Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4316/20.1T8LSB.L1-4
Relator: ALDA MARTINS
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO LABORAL
ASSÉDIO
INFRACÇÃO DE EXECUÇÃO PERMANENTE
OBJECTO DO PROCESSO
NE BIS IN IDEM
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/05/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1 - Na manutenção duma conduta susceptível de constituir ilícito contraordenacional, é a “renovação de resolução criminosa” que, por determinar uma “pluralidade de intenções criminosas”, permite a “consideração da existência de crimes autónomos”.
2 - O objecto do processo é constituído por todos os factos praticados pelo arguido até decisão final que directamente se relacionem com o “pedaço da vida” apreciado e que com ele formam uma unidade de sentido, razão pela qual, os factos que não tenham sido considerados, devendo tê-lo sido, não podem ser posteriormente apreciados, sob pena de violação do princípio ne bis in idem.
3 - Tendo o presente processo por base auto de notícia levantado em 16/07/2018, com fundamento na verificação de que, até 8/02/2018, a arguida mantinha a situação de inactividade de 4 trabalhadoras que decidira implementar em 2016 ou 2017, conforme os casos, sem imputação à arguida de novas e diferentes condutas ou, ao menos, da renovação da “resolução criminosa” relativamente à que vinha mantendo, deve considerar-se abrangido pela decisão administrativa definitiva e executória de 3/09/2018, com força semelhante à do caso julgado material, aquele “pedaço de vida” decorrido até 8/02/2018, que mais não era do que o prolongamento no tempo das infracções de execução permanente, nessa data não cessada, que constituíam o objecto daquela decisão administrativa de 3/09/2018.
4 - É irrelevante que os dois processos se reportem a diferentes tipos legais de contra-ordenações, uma vez que o art.º 29.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa, ao garantir que ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime, refere-se à identidade fáctica dum comportamento, independentemente da qualificação legal (nomen iuris) atribuída, sem prejuízo de se dever atender à diversidade de bens jurídicos lesionados, se for o caso (questão que não se coloca na situação em apreço).
 (sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório
O presente recurso foi interposto pelo MINISTÉRIO PÚBLICO, por não se conformar com a sentença que julgou procedente o recurso de impugnação judicial apresentado pela arguida XX, S.A. e, em consequência, a absolveu da prática de quatro infracções previstas no n.º 4, por referência ao n.º 1, do art.º 29.º do Código do Trabalho, punidas pelo art.º 554.º, n.º 4, al. e) do mesmo diploma legal, pela qual a Autoridade para as Condições de Trabalho lhe aplicara uma coima única no valor 49.368,00€.
Formula as seguintes conclusões:
«1.ª Para a douta sentença ora recorrida os factos considerados provados nos presentes autos, descritos nas alíneas G) a Z), foram valorados na proposta de decisão a que se refere o Processo contra-ordenacional anterior sob o nº 171700576 com base na qual foi proferida a decisão nesse processo por violação do dever de ocupação efetiva, consubstanciando situação que, para o Tribunal “a quo” impede a possibilidade do conhecimento de tais factos como fundamentadores da prática pela Arguida das infrações por assédio de que vem acusada nos presentes autos, sob pena de violação do principio non bis in idem, circunstância esta que determinou a absolvição da Arguida com fundamento em invocada proibição da dupla valoração do facto juridicamente valorado em observância do princípio non bis in idem.
2. Ao arrepio do entendimento preconizado pela douta sentença do Tribunal “a quo”, considera-se que não há identidade de objeto do processo (em razão da diferente natureza dos bens jurídicos protegidos nos tipos legais em causa) quando Arguida/Recorrente procedeu, como documentam os presentes autos, à manutenção duma situação prolongada (de inatividade) no tempo de quatro Trabalhadoras, depois de ter sido alertada e condenada por tal comportamento a que se alude no Processo contraordenacional anterior sob o nº 171700576 e respetivos apensos, continuando tal prática contraordenacional no tempo, i. é, com recurso ao mesmo comportamento, nos moldes em que o havia feito anteriormente.
3. Como se refere no Acórdão da Relação de Lisboa de 14.09.2011 de que foi Relatora a Ex.mª Juíza Desembargadora MARIA JOÃO ROMBA, «(…) Existe assédio moral ou mobbing quando há aspetos na conduta do empregador para com o trabalhador (através do respetivo superior hierárquico) que, apesar de, quando analisados isoladamente, não poderem ser considerados ilícitos, quando globalmente considerados, no seu conjunto, dado o prolongamento no tempo (ao longo de vários anos), são aptos a criar no trabalhador um desconforto e mal-estar no trabalho que ferem a respetiva dignidade profissional, integridade moral e psíquica, a tal ponto que acabaram por ter reflexos não só na prestação laboral (com a desmotivação que causam), mas também na própria saúde, levando-o a entrar numa situação de acompanhamento psiquiátrico, a conselho da própria médica do trabalho». negrito e sublinhado nossos
4. Para o Supremo Tribunal de Justiça, através do Acórdão de 11-09-2019, proferido no processo n.º 8249/16.8T8PRT.P1.SI, de que foi Relator o Ex.mº Juiz Conselheiro JÚLIO GOMES (in www.dgsi.pt ) no caso de assédio o “(…) bem jurídico protegido é o direito à integridade moral do trabalhador, por a sua verificação estar sujeita à constatação de sentimentos de humilhação, degradação e aviltamento”.
5. Podendo enunciarem-se comportamentos que consubstanciam o fenómeno de assédio, designadamente, através da promoção do isolamento do Trabalhador, as transferências vexatórias, a desocupação, a desvalorização sistemática do trabalho realizado, o empobrecimento funcional das tarefas (através da atribuição de funções estranhas ou desadequadas e da distribuição de trabalhos inúteis ou não condizentes com a categoria profissional), como também o “esvaziamento de funções do Trabalhador”, ou seja, o colocar o Trabalhador “na prateleira”, em violação do direito/dever de ocupação efetiva.
