Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
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| Relator: | MARIA DE FÁTIMA BESSA | ||
| Descritores: | PRINCÍPIO DA TIPICIDADE NULIDADE INSANÁVEL IRREGULARIDADE NOTIFICAÇÃO DA ACUSAÇÃO DESPACHO DE RECEBIMENTO DA ACUSAÇÃO DESPACHO QUE DESIGNA DATA PARA JULGAMENTO CONHECIMENTO OFICIOSO | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 02/20/2025 | ||
| Votação: | MAIORIA COM * VOT VENC | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Texto Parcial: | N | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | INTEGRAL | ||
| Sumário: | I- De acordo com o princípio da tipicidade consagrado no art.º 118.º, n.º 1, do Código de Processo penal (CPP), a violação ou inobservância das disposições da lei de processo só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei, sendo que, nos casos em que a lei não comina a nulidade, o acto ilegal é irregular, nos termos do n.º2 do art.º 118.º, do CPP. II- As nulidades insanáveis (art.º 119.º, do CPP) são, por definição, insusceptíveis de sanação, podendo ser conhecidas mesmo oficiosamente, a todo o tempo, na pendência do procedimento. III- Constitui nulidade insanável, nos termos do artigo 119.º, c), do Código de Processo Penal, a ausência do arguido na audiência de julgamento por falta ou irregularidade da sua notificação. IV- A regra geral é a de que as nulidades relativas e as irregularidades ficam sanadas se não forem arguidas nos prazos legais de arguição, sendo quanto às nulidades relativas o prazo geral de 10 dias previsto no art.º 105.º, n.º 1 do CPP e quanto às irregularidades, os específicos previstos nos art.ºs 120.º, n.º 3, isto é, no próprio acto ou caso não tenham assistido ao acto, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado. V- Pode, ainda, reparar-se oficiosamente a irregularidade que possa afectar o valor do acto praticado, no momento em que dela se tomar conhecimento (n.º 2 do art.º 123.º, do CPP). VI- O Código de Processo Penal prevê que, no final do inquérito o Ministério Público notifique a sua decisão, de acusação ou de arquivamento, nomeadamente ao arguido (artigo 277.º, n.º 3, 283.º, n.º 5, 284.º e 285.º). VII- A notificação ao arguido da acusação, do despacho de recebimento da acusação e do despacho que designa dia para julgamento, em morada diferente da comunicada pelo arguido através de requerimento que deu entrada nos autos, nos termos do art.º 196.º, n.º3, al. c) do CPP, não estando prevista nos artigos 119.º e 120.º do CPP, não constitui nulidade, insanável ou dependente de arguição, mas simples irregularidade, nos termos dos artigos 118,º, n.º2 e 123.º do mesmo Código. VIII- Porém trata-se de irregularidades (art.º 118.º, n.º 2, do CPP), com reflexos no exercício de direitos de defesa do arguido (art.º 32.º, da CRP) e no direito a um processo justo e equitativo, nos termos do art.º 6.º, § 3.º, al. c) e 5.º da CEDH (Convenção Europeia dos Direitos Humanos) e 48.º, § 2.º da CDFUE (Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia), afectando dessa forma a validade de todos os actos processuais posteriores, sendo por isso de conhecimento oficioso, ao abrigo do disposto no n.º 2 do art.º 123.º do CPP, devendo ser reparadas oficiosamente no momento em que se tomar conhecimento delas. IX- Tais irregularidades determinam a anulação de todo o processado a partir do despacho de recebimento da acusação, incluindo o julgamento e a sentença, incumbindo ao Tribunal recorrido ordenar a reparação de tais irregularidade, não devolvendo os autos ao Ministério Público, mas sim determinando a notificação da acusação ao arguido, conjuntamente com o despacho de recebimento da acusação e para apresentação de contestação, nos termos do art.º 311.º, A, do CPP, seguindo-se os regulares termos do processo em função do que vier ou não a ser requerido na sequência da realização das notificações em falta, podendo o arguido, querendo, requerer a abertura de instrução, o que determinará a remessa dos autos para o tribunal competente pelo Tribunal recorrido. | ||
| Decisão Texto Parcial: | |||
| Decisão Texto Integral: | Acordam, os Juízes, em conferência, na 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: I- RELATÓRIO 1. O Ministério Público em processo comum e com a intervenção do tribunal singular, acusou o AA, nascido a ...-...-1962, filho de BB e CC, portador do cartão de cidadão n.º …, atualmente a residir na … (cfr. fls. 50), imputando-lhe a prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal, a que acresce a pena acessória de condução de veículos com motor artigo 69.º, n.º 1, alínea c) do Código Penal. 2. Realizado o julgamento pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste juízo Local Criminal de Sintra - Juiz 3, no Processo nº 629/21.3GLSNT foi proferida Sentença Condenatória em 14/05/2024, cuja decisão final é a seguinte: “V. Decisão Por todo o exposto, julgo procedente, por provada, a acusação e, em consequência, decido: a. Condenar o arguido AA pela prática, em ........2020, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 50 (cinquenta) dias de multa, à razão diária de € 6,00 (seis euros), perfazendo um total de € 300,00 (trezentos euros). b. Condenar o arguido na pena acessória de proibição de condução de veículos com motor pelo período de 3 meses nos termos do artigo 69.º n.º 1 alínea a) do CP; c. Condenar o arguido a pagar as custas criminais do processo, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) UC, nos termos dos arts. 513.º, e 514.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, e art. 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa ao mesmo diploma. * Desde já fica o arguido advertido que, sob pena de incorrer no crime de desobediência, deverá proceder à entrega da sua carta de condução no prazo de 10 (dez) dias, a contar do trânsito em julgado da sentença, na secretaria do tribunal ou em qualquer posto policial (cfr. art. 69.º, n.º 3, do Código Penal, e artigo 500.º, n.º 2, do Código de Processo Penal), sob pena de incorrer em crime de desobediência previsto e punido pelo artigo 347.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal. Mais fica advertido de que a condução de veículo a motor após o trânsito em julgado e durante o período de inibição o fará incorrer no crime de violação de proibições, previsto e punido pelo artigo 353.º, do Código Penal. * Aquando da liquidação da pena proceda-se ao desconto de um dia, atenta a detenção sofrida pelo Arguido e o disposto no artigo 80.º, n.º 2 do Código Penal. * O termo de identidade e residência só se extinguirá com a extinção da pena (cfr. artigo 214.º, n.º 1, al. e) do CPP). * Notifique, deposite e, após trânsito em julgado, remeta boletim à DSIC, nos termos dos artigos 372.º, n.º 5, 373.º, n.º 2, ambos do CPP e 5.º, n.º 1, al. a) da Lei 57/98, de 18 de Agosto. * Comunique à ANSR e ao IMT – artigos 69.º, n.º 4 do CP e 500.º, n.º 1 do CPP.” 3. Inconformado com a sentença, o arguido veio interpor recurso em .../.../2024, terminando a motivação com as seguintes conclusões (transcrição): A - O presente processo está eivado desde a fase de inquérito, de nulidade insanáveis que determinam a repetição de grande parte de processado. B - A morado do TIR do arguido era no .... C - Sucede que no dia 24 de Novembro de 2022, o arguido deu entrada na Secretaria do Tribunal de um requerimento no que refere que “venho por este meio informar a alteração de morada para efeitos de notificação, a saber …”. D – Este acto praticado regularmente pelo arguido foi totalmente ignorado por todos os agentes processuais e, a partir dai, todas as notificações continuaram a ser feitas para a antiga morda do TIR, incluindo Despacho de acusação, Despacho de recebimento da acusação e Despacho com marcação da audiência de julgamento. E – Assim, todos os actos praticados no pressuposto de que o arguido foi regularmente notificado, são inválidos, e inquinam todo o processo na medida em que postergam os mais elementares direitos de defesa e contraditório do arguido. F – Para além do processado anterior nunca a audiência de julgamento poderia ter sido realizada na ausência do arguido, que não se encontrava regularmente notificado e, obviamente, nunca poderia ele ter ido sancionado pela ausência que não lhe era imputável. H – Assim, foram violadas, pelo menos, as disposições constantes dos arts 61º1, a), b) c), 283º, nº5, 287º, nº1, 311º A, nº1, 311º B, 311º, 1, 332º1, 119º, al. c), todos do CPP, e art. 32º da CRP. Termos em que, com a devida vénia se requer a anulação de todo o processado desde que o arguido juntou aos autos a sua nova morada; quando assim não se entenda, deve a douta sentença ser anulada, por ter sido a audiência de julgamento realizada na ausência do arguido, determinando-se a sua repetição. 