Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
| ||
Relator: | SANDRA OLIVEIRA PINTO | ||
Descritores: | RECURSO DE CONTRA-ORDENAÇÃO OMISSÃO DE DILIGÊNCIAS DE PROVA NULIDADES DA SENTENÇA | ||
![]() | ![]() | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 11/09/2021 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
![]() | ![]() | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIDO, DECLARANDO-SE NULA A SENTENÇA | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário: | -No caso dos autos, à arguida foi efetivamente dada a oportunidade de se pronunciar sobre a contraordenação que lhe era imputada, o que fez, expondo os argumentos que, em seu entender, impunham que se considerasse não verificada a contraordenação referida no auto de notícia, e solicitando a inquirição de duas testemunhas. - Como resulta do disposto no artigo 54º, nº 2 do RGCO, é a autoridade administrativa que procede à investigação e instrução do processo, não estando obrigada a realizar todas e quaisquer diligências de prova que sejam requeridas pelo arguido, embora deva fundamentar a respetiva rejeição, em obediência ao princípio da legalidade que vincula todo o processo. - O Ministério Público também não está vinculado à produção de todas as provas requeridas pelo arguido, só podendo ser-lhe censurada a omissão de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade (ou a falta da prática de atos legalmente obrigatórios) e mesmo o Tribunal, na fase de julgamento, apenas está obrigado a produzir (oficiosamente ou a requerimento) os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa (cf. artigo 340º, nº 1 do Código de Processo Penal), devendo recusar tudo o que for supérfluo, irrelevante ou dilatório. - Uma eventual omissão no processo de contraordenação – quando estejam em causa diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade – é suscetível de configurar a nulidade prevista no artigo 120º, nº 2, alínea d) do Código de Processo Penal, cujo conhecimento pelo Tribunal está dependente de arguição pelo interessado, nos termos previstos no nº 3 do citado artigo 120º. - Por outro lado, não se considerando possível decidir por despacho – como aconteceu no caso vertente – a decisão a proferir ocorre no termo da audiência de julgamento, devendo corresponder a uma sentença, com as características estabelecidas no artigo 374º do Código de Processo Penal (que constitui direito subsidiário do direito das contraordenações e também do processamento das transgressões e contravenções, aplicável em conformidade com o disposto no artigo 66º do RGCO – cf. artigo 41º, nº 1 do RGCO e artigo 13º, nº 7 do Decreto-Lei nº 17/91, de 10 de janeiro), devendo a sentença, em processo penal, conter, sob pena de nulidade “a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal” (cf. artigos 374º, nº 2 e 379º, nº 1, alínea a), ambos do Código de Processo Penal). - Não contendo qualquer indicação quanto aos factos provados ou não provados, nem qualquer exame crítico dos meios de prova (apesar de ter sido proferida após produção de prova em audiência de julgamento) e é de tal modo concisa na exposição dos motivos de direito que fundamentam a decisão, que nem sequer caracteriza o vício que terá encontrado no procedimento administrativo contraordenacional pelo que não pode deixar de concluir-se pela respetiva nulidade, por falta de fundamentação. - As nulidades de sentença enumeradas no n.º 1 desse artigo são oficiosamente cognoscíveis, uma vez que têm regime próprio e diferenciado do regime geral das nulidades dos restantes actos processuais, estabelecendo-se no n.º 2 do mesmo que as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
![]() | ![]() |
Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: I – Relatório A Inspeção-Geral das Atividades Culturais (IGAC), por decisão de 06 de março de 2019, aplicou à arguida M.I.P. – Exploração de Bares, Ldª, a coima de € 750,00 (setecentos e cinquenta euros), por violação do nº 6 do artigo 8º conjugado com a alínea d) do nº 1 do artigo 27º, ambos do Decreto-Lei nº 23/2014, de 14 de fevereiro (violação de dever de negar a entrada no estabelecimento a menores de 16 anos), punida nos termos do artigo 36º, nº 2 do mesmo diploma legal. Desta decisão interpôs a arguida recurso de impugnação judicial. Distribuídos os autos ao Tribunal Judicial da Comarca de ... - Juízo Local Criminal de ... – Juiz ..., em 16.10.2020 (na sequência de decisão sumária proferida pelo Tribunal da Relação ….. em 01.09.2020) foi proferido despacho que admitiu o recurso de impugnação judicial e determinou a notificação dos intervenientes para declararem a sua eventual oposição à decisão por despacho, nos termos previstos no artigo 64º do Regime Geral das Contraordenações (aprovado pelo Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de outubro – doravante RGCO). Não obstante não tenha sido deduzida qualquer oposição a tal forma de decisão, por despacho proferido em 11.12.2020, a Mma Juiz titular concluiu pela necessidade da realização de audiência de julgamento, que agendou para 09.06.2021. Nessa data, realizou-se a audiência de julgamento, tendo sido ouvidas duas testemunhas arroladas pelo Ministério Público e duas testemunhas arroladas pela arguida e, ainda, o legal representante da arguida. Foi, então, designada data para a leitura da sentença. Em 17.06.2021 foi lida a sentença que consta dos autos com a refª Citius……, na qual se considerou ter ocorrido violação do disposto no artigo 50º do RGCO e no artigo 6º, nos 1 e 3, alínea d), da CEDH (que vigora na nossa ordem interna nos termos do artigo 8º da CRP), por a entidade administrativa não ter procedido à inquirição do legal representante da arguida e da testemunha arrolada pela arguida na sua defesa, concluindo-se em seguida que “em face do acabado de referir, a presente impugnação não pode deixar de proceder, estando prejudicado o conhecimento das demais questões” e, em consequência, “julga-se procedente a presente impugnação, anulando-se a decisão proferida nestes autos”, mais se determinando: “Após trânsito, remeta o processo integral à entidade administrativa, para os fins tidos por convenientes, deixando cópia no lugar e arquive”. É desta decisão que vem interposto recurso, pelo Ministério Público, que formulou as seguintes conclusões: “1. O Ministério Público apresentou, nos termos do disposto no artigo 62.