6. Uma situação de inatividade prolongada provocada pelo “esvaziamento de funções” afeta o Trabalhador de uma forma negativa, não apenas no que se refere a interesses de ordem material, uma vez que a efetiva prestação do trabalho contribui para a valorização do Trabalhador no mercado de trabalho, enriquecendo o «património profissional» de cada um, como também e não menos importante, afetam no que concerne a interesses de ordem não patrimonial, dado que a não atribuição de funções ao Trabalhador, a sua segregação ou exclusão do local de trabalho irá, inevitavelmente, afetar psicologicamente o Trabalhador, podendo, de resto, equiparar-se a dispensa do dever de assiduidade à “colocação na prateleira”, consubstanciando, assim, também, uma forma de assédio ao Trabalhador.
7. A proibição prevista na alínea b) do n.º 1, do artigo 129.º do Código do Trabalho (dever de ocupação efetiva), mais que um direito do Trabalhador, projeta-se enquanto dever do empregador, cabendo-lhe a obrigação de proporcionar ao trabalhador a possibilidade do exercício da atividade a que se obrigou pelo contrato de trabalho.
8. Há violação do dever de ocupação efetiva, sempre que ao Trabalhador seja imposta pela entidade empregadora uma inatividade de forma injustificada, ou quando deixa de lhe proporcionar as condições à efetiva realização das tarefas compreendidas no conteúdo funcional da categoria profissional atribuída ao Trabalhador, desaproveitando, assim, a atividade a que aquele se obrigou e que pretende prestar condignamente, de forma a realizar-se pessoal e socialmente.
9. Na situação dos presentes autos, é possível verificar que quatro concretas Trabalhadoras da empresa Arguida encontravam-se sem colocação, ou seja, sem ocupação efetiva compatível com a sua categoria e qualificação profissional, não lhes sendo atribuídas quaisquer funções e em situação de dispensa de assiduidade, a saber:
- A trabalhadora AA que, em 28-11-2016, foi colocada na Unidade de Suporte /UACA, e desde essa data sem tarefas atribuídas, em total inatividade;
- A trabalhadora BB que foi para a referida Unidade de Suporte em 02-01-2017, sem tarefas distribuídas desde essa data, numa situação de inatividade;
- A trabalhadora CC que também foi colocada na referida Unidade de Suporte desde 01-07-2016, não tendo desde essa data, tarefas distribuídas e encontrando-se numa situação de inatividade;
- E a trabalhadora DD que, em 20-06-2016, foi igualmente para a referida Unidade de Suporte/UAC4, sem tarefas distribuídas, desde essa data.
10. Nos presentes autos, estão em causa situações de assédio (previstas punidas pelo artigo 29.º, n.ºs 1, 2, e 4, do Código do Trabalho e artigo 554.º, nº 4, al. e), do mesmo diploma legal) que consubstanciam a prática de contra-ordenação traduzida na manutenção de uma situação prolongada no tempo de incerteza quanto ao percurso profissional das referidas quatro Trabalhadoras – todas com antiguidades elevadas e carreiras ligadas a determinadas áreas da empresa Arguida – bem como encontrando-se em situação de inatividade e/ou dispensa de presença em qualquer dos locais de trabalho da empresa Recorrente/Arguida, permanecendo em local percecionado/conotado pela generalidade dos Trabalhadores da empresa Arguida com uma imagem negativa, a saber, a Unidade de Suporte/UAC4 8 Unidade de Apoio Corporativo 4, sem que a empresa Arguida tivesse manifestado a vontade de alterar tal situação – o que foi verificado à data do levantamento do auto (16 de julho de 2018) no Processo contra-ordenacional 171800365 a que se referem os presentes autos.
11. Não pode ser desconsiderada a violação do bem jurídico em causa nos presentes autos respeitante às situações de assédio traduzidas na violação do direito à integridade moral das mencionadas Trabalhadoras em razão da verificação da sua sujeição, demonstrada pela realidade objetiva e reiteradamente vivida, a sentimentos de humilhação, degradação e aviltamento, sendo que os factos de que a Recorrente/Arguida vem agora acusada, são os factos constatados pelo auto de notícia levantado no dia 16/07/2018.
12. No assédio o elemento caracterizador distintivo é o da reiteração da conduta, i. é, o caráter repetitivo da conduta da Arguida, visto que é necessário que o comportamento lesivo se repita, ou seja, que se prolongue no tempo, que seja persistente, não podendo deixar de se incluir, como exemplo flagrante dessa conduta, a concreta injustificada e reiterada não ocupação efetiva das Trabalhadoras acima identificadas enquanto expressão significativa do cometimento do fenómeno de assédio laboral.
13. No processo de contra-ordenação n.º 171700576 anterior e em que a Recorrente/Arguida veio a ser condenada por decisão administrativa proferida em 03/09/2018 por violação do dever de ocupação efetiva (artigo 129.º, n.º 2, por referencia ao n.º 1, alínea b) do Código do Trabalho), tal infração resultou do facto de não ter sido encontrada qualquer causa objetiva ou interesse legítimo da Arguida/Recorrente que justificasse a não ocupação efetiva das identificadas Trabalhadoras, estando as mesmas numa situação de não atribuição de funções.
14. O bem jurídico tutelado na violação do dever de ocupação efetiva é o direito à ocupação efetiva do Trabalhador que, para a entidade empregadora, corresponde a um dever de ocupação efetiva e que se traduz num dever de diligencia de conservar o Trabalhador condignamente ocupado, i. é, é um dever para o empregador de viabilizar ao trabalhador o exercício da sua atividade.
15. Não estamos perante o mesmo bem jurídico protegido visado no âmbito dos dois processos por contraordenação sindicados: o primeiro (sob n.º 171700576) por violação do dever de ocupação efetiva, e o processo a que se referem os presentes autos (n.º 171800365), por motivo de assédio.
16. Sempre importará averiguar se a factualidade em ambos os processos contra-ordenacionais ora em causa formam uma mesma unidade ou se, pelo contrário, expressam a cisão ou a separação do facto jurídico-normativo.
17. Analisada a factualidade em ambos os processos, constata-se não se estar em ambos diante da lesão contínua e progressiva do mesmo bem jurídico, pois que empresa Arguida não cessou a sua atividade contra-ordenacional, antes renovou-a, renovando a sua resolução inicial, exprimindo o significado de se estar diante de duas contraordenações distintas, i. é, autónomas entre si.