4. O recurso foi admitido pelo seguinte despacho: Versando sobre decisão recorrível (cfr. artigos 399.º e 400.º, n.º 1, a contrario, do Código de Processo Penal), tempestivo (cfr. artigo 411.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal), motivado (cfr. artigo 411.º, n.º 3, e artigo 412.º, ambos do Código de Processo Penal), e tendo sido interposto por quem tem legitimidade (cfr. 401.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal), admito o recurso do arguido, AA, da sentença proferida em 14.05.2024, para o Tribunal da Relação de Lisboa (cfr. artigo 427.º do Código de Processo Penal). O presente recurso subirá imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo (cfr. artigos 406.º, n.º 1, 407.º, n.º 2, alínea a), e 408.º, n.º 1, alínea a), todos do Código de Processo Penal). Dê cumprimento ao disposto no artigo 411.º, n.º 6, do Código de Processo Penal. Notifique. 5. O Ministério Público veio apresentar resposta ao recurso, dela se extraindo as seguinte conclusões (transcrição). 1- O arguido não se encontra devidamente notificado, tendo comunicado a alteracção da morada. 2- Teria direito a estar presente em audiência de julgamento afim de preparar a sua defesa. 3- Existe efectivamente essa omissão que invalidada a possibilidade de se defender . 4- A decisão merece censura, devendo ser revogada. 6. Nesta instância recursiva a Ex.ma Sra. Procuradora Geral adjunta formulou o seguinte parecer, com o teor que se transcreve: Parecer do Ministério Público nos termos previstos no artigo 416 n.º 1 do CPP: * O recurso não suscita objeções quanto à sua admissibilidade, tempestividade, legitimidade, espécie, forma, momento de subida e efeito fixado. * Como aceite pacificamente pela jurisprudência e doutrina o âmbito do recurso é definido pelas conclusões no âmbito das quais o recorrente resume as razões do seu pedido, corolário da motivação apresentada. As conclusões assim definidas delimitam as questões passiveis de serem apreciadas pelo tribunal ad quem sem prejuízo de este estar obrigado ao conhecimento oficioso dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, a saber, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e/ou o erro notório na apreciação da prova. ainda que o recurso se encontre limitado à matéria de direito é [Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 7/95, Supremo Tribunal de Justiça, in D.R., I-A, de 28.12.1995]. * Nos presentes autos foi o arguido AA condenado pela prática, em ........2020, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 50 (cinquenta) dias de multa, à razão diária de € 6,00 (seis euros), perfazendo um total de € 300,00 (trezentos euros). Foi condenado na pena acessória de proibição de condução de veículos com motor pelo período de 3 meses nos termos do artigo 69.º n.º 1 alínea a) do CP; bem como a pagar as custas criminais do processo, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) UC, nos termos dos arts. 513.º, e 514.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, e art. 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa ao mesmo diploma. Inconformado com a decisão dela recorre o arguido invocando, em síntese: A ocorrência de nulidade insanável do processo pois o arguido nunca foi notificado de nenhum acto processual realizado no processo na medida em que em data posterior à data em que havia prestado TIR veio aos autos comunicar a alteração da sua morada, o que nunca foi considerado nos autos. Responde o Ministério Público em 1º Instância defendendo a procedência do recurso. Analisados os autos constata-se que o arguido prestou TIR a 30.05.2021, tendo no mesmo sido declarada como residência a ... O arguido foi notificado de decisão de que determinou a suspensão provisória do processo a 02.09.2021 para a morada constante do TIR, tendo a prova do depósito sido junta aos autos a 10.09.2021. Juntou o arguido, aos autos a 17.01.2022, requerimento no âmbito do qual solicitava a substituição da pena de multa pela prestação de trabalho a favor da comunidade; relativamente a este requerimento foi emitido despacho a 21.04.2022 , o qual foi notificado ao arguido , constando dos autos a prova de deposito para a morada constante do TIR. A 24.11.2022 o arguido junta aos autos requerimento dando conhecimento da alteração da sua morada para efeitos de notificação, dando assim cumprimento ao disposto no art.º 196 n.º 1 al.c) do CPP. A partir de então todas as notificações efectuadas ao arguido nos presentes autos foram-no para a morada constante do TIR, sem que se tivessem atentado na alteração comunicada aos autos pelo arguido. Constata-se assim assistir razão ao recorrente, uma vez que nos presentes autos não foram cumpridas formalidades essenciais ao Direito de defesa do arguido, conforme preconizado no artigo 32º da Constituição da República Portuguesa, que culminaram na realização de julgamento na sua ausência em desprimor do disposto no artigo 332 n.º 1 do CPP, com as consequências previstas no artigo 119 al.c) do CPP. Entendemos assim, assistir razão ao recorrente. * No exame preliminar considerou-se que o objecto do recurso interposto deveria ser conhecido em conferência. * Colhidos os vistos legais e realizada a conferência a que alude o artigo 419º do Código de Processo Penal. Nada obsta à prolacção do Acórdão, **** II. OBJECTO DO RECURSO Constitui jurisprudência e doutrina assente que o objecto do recurso, que circunscreve os poderes de cognição do tribunal de recurso, delimita-se pelas conclusões da motivação do recorrente (artigos 402.º, 403.º, 412.º e 417º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso do tribunal ad quem quanto a vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP1, os quais devem resultar directamente do texto desta, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, a nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito), ou quanto a nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP).2 Na Doutrina, por todos, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, Volume II, 5.ª Edição atualizada, pág. 590, “As conclusões do recorrente delimitam o âmbito do poder de cognição do tribunal de recurso. Nelas o recorrente condensa os motivos da sua discordância com a decisão recorrida e com elas o recorrente fixa o objecto da discussão no tribunal de recurso… A delimitação do âmbito do recurso pelo recorrente não prejudica o dever de o tribunal conhecer oficiosamente das nulidades insanáveis que afetem o recorrente… não prejudica o dever de o tribunal conhecer oficiosamente dos vícios do artigo 410.º, n.º2 que afetem o recorrente…” Atendendo às conclusões apresentadas, são as seguintes as questões a apreciar: - se a omissão de notificação dos despachos proferidos após a junção de requerimento 24/11/2022 pelo arguido, com alteração da morada constante do TIR, incluindo Despacho de acusação proferido em 24/05/2023, Despacho de recebimento da acusação e Despacho com marcação da audiência de julgamento proferidos em 28/10/2023, constitui nulidade que determina a anulação de todos os actos posteriores a essa data por violação das disposições constantes dos art.ºs 61º1, a), b) c), 283º, nº5, 287º, nº1, 311º A, nº1, 311º B, 311º, 1, 332º1, 119º, al. c), todos do CPP, e art.º 32º da CRP. III -FUNDAMENTAÇÃO Para conhecimento da questão a decidir mostram-se relevantes os seguintes factos: 1. O arguido prestou TIR a 30.05.2021, tendo, no mesmo, sido declarada, por ele , como residência a ... 2. O arguido foi notificado da decisão de que determinou a suspensão provisória do processo a 02.09.2021, para a morada constante do TIR, tendo a prova do depósito sido junta aos autos a 10.09.2021. 