Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
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| Relator: | CARLOS CASTELO BRANCO (VICE-PRESIDENTE) | ||
| Descritores: | ESCUSA JUIZ ADVOGADO MANDATO IMPARCIALIDADE | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 10/29/2024 | ||
| Votação: | DECISÃO INDIVIDUAL | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Texto Parcial: | N | ||
| Meio Processual: | ESCUSA | ||
| Decisão: | INDEFERIMENTO | ||
| Sumário: | O contacto e o conhecimento havido entre a Sra. Juíza e os advogados que mandatou para a defender em procedimento ocorrido em 2018 (remotamente localizado há 6 anos a esta parte) e em contexto profissional (no âmbito e por causa do mandato conferido), não justificam, por si só, a suspeita de quebra da imparcialidade do julgador, nem determinam, objetivamente (não tendo sido alinhada qualquer outra factualidade para além da acima referenciada) a exoneração da Sra. Juíza relativamente ao processo em questão, não se mostrando que, também subjetivamente, existam circunstâncias que, por virtude de tal contacto havido, possam fazer perigar o concreto comportamento do julgador. | ||
| Decisão Texto Parcial: | |||
| Decisão Texto Integral: | I. A Sra. Juíza de Direito “A”, a exercer funções no Tribunal da Propriedade Intelectual – Juízo da Propriedade Intelectual – Juiz (…), veio requerer, ao abrigo do estabelecido no artigo 119.º do CPC, seja dispensada de intervir no processo n.º (…)/24.7YHLS (procedimento cautelar), no qual é mandatário o Advogado, Dr. “B”. Para tanto, invocou, em suma, que: - Constituiu o referido Advogado, bem como o Dr. “C”, como mandatários no âmbito de resposta que formulou junto do Conselho Superior da Magistratura, na sequência de proposta de relatório de inspecção apresentado no processo de inspecção extraordinária n.º (…)/2018; - Tal circunstância obrigou a que os referidos Advogados tivessem assegurado o direito de resposta no âmbito do referido procedimento e que, nessa medida, tenha sido estabelecida entre a requerente e os mesmos uma relação de confiança profissional e, nesse âmbito, a partilha de informação reservada, na defesa daquilo que se concluiu ter sido não só o assegurar da sua posição processual mas, também, da legalidade. Conclui que, “na dúvida quanto à leitura” dos referidos factos se viu “na necessidade de apresentar o presente pedido de escusa”. * II. Nos termos plasmados no nº. 1 do artigo 119º do CPC, o juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir que seja dispensado de intervir na causa quando se verifique algum dos casos previstos, no artigo 120.º do CPC e, além disso, quando, por outras circunstâncias ponderosas, entenda que pode suspeitar-se da sua imparcialidade. O juiz natural, consagrado na Constituição da República Portuguesa, só pode ser recusado quando se verifiquem circunstâncias assertivas, sérias e graves. E os motivos sérios e graves, tendentes a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador resultarão da avaliação das circunstâncias invocadas. O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) – na interpretação do segmento inicial do §1 do art.º 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (“qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei”) - desde o acórdão Piersack v. Bélgica (8692/79), de 01-10-82 (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-57557) tem trilhado o caminho da determinação da imparcialidade pela sujeição a um “teste subjetivo”, incidindo sobre a convicção pessoal e o comportamento do concreto juiz, sobre a existência de preconceito (na expressão anglo-saxónica, “bias”) face a determinado caso, e a um “teste objetivo” que atenda à perceção ou dúvida externa legítima sobre a garantia de imparcialidade (cfr., também, os acórdãos Cubber v. Bélgica, de 26-10-84 (https://hudoc.echr.coe.int/ukr?i=001-57465), Borgers v. Bélgica, de 30-10-91, (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-57720) e Micallef v. Malte, de 15-10-2009 (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-95031) ). Assim, o TEDH tem vindo a entender que um juiz deve ser e parecer imparcial, devendo abster-se de intervir num assunto, quando existam dúvidas razoáveis da sua imparcialidade, ou porque tenha exteriorizado relativamente ao demandante, juízos antecipados desfavoráveis, ou no processo, tenha emitido algum juízo antecipado de culpabilidade. O pedido de escusa terá por finalidade prevenir e excluir situações em que possa ser colocada em causa a imparcialidade do julgador, bem como, a sua honra e considerações profissionais. Efetivamente, não se discute se o juiz mantém, ou não, a sua