18. Conforme resulta da douta sentença - cfr. I) a Z) da factualidade provada - que, desde 28/11/2016 para a Trabalhadora AA, desde 02-01-2017 para a Trabalhadora BB, desde 01-07-2016 para a Trabalhadora CC, e desde 20-06-2016 para a Trabalhadora DD, que tais Trabalhadoras, com longas carreiras na empresa Arguida, eram alvo de comportamentos indesejados, não lhes estando atribuídas pela empresa Arguida quaisquer tarefas ou funções relacionadas com as respetivas categorias profissionais, não desempenhando qualquer tipo de atividade profissional, encontrando-se em situação de humilhação, degradação e de aviltamento, comprometendo-se, pelo prolongar no tempo até o levantamento de um novo Auto de Notícia datado de 16/07/2018 (que originou os presentes autos), o seu direito constitucional à integridade moral.
19. Volvidos mais de dois anos entre os dois autos por contraordenação, não tendo a aqui Recorrente/Arguida cessado o seu comportamento contra-ordenacional por violação do dever de ocupação efetiva das identificadas Trabalhadoras, verifica-se que a mesma podia e devia ter mudado o seu comportamento, deixando de obstar injustificadamente ao dever de ocupação efetiva em que as mesmas se encontravam, desde a data da primeira visita inspetiva de 30/05/2017, visto que se encontravam há, pelo menos, um ano em tal situação, segundo as datas de colocação das referidas funcionárias na Unidade de Suporte/UAC4.
20. Em 16/07/2018 ao ser levantado um outro Auto de Notícia por assédio por se averiguar que a Recorrente/Arguida continuava, em 16/07/2018, a manter as identificadas quatro Trabalhadoras em situação de inatividade prolongada, renovando a sua resolução anterior, provocada pelo esvaziamento de funções das referidas Trabalhadoras, dispensando-as de assiduidade, mostra-se inequívoco estar-se duma diferenciada realidade, que consubstancia infração distinta – o assédio.
21. No assédio, as necessidades de prevenção geral de integração da norma e de proteção de bens jurídicos são prementes, pois que o sentimento jurídico da comunidade apela a uma eliminação deste fenómeno e a uma inequívoca censura que dissuada este tipo de infração – sobretudo se atendermos que se trata, como sucede no caso da empresa Arguida, de um empresa de grande dimensão, com milhares de Trabalhadores que tem, de resto, a obrigação de cumprir as prescrições relativas à prestação do trabalho sem constrangimentos, impondo-se, portanto, punir todos aqueles que cometem tais práticas ilícitas, com efeitos reconhecidamente nefastos para a saúde e vida dos Trabalhadores.
22. A Recorrente/Arguida, não obstante, ter conhecimento de que lhe fora instaurado um processo contraordenacional pela prática de infração por violação do dever de ocupação efetiva (prevista e punida pelo artigo 129.º, nº 2, por referência ao n.º 1, alínea b), do Código do Trabalho) e de, na sequência desse mesmo processo ter então sido condenada, porém, não se absteve de continuar tal conduta, renovando-a, i. é, renovando a sua resolução anterior, mantendo as identificadas Trabalhadoras, todas com antiguidades elevadas, numa situação já prolongada no tempo de incerteza quanto ao seu percurso profissional, mantendo-as em inatividade, dispensando-as da presença em qualquer dos locais de trabalho da empresa Arguida, fazendo com que as mesmas permanecessem em local percecionado/conotado pela generalidade dos Trabalhadores da empresa Arguida com uma imagem negativa (Unidade de Suporte/UAC4), o que fez afetando a dignidade das Trabalhadoras visadas e criando junto das mesmas um ambiente intimidativo, humilhante, degradante ou desestabilizador, razão pela qual veio a mesma a ser condenada pela infração de assédio, prevista e punida pelo disposto conjugado nos artigos 29.º, n.ºs 1, 2 e 5, do Código do Trabalho e artigo 554.º, nº 4, alínea e), do mesmo diploma legal.
23. Em suma, considera-se que não estamos perante uma mesma infração contraordenacional mas, ao invés, diante de duas infrações: a primeira resultante da violação do dever de ocupação efetiva; e a segunda, a que os presentes autos dizem respeito, motivada pela situação de verdadeiro assédio perpetrado pela Arguida/Recorrente sobre as quatro Trabalhadoras identificadas nestes autos, não podendo, como faz a douta sentença, aceitarse que se está diante de uma situação de dupla valoração do mesmo facto jurídico pois que os factos em causa nos presentes autos não se mostram abrangidos pelos efeitos do caso julgado da decisão (administrativa) condenatória proferida no Processo contra-ordenacional anterior sob o nº 171700576, antes constituem a prática de contra-ordenações motivadas por assédio, previstas e punidas pelo disposto conjugado nos artigos 29.º e 554.º, n.º 4, alínea e), ambos do Código do Trabalho – razão pela qual, se entende, salvo o devido respeito pelo entendimento preconizado pelo Mmº Juiz do Tribunal “a quo”, não haver in casu violação ao princípio de non bis in idem.
24. Ao absolver a empresa Arguida, aceitando-se que se está diante de uma situação de dupla valoração do mesmo facto jurídico, salvo o devido e merecido respeito, incorreu o Mmº Juiz “a quo” em incorreta interpretação jurídica da factualidade dada como provada na presente ação, em violação do disposto conjugado nos artigos 29.º, n.ºs 1, 2 e 5, e 554.º, n.º 4, alínea e), ambos do Código do Trabalho, e bem assim do artigo 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa a contrario, impondo-se, assim, a revogação da decisão judicial ora recorrida substituindo-se por outra que, em face de toda a prova produzida, seja julgada improcedente, por não provada, a impugnação judicial, confirmando-se a decisão administrativa relativamente às contra-ordenações por assédio que foram imputadas à Arguida pela Autoridade para as Condições do Trabalho que lhe aplicou a coima única no montante de €49.368,00 e a empresa Arguida condenada ao pagamento dessa coima por violação do n.ºs 1 e 2 do artigo 29.º do Código do Trabalho.