3. Juntou o arguido, aos autos a 17.01.2022, requerimento no âmbito do qual solicitava a substituição da injunção pecuniária de €500 pela prestação de trabalho a favor da comunidade; 4. O requerimento foi apreciado por despacho do Ministério Público de 21.04.2022, o qual foi notificado ao arguido para a morada indicada no TIR, constando dos autos a prova de deposito para a morada constante do TIR. 5. Em 06/10/2022 foi proferido despacho determinando a notificação do arguido para se pronunciar sobre o não cumprimento da injunção e para juntar documento comprovativo do seu pagamento, sob pena de se considerar incumprida a injunção e ser determinado o prosseguimento dos autos, com dedução da acusação e posterior julgamento, o qual foi notificado ao arguido para a morada indicada no TIR, constando dos autos a prova de deposito para a morada constante do TIR. 6. A 24.11.2022 o arguido junta aos autos requerimento dando conhecimento da alteração da sua morada para efeitos de notificação, dando cumprimento ao disposto no art.º 196 n.º 1 al.c) do CPP, referindo no requerimento que “venho por este meio informar a alteração de morada para efeitos de notificação, a saber ... 7. No dia 24.05.2023 foi proferido despacho de acusação pelo Ministério Público. 8. No dia 28/10/2023 foi proferido despacho a receber a acusação e a ordenar a notificação nos termos do art.º 311.º, A, do CPP. 9. No dia 26.01.2024 foi proferido despacho com designação de datas para a audiência nos termos do art.º 312.º, do CPP. 10. A alteração da morada foi totalmente ignorada por todos os agentes processuais tendo todas as notificações ao arguido continuado a ser feitas para a antiga morada do TIR, incluindo o despacho de 19/04/2023 a notificar o arguido para declarar expressamente, em 5 dias se concorda com a alteração da injunção para prestação de 85 horas de serviço público e com a prorrogação da suspensão por três meses, com a cominação de prosseguimento dos autos com dedução da acusação para julgamento, do Despacho de acusação proferido em 24/05/2023, Despacho de recebimento da acusação e Despacho com marcação de datas para a audiência de julgamento. 11. Face à omissão de notificação dos despachos ao arguido referidos no ponto que antecede para a nova morada por ele indicada, o arguido não respondeu ao despacho do Ministério Público de 19/04/2023, não apresentou contestação, não teve oportunidade de ponderar a abertura de instrução, não arrolou testemunhas, nem compareceu ao julgamento. 12. A audiência de discussão e julgamento foi realizada em 14/05/2024 sem a presença do Arguido, o qual foi considerado regularmente notificado para a morada constante do TIR. 13. No mesmo dia foi proferida sentença condenatória do arguido a qual foi notificada ao arguido através da autoridade policial na …. em 18 de Agosto de 2024, tendo o mesmo prestado novo TIR indicando como domicílio ….. 14. Apenas com a interpor recurso em .../.../2024 o arguido veio invocar o que configura de invalidades processuais, decorrentes da omissão de notificação referida em 10. IV- FUNDAMENTOS DO RECURSO E RESPECTIVA APRECIAÇÃO. Apreciemos então as questões a decidir. - se a omissão de notificação dos despachos proferidos após a junção de requerimento 24/11/2022 pelo arguido com alteração da morada constante do TIR, incluindo Despacho de acusação proferido em 24/05/2023, Despacho de recebimento da acusação e Despacho com marcação da audiência de julgamento proferidos em 28/10/2023, constitui nulidade que determina a anulação de todos os actos posteriores a essa data, por violação das disposições constantes dos art.ºs 61º1, a), b) c), 283º, nº5, 287º, nº1, 311º A, nº1, 311º B, 311º, 1, 332º1, 119º, al. c), todos do CPP, e art.º 32º da CRP. Nos termos do art.º 410.º, do CPP (Fundamentos do recurso) 1 - Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida. 2 - Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova. 3 - O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada. Dispõe o art.º 412.º, do CPP: (Motivação do recurso e conclusões) 1 - A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. 2 - Versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda: a) As normas jurídicas violadas; b) O sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada; e c) Em caso de erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, deve ser aplicada. 3 - Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas. 4 - Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação. 5 - Havendo recursos retidos, o recorrente especifica obrigatoriamente, nas conclusões, quais os que mantêm interesse. 6 - No caso previsto no n.º 4, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa. Estruturalmente o recurso pode, assim, ter como fundamentos concretos: I)Questões materiais, traduzidas em erro de julgamento em matéria de facto ou erros de julgamento em matéria de direito (art.º 412.º, n.ºs 2 e 3 do CPP). ii)Questões formais que dizem respeito à patologia da sentença, traduzida em erros endógenos da sentença, resultantes sem mais da leitura da sentença, sem elementos exteriores a ela, os designados vícios da sentença-Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável da fundamentação, a contradição insanável entre a fundamentação e a decisão ou erro notório na apreciação da prova (art.º 410.º, n.º2, do CPP) ou erro da falta de fundamentação e exame crítico da prova (art.º 374.º, n.º2, do CPP) e iii) Questões processuais, traduzidas em nulidades ou irregularidades da sentença (art.ºs 379.º e 410.º, n.º3, do CPP) ou nulidades ou irregularidades do processado. (neste sentido FERNANDO GAMA LOBO, Código de Processo Penal Anotado, 4.ª Edição, Almedina pág. 947). No caso dos autos está em causa a apreciação de nulidades/irregularidades do processados (vícios do procedimento). Os art.ºs 118º a 123º do CPP regulam, em geral, as consequências da inobservância das prescrições estabelecidas por lei para a prática dos actos processuais geradoras de invalidade. E classifica-as a lei processual penal, em três espécies: - As nulidades insanáveis – art.º 119º; - As nulidades dependentes de arguição – art.º 120º – E as irregularidades – art.º 123º. O art.º 118º n. os 1 e 2 dispõe que a violação ou inobservância das disposições da lei de processo só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei e que, nos casos em que a lei não comina a nulidade, o acto ilegal é irregular. Decorre da conjugação das normas dos art.os 119.º e 120º que para que a nulidade seja considerada insanável importa que a lei explicitamente o preveja, enumerando o art.º 119.º as nulidades insanáveis. As nulidades insanáveis constituem um vício processual, que, pela sua gravidade, torna inválido e sem possibilidade de recuperação, o acto ou omissão ferido por esse vício. Trata-se de vício insanável, por ser insusceptível de aproveitamento, sendo todos os actos que dele dependam directamente afectados pelo mesmo vício (n.º1 do art.º 122.º, do CPP). Entre as nulidades insanáveis está a prevista na alínea c) do art.º 119.º, do CPP que diz respeito à ausência do arguido e seu defensor a actos em que a sua presença é obrigatória, por razões imputáveis à autoridade, as quais traduzem impossibilidade de defesa. O caso mais frequente é o julgamento do arguido ausente, não regularmente notificado, em que a lei comina a sua preterição com nulidade insanável. As nulidades insanáveis são de conhecimento oficioso e a todo o tempo, em qualquer fase do procedimento. O art.º 120.º relativo às nulidades dependentes de arguição, impõe que qualquer nulidade diversa das previstas no primeiro deve ser arguida, constituindo as dependentes da arguição as previstas no n.º 2 do art.º 120.º, além das que forem cominadas noutras disposições legais. Prevendo-se simplesmente nulidade, trata-se de vício dependente de arguição. No caso dos autos, o arguido indicou no Termo de Identidade e Residência (TIR) a sua morada, morada essa que depois foi por si alterada nos termos da alínea c) do n.º3 do art.º 196.º, do CPP, não tendo essa nova morada sido considerada nas notificações posteriores. Continuou o arguido a ser notificado para a morada do TIR e não para a nova morada por si indicada, o que aconteceu com os seguintes despachos: a)despacho de 19/04/2023 a notificar o arguido para declarar expressamente, em 5 dias se concorda com a alteração da injunção para prestação de 85 horas de serviço público e com a prorrogação da suspensão por três meses, com a cominação de prosseguimento dos autos com dedução da acusação para julgamento. b)Despacho de acusação proferido em 24/05/2023. c) Despacho de recebimento da acusação e d)Despacho com marcação de datas para a audiência de julgamento proferidos em 28/10/2023. Face à omissão de notificação desses despachos ao arguido para a nova morada por ele indicada, este não respondeu ao despacho do Ministério Público de 19/04/2023, não apresentou contestação, não teve oportunidade de ponderar a abertura de instrução, não arrolou testemunhas, nem compareceu ao julgamento, que foi realizado sem a sua presença. Realizou-se a audiência de discussão e julgamento em 14/05/2024 sem a presença do Arguido, o qual foi considerado regularmente notificado para a morada constante do TIR.. É certo que o art.