imparcialidade, mas visa-se, preventivamente, a defesa de uma suspeita, ou seja, o de evitar que sobre a decisão do julgador recaia qualquer dúvida sobre a sua imparcialidade. A imparcialidade do Tribunal constitui um requisito fundamental do processo justo. O direito a um julgamento justo, não se trata de uma prerrogativa concedida no interesse dos juízes, mas antes, de uma garantia de respeito pelos direitos e liberdades fundamentais, de modo a que, qualquer pessoa tenha confiança no sistema de Justiça. Do ponto de vista dos intervenientes nos processos, é relevante saber da neutralidade dos juízes face ao objeto da causa. “O pedido de escusa constitui, a par do incidente de recusa, um meio excepcional de afastar um Juiz de um processo. Tem, assim, de ser usado com ponderação, cautela e parcimónia, tanto mais que redunda num desvio ao princípio do Juiz natural, constitucionalmente consagrado, que visa assegurar precisamente a isenção e independência de um Magistrado quando toma uma decisão. Além disso há que ter presente que, no âmbito do pedido de escusa, não se pode sindicar a actividade jurisdicional da Juíza peticionante, ou seja, não interessa apurar se as decisões deste são ou não são justas, equilibradas e conformes ao direito, actividade essa reservada, como se sabe, aos recursos. Apenas interessa averiguar se ocorre alguma situação objectiva que, por fragilizar a independência e/ou a imparcialidade do Juiz, possa justificadamente minar a confiança pública na administração da justiça. O pedido de escusa de juiz tem de respeitar unicamente a processos concretos e não a todos os processos em que intervenham os advogados com os quais a Meritíssima Juíza mantém um litígio judicial” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 11-12-2007, Pº 2222/07-1, rel. FERNANDO RIBEIRO CARDOSO). Na realidade, o deferimento de uma escusa (ou recusa) “têm como consequência a modificação de regras essenciais do processo, máxime do princípio do juiz natural” (assim, Mouraz Lopes, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, 2.ª edição, Almedina, 2022, p. 510), pelo que, a “abertura do leque da escusa (ou recusa) sem critério exigente, além de torpedear o princípio constitucional do juiz natural e de limitar o poder e o direito judicatório do mesmo, acabaria por fazer implodir o sistema judiciário com as sucessivas escusas (ou recusas)” (cfr., o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01-03-2023, Pº 122/13.8TELSB-BQ.L1-A.S1, rel. ORLANDO GONÇALVES). No n.º 1 do artigo 120.º do CPC consagram-se diversas situações em que ocorre motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador, nomeadamente: a) Se existir parentesco ou afinidade, não compreendidos no artigo 115.º, em linha reta ou até ao 4.º grau da linha colateral, entre o juiz ou o seu cônjuge e alguma das partes ou pessoa que tenha, em relação ao objeto da causa, interesse que lhe permitisse ser nela parte principal; b) Se houver causa em que seja parte o juiz ou o seu cônjuge ou unido de facto ou algum parente ou afim de qualquer deles em linha reta e alguma das partes for juiz nessa causa; c) Se houver, ou tiver havido nos três anos antecedentes, qualquer causa, não compreendida na alínea g) do n.º 1 do artigo 115.º, entre alguma das partes ou o seu cônjuge e o juiz ou seu cônjuge ou algum parente ou afim de qualquer deles em linha reta; d) Se o juiz ou o seu cônjuge, ou algum parente ou afim de qualquer deles em linha reta, for credor ou devedor de alguma das partes, ou tiver interesse jurídico em que a decisão do pleito seja favorável a uma das partes; e) Se o juiz for protutor, herdeiro presumido, donatário ou patrão de alguma das partes, ou membro da direção ou administração de qualquer pessoa coletiva parte na causa; f) Se o juiz tiver recebido dádivas antes ou depois de instaurado o processo e por causa dele, ou se tiver fornecido meios para as despesas do processo; g) Se houver inimizade grave ou grande intimidade entre o juiz e alguma das partes ou seus mandatários. De todo o modo, o magistrado tem de traduzir os escrúpulos ou as razões de consciência em factos concretos e positivos, cujo peso e procedência possam ser apreciados pelo presidente do tribunal (assim, Alberto dos Reis; Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. I, p. 436). O pedido será apresentado antes de proferido o primeiro despacho ou antes da primeira intervenção no processo, se esta for anterior a qualquer despacho. Quando forem supervenientes os factos que justificam o pedido ou o conhecimento deles pelo juiz, a escusa será solicitada antes do primeiro despacho ou intervenção no processo, posterior a esse conhecimento (n.