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, o presente processo de contraordenação, instaurado pela IGAC – Inspecção-Geral das Actividades Culturais, contra a arguida ‘M.I.P. – Exploração de Bares, Lda’, por factos susceptíveis de integrar a prática de uma contra-ordenação prevista e punida pelos artigos 8.º, n.º 6 (em conjugação com o constante no artigo 27.º, n.º 1, alínea d) do Decreto-Lei n.º 23/2014, de 14 de Fevereiro) e 36.º, n.º 2, ambos do Decreto-Lei n.º 23/2014, de 14 de Fevereiro. 2. Decorridos os trâmites legais, veio a ser designada data para a realização de audiência de julgamento, com vista à inquirição das testemunhas indicadas, por o Tribunal, tendo analisado as questões invocadas na impugnação judicial apresentada, as quais não se reconduziam apenas a questões de natureza jurídica, abrangendo também factos concretos e, nomeadamente o apuramento sobre a configuração do estabelecimento explorado pela recorrente, ter entendido relevante a audição das mesmas, para a prolação de decisão final. 3. Realizada audiência de julgamento, inquiridas as testemunhas pertinentes (a recorrente veio a prescindir a audição de algumas das por si indicadas) e ouvido em declarações o legal representante da recorrente, foi proferida sentença na qual, após a enunciação da questão central invocada e a apreciar e a transcrição de excerto do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 8 de Abril de 2014, se conclui no sentido de que a decisão administrativa proferida violou o disposto no artigo 50.º do Regime Geral das Contraordenações e o artigo 6.º, n.os 1 e 3, alínea d) da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, se determina a anulação da mesma e a devolução dos autos à entidade administrativa, para os fins tidos por convenientes. 4. É de tal decisão, de cujo teor discordamos, que ora se recorre, não só porquanto da mesma não resulta claro e inequívoco o fundamento legal que sustenta a consequência que a mesma extraia por força da violação dos preceitos que identifica, como também por a mesma se mostrar violadora do disposto nos artigos 120.º e 121.º, ambos do Código de Processo Penal e aplicáveis por força do constante no artigo 41.º do Regime Geral das Contraordenações. 5. Como resulta do diploma que estabelece o seu regime geral, o processo contraordenacional comporta duas fases: uma de natureza administrativa e outra de cariz judicial. Na fase administrativa afere-se sobre a verificação ou não da existência de infracção contraordenacional e, em caso afirmativo, determina-se a medida da coima e sanção a aplicar; a fase judicial, que se inicia com a apresentação da decisão administrativa como se fosse uma verdadeira acusação, visa a apreciação de facto e de direito da infracção imputada. 6. Do disposto no artigo 50.º do Regime Geral das Contraordenações resulta que, em fase administrativa, aquela onde é formada e tomada a decisão, afere-se como de particular relevância o exercício do direito de defesa do arguido, nele se incluindo, não só a sua audição, como também a possibilidade de indicação de provas e solicitação de realização de diligências (como o caso da audição de testemunhas), que se considerem pertinentes e relevantes para o apuramento dos factos que são ao arguido imputados. 7. Por seu turno, a entidade administrativa, no âmbito dos seus poderes de investigação e instrução e ao abrigo do artigo 54.º do Regime Geral das Contraordenações, desde que de forma fundamentada e em estrita obediência ao princípio da legalidade, pode não realizar as diligências indicadas e requeridas, caso entenda que as mesmas não se aferem úteis, nem relevantes. 8. Caso a entidade administrativa não proceda à realização das diligências solicitadas e não fundamente tal decisão ou o faça de forma vaga e insuficiente, não poderá deixar de se concluir pela verificação da nulidade prevista no artigo 120.º, n.º 2, alínea d) do Código de Processo Penal (aplicável ex vi artigo 41.º do Regime Geral das Contraordenações) – ‘omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade’ – a qual deve ser arguida em tempo. 9. Tendo por consideração a situação em causa nos autos, certo é que, instaurado o competente processo contraordenacional, por levantamento de auto de notícia pela PSP, não foram pela entidade administrativa realizadas quaisquer diligências probatórias, incluindo as indicadas pela recorrente na sua defesa – as quais, em todo o caso, se aferiam pertinentes para o apuramento dos factos e para aferir se à recorrente poderia ser a infracção identificada -, alegando-se de forma genérica e vaga, na decisão pela mesma proferida, a inutilidade da sua realização. 10. Assim, dúvidas não subsistem que a decisão administrativa proferida se mostra ferida da nulidade prevista no artigo 120.º, n.º 1, alínea d) do Código de Processo Penal e que, indirectamente, a recorrente arguiu na impugnação judicial apresentada, ao alegar que a mesma padecia das nulidades previstas nos artigos 374.