Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
787/22.0PBMTA.L1-5
Relator: ANA CLÁUDIA NOGUEIRA
Descritores: HOMICÍDIO QUALIFICADO
PERÍCIA PSIQUIÁTICA
PERÍCIA SOBRE A PERSONALIDADE
IMPUTABILIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: I.–Para que se mostre justificada, por necessária e adequada, a realização de prova pericial, terão que encontrar-se alegados, pela acusação ou pela defesa, ou resultarem da discussão da causa, factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou medida de segurança aplicáveis, para cuja perceção e compreensão, por depender de conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos, se mostre pertinente e indispensável a perícia - arts. 124º e 151º/1, do Código de Processo Penal.

II.–Sendo alegada pela defesa a inimputabilidade da arguida no momento da prática dos factos, e encontrando-se apuradas circunstâncias concretas que apontam para a possibilidade de aquela ter sofrido de anomalia psíquica incapacitante da avaliação da ilicitude da sua conduta, o meio de prova adequado a fazer prova desse facto, cuja produção deve por isso ser ordenada, é a perícia médico-legal de psiquiatria.

III.–A anomalia psíquica que constitui o substrato da inimputabilidade como previsto sob o art. 20º/1 do Código Penal, pode ser acidental e transitória e inclui não apenas a doença mental (com base orgânica), mas também as psicoses exógenas e endógenas, a oligofrenia, as psicopatias, as neuroses, as taras sexuais, as perturbações profundas de consciência (patológicas ou não patológicas).

IV.–Nenhum juiz com um nível de formação normal se encontra habilitado com os conhecimentos científicos médicos necessários para diagnosticar uma anomalia psíquica.

V.–A tarefa de integração normativa quanto ao juízo de (in)capacidade do arguido para avaliar a ilicitude do facto ou para se determinar de acordo com essa avaliação, reportado ao momento da sua prática, carece de uma «estreita e frutuosa colaboração do perito com o juiz» sem prejuízo de neste particular caber ao juiz, peritus peritorum («perito dos peritos»), a última palavra – cit. Figueiredo Dias.

VI.–«A perícia sobre a personalidade [prevista sob o art. 160º do Código de Processo Penal] constitui um instrumento de apoio técnico aos tribunais, de natureza psico-sócio-jurídica (…) [que] Ao contrário do que é requerido numa perícia psiquiátrica … não tem como objetivo a avaliação psicológica, com vista ao estabelecimento de um diagnóstico, mas antes a compreensão do funcionamento do sujeito, e perceber, à luz desse funcionamento, a motivação subjacente para os factos alegadamente praticados» - cit. Rute Agulhas e Alexandra Anciães.

VII.–Havendo nos autos registos clínicos dos quais decorre ter a arguida sido acompanhada em Psiquiatria, com diagnóstico de depressão e personalidade com traços borderline, sendo ainda mencionadas duas tentativas de suicídio na ferrovia, é forçoso concluir que existe, pelo menos, uma dúvida razoável quanto à sua saúde mental e interferência que a mesma possa ter exercido no momento da prática do facto, a qual apenas pode ser removida através da realização da perícia médico-legal de psiquiatria.

(Sumário da responsabilidade da relatora)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes que compõem a 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


I.– RELATÓRIO


1.–Vem o presente recurso interposto pela arguida AA:
do despacho intercalar proferido em 05/12/2023 pelo qual foi indeferida a realização de perícia psiquiátrica na sua pessoa;
do acórdão proferido em processo comum por tribunal coletivo, pelo qual foi condenada na pena de 16 (dezasseis) anos de prisão pela prática de um crime de Homicídio qualificado, previsto e punido pelos arts. 131º e 132º/e) e j), do Código Penal.
2.–A arguida recorrente peticiona:
Seja o despacho de indeferimento da perícia forense psiquiátrica substituído por outro que ordene a sua realização;
a sua condenação pelo crime de homicídio privilegiado, ao invés de qualificado e, caso, assim não se entenda, ser aplicada uma pena especialmente atenuada ou no seu mínimo legal.