º 2 do artigo 119.º do CPC). Definindo a lei que o Juiz não é livre de, espontaneamente e sem motivo, declarar a sua potencial desconfiança em relação ao conflito de interesses a dirimir na ação, o legislador logo se preocupou em identificar os casos em que razões de ética jurídica impõem que ele não deva intervir em determinada causa e condensadas no princípio de que não pode ser levantada contra o Juiz da causa a mais ténue desconfiança orientada no sentido de que, o juízo que vai fazer sobre a questão posta pelas partes, poderá estar envolto em interesses sombrios e difusos e, por isso, passível de estar eivado de imperfeições que condicionem a sua liberdade de decisão. “Para tanto, foi preciso estabelecer um regime legal que fizesse o necessário equilíbrio entre um possível posicionamento de puro absentismo - declarar a sua parcialidade para se eximir ao julgamento de um intrincado litígio (era este um sistema possível nas Ordenações, porquanto permitia que o juiz fosse afastado do pleito desde que, mesmo sem adiantar qualquer razão, mediante juramento asseverasse a sua suspeição) - e a situação, deveras desprestigiante, de o Juiz ter de esperar que algum dos litigantes viesse trazer este dado ao Tribunal, circunstancialismo que ele já havia conjecturado e ao qual nunca poderia deixar de dar o seu assentimento” (assim, a decisão do Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães de 14-06-2004, Pº 329/04-1, em http://www.dgsi.pt). * III. No caso em apreço, a Sra. Juíza requerente vem invocar que constituiu o Advogado, Dr. “B” (e outro Advogado) no âmbito de procedimento de resposta ao relatório inspetivo do CSM, que formulou em 2018, referindo que, com os referidos advogados foi estabelecida “uma relação de confiança profissional e, nesse âmbito, a partilha de informação reservada, na defesa daquilo que se concluiu ter sido não só o assegurar da sua posição processual mas, também, da legalidade”. Cumpre liminarmente referir que não se verifica caso de impedimento, nos termos do disposto no artigo 115.º, n.º 1, al. d) do CPC, sendo que, de harmonia com o n.º 2 do mesmo preceito, tal impedimento só se verifica quando o mandatário já tenha começado a exercer o mandato na altura em que o juiz foi colocado no respetivo juízo, sendo que, na hipótese inversa, é o mandatário que está inibido de exercer o patrocínio. O artigo 120.º do CPC - aplicável às situações de escusa – por remissão do artigo 119.º do CPC – salvaguarda diversas situações – tipificadas nas várias alíneas do n.º 1 – em que existe circunstância ponderosa relacional que determina que possa suspeitar-se da imparcialidade do julgador. No caso, nenhuma das alíneas do artigo 120.º consagra a situação invocada como suspeita, não se aferindo, pela mera relação entre mandatário e julgador situação ponderosa que permita suspeita sobre a imparcialidade do julgador. Mas, para além disso, o contacto e o conhecimento havido entre a Sra. Juíza e os advogados que mandatou para a defender em procedimento ocorrido em 2018 (remotamente localizado há 6 anos a esta parte) e em contexto profissional (no âmbito e por causa do mandato conferido), não justificam, por si só, tal suspeita, nem determinam, objetivamente (não tendo sido alinhada qualquer outra factualidade para além da acima referenciada) a exoneração da Sra. Juíza relativamente ao processo em questão, não se mostrando que, também subjetivamente, existam circunstâncias que, por virtude de tal contacto havido, possam fazer perigar o concreto comportamento do julgador. As circunstâncias relatadas pela Sra. Juíza não fazem concluir que o mero conhecimento do Advogado referenciado – um entre os vários mandatados pela ora requerente do procedimento cautelar em questão – e a relação havida no âmbito do referido procedimento inspetivo da Sra. Juíza requerente (de confiança, é certo, mas em razão da preparação da resposta dada no âmbito do processo inspetivo, de natureza estritamente profissional) em virtude do mandato que lhe foi conferido há uns anos pela Sra. Juíza, relevem no sentido de poder inculcar alguma quebra da imparcialidade devida pelo julgador dos autos. Os pedidos de escusa pressupõem situações excecionais em que pode questionar-se sobre a imparcialidade devida ao julgador, o que, em face do referido, entendemos não se patentear no caso. * IV. Pelo exposto, desatende-se a pretensão de escusa formulada pela Sra. Juíza de Direito “A”. Sem custas. Notifique. Baixem os autos.
Lisboa, 29-10-2024, Carlos Castelo Branco (Vice-Presidente, com poderes delegados – cfr. Despacho 2577/2024, de 16-02-2024, D.R., 2.ª Série, n.º 51/2024, de 12 de março). |