Pelo exposto, a douta sentença recorrida deverá ser revogada de acordo com o que antecede, substituindo-se por outra que, considerando verificada a violação pela empresa Arguida do disposto no artigo 29º, n.ºs 1 e 2, do Código do Trabalho, conjugadamente com o disposto no n.º 5 do artigo 29.º e 554.º, n.º 4, alínea e), do mesmo diploma legal, face a toda a prova produzida, julgue improcedente a impugnação judicial relativamente às contra-ordenações por assédio ora em causa, confirmando-se a decisão administrativa impugnada e a Arguida condenada ao pagamento da coima única no montante de €49.368,00 pela prática de assédio em violação do estatuído nos n.ºs 1 e 2 do artigo 29.º do Código do Trabalho»
A arguida apresentou resposta ao recurso, pugnando pela sua improcedência, formulando as seguintes conclusões:
«1- Salvo o devido respeito, e que é muito, cumpre antes de mais referir que as conclusões do Digníssimo Sr. Procurador, padecem de vicio formal, uma vez que as mesmas correspondem a um mero repositório das suas alegações.
2- Contudo, e não se conformando o Digníssimo Procurador da sentença que absolve a XX, S.A., por estar impedido de conhecer os factos, sob pena de violação do princípio bis in idem, vem o mesmo recorrer da decisão.
3- Para tanto, o Sr. Procurador do Ministério Publico apresenta dois argumentos que sustentam as suas alegações, sendo que por um lado entende que os bens jurídicos em causa são distintos, e por essa razão podem ser julgados os mesmos factos, e por outro entende que estamos perante os mesmos factos, mas ocorridos em momentos diferentes.
4- Tais argumentos, não merecem provimento, pois a doutrina tem sido unânime na manifestação de que os factos não podem ser duplamente julgados e valorados, independentemente da valoração que seja atribuída.
5- No caso em apreço, não suscita duvidas de que os factos são precisamente os mesmos (inocupação de 4 trabalhadoras), e que foram ambos valorados para efeitos de condenação pela Autoridade Administrativa, violando o princípio bis in idem.
6- Quanto à questão temporal, no processo em crise ficou provado que os factos ocorreram a 08/02/2018, ao contrário do referido pelo Sr. Procurador, pelo que não relevam para os efeitos que pretende o Sr. Procurador do Ministério Publico.
7- Assim, considera-se que bem andou o Tribunal a quo, em decidir como decidiu, considerando que o que releva são os factos e não a valoração jurídica, pelo que deverão V. Exas, confirmar a sentença recorrida, fazendo assim a devida e costumada JUSTIÇA!»
Admitido o recurso pelo tribunal recorrido, subiram os autos a este Tribunal da Relação, onde o Ministério Público emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
Colhidos os vistos, teve lugar a conferência.
2. Objecto do recurso
De acordo com o art.º 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, aplicável ex vi art.º 50.º, n.º 4, do RCOLSS, o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
Assim, a única questão a decidir é a de saber se o princípio ne bis in idem obsta ao julgamento da arguida pelos factos a que se reportam os presentes autos.
3. Fundamentação de facto
Após audiência de julgamento, foram considerados provados os seguintes factos:
A) – Em 16/07/2018, foi levantado o auto de notícia de fls. 6 a 8 contra a arguida, ora impugnante, imputando-lhe a prática de quatro infracções previstas no n.º 4, por referência ao n.º 1, do art.º 29.º do CT e punida pelo art.º 554.º, n.º 4, al. e) do mesmo diploma legal.
B) - A arguida, ora impugnante, foi notificada, para os efeitos dos arts. 17.º e 19.º da Lei n.º 107/2009 de 14/09, em 24/10/2018.
C) - A arguida, ora impugnante, apresentou resposta escrita, nos termos expressos no articulado de fls. 36 a 47.
D) - Em 19/12/2019, foi elaborada a proposta de decisão de fls. 81 a 103 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzida.
E) - Por despacho da Subdirectora da Autoridade para as Condições de Trabalho, datado de 19/12/2019, foi proferida a decisão impugnada, a qual consta de fls. 104 dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzida, que aplicou à arguida, ora impugnante, uma coima única no montante de €49.368,00.
F) - A arguida, ora impugnante, foi notificada da decisão, referida em E), em 10/01/2020.
G) – No dia 30/05/2017, pelas 10h00, foi realizada visita inspectiva às instalações da arguida, ora impugnante, sitas na ....
H) – No decorrer da visita, referida em G), foram identificadas as seguintes trabalhadoras:
1 - AA, com a categoria de Consultor Sénior, nível 4;
2 - BB, Técnica Especialista nível 5;
3 - CC, Técnica Especialista nível 5;
4 - DD, com a categoria de Consultor de SAP - Enterprise Resource Planning, nível 2.
I) – Na altura, as ditas trabalhadoras não estavam a desempenhar qualquer tipo de actividade profissional.
J) – No referido local estavam disponíveis secretárias e cadeiras, para cada uma das trabalhadoras, com um computador (monitor, disco rígido, teclado e rato), encontravam-se igualmente à disposição impressoras, mas as referidas trabalhadoras não estavam a desempenhar qualquer função.
K) – A trabalhadora AA foi admitida em 01/08/1989, com a função de jurista, tendo a categoria de Consultor Sénior.
L) – Em 28-11-2016, foi colocada na Unidade de Suporte/UAC4 (Unidade de Apoio Corporativo 4).
M) – Desde essa data, a referida trabalhadora não tem tarefas distribuídas, mantendo-se a situação de inactividade, sem qualquer alteração, não se encontrando a desenvolver qualquer função relacionada com a sua categoria profissional.
N) – Tem contactado por escrito com os recursos humanos da arguida, ora impugnante, nomeadamente por mail, solicitando a colocação em posto de trabalho com funções compatíveis com a sua categoria, qualificações e experiência e a retoma do seu horário de trabalho anterior.
O) – No período de inactividade, a referida trabalhadora foi dispensada da assiduidade, o que a mesma não aceitou.
P) – A trabalhadora BB foi admitida em 1975, para a execução de funções de natureza administrativa, no núcleo em ....
Q) – Em 02-01-2017, foi colocada na Unidade de Suporte/UAC4 (Unidade de Apoio Corporativo 4) e desde essa data não tem tarefas distribuídas, não se encontrando a desenvolver qualquer função relacionada com a sua categoria profissional.
R) – No período de inactividade, a referida trabalhadora foi dispensada da assiduidade, situação que aceitou.
S) – A trabalhadora CC, foi admitida em 1991, tem a categoria profissional de Técnica Especialista nível 5 e desempenhava funções de Assistente de Costumer Care no DOI (Direcção de Operação e Infraestruturas).
T) – Em 01-07-2016, foi colocada na Unidade de Suporte/UAC4 (Unidade de Apoio Corporativo 4) e desde essa data não tem tarefas distribuídas, nem se encontrando a desenvolver qualquer função relacionada com a sua categoria profissional.