º 119º c) do CPP comina de nulidade insanável “a ausência do arguido ou do seu defensor nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência”, como é o caso da audiência de julgamento a audiência de julgamento que figura como uma das situações em que é obrigatória a comparência do arguido (cfr. art.ºs 332º nº 1 e 61º nº 1, al. a), ambos do CPP),. Assim, dúvidas não há da nulidade insanável decorrente da falta do arguido à audiência de julgamento por não ter sido regularmente notificado, a qual se realizou na sua ausência e que determina a nulidade da audiência e da sentença posteriormente proferida. Neste sentido o seguinte Acórdão da Relação de Évora de 08-02-2022, processo n.º 91/18.0PALGS.E1, relatora MARIA FILOMENA SOARES que sumariou o seguinte: Decorre do disposto no artigo 61º, nº1, alínea a), do Código de Processo Penal, assistir ao arguido, em qualquer fase do processo e salvas as exceções da lei, o direito a estar presente aos atos processuais que diretamente lhe disserem respeito. O artigo 332º, nº 1, do mesmo Código, impõe a regra da obrigatoriedade da presença do arguido na audiência de julgamento, excecionando os casos previstos nos artigos 333º, nºs 1 e 2, e 334º, nºs 1 e 2. Todos os preditos preceitos da legislação processual ordinária são expressão, corolário, do artigo 32º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, que consagra o princípio de que o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, e, bem assim, do disposto no nº 6 desse artigo, mediante o qual, “a lei define os casos em que, assegurados os direitos de defesa, pode ser dispensada a presença do arguido ou acusado em atos processuais, incluindo a audiência de julgamento.”. No caso em apreço, a audiência de julgamento realizou-se sem a presença do arguido, que não estava regularmente notificado para comparecer. O desrespeito por tal procedimento redunda numa ausência do arguido por falta da sua notificação, sancionada como nulidade insanável nos termos prevenidos no artigo 119º, alínea c), do Código de Processo Penal.” in www.dgsi.pt Também no mesmo sentido o Acórdão da Relação do Porto de 24 de Junho de 2020 Processo 91/17.5GALNH.L1-3 Relator A. AUGUSTO LOURENÇO, sumariando o seguinte: 1. No nosso sistema processual penal, a regra geral é a da obrigatoriedade da presença do arguido na audiência de julgamento conforme dispõem os artº 332º, nº 1 artº 61º, nº 1, al. a) CPP, sendo excepção, a realização do julgamento na ausência do arguido. 2. A audiência só pode ser realizada na ausência do arguido, verificadas que estejam as circunstâncias a que alude o artº 333º CPP. 3. Assim, se na 1ª sessão da audiência de julgamento, foi alterada a 2ª data previamente designada e dessa alteração não foi o arguido notificado, considerando o disposto no artº 333º, nº 3, CPP, estamos perante uma nulidade insanável - c) do art. 119º CPP. 4. Tendo a 2ª sessão sido realizada nessas circunstâncias, tal implica necessariamente a invalidade da respectiva sessão da audiência e dos actos que dele dependem, incluindo a própria sentença recorrida, impondo-se por isso ao tribunal recorrido proceder à respetiva repetição, depois das diligências de notificação do arguido para comparência (cfr. artº 122º nº 1 e nº 2 do CPP). in www.dgsi.pt Relativamente à omissão de notificação dos demais actos supra referidos, os mesmos não se encontram cominados com nulidade insanável não se encontrando previstos no art.º 119.º, do CPP nem noutra disposição legal. De facto, da simples leitura do art.º 119º logo se extrai que em relação à não notificação dos despachos supra referido em a) a c) não integra qualquer uma das nulidades ali expressamente previstas, mormente a da alínea c). Nomeadamente no que respeita ao acto de notificação da acusação o mesmo, para ser válido, não exige a presença ou comparência do arguido, ou seja, a validade do acto de notificação da acusação não depende, nem pressupõe a presença do arguido. Por outro lado, percorrendo todo o Código de Processo Penal, não descortinamos um qualquer normativo que comine com o vício da nulidade insanável (nem sequer com o vício da nulidade sanável ou dependente de arguição) nos casos de omissão de notificação referidos nas alíneas a) a c) supra, em especial quando um arguido seja notificado da acusação para uma morada diversa daquela que o mesmo havia indicado para o efeito de receber notificações. Por isso, apesar da notificação da acusação ter sido efectuada para uma morada diversa daquela que havia sido indicada para efeitos de notificações, jamais se está perante qualquer nulidade insanável. Acresce também referir que aquelas incorrectas notificações também não se enquadram no leque das nulidades relativas ou dependentes de arguição a que alude o art.º 120º do CPP. Em consequência apenas estaremos, então, perante o vício da irregularidade cujo regime de encontra previsto no art.º 123.º, do CPP que reza o seguinte: “1 - Qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do acto a que se refere e dos termos subsequentes que possa afectar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio acto ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado. 2 - Pode ordenar-se oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade, no momento em que da mesma se tomar conhecimento, quando ela puder afectar o valor do acto praticado.” Como se pode ler no sumário do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.01.2022, processo 303/12.1JACBR.P1-B.P1.S1-5 EDUARDO LOUREIRO: “I - De acordo com o princípio da tipicidade consagrado no art.º 118.º, n.º 1, do CPP, a violação ou inobservância das disposições da lei de processo só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei, sendo que – n.º 2 da norma –, nos casos em que a lei não comina a nulidade, o acto ilegal é irregular. II - As nulidades insanáveis são, por definição, insusceptíveis de reparação, podendo ser conhecidas a todo o tempo na pendência do procedimento, oficiosamente ou a pedido. Não podem, porém, ser declaradas após a formação de caso julgado sobre a decisão final que, neste aspecto, actua como forma de sanação. III - A regra geral é a de que as nulidades relativas e as irregularidades ficam sanadas se não forem acusadas nos prazos legais de arguição. IV - Tais prazos, quanto às nulidades, são o geral de 10 dias previsto no art.º 105.º, n.º 1 e os específicos previstos nos art.ºs 120.º, n.º 3. Podendo a sanação ocorrer, ainda, por via da assunção das atitudes tipificadas no art.º 121º. V - As irregularidades, essas, haverão de ser arguidas no próprio acto em que tiveram ocorrido, isso estando os interessados presentes. Não tendo assistido ao acto, devem os interessados suscitá-las «nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado» – art.º 123.º n.º 1. Podendo, ainda, reparar-se oficiosamente a irregularidade que possa afectar o valor do acto praticado no momento em que dela se tomar conhecimento. Desde que ainda não sanada, sob risco de, a admitir-se reparação de irregularidades já sanadas, se introduzir grave entorse no sistema qual seja a de, relativamente ao menos solene dos vícios formais se admitir, afinal, um regime de reparação não só mais permissivo do que o das nulidades relativas, como equiparável, até, ao das nulidades insanáveis. in www.dgsi.pt Ora, dispõe o nº 1, do artigo 32º, da CRP, que o processo penal tem de assegurar todas as garantias de defesa, devendo esta disposição constitucional, como tantas outras em matéria processual penal, ser interpretada à luz do princípio da proporcionalidade. Estamos perante irregularidades a seguirem o regime imposto pelo artigo 123º, do Código de Processo Penal. Desse modo, as irregularidades têm que ser arguidas pelos interessados no prazo de 3 (três) dias. Porém não o foram, no caso concreto, apenas ocorrendo a sua invocação na interposição de recurso, muito depois desse prazo. Contudo, por força do n.º 2 do art.º 123.º, do CPP “pode ordenar-se oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade, no momento em que da mesma se tomar conhecimento, quando ela puder afetar o valor do acto praticado”. Como refere MAIA GONÇALVES em anotação ao art.º 123.