º e 379.º, ambos do Código de Processo Penal. 11. Porém, e em consonância com o entendimento plasmado no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 9 de Dezembro de 2020, certo é que, em face da audição das indicadas testemunhas em fase de audiência de julgamento, a nulidade de que a decisão administrativa padecia ficou sanada, nos termos do disposto no artigo 121.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Penal. 12. Consequentemente, e uma vez sanada a nulidade da decisão proferida pela entidade administrativa, cumpria ao Tribunal, nesta sede, proferir sentença na qual conste apreciação e análise da questão invocada na impugnação judicial e, nomeadamente, se deve a mesma improceder ou não, em face da prova produzida, com a consequente confirmação ou revogação daquela. 13. Pelo que, com a sentença proferida, que se afere omissa no que respeita ao fundamento legal que sustenta a consequência pela mesma determinada, afere-se que a mesma violou o disposto nos artigos 120.º e 121.º do Código de Processo Penal, aplicáveis ex vi artigo 41.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, devendo a mesma ser revogada e substituída por outra que proceda à apreciação e análise da impugnação judicial apresentada e considere a mesma procedente ou improcedente, daí extraindo as legais consequências.” O recurso foi admitido, com subida imediata, nos autos e efeito devolutivo. A arguida não apresentou resposta. * Uma vez remetido a este Tribunal, o Exmº Senhor Procurador-Geral Adjunto apôs visto. Proferido despacho liminar e colhidos os “vistos”, teve lugar a conferência. * II – Objeto do recurso De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso, designadamente a verificação da existência dos vícios indicados no nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal – sendo certo que, em conformidade com o disposto no artigo 75º, nº 1 do RGCO, nos recursos dos processos de contraordenação a 2ª instância apenas conhece de direito. No caso, tendo em conta as conclusões apresentadas pelo Digno recorrente, há que apreciar se a eventual nulidade cometida pela autoridade administrativa deveria considerar-se sanada e se, em consequência, se mostra verificada a nulidade da sentença proferida no Tribunal a quo, ao não ter conhecido do objeto do processo (em violação do disposto no artigo 379º do Código de Processo Penal, aplicável ex vi do artigo 41º do RGCO) * III – Fundamentação Com interesse para a decisão a proferir, resulta dos autos que: 1. Em 02.03.2018, pela Polícia de Segurança Pública – Divisão Policial de ...., foi levantado auto de notícia contra a arguida M.I.P. – Exploração de Bares, Ldª, por alegada violação do nº 6 do artigo 8º conjugado com a alínea d) do nº 1 do artigo 27º, ambos do Decreto-Lei nº 23/2014, de 14 de fevereiro (violação de dever de negar a entrada no estabelecimento a menores de 16 anos), punida nos termos do artigo 36º, nº 2 do mesmo diploma legal, tendo os factos pertinentes ocorrido em 17.02.2018 (cf. auto de notícia de fls. 3-4). 2. Por ofício datado de 28.05.2018, foi a arguida notificada (em 22.08.2018) para se pronunciar, «nos termos e para os efeitos constantes do artigo 50º do Regime Geral das Contraordenações» (cf. fls. 6 e 17). 3. Em 29.08.2018, a arguida apresentou resposta escrita, negando o cometimento da infração que lhe foi imputada e arrolando duas testemunhas: AA e BB (cf. fls. 12 a 14). 4. Em 19.02.2019, o instrutor do processo elaborou «Relatório Final», do qual fez constar: “Apreciada a defesa, verifica-se que a mesma não contraria a matéria dos autos no que concerne ao cometimento da contraordenação que está na origem do presente processo, uma vez que cabe ao comerciante de normal diligência conhecer as normas que regem a sua atividade e coadunar a sua conduta com as mesmas, acautelando o seu cumprimento. Não é questionada a realidade factual descrita pela arguida, mas tão só a qualificação jurídica da conduta, motivo pelo qual se tem por despiciente a inquirição das testemunhas.” (cf. fls. 18 a 20) 5. Tendo concluído pelo cometimento da infração imputada à arguida, foi à mesma aplicada a coima de € 750,00, por decisão datada de 06.03.2019. (cf. fls. 21) 6. Em 08.04.2019, a arguida veio apresentar impugnação judicial daquela decisão condenatória, formulando as seguintes conclusões: “- Resulta de quanto se expôs perfeitamente demonstrado que o estabelecimento explorado pela impugnante não praticou a infração pela qual foi punida, porquanto não estar obrigada a impedir a entrada e permanência da menor, com 14 anos de idade acompanhada por adultos, e ainda que o não estivesse, que foi identificada no seu interior. - A impugnante não é, e nem nunca foi, uma discoteca ou similar, tendo sido sempre até aos dias de hoje um estabelecimento de bebidas, com algumas mesas e cadeiras onde os clientes se sentam e consomem as bebidas que entendem consumir, desde que dentro da legalidade, sem que alguma vez tenha tido qualquer espaço que permita aos clientes dançar. - O facto de esporadicamente ter uns espetáculos de karaoke em nada muda a sua condição de um simples bar, pois que esse facto, por si só, não faz nascer uma pista de dança e nem pode ter o efeito de o transformar em um «clube nocturno», «boîte», «night-club», «cabaret» ou «dancing». - Não tendo, pois, aplicabilidade no caso concreto a norma ínsita na conjugação do nº 6, do artigo 8º, com a alínea d), do nº 1, do artigo 27º, ambos do DL 23/2014, de 14 de fevereiro. - Além de tudo isto, acontece que a autoridade administrativa não fundamentou a decisão tomada, limitando-se a identificar as normas que entendeu terem sido violadas. - Em perfeita violação do dever de fundamentação a que está legalmente obrigada, o que implica a sua nulidade, nos termos dos artigos 374º, nº 2 e 379º, nº 1, alínea a) do CPP, ex vi artigo 41º, nº 1, do DL nº 433/82, de 27 de outubro.” – cf. fls. 29 a 31. 