U) – A arguida, ora impugnante, convocou a trabalhadora para ir para o arquivo, cujas funções implicavam carregar caixotes, tendo a mesma recusado por problemas de saúde.
V) – A trabalhadora foi convocada pela impugnante para uma reunião onde lhe foi proposto trabalhar na Linha ..., o que não se chegou a concretizar.
W) – No período de inactividade, a referida trabalhadora foi dispensada da assiduidade, situação que aceitou.
X) – A trabalhadora DD foi admitida desde 2000, tem a categoria profissional Consultor de SAP - Enterprise Resource Planning, nível 2, desempenhava funções de Gestora de Processos de Negócio na DSI (Direcção de Sistemas de Informação).
Y) – Em 20-06-2016, foi colocada na Unidade de Suporte/UAC4 (Unidade de Apoio Corporativo 4).
Z) – Desde essa data e até 26-01-2018, não teve tarefas distribuídas, nem se encontrou a desenvolver qualquer função relacionada com a sua categoria profissional.
AA) – No ano de 2017, o volume de negócios da impugnante foi de € 2.130.888.266,00.
AB) – No processo de contra-ordenação n.º 171700576 e apensos, instaurado contra a impugnante na sequência da visita inspectiva levada a cabo pela ACT em 30/05/2017, foi elaborada, em 24/08/2018, a proposta de decisão cuja cópia consta de fls. 286 v.º a 309 v.º e de fls. 311 a 336 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzida.
AC) – No processo referido em AB), por despacho da Subdirectora da Autoridade para as Condições de Trabalho, datado de 03/09/2018, foi proferida decisão, cuja cópia consta de fls. 286 dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzida, que aplicou à arguida, ora impugnante, uma coima única no montante de €21.420,00.
O tribunal a quo fundamentou a decisão quanto à matéria de facto nos seguintes termos:
«Os factos provados assentam na análise crítica dos documentos e demais elementos dos autos, nomeadamente os referidos nas várias alíneas do probatório, bem como na análise crítica dos depoimentos das testemunhas inquiridas, melhor identificadas na acta da audiência de julgamento.»
Sendo certo que as testemunhas inquiridas foram a Inspectora do Trabalho que levantou o auto id. no ponto A), as 4 trabalhadoras id. no ponto H) e 2 trabalhadores da arguida da área dos Recursos Humanos
4. Apreciação do recurso
Conforme acima referido, a única questão a decidir é a de saber se o princípio ne bis in idem obsta ao julgamento da arguida pelos factos a que se reportam os presentes autos.
Tal questão foi apreciada pelo tribunal a quo nos seguintes termos:
«Da análise da proposta de decisão, referida e dada por reproduzida em AB), nomeadamente dos factos ali considerados provados sob os números 493 a 553, resulta que os factos considerados provados nos presentes autos, descritos nas alíneas G) a Z) supra, foram valorados naquela proposta de decisão, com base na qual foi proferida a decisão referida e dada por reproduzida em AC).
Esta circunstância preclude a possibilidade do conhecimento de tais factos como fundamentadores da prática pela arguida, ora impugnante, da infracção contra-ordenacional de que vem acusada, sob pena de violação do princípio non bis in idem, consagrado, além do mais, no art.º 29º, nº 5, da CRP.
E a tal conclusão não obsta, salvo melhor opinião, o facto de as infracções imputadas à arguida serem, nestes autos, previstas no art.º 29º, nº 4, por referência ao nº 1, do CT e, naqueles, previstas no art.º 129º, nº 2, põe referência ao nº 1, al. b), do mesmo diploma legal.
É que, o princípio non bis in idem, do qual decorre que ninguém pode ser sancionado pela prática dos mesmos factos, tem de ser considerado ainda que se verifique a aptidão de várias normas para serem aplicadas aos mesmos factos.
Aqui chegados, só podemos concluir pela impossibilidade de afirmar a prática, pela impugnante, das infracções contra-ordenacionais que lhe são imputadas, circunstância que implica, necessariamente, a sua absolvição.
Ficando prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas nos autos»
Desde já se adianta que se concorda inteiramente com este entendimento.
Na verdade, no processo de contra-ordenação n.º 171700576 e seus 39 apensos, instaurado contra a impugnante na sequência da visita inspectiva levada a cabo pela ACT em 30/05/2017, foi elaborada proposta de decisão em 24/08/2018 em que foram descritos e valorados os factos enunciados nos pontos G) a Z), com a menção de que os mesmos ainda se mantinham à data da resposta da arguida em 10/07/2017 (cfr. ponto 549 dos factos provados), na sequência do que foi proferida decisão de concordância em 03/09/2018, que aplicou à ora arguida uma coima única no montante de 21.420,00€, por contra-ordenações previstas no art.º 129.º, n.º 2, por referência ao n.º 1, al. b), do Código do Trabalho, que a arguida pagou voluntariamente no prazo legal.
Ora, o presente processo teve por base o auto de notícia levantado em 16/07/2018, sem realização de qualquer visita inspectiva, pela manutenção, em 8/02/2018, dos factos enunciados nos pontos G) a Z), que ali foram descritos, conforme novas declarações prestadas naquela data pelas 4 trabalhadoras em apreço.
Apesar disso, apenas depois de a arguida ter pago voluntariamente a coima no âmbito do processo de contra-ordenação n.º 171700576 e seus 39 apensos, no prazo que terminava em 6/10/2018, é que a ACT decidiu, em 8/10/2018, distribuir o auto de notícia levantado em 16/07/2018 como novo processo de contra-ordenação (cfr. fls. 29), a que coube o n.º 171800365, ora em apreço, na sequência do que a arguida foi notificada, para os efeitos dos arts. 17.º e 19.º da Lei n.º 107/2009, de 14/09, em 24/10/2018, a mesma apresentou resposta escrita em 8/11/2018 e foi inquirida uma testemunha por si arrolada em 6/12/2018, após o que, mais de um ano depois, em 19/12/2019, foi elaborada proposta de decisão e proferida decisão de concordância com a mesma, onde, pelo acervo factual constante do auto de notícia levantado em 16/07/2018, designadamente a manutenção em 8/02/2018 da factualidade enunciada nos pontos G) a Z), ali descrita, foi aplicada à arguida uma coima única no montante de 49.368,00 €, por contra-ordenações previstas no n.º 4, por referência ao n.º 1, do art.º 29.º do Código do Trabalho.