º, com o qual se concorda “Apesar das irregularidades serem consideradas em geral vícios de menor gravidade do que as nulidades, a grande variedade de casos que na vida real se podem deparar impõe que se não exclua a priori a possibilidade de ao julgador se apresentarem irregularidades de muita gravidade, mesmo susceptíveis de afectar direitos fundamentais dos sujeitos processuais. Daí a grande margem de apreciação que se dá ao julgador, nos n.ºs 1 e 2, que vai desde o considerar a irregularidade inócua e inoperante até à invalidade do acto inquinado pela irregularidade e dos subsequentes que possa afectar, passando-se pela reparação oficiosa da irregularidade. Trata-se de questões a decidir pontualmente pelo julgador.” in “Código de Processo Penal Anotado”, 7.ª edição, pág. 253. Consideramos não ser de reparar a irregularidade referente à omissão relativa ao despacho de 19/04/2023 a notificar o arguido para declarar expressamente, em 5 dias se concorda com a alteração da injunção para prestação de 85 horas de serviço público e com a prorrogação da suspensão por três meses, com a cominação de prosseguimento dos autos com dedução da acusação para julgamento, pois que os direitos de defesa do arguido constitucionalmente protegidos não ficam afectados, porquanto o mesmo foi notificado do despacho do Ministério Público de 21.04.2022 para declarar se concorda com a substituição da injunção pecuniária pela injunção de prestação de 85 horas de trabalho a favor da comunidade por carta com prova de depósito em 27.06.2022, pelo que não se encontra prevista a circunstância do n.º2 do art.º 123.º, para a sua reparação. Já quanto à não notificação do despacho de acusação e do despacho de recebimento da acusação assim não consideramos, devendo tal irregularidade ser sanada oficiosamente ao abrigo do referido n.º 2 do art.º 123.º, do CPP. Quer considere a falta de notificação da acusação ao abrigo do disposto no art.º 123º nº 2 do CPP, uma nulidade, quer considerando uma irregularidade -sendo que nesta última hipótese esta irregularidade teria/devia ter sido conhecida pelo juiz que recebeu a acusação e designou data para julgamento - o resultado final acabará por ser idêntico, porquanto, trata-se de omissão que afecta a validade de todos os actos processuais posteriores. Assim, o arguido não foi notificado da acusação, sendo que este vício constitui uma irregularidade (e não uma nulidade sanável ou insanável), impondo uma reparação oficiosa da irregularidade, porquanto o acto inquinado inquina também, como acontece nos autos, todos os actos subsequentes. Neste sentido acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 18.05.2022 processo 893/18.5GBVNG.P1, Relatora LILIANA DE PÁRIS no qual foi sumariado o seguinte: “I - Não estando prevista nos artigos 119.º e 120.º do Código de Processo Penal, não constitui nulidade, insanável ou dependente de arguição, mas simples irregularidade, nos termos do artigo 123.º do mesmo Código, a comunicação ao arguido da acusação e do despacho que designa dia para julgamento em morada diferente da que constava do termo de identidade e residência e por ele indicada para o efeito das notificações. II - Constitui nulidade insanável, nos termos do artigo 119.º, c), do Código de Processo Penal, a ausência do arguido no julgamento por falta ou irregularidade da notificação.” A jurisprudência é claramente maioritária quanto à qualificação da invalidade da notificação ao arguido da acusação como constituindo uma irregularidade e, bem assim, quanto à oficiosidade do respetivo conhecimento pelo juiz aquando do despacho previsto no artigo 311º do Código de Processo Penal. Efectivamente, a acusação deve ser notificada ao arguido e ao seu defensor nos termos do art.º 113.º, § 10.º CPP. Não basta a mera notificação ao seu defensor, uma vez que o conhecimento da acusação constitui um direito pessoal do arguido, sendo essa uma exigência de um processo justo e equitativo nos termos do art.º 6.º, § 3.º, al. c) e 5.º da CEDH (Convenção Europeia dos Direitos Humanos); 48.º, § 2.º da CDFUE (Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia). Coloca-se, contudo a questão no que respeita a quem incumbe sanar a irregularidade declarada, assinalando-se divergências a nível da jurisprudência que se vêm intensificando nos últimos tempos, alinhando-se duas correntes distintas: • Uma no sentido favorável à admissibilidade da devolução dos autos ao Ministério Público, podem ver-se, entre outros, os seguintes acórdãos: - Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 08.04.2014 [processo 650/12.2PBFAR-A.E1] e de 13.09.2022 [processo 64/20.0PBEVR.E1], relatados ambos por JOÃO GOMES DE SOUSA, extraindo-se do último o seguinte sumário: « I. O Código de Processo Penal prevê que final do inquérito o Ministério Público notifique a sua decisão, de acusação ou de arquivamento, aos envolvidos (artigo 277.º, n.º 3, 283.º, n.º 5, 284.º e 285.º). II. O processo só prosseguirá para a fase seguinte – de julgamento – se “os procedimentos de notificação se tenham revelado ineficazes” (283.º, n.º 5). II. Inexistindo notificação da acusação e sendo vício de conhecimento oficioso deve o Tribunal devolver os autos ao Ministério Público para cumprir a função que legalmente lhe compete, não os recebendo enquanto a notificação da acusação se não mostre devidamente efectuada e decorrido o prazo para requerer a instrução, sem prejuízo da efetiva ocorrência de situação enquadrável na segunda parte do n.º 5 do artigo 283.º do Código de Processo Penal.» - Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 22.11.2018 [processo 20/15.0IDFAR-A.E1], relatado por CARLOS BERGUETE COELHO, com o seguinte sumário: «I – No âmbito do despacho de saneamento pode conhecer-se de qualquer irregularidade do processo, quando ela puder afectar o valor do acto praticado. II – A remessa dos autos ao Ministério Público “para os fins tidos por convenientes” implicitamente fundado na competência deste para reparação da irregularidade (falta de notificação da acusação), não contende com a estrutura acusatória do processo e a autonomia do Ministério Público.» - Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 25.07.2018 [processo 123/16.4PGOER.L1-3], relatado por CONCEIÇÃO GONÇALVES, com o seguinte sumário: «I. A omissão de notificação da acusação constitui irregularidade cuja reparação pode ser conhecida oficiosamente, no momento em que da mesma se tomar conhecimento, afetando tal omissão o ato em si, de conhecimento da acusação, nos termos previstos no art.º 123º, nº 2 do CPP. II.- Dispõe o nº 5 do art.º 283º do CPP, por remissão para o nº 3 do art.º 277º do mesmo diploma, a obrigatoriedade de o Ministério Público notificar a acusação ao arguido e ao seu defensor, tendo a obrigação legal de tudo fazer para notificar o arguido. III.- O legislador só admitiu a possibilidade de o processo transitar para a fase de julgamento sem o arguido ser notificado da acusação na situação prevista no nº 5 do art.º 283º do CPP, ou seja, “quando os procedimentos de notificação se tenham revelado ineficazes”. IV.- A devolução dos autos ao Ministério Público para reparação da irregularidade por omissão de notificação da acusação, na situação em que se não mostram preenchidos os pressupostos do nº 5 do art.º 283º do CPP, em nada contende com a estrutura acusatória do processo.” -Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 23.02.2023 [processo 169/20.8IDSTB.L1-9] e de 27.04.2023 [processo 1155/21.6PFSXL.L1-9], ambos relatados por MADALENA CALDEIRA, extraindo-se do último o seguinte sumário: «I. O envio, por parte do Ministério Público, para notificação de uma acusação a um arguido acusado, de uma carta simples (com prova de depósito) para uma morada incompleta face à constante do TIR prestado, e que teve como consequência a sua devolução com a indicação de “endereço insuficiente”, não tem a virtualidade de cumprir com os efeitos processuais e substantivos a que a carta se destinava. II. Tal notificação terá de ser julgada irregular, invalidade que é de conhecimento oficioso, por afetar o valor do ato e conter um enorme potencial de violação dos mais básicos direitos de defesa do arguido (art.º 123º, n.º 2, do CPP), sendo equiparada nos seus efeitos a uma nulidade insanável. III. Essa irregularidade da notificação da acusação pode e deve ser conhecida pelo juiz do julgamento aquando do cumprimento do disposto no art.