7. Concluiu a arguida, requerendo que: “a) seja declarada a nulidade da decisão condenatória proferida pela autoridade administrativa (IGAC), por violação do dever de fundamentação; b) assim não se entendendo, seja julgada procedente a presente impugnação por provada e, em consequência, seja determinado o arquivamento do processo de auto por contraordenação, absolvendo-se a impugnante; c) seja a IGAC condenada no pagamento das custas, havendo lugar a estas, e procuradoria condigna”. Juntou documentos e arrolou cinco testemunhas de defesa: CC, DD, EE, FF e GG – cf. fls. 30. 8. Enviados os autos ao Ministério Público, foram pelo mesmo apresentados em juízo, nos termos previstos no artigo 62º do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de outubro, tendo sido indicadas três testemunhas: HH, II e JJ – cf. fls. 41. 9. Em 09.06.2021 foi realizada audiência de discussão e julgamento, na qual foram ouvidas as testemunhas HH e II (arroladas pelo Ministério Público), CC e GG (arroladas pela arguida) e o legal representante da arguida AA – tendo o Ministério Público e a arguida prescindido da inquirição das restantes testemunhas indicadas (cf. ata com a refª Citius…..). 10. Em 17.06.2021 foi proferida sentença, da qual, entre o mais, consta: “Ora, a ser assim, no âmbito do Direito contraordenacional, para além das garantias do n.º 1 do art. 6.º da CEDH, são igualmente aplicáveis as garantias do n.º 3 desse preceito, maxime, com relevância para o caso concreto, a prevista na al. d): interrogar ou fazer interrogar as testemunhas de acusação e obter a convocação e o interrogatório das testemunhas de defesa nas mesmas. E, como se vem referindo, o procedimento contraordenacional possui duas fases: administrativa e judicial. Só que, ao contrário do entendimento de alguma Doutrina e Jurisprudência, a fase judicial não é nenhuma “reabertura” da fase administrativa, mas sim uma fase de recurso (pois depende da impugnação da decisão proferida pela entidade administrativa “em 1.ª instância”) absolutamente autónoma da fase administrativa. Por isso, as omissões da fase administrativa não podem ser supridas pelo Tribunal na fase judicial, como também o não podem ser as omissões do Tribunal de 1.ª instância pelo Tribunal da Relação no processo penal, em que tais omissões, quando consistam na omissão de diligências, motivam a anulação dos atos processuais subsequentes do Tribunal de 1.ª instância. E também não se poderá jamais aceitar que a entidade administrativa tenha mais poderes do que o Tribunal no sentido de indeferir a produção de meios de prova, inexistindo dúvidas de que, se o Tribunal indeferisse, “por desnecessidade”, a inquirição das testemunhas arroladas pelo arguido no requerimento de impugnação da decisão administrativa, tal ato seria, com todo o fundamento, alvo de declaração de nulidade e anulado em sede de recurso para o Tribunal da Relação. Assim sendo, ocorreu violação do disposto no art. 50.º do RGCO e no art. 6.º, n.ºs 1 e 3, al. d), da CEDH (que vigora na nossa ordem interna nos termos do art. 8.º da CRP), por a entidade administrativa não ter procedido à inquirição do legal representante da arguida e da testemunha arrolada pela arguida na sua defesa. Em face do acabado de referir, a presente impugnação não pode deixar de proceder, estando prejudicado o conhecimento das demais questões. * Decisão Por tal facto, julga-se procedente a presente impugnação, anulando-se a decisão proferida nestes autos. Sem custas. Notifique. * Após trânsito, remeta o processo integral à entidade administrativa, para os fins tidos por convenientes, deixando cópia no lugar e arquive.” (cf. sentença com a refª Citius….) * O Digno recorrente suscita a nulidade da sentença proferida nos autos, com fundamento em que na mesma se considerou verificada nulidade do processo contraordenacional que deveria considerar-se sanada, atenta a circunstância de ter sido realizada audiência de julgamento, na qual foi produzida a prova indicada pela arguida/recorrente. A sentença recorrida, porém, limitou-se a considerar verificada a violação do direito de defesa da arguida/recorrente, sem qualificar qualquer eventual nulidade ou invalidade do procedimento ou da decisão administrativa. Cumpre apreciar. Como reflete António Leones Dantas[1], cuja exposição seguimos de perto, “O Direito das Contraordenações disciplina uma actividade de natureza sancionatória prosseguida pela Administração, fazendo parte, tal como o Direito Penal e o Direito Disciplinar, do direito sancionatório de natureza pública. Embora fazendo parte do direito sancionatório público e mantendo relações profundas com o Direito Penal, o Direito das Contraordenações não se confunde com aquele, quer na sua dimensão substantiva, quer na componente processual que integra. Ou seja, o processo das contraordenações viabiliza a realização daquele direito, disciplinando a sua aplicação no quadro da autonomia de cada um daqueles ramos do direito sancionatório e da especificidade das respectivas soluções processuais. O direito ao contraditório, na dimensão de direito à audição e à defesa, é uma componente estruturante dos procedimentos de natureza sancionatória e está presente, embora com manifestações diversas, nos procedimentos relativos às diversas componentes daquele direito sancionatório. A