Na proposta de decisão sobre a qual recaiu a decisão de concordância, ambas de 19/12/2019, diz-se a propósito da questão da violação do princípio ne bis in idem (cfr. fls. 88 a 90), que a arguida suscitara na sua resposta:
«(…)
De acordo com o disposto no art.º 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, “Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime.”
O princípio ne bis in idem consagrado na sobredita disposição legal “comporta duas dimensões: (a) como direito subjetivo fundamental garante ao cidadão o direito de não ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo facto, conferindo-lhe, ao mesmo tempo, a possibilidade de se defender contra atos estaduais violadores deste direito (direito de defesa negativo), (b) como princípio constitucional objetivo (dimensão objetiva do direito fundamental), obriga fundamentalmente o legislador à conformação do direito processual e à definição do caso julgado material, de modo a impedir a existência de vários julgados pelo mesmo facto.” (Constituição da República Portuguesa Anotada, Gomes Canotilho e Vital Moreira, pág. 497.)
(…)
Em suma, ocorre a excepção do caso julgado (material) quando existe identidade de factos ou do objeto do processo, identidade do acusado e decisão definitiva transitada em julgado. A identidade quanto ao objeto do processo não se determina através da mera “ação”, nem através da norma ou tipo legal que integra a “ação”. A pluralidade de intenções criminosas afasta a unidade do sentido social da ilicitude e impõe a consideração da existência de crimes autónomos.
Analisando o caso em apreço, verifica-se que não estão em causa as mesmas infrações: nos processos 171700611, 171700612, 171700613 e 171700614 – violação do disposto no art.º 129.º, n.º 1, alínea b) do CT (violação do dever de ocupação efectiva) e, no presente processo contraordenacional, 171800365, está em causa a violação do disposto no art.º 29.º, n.º 1 e n.º 2 do CT (assédio).
A Arguida foi condenada pela ACT – por violação do disposto no art.º 129.º, n.º 1, alínea b) do CT – numa coima única, pelos processos 171700611, 171700612, 171700613 e 171700614, por factos verificados em 30 de maio de 2017 (data da visita inspetiva) e em 10 de julho de 2017 (resposta da Arguida à notificação da ACT datada de 17 de junho de 2017 para apresentação de documentos).
No presente processo contraordenacional (171800365) apesar de ter por base factos, embora da mesma natureza dos processos 171700611, 171700612, 171700613 e 171700614, foram verificados em datas a posteriori: em 24/11/2017 (resposta da Arguida aquando da notificação da ACT para apresentar informação sobre a situação das 4 trabalhadoras: AA, BB, CC e DD), e em 8/02/2018 (quando as 4 trabalhadoras foram ouvidas).
Os factos constantes na Decisão condenatória da ACT, dos Processos 171700611, 171700612, 171700613 e 171700614, reportam-se aos dias 30/05/2017 e 10/07/2017, e apesar de a Arguida ter sido condenada numa coima única (3/09/2018) e tendo procedido ao seu pagamento voluntário, voltou a infringir a lei, neste caso mantendo as referidas 4 trabalhadoras numa situação prolongada no tempo de incerteza quanto ao percurso profissional de trabalhadores com antiguidades elevadas e uma carreira ligada a determinadas áreas da empresa, bem como inatividade e/ou dispensa de presença ou a permanência em local percecionado pelos trabalhadores com uma imagem negativa (Unidade de Suporte/UAC4 – Unidade de Apoio Corporativo 4), violando o disposto no art.º 129.º, n.º 1, alínea b) do CT.
Perante o exposto e salvo melhor opinião, o nosso entendimento é que não existe identidade de objeto do processo quando a Arguida procede à manutenção duma situação prolongada (de inatividade) no tempo das trabalhadoras acima identificadas, depois de ter sido alertada para o facto por estes Serviços, ainda que continue tal comportamento nos mesmos moldes em que o havia feito anteriormente, mas com continuidade temporal, conforme acima discriminado.
Conclui-se pela não existência de caso julgado ou qualquer violação do princípio ne bis in idem.»
Ora, não faz qualquer sentido que:
- depois de se reconhecer que «[a] identidade quanto ao objeto do processo não se determina através da mera “ação”, nem através da norma ou tipo legal que integra a “ação”», mas antes «[a] pluralidade de intenções criminosas afasta a unidade do sentido social da ilicitude e impõe a consideração da existência de crimes autónomos»,
- e se reconhecer que, apesar de enquadrados em tipos legais diversos, ambos os processos têm «(…) por base factos (…) da mesma natureza (…)»,
- se conclua que «[o]s factos constantes na Decisão condenatória da ACT, dos Processos 171700611, 171700612, 171700613 e 171700614, reportam-se aos dias 30/05/2017 e 10/07/2017, e apesar de a Arguida ter sido condenada numa coima única (3/09/2018) e tendo procedido ao seu pagamento voluntário, voltou a infringir a lei, neste caso mantendo as referidas 4 trabalhadoras numa situação prolongada no tempo (…)», quando no parágrafo anterior dera nota de que no presente processo estão em causa factos já verificados em 24/11/2017 e em 8/02/2018, e – acrescentamos nós – pelos quais já fora levantado o respectivo auto de notícia em 16/07/2018.
De acordo com as premissas colocadas – e bem – na proposta de decisão sobre a qual recaiu a decisão de concordância, o que ali se impunha concluir era que no presente processo tendo por base o auto de notícia levantado em 16/07/2018 apenas estava em causa a verificação de que, até 8/02/2018, a arguida mantinha a «(…) situação prolongada (de inatividade) no tempo das trabalhadoras acima identificadas, (…) nos mesmos moldes em que o havia feito anteriormente (…)», uma vez que, ao contrário do mencionado, em qualquer uma daquelas datas a arguida ainda não tinha sido condenada nem procedera ao pagamento voluntário da coima no âmbito dos processos 171700611, 171700612, 171700613 e 171700614, inexistindo, pois, naquelas datas, o invocado facto demonstrativo de “renovação de resolução criminosa” determinante de “pluralidade de intenções criminosas” susceptível de impor a “consideração da existência de crimes autónomos”.