º 311º, do CPP, na vertente do saneamento do processo, por obstar à apreciação do mérito da causa. IV. Em tal situação o juiz pode ordenar a devolução dos autos aos Serviços do Ministério Público para, querendo, proceder à correção do vício, dado que a competência legal para essa notificação é atribuída ao Ministério Público, o processo só deve ser remetido para julgamento quando a fase das notificações da acusação estiver completa (sem prejuízo do caso excecional previsto no art.º 283º, n.º 5, 2ª parte do CPP), o processo continua num limbo entre a fase de inquérito e a de julgamento e não é indiferente para um arguido ser notificado da acusação num momento em que o processo está em fase de inquérito ou em fase de julgamento. V. Essa devolução do processo não viola os poderes de autonomia e de independência do Ministério Público. VI. A defesa da estrutura acusatória do processo penal e da autonomia do Ministério Público não se pode confundir com a aceitação da desoneração de competências processuais que a este competem, em desrespeito do estrito ritual processual penal, não podendo aceitar-se como normal, no sentido de “normalizar ou banalizar”, a remessa de inquéritos para a fase de julgamento sem o regular cumprimento da fase das notificações da acusação, apesar da ilegalidade dessa prática, com os prejuízos que acarreta para os sujeitos processuais, em particular para os arguidos.» • Em sentido desfavorável à admissibilidade da devolução dos autos ao Ministério Público, podem ver-se, entre outros, os seguintes acórdãos: - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 27.04.2006 [processo 06P1403], relatado por PEREIRA MADEIRA, com o seguinte sumário: «I - O inquérito é da exclusiva titularidade do MP e só permite a intervenção pontual do juiz nos casos expressamente tipificados na lei. II - Por seu turno, encerrado o inquérito e aberta a instrução, abre-se uma fase autónoma do processado cuja direcção radica doravante no juiz de instrução, que, com total autonomia ordena as diligências que tenha por necessárias ao fim dessa fase eventual: proferir decisão instrutória. III - Do regime legal resulta, pois, que é autónoma a intervenção do MP no inquérito e do juiz de instrução na fase eventual que se lhe segue. IV - E se existe autonomia de actuação, não tem fundamente legal qualquer «ordem», nomeadamente do juiz de instrução, para ser cumprida no âmbito do inquérito por quem não deve obediência institucional, nem hierárquica a tal injunção. V - O juiz de instrução não pode devolver o processo ao MP para eventual suprimento de uma nulidade de inquérito.» - Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 05.07.2017 [processo 706/12.1TAACB-A.C1], relatado por ORLANDO GONÇALVES, no qual se afirma: «Se o Ex.mo Juiz entendia que a irregularidade era de conhecimento oficioso, então reparava ele próprio essa irregularidade por si declarada, mandando notificar a sociedade arguida através de outro meio da acusação contra ela deduzida – nomeadamente na pessoa do legal representante, que também é arguido/acusado, e que parece ser a solução por si preconizada. Como se escreve no acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 11-3-2009 - embora a propósito de uma notificação feita por via postal simples, quando o arguido não tinha prestado TIR -, uma atitude como a tomada pelo Juiz de 1.ª instância de declarar a irregularidade da notificação e devolução do processo aos Serviços do Ministério Público «…viola o princípio do acusatório subjacente à estrutura acusatória do processo penal português. De resto, sendo independente e autónoma a atuação de cada uma das Autoridades Judiciárias que dirige respetivamente a fase de inquérito e a fase de julgamento, não tem fundamento legal a decisão do juiz de julgamento no sentido de ser o Ministério Público a reparar o vício que ele próprio (juiz) declarara.»[…]. Perante o exposto entende o Tribunal da Relação que o despacho recorrido, determinando a devolução dos autos ao Ministério Público para os efeitos ali tidos por convenientes, designadamente, para que ali seja eventualmente reparada a aludida irregularidade, não pode subsistir.» - Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26.02.2013 [processo 406/10.7GALNH-A.L1-5], relatado por Alda Tomé Casimiro, com o seguinte sumário: «I-A falta de notificação da acusação do Ministério Público ao arguido constitui uma irregularidade com previsão no nº 1 do artº 123º do CPP. A falta de notificação da acusação ao arguido não afecta as suas garantias de defesa já que, chegado o processo à fase de julgamento, e tendo o Tribunal conhecimento do paradeiro do arguido, será o mesmo notificado da acusação, que poderá requerer então a instrução, para o que disporá do prazo de 20 dias. II-O Juiz (de instrução ou de julgamento) não pode determinar a devolução dos autos ao Ministério Público para que seja sanada a irregularidade concretizada na falta de notificação da acusação ao arguido, visto que tal decisão afronta os princípios do acusatório e da independência e autonomia do Ministério Público.» - Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21.11.2013 [processo 304/11.7PTPDL.L1-9], relatado por MARIA GUILHERMINA FREITAS, com o seguinte sumário: «I- A omissão da notificação do despacho de arquivamento/acusação ao mandatário do denunciante configura uma irregularidade (art.º 118.º, n.º 2, do CPP), com reflexos no exercício de direitos do denunciante, afectando dessa forma a validade de todos os actos processuais posteriores. II- Tal irregularidade é de conhecimento oficioso, ao abrigo do disposto no n.º 2 do art.º 123.º do CPP, dado que não se mostra sanada. III- Deverá, porém, a Sr.ª Juíza do tribunal a quo ordenar a reparação da irregularidade em causa, da qual conheceu oficiosamente, pelos seus próprios serviços e não ordenar a remessa dos autos aos serviços do MP, como o fez, com essa finalidade, dando sem efeito a distribuição, decisão essa que afronta os princípios do acusatório e da independência e autonomia do Ministério Público relativamente ao Juiz.» - Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 08.09.2020 [processo 3276/18.3T9SXL.L1-5], relatado por RICARDO CARDOSO, com o seguinte sumário: «- O Juiz do tribunal a quo pode conhecer oficiosamente da irregularidade relativa à falta de notificação da acusação, ao abrigo do disposto no n.º 2 do art.º 123.º do CPP na medida em que tal omissão pode vir a afectar a validade de todos os actos processuais posteriores e não se mostra sanada. - Encontrando-se os autos sujeitos à apreciação do juiz para designar data para julgamento, e sendo este competente para apreciar a irregularidade de notificação da acusação aos arguidos, é também da competência do juiz a ordem de suprimento da irregularidade detectada, a qual apenas poderá ser cumprida pelos serviços administrativos que lhe devem obediência, não podendo ser executada pelos serviços do MºPº, os quais são autónomos em razão do princípio constitucional da independência e autonomia do Ministério Público relativamente ao Juiz.» - Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 05.12.2016 [processo 823/12.8PBGMR.G1], relatado por PAULA ROBERTO, com o seguinte sumário: «I) O Ministério Público goza de independência e autonomia que não se compadecem com ordens concretas de um juiz no sentido do suprimento de uma determinada irregularidade por parte daquele. II) Daí que por falta de fundamento legal, não pode o juiz determinar a devolução dos autos ao Ministério Público para sanação de irregularidade concretizada numa notificação ao arguido de uma incorrecta identificação do defensor que lhe foi nomeado.» - Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 26.10.2020 [processo 754/19.0T9BRG.G1], relatado por ANTÓNIO TEIXEIRA, com o seguinte sumário: «I - O juiz de julgamento pode conhecer oficiosamente da irregularidade relativa à falta de notificação da acusação particular ao arguido em sede de inquérito, em consonância com o disposto no Artº 123º, nº 2, do C.P.Penal, pois que tal omissão pode vir a afectar a validade de todos os actos processuais posteriores, e não se mostra sanada. II - Tal sanação, porém, deve ser levada a cabo pelos próprios serviços do tribunal, não tendo base legal a determinação da devolução dos autos ao Ministério Público para aquele efeito, sob pena de se afrontarem os princípios do acusatório e da independência e autonomia do Ministério Público relativamente ao Juiz.» - Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14.11.2023 [processo 1778/21.3T9BRG-A.G1], relatado por CRISTINA XAVIER DA FONSECA, com o seguinte sumário: «Em caso de irregularidade de notificação da acusação em fase de inquérito, cabe ao juiz, na prolação do despacho previsto no art. 311.