conformação do contraditório em cada um daqueles procedimentos assume, assim, manifestações diversas que se prendem com a estrutura dos diferentes procedimentos”. Por força do disposto no artigo 41º, nº 1 do RGCO, que tem por epígrafe «direito subsidiário», sempre que o contrário não resulte deste diploma, “são aplicáveis, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal”. Decorre deste dispositivo a afirmação de que o Código de Processo Penal é direito subsidiário relativamente ao processo das contraordenações, o que pressupõe o recurso às soluções normativas daquele código sempre que se constate a inexistência de solução própria nos quadros do regime específico das contraordenações. A importação das soluções daquele código não é, contudo, direta, devendo passar sempre que necessário por um processo de adaptação aos princípios e às soluções processuais próprias do Direito das Contraordenações, de forma a salvaguardar a harmonia do processo e a afastar disjunções que podem afetar a aplicação do direito. Nas situações em que se constate a necessidade de recorrer às soluções do direito subsidiário impõe-se, pois, ao intérprete o cuidado de avaliar previamente as soluções do processo penal e a sua articulação com as especificidades do processo das contraordenações, de forma a respeitar os valores acima referidos, em conformidade com o comando legal “devidamente adaptados”, constante daquela norma “eventualmente reconstruídos para além da sua literalidade de forma a respeitarem a organização, os valores e as finalidades do regime processual e substantivo do DMOS”[2]. Só através deste processo de adaptação é possível salvaguardar a autonomia do processo das contraordenações face ao processo penal e respeitar os princípios e os valores que inspiram as especificidades das soluções processuais que consagra. Sendo comum referir-se a estrutura do processo contraordenacional como correspondendo a duas fases distintas, uma administrativa e outra judicial, não é, porém, adequado fazê-las corresponder ao processo penal, identificando-as, designadamente, com as fases de inquérito e de julgamento. De facto, concebido o Direito das Contraordenações como um instrumento de intervenção administrativa de natureza sancionatória no sentido de dar maior eficácia à ação administrativa, o núcleo fundamental dos poderes sancionatórios, quer ao nível da iniciativa processual, quer ao nível decisório propriamente dito, é atribuído à Administração, relegando a intervenção judiciária para um nível de subsidiariedade. Incumbe deste modo à Administração o conhecimento das infrações e o respetivo sancionamento, sendo os tribunais chamados apenas a intervir pela via do recurso de impugnação, em caso de discordância dos condenados relativamente às decisões proferidas, em primeiro nível, pela Administração. Os tribunais intervêm igualmente em sede de execução das coimas emergentes das decisões condenatórias, quando não sejam pagas voluntariamente, e em caso de discordância de medidas de natureza transitória tomadas pela Administração ao longo do processo (artigo 55º do RGCO). Costuma falar-se em fase administrativa do processo para designar a intervenção administrativa no mesmo – que vai da notícia da infração à decisão propriamente dita, prevista no artigo 58º do RGCO – e em fase do recurso de impugnação, para designar o conjunto de atos processuais que vão da interposição do recurso à decisão do mesmo nos tribunais (artigos 62º e ss. daquele regime). Na fase administrativa do processo relevam três conjuntos de atos relevantes na ordenação do processo. Assim, um primeiro momento do processo que vai da notícia da infração ao cumprimento do artigo 50º; os atos subsequentes à intervenção prevista nesta norma agrupam uma segunda fase do processo, seguindo-se, por último, a decisão final[3]. As autoridades administrativas assumem, deste modo, as tarefas inerentes ao impulso processual que no Código de Processo Penal estão a cargo do Ministério Público, mas incumbe-lhes igualmente a competência decisória do processo. De facto, conforme referem Figueiredo Dias e Costa Andrade, “O processo administrativo de carácter sancionatório referente às contraordenações é, neste sentido, uno e comandado por uma única entidade: em regra um ente administrativo”[4]. A dimensão administrativa do processo, vulgarmente designada por fase administrativa, não pode deste modo ser concebida como as fases preliminares de um processo penal, onde o recurso de impugnação ocuparia o espaço que o processo penal atribui à audiência de julgamento. Aquela fase enquadra o exercício dos poderes sancionatórios da administração pública de modo pleno, sendo as decisões proferidas exequíveis, caso não sejam impugnadas, circunstância que tem particular relevo na determinação da dimensão do contraditório exigível para este procedimento. O processo das contraordenações não visa deste modo selecionar de acordo com critérios predefinidos os casos que são submetidos a julgamento perante um tribunal, o que é a função das fases preliminares (inquérito e instrução) do processo penal. Também não é possível equiparar a fase inicial do processo, até ao cumprimento do artigo 50º do RGCO, ao inquérito do processo penal comum, e a fase subsequente ao cumprimento daquele dispositivo, como uma forma de instrução com o sentido que aquela fase têm no contexto das fases preliminares do processo penal. Embora na fase inicial se proceda a uma recolha das provas que existem sobre o facto potencialmente integrador de uma contraordenação e nesse sentido tem alguma semelhança com o inquérito, o cumprimento do artigo 50º do RGCO não assume no