E, assim sendo, estando em causa meras verificações materiais da manutenção da situação das 4 trabalhadoras, que a arguida decidira implementar em 2016 ou 2017, conforme os casos, sem imputação à arguida de novas e diferentes condutas ou, ao menos, da renovação da “resolução criminosa” relativamente à que vinha mantendo, não restava outra alternativa à autoridade administrativa que considerar abrangido pela decisão administrativa definitiva e executória de 3/09/2018, com força semelhante à do caso julgado material, aquele “pedaço de vida” decorrido até 8/02/2018, que mais não era do que o prolongamento no tempo das infracções de execução permanente, nessa data não cessada, que constituíam o objecto daquela decisão administrativa de 3/09/2018.
De modo que julgamos elucidativo e pertinente para a situação que nos ocupa, veja-se o sumário do Acórdão da Relação de Lisboa de 04-06-2008, proferido no proc. n.º 3715/2008-31:
“III - Aliás, a nossa Constituição consagra de forma irrefutável o caso julgado penal, ao dispor no seu art.º 29.º, n.º 5, que: «Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo crime».
IV - A expressão julgado mais do que uma vez não pode ser entendida no seu estrito sentido técnico-jurídico, tendo antes de ser interpretada num sentido mais amplo, de forma a abranger, não só a fase do julgamento, mas também outras situações análogas ou de valor equivalente, designadamente aquelas em que num processo é proferida decisão final, sem que, todavia, tenha havido lugar àquele conhecido ritualismo. É o que sucede com a declaração judicial de extinção da responsabilidade criminal por amnistia, por prescrição do procedimento ou por desistência de queixa, situações em que, obviamente, o respectivo beneficiário não pode ser perseguido criminalmente pelo crime ou crimes objecto da respectiva declaração de extinção da responsabilidade criminal.
V - Entender o termo crime, empregue no n.º 5 do art.º 29.º da CRP, como referência a um determinado tipo legal, a uma certa e determinada descrição típica normativa de natureza jurídico-criminal, seria esvaziar totalmente o conteúdo do preceito, desvirtuando completamente a sua ratio e em frontal violação com os próprios fundamentos do caso julgado. Um tal entendimento seria permitir - o que é inaceitável - que aquele que foi julgado e condenado por ofensas à integridade física (art.º 43.º do CP) pudesse, pelos mesmos factos, ser segunda vez submetido a julgamento e eventualmente condenado por homicídio (art.º 131.º do CP).
VI - O que o referido preceito da CRP proíbe é, no fundo, que um mesmo e concreto objecto do processo possa fundar um segundo processo penal.
VII - A força consumptiva de uma sentença relativamente a futuras condenações e processos há-de ser medida pelos devidos limites do seu objecto, ou seja, estender-se até onde o juiz tenha o poder e o dever de apreciar os factos submetidos ao seu julgamento. Pelos limites deste dever de cognição há que medir o âmbito do conteúdo da sentença e, portanto, os termos da sua força consumptiva relativamente a futuras acusações.
VIII - O objecto do processo é constituído por todos os factos praticados pelo arguido até decisão final que directamente se relacionem com o pedaço da vida apreciado e que com ele formam uma unidade de sentido, razão pela qual, os factos que não tenham sido considerados, devendo tê-lo sido, não podem ser posteriormente apreciados, sob pena de violação da regra ne bis in idem.” (sublinhado nosso).
Bem como, o sumário do Acórdão da Relação de Lisboa de 13-04-2011, proferido no proc. n.º 250/06.6PCLRS.L1-32:
“I – A excepção de caso julgado materializa o disposto no art.º 29.º, n.º 5 da CRP quando se estabelece como princípio a proibição de reviver processos já julgados com resolução executória afirmando “Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”.
II – O caso julgado é um efeito processual da sentença transitada em julgado, que por elementares razões de segurança jurídica, impede que o que nela se decidiu seja atacado dentro do mesmo processo (caso julgado formal) ou noutro processo (caso julgado material).
III – Transcendendo a sua dimensão processual, a proibição do duplo julgamento pelos mesmos factos faz que o conjunto das garantias básicas que rodeiam a pessoa ao longo do processo penal se complemente com o princípio ne bis in idem ou non bis in idem, segundo o qual o Estado não pode submeter a um processo um acusado duas vezes pelo mesmo facto, seja em forma simultânea ou sucessiva.
IV – Esta garantia visa limitar o poder de perseguição e de julgamento, autolimitando-se o Estado e proibindo-se o legislador e demais poderes estaduais à perseguição penal múltipla e, consequentemente, que exista um julgamento plural.
V – Caso julgado em substância significa decisão imutável e irrevogável; significa imutabilidade do mandado que nasce da sentença. Aproximamo-nos assim à lapidar definição romana da jurisdição: quae finem controversiarum pronuntiatione iudicis accipit (que impõe o fim das controvérsias com o pronunciamento do juiz).
VI – Para que a excepção funcione e produza o seu efeito impeditivo característico, a imputação tem que ser idêntica, e a imputação é idêntica quando tem por objecto o mesmo comportamento atribuído à mesma pessoa (identidade de objecto - eadem res). Trata-se da identidade fáctica, independentemente da qualificação legal (nomen iuris) atribuída. As duas identidades que refere a doutrina, unidade de acusado e unidade de facto punível, têm sido assim consideradas:
(i) Para que proceda a excepção de caso julgado requer-se que o crime e a pessoa do acusado sejam idênticos aos que foram matéria da instrução anterior à que se pôs termo no mérito de uma resolução executória.
(ii) A identidade da pessoa refere-se só à do processado e não à parte acusadora para que proceda a excepção de caso julgado.
VII – Se os factos são os mesmos e culminaram com uma sentença executória, ainda que o nomen juris seja distinto, é procedente a excepção de caso julgado.
VIII – O ne bis in idem, como exigência da liberdade do indivíduo, o que impede é que os mesmos factos sejam julgados repetidamente, sendo indiferente que estes possam ser contemplados de distintos ângulos penais, formal e tecnicamente distintos.
IX – Para a identificação de facto tem que tomar-se em linha de conta v.g. os critérios jurídicos de "objecto normativo" e "identidade ou diversidade do bem jurídico lesionado".
