quem foi permitido apesentar o seu articulado e aí desenvolver toda a sua pretensão e fundamentos, sem que à Ré seja permitido responder de forma paritária.
Duas palavras chegam para afastar esta argumentação.
A nulidade por omissão de pronúncia e por violação dos princípios do contraditório e da igualdade entre as partes, assenta no pressuposto da tempestividade da contestação apresentada.
Essa tempestividade apenas seria viável, caso procedesse a invocação da nulidade de citação.
Reconhecendo-se a validade da citação efectuada, não restam dúvidas que a contestação foi, sem justificação, apresentada depois de decorrido o prazo legal para a sua dedução.
E a legalidade ou mesmo a adequação constitucional dos efeitos cominatórios do decurso dos prazos processuais estabelecidos na Lei mostram-se pacíficos.
Logo, julga-se correcto o seu desentranhamento, não devendo a mesma ser considerada na apreciação de facto e de Direito da causa.
Por isso, a sentença proferida mostra-se isenta de críticas, improcedendo a apelação.
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V. A decisão                                                       
Pelo exposto, os Juízes da 6.ª Secção da Relação de Lisboa acordam em, na improcedência da apelação, manter as decisões recorridas, quer o despacho proferido em 29/11/2022 quer a sentença final.
Custas pelo recorrente.
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Lisboa, 23 de Maio de 2024
Nuno Lopes Ribeiro
Eduardo Petersen Silva
Vera Antunes