contexto do processo a natureza de um ato decisório relativo à submissão a julgamento perante um tribunal. Do mesmo modo, o momento do processo posterior ao cumprimento daquele dispositivo não pode ser entendido como uma forma de impugnação da decisão acusatória. Esta realidade projeta-se na ponderação exigida pelo artigo 41º, nº 1, do RGCO para a adequação das normas próprias do processo penal ao processo das contraordenações, criando particulares dificuldades na transposição de soluções próprias do processo penal para esta forma de processo. Neste contexto, é particularmente relevante que ao arguido seja dada a oportunidade de se pronunciar sobre os factos que lhe são imputados – o que corresponde ao exercício do direito de defesa previsto no artigo 50º do RGCO. O Tribunal Constitucional, no Acórdão nº 573/2011, de 15.11.2011, pronunciou-se a propósito da questão, nos seguintes termos: “O Tribunal Constitucional tem vindo a salientar que, no domínio do processo contraordenacional, não se verifica uma estreita equiparação entre esse ilícito e o ilícito criminal, face à menor ressonância ética do primeiro, o que o subtrai às mais rigorosas exigências de determinação válidas para o ilícito penal. A propósito da crescente aproximação do direito contraordenacional ao direito penal, Frederico de Lacerda da Costa Pinto salienta que o essencial é a existência de uma dogmática própria que podendo acolher os contributos da dogmática penal não se limite contudo a uma importação acrítica de regimes e figuras (Frederico Lacerda da Costa Pinto, in “O ilícito de mera ordenação social e a erosão do princípio da subsidiariedade da intervenção penal”, Direito Penal Económico e Europeu/Textos Doutrinários, p. 209 e segs). Quanto ao direito de audição e defesa do arguido, Figueiredo Dias salienta o princípio do contraditório e da audiência, no sentido da “oportunidade conferida a todo o participante processual de influir, através da sua audição pelo tribunal, no decurso do processo (…)” (Direito Processual Penal, I, 1974, p. 153). Com efeito, se «não é permitida a aplicação de uma coima [...] sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contraordenação que lhe é imputada e sobre a sanção [...] em que incorre» (artigo 50º do regime geral das contraordenações), a concretização da «forma» e do «prazo razoável» de se assegurar esse «direito de audição do arguido» não poderá prescindir dessa audiência, já que «os preceitos reguladores do processo criminal» não preveem uma «decisão condenatória», ao cabo do «inquérito». Na situação em apreço, no que respeita ao princípio do contraditório, a sua violação só ocorreria quando as partes ficassem impossibilitadas de controlar as questões colocadas ou suscitadas no processo, o que não sucedeu. O artigo 50º do RGCO apenas exige que sejam comunicados aos arguidos os factos que lhe são imputados, a respetiva qualificação jurídica e sanções em que incorrem, não impondo que a aludida notificação contenha a alusão às provas tidas em conta pela autoridade administrativa e que sustentam a imputação que lhes é dirigida. No entanto, tais obrigações legais referem-se às comunicações que se podem ter como essenciais de modo a que seja assegurado o direito de defesa. Com efeito, sem o acesso a tais informações, não poderiam os arguidos lançar mão, em termos substantivos, das garantias de defesa previstas na Constituição. Também o Assento nº 1/2003 do STJ defendeu que a notificação efetuada à sombra do mencionado artigo 50º, deve fornecer os elementos necessários para que o arguido fique a conhecer a totalidade dos aspetos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito, não se retirando, no entanto, de tal aresto a exigência de que tal notificação deva ser acompanhada da indicação das provas que sustentam a decisão da autoridade administrativa. Saliente-se que, na situação em apreço, os arguidos não foram impedidos de aceder ao processo, consultando-o, tendo exercido o seu direito a serem ouvidos e a defenderem-se, donde se conclui, igualmente, pelo respeito do seu direito de defesa.” O exercício do direito de defesa na fase administrativa do processo, como decorre do que se vem dizendo, corresponde não apenas à possibilidade de se pronunciar sobre o objeto do processo, mas de intervir no mesmo, designadamente, aportando elementos de prova suscetíveis de influir na decisão a proferir pela autoridade administrativa – correspondendo-lhe o direito a um exame efetivo dos argumentos e dos meios probatórios oferecidos. No caso dos autos, à arguida foi efetivamente dada a oportunidade de se pronunciar sobre a contraordenação que lhe era imputada, o que fez, expondo os argumentos que, em seu entender, impunham que se considerasse não verificada a contraordenação referida no auto de notícia, e solicitando a inquirição de duas testemunhas (uma delas o seu legal representante, como veio a verificar-se mais tarde). A autoridade administrativa, considerando que a defesa da arguida se reportava apenas a questões jurídicas – a qualificação do estabelecimento como discoteca ou similar – entendeu desnecessária a inquirição de tais testemunhas, o que fez constar, expressamente, do «Relatório Final» do processo. Como resulta do disposto no artigo 54º, nº 2 do RGCO, é a autoridade administrativa que procede à investigação e instrução do processo, não estando obrigada a realizar todas e quaisquer diligências de prova que sejam requeridas pelo arguido, embora deva fundamentar a respetiva rejeição, em obediência ao princípio da legalidade que vincula todo o processo – neste exato sentido, vd. os acórdãos do Tribunal da Relação de Évora de 