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, determinar a sanação da irregularidade pela secção que lhe está afecta, uma vez que o processo já está em fase de julgamento.» - Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 09.01.2024 proc. 262/21.0PCBRG.G1 relatora ISABEL GAIO FERREIRA DE CASTRO: I- Tendo detectado, no momento do artigo 311.º do Código de Processo Penal, a irregularidade da notificação da acusação relativamente a um dos arguidos, o juiz não pode determinar a devolução dos autos ao Ministério Público tendo em vista a reparação da mesma. II- Caso não exista qualquer outra questão prévia que obste ao conhecimento do mérito da causa, o juiz deve receber a acusação deduzida e designar data(s) para realização da audiência de julgamento, conforme estatui o artigo 312.º do Código de Processo Penal, e ordenar a notificação da sobredita acusação conjuntamente com o despacho que designa dia para a audiência, como prescreve o artigo 313.º, n.º 2, do mesmo diploma, seguindo-se os ulteriores regulares trâmites processuais, sem prejuízo de o arguido, no prazo legal, poder exercer a faculdade legal de, querendo, requerer a abertura de instrução, caso em que o juiz dará sem efeito a data de julgamento e ordenará a remessa dos autos para o tribunal competente para o efeito ou ponderará se é caso de determinar a cessação de conexão e separação de processos. Não obstante se reconhecer congruência a alguns dos argumentos invocados por quem entende que os autos devem ser devolvidos aos serviços do Ministério Público para sanação da invalidade de ato processual detetada, aderimos ao entendimento maioritário na jurisprudência, que defende que compete ao juiz que recebe os autos provindos dos serviços do Ministério Público e que conhece oficiosamente da invalidade, decorrente da não notificação da acusação ao arguido, determinar a sua reparação pela secção de processos que lhe está afeta, destacando-se os seguintes argumentos: - A partir da data em que é deduzida a acusação e os autos são remetidos à distribuição para julgamento saem da competência exclusiva do Ministério Público e passam a fazer parte da competência do juiz; - Estão em causa duas fases processuais autónomas – a do inquérito e a do julgamento – dirigidas por autoridades judiciárias distintas e autónomas; - O artigo 123º, n.º 2, do Código de Processo Penal, ao prever a possibilidade de “ordenar-se oficiosamente a reparação” de irregularidade, pressupõe que seja a autoridade judiciária que a detetar a tomar a iniciativa de a reparar pelos seus serviços diligenciem nesse sentido; - O princípio da economia processual, entendido como a proibição da prática de atos inúteis baseado no interesse da realização da justiça material, tem de reger a atuação do tribunal que, assim, evitará dar sem efeito a distribuição com a subsequente remessa dos autos aos serviços do Ministério Público para estes repararem a irregularidade da notificação; - A devolução dos autos ao Ministério Público tendo em vista a reparação da irregularidade contém implícita uma ordem que é violadora dos princípios do acusatório e da independência do Ministério Público (artigos 32º, n.º 5, 219º, n.º 2, da CRP e artigo 3º, n.º 1, do Estatuto do Ministério Público), inexistindo qualquer dever de obediência institucional daquela entidade à Magistratura Judicial. Na verdade, em cumprimento do disposto no artigo 311º, n.º 1, do Código de Processo Penal, que dispõe sobre o saneamento do processo, recebidos os autos no Tribunal, incumbe ao juiz apreciar as questões que obstem ao conhecimento do mérito da causa, entre as quais a invalidade de ato de notificação da acusação ao arguido, uma vez que afeta um dos direitos essenciais deste, sendo incontornável que os autos deixaram de estar na fase de inquérito e sob a alçada do Ministério Público, passando à fase de julgamento, da exclusiva competência do juiz, a quem incumbe a atividade de saneamento do processo, além de se evitar anulação de atos já praticados e que contendem com princípios estruturantes do processo penal, como seja, ao ser anulado o ato de distribuição, o princípio do juiz natural. Conclui-se assim que se impõe a anulação de todos os actos posteriores à distribuição, se profira despacho para apresentação de contestação, com recebimento da acusação, se ordene a notificação da acusação, com observância da morada correcta, (art.º 311.º, A, do CPP) seguindo-se os ulteriores regulares trâmites processuais, sem prejuízo de o arguido, no prazo legal, poder exercer a faculdade legal de, querendo, requerer a abertura de instrução, caso em que o juiz, ordenará a remessa dos autos para o tribunal competente. V. DISPOSITIVO Face ao exposto, acordam os Juízes desta 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em: - Declarar nulo todo o processado a partir do despacho de recebimento da acusação proferido em 28/10/2023, incluindo o julgamento e a sentença. - Determinar, com vista à reparação das irregularidades e nulidade em causa, a notificação da acusação ao arguido, conjuntamente com o despacho de recebimento da acusação e para apresentação de contestação, nos termos do art.º 311.º, A, do CPP, seguindo-se os regulares termos do processo em função do que vier, ou não, a ser requerido na sequência das notificações em falta. Sem custas. DN Lisboa, 20 de fevereiro de 2025 (Elaborado e revisto pela relatora, revisto pelos signatários e com assinatura digital de todos) Os Juízes Desembargadores, Maria de Fátima R. Marques Bessa Jorge Rosas de Castro(com declaração de voto infra) Nuno Matos Declaração de voto vencido Voto vencido o presente acórdão na parte em que determina que seja o juiz do julgamento a reparar a irregularidade que se reconheceu existir de falta de notificação da acusação ao Arguido. O acórdão está, também aí, muito bem fundamentado e apoiado, além do mais, em jurisprudência convergente, mas não logro acompanhá-lo - entendo que devia determinar-se o regresso dos autos ao momento em que a irregularidade foi cometida, a fim de poder ser reparada por quem a cometeu, anulando-se todos os atos subsequentes afetados pelo vício. Vejamos as coisas um pouco mais de perto, ainda que em jeito sumário. Lêem-se em dado passo no acórdão os argumentos em abono da posição que fez vencimento; expô-los-ei aqui, seguidos de uma curta nota em relação a cada um deles. § 1 «A partir da data em que é deduzida a acusação e os autos são remetidos à distribuição para julgamento saem da competência exclusiva do Ministério Público e passam a fazer parte da competência do juiz». Tudo isto é verdade se não ocorrer a anulação de atos processuais. De nenhuma norma ou princípio decorre a impossibilidade jurídico-processual de os autos regressarem à fase anterior em resultado de um vício suficientemente grave que o justifique – é da natureza própria da invalidação de atos processuais a possibilidade de o processo regressar a ponto anterior. Seguir aqui entendimento contrário levaria até, no limite, a que não pudesse sequer determinar-se o regresso à fase de inquérito de um processo em que o Ministério Público, por manifesto lapso, tivesse determinado a remessa dos autos à distribuição para julgamento sem despacho de encerramento do inquérito. Por outro lado, não faz parte da competência do juiz do julgamento praticar atos próprios de inquérito, como a notificação de uma acusação ainda é, à luz do art. 283º, nº 5 do Código de Processo Penal e da localização sistemática deste preceito. § 2 «O artigo 123º, n.