Formula para tanto as seguintes conclusões [transcrição]:

Recurso intercalar
«(…)
I.–Versa o presente recurso do despacho que indeferiu a perícia médica psiquiátrica oportunamente requerida pela recorrente na sua Contestação, pela qual sucessivamente insistiu no decorrer do julgamento, por haver notícias suficientes nos autos da sua pertinência e necessidade para a descoberta da verdade.
II.–De facto, face aos elementos constantes dos autos é forçoso concluir que, pelo menos existe um dúvida quanto à saúde mental da arguida, tendo em conta o seu historial médico documentado no processo (personalidade borderline - que é uma anomalia psíquica grave cfr Lei da Saúde Mental), agravado pela violência prolongada de que foi vítima, e pela ideação suicida que actualmente evidencia, pelo que não sendo a Mma. Juiz uma perita médica, nem sendo o Relatório de Personalidade e esclarecimentos prestados .com total ignorância do historial clínico), apto a aferir ou descartar anomalias psíquicas, afigura-se necessária a realização da dita perícia;
III.–Pelo que se impunha ao Tribunal a quo ao abrigo do princípio da investigação e descoberta da verdade material, expressamente previsto no artigo 340º do CPP, que, em virtude dos elementos probatórios constantes dos autos, que ordenasse a realização da perícia psiquiátrica que permitisse chegar a uma conclusão quanto à imputabilidade da arguida ou à sua imputabilidade diminuída.
IV.–Em suma, impõe-se a revogação do despacho recorrido, atento o disposto nos artigos 151º, 154º n.º 1 e 340º todos do CPP.
Nestes termos, deve o presente recurso merecer inteiro provimento e, em consequência, deve o despacho recorrido ser substituído por outro que ordene a realização da PERÍCIA FORENSE MÉDICO-PSIQUIÁTRICA a afectuar pelo IML, ao qual deverão ser remetidos os elementos relevantes, nomeadamente:
documentação médica da arguida, "extractos" dos processos crime em que a arguida foi queixosa/ofendida .com acuidade em que a aqui vítima foi denunciado), gravação das declarações prestadas pela arguida na audiência de julgamento, e das gravações das testemunhas, com acuidade do exmarido e pai da vítima, com os seguintes quesitos:
a)-Qual o quadro psicofísico da arguida na ocasião dos factos e actualmente?
b)-Qual a sua capacidade para avaliar o alcance dos seus actos e de se determinar de acordo com eles, na data dos factos e actualmente?
c)-Qual o seu grau de imputabilidade ou ininputabilidade, à data dos factos e actualmente?
d)-Se à data dos factos a arguida actuou sob perturbação emocional (emoção violenta) num quadro de estado de afeto que lhe diminuiu consideravelmente a culpa?
e)-E se tal perturbação, doença ou anomalia psíquica possuiu carácter acidental e bem assim se possui carácter permanente ou temporário, com incidência do seu grau de perigosidade.
Perícia médica psiquiátrica forense esta, absolutamente necessária e imprescindível para uma conclusão quanto à imputabilidade da arguida ou à sua imputabilidade diminuída, e por conseguinte essencial ao enquadramento jurídico dos factos no tipo legal de homicídio qualificado e verificação de todas as circunstâncias (qualificativas e desqualificativas).
Em suma, perícia fundamental ao apuramento da existência de culpa e perturbação que a diminua consideravelmente, e assim concomitantemente essencial à boa decisão da causa.
(…)».
Recurso da decisão final
«(…)
a)-O Tribunal a quo formou a sua convicção para o apuramento dos factos que aqui nos interessam, em elementos probatórios restritamente seleccionados, incongruentes e contraditórios, em valorações erróneas, e em suposições erradas.
b)-Da factualidade vertida na decisão em crise, e da renovação da prova gravada, se constata erros e se colhe que faltam elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para se poder formular um juízo seguro sobre a dinâmica em que os factos ocorreram, o contexto de violência prévia prolongada, enfim a culpabilidade e desculpabilidade da conduta da arguida, ou seja os factos provados encontram-se incorrectamente julgados, não se encontrando respaldo probatório para justificar a decisão de facto e a versão alvitrada pelo Tribunal a quo;