06.11.2018, no processo nº 22/18.5T8ETZ.E1 (relator: Des. José Proença da Costa), do Tribunal da Relação de Guimarães de 11.02.2019, no processo nº 861/18.7T9BGC.G1 (relatora: Des. Teresa Coimbra) e do Tribunal da Relação do Porto de 09.12.2020, no processo nº 685/20.1T8PFR.P1 (relator: Des. José Carreto), todos acessíveis em www.dgsi.pt. Ora, como resulta do que acima se descreveu, a autoridade administrativa, no processo em apreço, efetivamente declarou a razão pela qual entendia desnecessária a inquirição pretendida pela arguida – pode discordar-se da fundamentação que aduziu ou criticar o facto de tal decisão não ter sido proferida em despacho autónomo (mas integrada na proposta de decisão final), mas não pode afirmar-se que essa fundamentação se encontra ausente. Acresce que, se aceitarmos que, na condução da investigação e instrução do processo, o paralelismo possível com o processo penal se reporta à fase de inquérito, há que dizer que o Ministério Público também não está vinculado à produção de todas as provas requeridas pelo arguido, só podendo ser-lhe censurada a omissão de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade (ou a falta da prática de atos legalmente obrigatórios). E mesmo o Tribunal, na fase de julgamento, apenas está obrigado a produzir (oficiosamente ou a requerimento) os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa (cf. artigo 340º, nº 1 do Código de Processo Penal), devendo recusar tudo o que for supérfluo, irrelevante ou dilatório. Assim, em linha com a jurisprudência já citada, que se afigura razoavelmente pacífica, tal omissão no processo de contraordenação – quando estejam em causa diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade – é suscetível de configurar a nulidade prevista no artigo 120º, nº 2, alínea d) do Código de Processo Penal, cujo conhecimento pelo Tribunal está dependente de arguição pelo interessado, nos termos previstos no nº 3 do citado artigo 120º. No caso, ao contrário do referido pelo Ministério Público nas suas alegações de recurso, a arguida não invocou a referida nulidade no recurso de impugnação judicial – a «nulidade» a que se referiu nas conclusões do seu recurso reporta-se à «falta de fundamentação» da decisão administrativa condenatória, que reconduziu à violação da alínea c) do nº 1 do artigo 58º do RGCO (embora tenha convocado, depois, as disposições aplicáveis às nulidades da sentença judicial). Ou seja: tratando-se de nulidade dependente de arguição, a verdade é que não foi arguida – e, por isso, não podia ter sido conhecida pelo Tribunal, devendo considerar-se sanada. Pode, aliás, argumentar-se, como faz o Ministério Público que, ao arrolar prova testemunhal (e documental) com o recurso de impugnação e ao requerer (e obter) a inquirição do seu legal representante em sede de audiência de julgamento, a arguida está, afinal, a prevalecer-se da «faculdade a cujo exercício o ato anulável se dirigia», pelo que, também por esta via, deverá considerar-se sanada a nulidade cometida, em conformidade com o disposto no artigo 121º, nº 1, alínea c) do Código de Processo Penal. Aqui chegados, há que abordar o «elefante na sala»: a decisão recorrida, tendo concluído pela violação do direito de defesa da arguida inscrito no artigo 50º do RGCO (por não terem sido ouvidas, na fase administrativa do processo, as pessoas que indicou na sua resposta escrita), não qualificou tal omissão juridicamente – não esclareceu se entendia que a mesma configura nulidade, se essa eventual nulidade seria insanável, ou sendo sanável, porque razão não estaria sanada. Também não indicou as disposições legais de onde extraiu a consequência jurídica da referida omissão – no caso, a «procedência» da impugnação e a «anulação» da decisão. É verdade que o artigo 64º do RGCO, que se reporta à decisão por despacho – aplicável nos casos em que o juiz não considera necessária a realização de audiência de julgamento, designadamente, por considerar que a prova recolhida na fase administrativa do processo é bastante para a decisão[5] – estabelece que “O despacho pode ordenar o arquivamento do processo, absolver o arguido ou manter ou alterar a condenação” (nº 3). E que “Em caso de manutenção ou alteração da condenação deve o juiz fundamentar a sua decisão, tanto no que concerne aos factos como ao direito aplicado e às circunstâncias que determinaram a medida da sanção” (nº 4) e “Em caso de absolvição deverá o juiz indicar por que não considera provados os factos ou por que não constituem uma contraordenação” (nº 5). Por outro lado, não se considerando possível decidir por despacho – como aconteceu no caso vertente – a decisão a proferir ocorre no termo da audiência de julgamento, devendo corresponder a uma sentença, com as características estabelecidas no artigo 374º do Código de Processo Penal (que constitui direito subsidiário do direito das contraordenações e também do processamento das transgressões e contravenções, aplicável em conformidade com o disposto no artigo 66º do RGCO – cf. artigo 41º, nº 1 do RGCO e artigo 13º, nº 7 do Decreto-Lei nº 17/91, de 10 de janeiro). Ora, a sentença, em processo penal, contém, sob pena de nulidade “a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal” (cf. artigos 374º, nº 2 e 379º, nº 1, alínea a), ambos do Código de Processo Penal). No caso dos autos, a sentença não contém qualquer indicação quanto aos factos provados ou não provados, nem qualquer exame crítico dos meios de prova (apesar de ter sido proferida após produção de prova em audiência de julgamento) e é de tal modo concisa na exposição dos motivos de direito que fundamentam a decisão, que nem sequer