X – A identidade do facto mantém-se ainda quando seja pelos mesmos elementos valorados no primeiro julgamento ou pela superveniência de novos elementos ou de novas provas deva considerar-se em forma diferente em razão do título, do grau ou das circunstâncias. O título refere-se à definição jurídica do facto, ao momen iuris do crime. A mutação do título sem uma correspondente mutação de facto não vale para consentir uma nova acção penal.
XI – Em conclusão, para estabelecer a identidade fáctica para efeito de aplicar a excepção de caso julgado, não interessa que os mesmos factos tenham sido qualificados ou subsumidos a distintos tipos penais, nem importa tão pouco o grau de participação imputado ao sujeito.
XII – Um terceiro requisito de procedibilidade, que tem relação estreita com a natureza do caso julgado, respeita a que o primeiro processo tenha sido findo totalmente e que não seja susceptível de meio impugnatório algum, para que justamente se possa reclamar os efeitos de inalterabilidade que acompanha as decisões jurisdicionais que passam à autoridade de caso julgado.
XIII – Para a determinação de identidade de facto é essencial considerar o seu significado jurídico. Os processos de subsunção são um caminho de ida e volta, em que se transita da informação fáctica à norma jurídica e desta aos factos outra vez.
XIV – Sempre que, segundo a ordem jurídica, se trate de uma mesma entidade fáctica, com similar significado jurídico em temos gerais – e aqui "similar" deve ser entendido de modo mais amplo possível –, então deve operar o princípio ne bis in idem". Pelo que, só quando claramente se trata de factos diferentes será admissível um novo processo penal.
XV – No crime continuado encontramo-nos diante de uma pluralidade de factos, aos que, por força da lei, corresponde uma unidade de acção e, portanto, o tratamento como um único crime. O crime continuado pode entender-se como uma pluralidade de acções semelhantes objectiva e subjectivamente, que são objecto de valoração jurídica unitária.
XVI – Na figura do crime continuado consideram-se os casos de pluralidade de acções homogéneas que, apesar de enquadrar cada uma delas no mesmo tipo penal ou em tipos penais com igual núcleo típico, uma vez realizada a primeira, as posteriores se apreciam como a sua continuação, apresentando assim uma dependência ou vinculação em virtude da qual se submetem a um único desvalor normativo, que as reduz a uma unidade delitiva.” (sublinhados nossos).
Ou, ainda, o sumário do Acórdão da Relação de Lisboa de 03-11-2015, proferido no proc. n.º 102/05.7TACDV.L2-53:
“I- Embora o actual C. P. Penal não regulamente nem descreva, expressa e directamente o instituto do caso julgado, tal não invalida que lei penal objectiva não o consagre enquanto pressuposto processual, como resulta do preceituado nos arts. 396º, 4, 399º, 400º, 411º, 427º, 432º, 438º, 477º, 1, 449, 1, 467º, 487º, 492º, 498, 3, entre outros, do C. P. Pen., para além da consagração constitucional de uma das suas vertentes, no art.º 29º, 5, C.R.Port..
II- No que diz respeito ao denominado efeito negativo do caso julgado, recondutível ao princípio ne bis in idem, o mesmo assume dignidade constitucional – art.º 29º, 5, CRP – para além de se encontrar consagrado no Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos – art.º 14º, 7 – e no art.º 4º do Protocolo nº 7 à Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
III- Entende-se doutrinaria e jurisprudencialmente que só há lugar ao funcionamento do caso julgado quando existe identidade do facto e de sujeitos constantes de uma decisão irrevogável sobre a mesma questão ou, por outras palavras, quando estamos perante o mesmo objecto processual. O conteúdo e limites do caso julgado só podem ser fornecidos porque determinados pelo objecto do processo.
IV- Nestes termos, o que transita em julgado é o acontecimento da vida que se submeteu à apreciação de um tribunal. Isto significa que todos os factos praticados pelo arguido até à decisão final que directamente se relacionem com o pedaço de vida apreciado e que com ele formam uma unidade de sentido, não podem ser posteriormente apreciados.” (sublinhado nosso).
Posto isto, e independentemente do que acima se disse que podia e devia ter sido decidido em sede de processo administrativo, o certo é que, interposto recurso de impugnação judicial pela arguida, e realizada audiência de julgamento, com inquirição da Inspectora do Trabalho que levantou o auto id. no ponto A), das 4 trabalhadoras id. no ponto H) e de 2 trabalhadores da arguida da área dos Recursos Humanos, provaram-se os factos acima enunciados, e nenhuns outros.
Ora, como se refere na sentença recorrida, a factualidade provada e descrita nos pontos G) a Z) foi valorada na proposta de decisão aludida no ponto AB), com base na qual foi proferida a decisão mencionada no ponto AC).
E, conforme acima explicitado, na manutenção duma conduta susceptível de constituir ilícito contraordenacional, é a “renovação de resolução criminosa” que, por determinar uma “pluralidade de intenções criminosas”, permite a “consideração da existência de crimes autónomos”, o que, na situação em apreço, carece de factualidade demonstrativa.
Por outro lado, é irrelevante que os dois processos se reportem a diferentes tipos legais de contra-ordenações, uma vez que, como resulta à saciedade do exposto, o art.º 29.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa, ao garantir que ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime, refere-se à identidade fáctica dum comportamento, independentemente da qualificação legal (nomen iuris) atribuída, sem prejuízo de se dever atender à diversidade de bens jurídicos lesionados, se for o caso (questão que não se coloca na situação em apreço, em virtude de nenhuns outros factos se terem provado no presente processo).
Se, por alguma razão, o primeiro processo tivesse terminado com uma decisão de arquivamento, a instauração do presente processo a coberto da imputação de diferente tipo legal de contra-ordenação apresentar-se-ia ostensivamente como uma forma ilícita de a entidade administrativa contornar aquele desaire; ora, por maioria de razão, a decisão de condenação ali proferida há-de considerar-se impeditiva de novo julgamento nos presentes autos, sob pena de violação do princípio ne bis in idem, pois, como acima se explicou, o objecto destes não é mais do que o prolongamento no tempo, até 8/02/2018, das infracções de execução permanente, nessa data não cessada, que constituíram o objecto da decisão administrativa de 3/09/2018.
4. Decisão
Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso e, em consequência, manter a sentença recorrida.
Sem custas.

Lisboa, 5 de Junho de 2024
Alda Martins
Paula Doria C. Pott
Maria Luzia Carvalho
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