º 2, do Código de Processo Penal, ao prever a possibilidade de “ordenar-se oficiosamente a reparação” de irregularidade, pressupõe que seja a autoridade judiciária que a detetar a tomar a iniciativa de a reparar pelos seus serviços diligenciem nesse sentido» Decerto que a irregularidade em causa pode ser reparada por iniciativa oficiosa - isso é uma coisa. Coisa diferente é saber em que termos e a quem cabe essa reparação. O juiz do julgamento, detetando a irregularidade, pode e deve conhecer da sua existência e determinar a prática dos atos tendentes à sua reparação; não vejo, porém, como daí possa partir-se para a pressuposição de que é ele, juiz de julgamento, a quem caberá, necessária e forçosamente, o concretizar dessa reparação, assumindo competências originariamente atribuídas ao Ministério Público. § 3 «O princípio da economia processual, entendido como a proibição da prática de atos inúteis baseado no interesse da realização da justiça material, tem de reger a atuação do tribunal que, assim, evitará dar sem efeito a distribuição com a subsequente remessa dos autos aos serviços do Ministério Público para estes repararem a irregularidade da notificação». O princípio da economia processual tem que estar sempre presente – é verdade. Mas do que se trata é de aproveitar o que pode ser aproveitado; já não se trata de aproveitar o que, sendo aproveitado, se traduz num entorse da dinâmica geral do processo, como este de fazer-se em substância regressar o processo a ponto anterior mas sem o assumir abertamente; na verdade, veja-se que a posição que faz vencimento determina que se pratique na fase de julgamento um ato que em substância ainda é de inquérito. Por outro lado, não se vê que particular delonga seria introduzida no processo pela circunstância de, ao invés do procedimento contemplado no acórdão, os autos regressassem à fase de inquérito; na verdade, aí regressados, decerto que o/a Magistrado/a do Ministério Público mais não faria que ordenar a notificação do Arguido. § 4 «A devolução dos autos ao Ministério Público tendo em vista a reparação da irregularidade contém implícita uma ordem que é violadora dos princípios do acusatório e da independência do Ministério Público (artigos 32º, n.º 5, 219º, n.º 2, da CRP e artigo 3º, n.º 1, do Estatuto do Ministério Público), inexistindo qualquer dever de obediência institucional daquela entidade à Magistratura Judicial» e «estão em causa duas fases processuais autónomas – a do inquérito e a do julgamento – dirigidas por autoridades judiciárias distintas e autónomas» A estrutura acusatória do processo traduz-se no essencial na distinção e na autonomia entre a entidade que acusa e as entidades que fazem a instrução e o julgamento. Nada disso está aqui em causa, tanto mais que a acusação está já formulada – do que se trata é de a fazer cumprir no segmento da notificação ao Arguido, fazendo por essa via o fecho do inquérito e a transição regular dos autos para o julgamento. Por outro lado, o Ministério Público deve obediência à lei (e nomeadamente à norma que, sem qualquer dúvida, impõe a notificação da acusação) e está obrigado, como todas as entidades, a respeitar e cumprir as decisões judiciais transitadas em julgado em tudo quanto estas não interfiram nos seus juízos de oportunidade e nas margens válidas de compreensão dos factos e de interpretação jurídica. Não vejo aí nenhum drama ou interferência nas competências ou na autonomia do Ministério Público. Reconheço que poderá haver um certo melindre em face da estrutura acusatória do processo penal, sim, mas ao contrário, isto é, na própria posição seguida pelo acórdão: repare-se que é o juiz do julgamento quem acabará por fazer chegar ao arguido a acusação, e que é o juiz do julgamento que cumprirá o último ato próprio de inquérito (a notificação do despacho do Ministério Público que determinou o seu encerramento), no que me parece ser uma confusão institucional um pouco bizarra. § 5 «Na verdade, em cumprimento do disposto no artigo 311º, n.º 1, do Código de Processo Penal, que dispõe sobre o saneamento do processo, recebidos os autos no Tribunal, incumbe ao juiz apreciar as questões que obstem ao conhecimento do mérito da causa, entre as quais a invalidade de ato de notificação da acusação ao arguido, uma vez que afeta um dos direitos essenciais deste, sendo incontornável que os autos deixaram de estar na fase de inquérito e sob a alçada do Ministério Público, passando à fase de julgamento, da exclusiva competência do juiz, a quem incumbe a atividade de saneamento do processo, além de se evitar anulação de atos já praticados e que contendem com princípios estruturantes do processo penal, como seja, ao ser anulado o ato de distribuição, o princípio do juiz natural.» Esta passagem do acórdão encerra um argumento novo em relação aos atrás tocados: o princípio do juiz natural. Este princípio, nos termos em que o mesmo se encontra consagrado no art. 32º, nº 9 da Constituição da República Portuguesa, implica que «nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior». Ora, numa situação como aquela de que aqui se trata, o ato de distribuição deve ser anulado por determinação do próprio juiz (e não por qualquer ação arbitrária de terceiro que lhe subtraísse a causa), no âmbito do conhecimento das questões prévias a que está vinculado por força do art. 311º, nº 1 do Código de Processo Penal, e tendo em conta um vício anterior do qual resulta a anulação do processado subsequente, processado este que assentaria na inexistência daquele vício. Em nada seria afetado, na minha perspetiva, o princípio do juiz natural. Dito isto, ocorre-me ainda acrescentar algumas observações complementares. Primeira observação: o processo penal é composto por fases tendencialmente estanques, pressupondo o sistema que se passa de uma fase para a seguinte quando a anterior estiver regularmente finda. Percebendo-se que o encerramento regular da fase anterior não existiu, por vício relevante para a marcha do processo, como é o caso, a boa ordem e a lógica natural das coisas manda que não se abra a nova fase. É essa aliás uma das ideias essenciais do art. 311º do Código de Processo Penal: a de permitir perceber se os autos podem ou não seguir para julgamento. Em boa verdade, de resto, a autuação do processo na fase judicial depende congruentemente da prolação ou da convalidação de despacho nesse sentido, como se vê ter sucedido nos autos com os dizeres tabelares correspondentes, apostos no despacho de 28 de outubro de 2023 («autue como processo comum, com intervenção do tribunal singular»). Segunda observação: a competência do tribunal resulta da lei e, com a ressalva adiante mencionada, não vejo onde se encontre estabelecido que o juiz do julgamento possa ou deva cumprir ou ordenar que se cumpra um ato próprio do Ministério Público. Aliás, acrescente-se lateralmente, há frequentes vezes especificidades das notificações do despacho final do Ministério Público que só o Ministério Público e os seus Serviços dominam e a que estão subordinados, como por exemplo comunicações hierárquicas ou a entidades várias. Terceira observação: a lógica seguida pelo acórdão devia poder aplicar-se a situações próximas, e não vemos como; imaginemos que não só o arguido, mas também o ofendido, não fora notificado; pior, imaginemos que o despacho é simultaneamente de arquivamento e de acusação: como lidar com a possibilidade de o ofendido, no prazo de 20 dias depois de esgotado o período para requerer a instrução, querer suscitar a intervenção hierárquica do art. 278º do Código de Processo Penal? Tem também o juiz de julgamento que cumprir a notificação ao ofendido e aguardar o fim daquele prazo suplementar? Quarta observação: há apenas um caso, e nessa medida excecional, em que o Código de Processo Penal admitiu que o processo transitasse do inquérito para a fase de julgamento sem cumprimento eficaz da notificação da acusação – é o previsto pelo art. 283º, nº 5, que vem a articular-se depois com o regime da contumácia e seus efeitos, nos termos contidos nos arts. 335º a 337º. Quinta observação: a posição que o acórdão acolhe dá um contributo, com o devido respeito o digo, para a normalização de um vício. Se de cada vez que os Serviços do Ministério Público se equivocam nas (ou omitem as) notificações da acusação, vier a ser o juiz do julgamento a suprir as faltas, por que hão de tais Serviços encarar esse momento das notificações com preocupação pelo escrupuloso cumprimento da lei? Afinal de contas, o juiz do julgamento e a Secção de Processos a seguir resolverão sempre o problema… Imagine-se o que isto pode significar no dia a dia de um tribunal ou num megaprocesso. Por fim, apenas uma nota complementar para sublinhar que a posição que adopto tem também forte apoio na jurisprudência, como aliás se menciona no texto do acórdão, como tem ainda a concordância de António Latas (Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, tomo IV, Almedina, 2022, pgs. 42-43). _______________________________________________________ 1. Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995 2. Acórdão do STJ de 29.01.2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB. S1, 5ª Secção. |