caracteriza o vício que terá encontrado no procedimento administrativo contraordenacional. Não pode deixar de concluir-se pela respetiva nulidade, por falta de fundamentação. Mesmo que, extrapolando a partir do teor do texto da decisão, se entenda que o Tribunal a quo efetivamente considerou verificada a nulidade acima apontada, uma vez que a mesma deve considerar-se sanada, não podendo o Tribunal conhecer dela oficiosamente, tem de concluir-se que, ao fazê-lo, incorre também em nulidade, nos termos previstos pelo artigo 379º, nº 1, alínea c) do Código de Processo Penal. Esta nulidade, se bem que difusamente invocada nas alegações do Digno recorrente, não pode ainda assim deixar de ser conhecida oficiosamente por este Tribunal de recurso. Na verdade, como se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 13.03.2007, no processo nº 2453/06-1 (relator: Des. António João Latas), também acessível em www.dgsi.pt, “É igualmente de conhecimento oficioso a nulidade de sentença a que se refere o MP na sua resposta em 1ª instância (art. 379º nº 1 a) CPP), pelo que cumpre apreciar a mesma. Na verdade, como pode ler-se no Ac RP de 30.03.05, « … não restam dúvidas que as nulidades de sentença enumeradas no n.º 1 desse artigo são oficiosamente cognoscíveis, uma vez que têm regime próprio e diferenciado do regime geral das nulidades dos restantes actos processuais, estabelecendo-se no n.º 2 do mesmo que as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso (cfr. Acórdão do S.T.J, de 31-05-2001, SASTJ, n.º 51, 97, citado por Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal Anotado e Comentado,13ªEdição-2002, pág. .749).» Ao alterar a redacção do nº2 do art. 379º, a Lei 58/98 de 25 de Agosto terá pretendido deixar claro o entendimento do legislador em duas matérias que tinham dividido a jurisprudência: a possibilidade de arguição da nulidade de sentença na motivação de recurso (tal como entendera o Acórdão do STJ para Fixação de Jurisprudência nº 1/94, de 2.12.93, DR I-A de 11.02.94) e o conhecimento oficioso da nulidade, ou seja, o seu conhecimento em recurso mesmo que não arguida (pois só assim constitui uma verdadeira alternativa .- arguidas ou conhecidas em recurso), contrariamente ao entendimento que obteve vencimento no Acórdão do STJ para Fixação de Jurisprudência de 6 de Maio de 1992, DR I-A de 6.8.92, o qual caducou[6] por efeito da referida Lei 58/98.” No mesmo sentido, vd., ainda, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.01.2010, no processo nº 274/08.9JASTB.L1.S1 (relator: Cons. Pires da Graça), e o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 09.12.2020, no processo nº 24/19.4GAVPA.G1 (relatora: Des. Teresa Coimbra), ambos acessíveis em www.dgsi.pt. Decorre, pois, do disposto no artigo 379º, nº 2 do Código de Processo Penal, que “As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no nº 4 do artigo 414º”. Por seu turno, o artigo 75º do RGCO prevê, no seu nº 2, que “A decisão do recurso poderá: a) Alterar a decisão do tribunal recorrido sem qualquer vinculação aos termos e ao sentido da decisão recorrida, salvo o disposto no artigo 72º-A; b) Anulá-la e devolver o processo ao tribunal recorrido”. No caso, uma vez que não foram consignados na sentença os factos considerados provados e não provados, nem existe registo da prova produzida em audiência de julgamento, é de todo inviável suprir neste Tribunal de recurso a nulidade que afeta a sentença, devendo o processo ser devolvido ao Tribunal recorrido, a fim de, analisada a prova perante si produzida, proferir decisão que conheça do objeto do processo. * IV – Decisão Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, anular a sentença recorrida, determinando-se a devolução dos autos ao tribunal recorrido, a fim de proferir sentença que fixe os factos provados, em conformidade com a prova produzida no julgamento e conheça a final do objeto do processo. Sem custas. * Lisboa, 09 de novembro de 2021 (texto processado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94º, nº 2 do Código de Processo Penal) Sandra Oliveira Pinto Simões de Carvalho _______________________________________________________ [1] Os direitos de audição e de defesa no processo das contraordenações - Art. 32º, nº 10 da Constituição da República, publicado em e-book do Centro de Estudos Judiciários, Coleção Formação Inicial, Contraordenações Laborais (2ª edição), pág. 41 e ss., acessível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/trabalho/Contraordenacoes_Laborais_2edicao.pdf?id=9&username=guest [2] Costa Pinto, “Acesso de Particulares a Processos de Contraordenação Arquivados”, Estudos em Homenagem à Professora Doutora Isabel de Magalhães Colaço, Almedina, Volume II, pág. 618. [3] Cf. Leones Dantas, loc. cit., pág. 44. [4] “Poderes de supervisão, Direito ao Silêncio e Provas Proibidas”, Supervisão, Direito ao Silêncio e Legalidade da Prova, Almedina, 209, pág. 50. [5] A este propósito, vd., com interesse, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20.02.2020, no processo nº 1137/19.8T9PDL.L1-9 (relatora: Des. Maria do Carmo Ferreira), em www.dgsi.pt. [6] Assim, expressamente, o Ac RE de 17.10.2006, acessível em www.dgsi.pt. No sentido do conhecimento oficioso podem ver-se ainda, por todos, os Ac STJ de 2.02.2005, CJ STJ I/p. 189 e 9.11.05, CJ STJ T. III/p. 209 e Ac RL de 13.01.2005, CJ XXX - I/p. 123. Entre muitos outros acórdãos, das Relações e do STJ, que implicitamente entendem serem as nulidades de sentença de conhecimento oficioso, ao conhecer das mesmas sem prévia arguição, podem ver-se os Ac STJ de 16.11.05, CJ STJ T. III/p 210 e de 11.01.06, CJ STJ I/p. 160. |