c)-Conforme resulta do dispositivo em crise, a perplexidade do juízo levado a cabo pelo Tribunal não encontra respaldo na prova concatenada nos autos, baseando-se em excluivo no depoimento contraditório, pouco consistente e inverosímil da assistente;
d)-É atentatório que a convicção do Tribunal se tenha baseado unicamente em excertos do depoimento da assistente, incongruente e inverosímil, que esteve presente e que não viu qualquer golpe.
e)-Ou seja não poderia o Tribunal a quo fundamentar a sua convicção única e exclusivamente no relato enfabulado, enviusado e não coincidente da assistente que não foi capaz de apresentar uma versão credível dos factos,
f)-Perante duas versões contraditórias, deveria o Tribunal a quo se cercado dos outros elementos que corroboram manifestamente a versão da arguida, que é credível e que encontra respaldo em toda a restante prova.
g)-Como é sabido, no final de toda a produção de prova, esta é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente. (art. 127º do Código de Processo Penal) Significa isto que “não se trata de uma apreciação arbitrária, mas sim do produto da convicção susceptível de motivação e controlo que existirá quando, e só quando, o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos, para além da dúvida razoável”(Cfr. Prof. Figueiredo Dias, Dtº Proc. Penal, vol. I, p.193).
h)-Urge concluir, face ao douto acórdão proferido, que as Mma.Juizes a quo não realizaram de forma plenamente satisfatória as exigências de objectividade, lógica e motivação que o princípio da livre apreciação postula, pelo que, não existindo prova legal ou tarifada, o concreto uso que fizeram do material probatório posto à sua disposição, de forma a atingir uma dada convicção, é susceptível de censura.
i)-Aduz-se ainda a preterição de princípios processuais penais dominantes em matéria de prova, maxime o princípio “in dubio pro reo.” Este princípio é o correlato processual do princípio da presunção da inocência do arguido, significando isto que gozando o arguido da presunção de inocência (artigo 32, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa), toda e qualquer dúvida com que o tribunal fique reverterá a favor daquele.
j)-Ora, afigura-nos, in casu, que o Tribunal a quo haja logrado alcançar a “certeza”, a convicção positiva ou negativa da verdade prática.
k)-É nosso parecer que ressalta de forma límpida do texto do acórdão condenatório, maxime da motivação, não poderem ter as Meritíssimas Juizes a quo, após ponderada reflexão sobre a prova recolhida, obtido convicção plena, porque subtraída a qualquer dúvida razoável, sobre a não verificação de um contexto pretérito e actual e ilícito de violência por parte da vítima;
l)-O princípio in dubio pro reo é desrespeitado quando o Tribunal, colocado em situação de dúvida irremovível na apreciação das provas, decidir, em tal situação, contra o arguido. In casu, considerando a conjugação da prova documental, pericial, dos depoimentos prestados e nos precisos termos que constam da acórdão recorrido, é nossa plena convicção que teria obrigatoriamente de subsistir a dúvida no espírito do julgador, pelo que, salvo melhor opinião, consideramos que haveria razão que sustentasse, validamente, a aplicação do princípio in dubio pro reo.

m)-Entende a recorrente que os factos provados 4, 7, 10 a 15 não deveriam ter sido dados por provados, nem assim mantidos, por erro notório na apreciação da prova, devendo ser alterados passando a constar:
1.–o relacionamento entre o BB e a arguida era pautado por agressões físicas e morais, ameaças, intimidações e humilhações deste, tendo a arguida apresentado denúncias criminais pela prática de factos integradores de um crime de violência doméstica, a primeira em 19/11/2021 (processo nº 696/21.0PBMTA) em que denunciou que o filho a injuria com vários impropérios por ela sair à noite para se divertir com amigos e lhe arremessou um frasco de perfume atingindo-a na cabeça, de seguida agredindo a irmã com um jornal na face. Que o mesmo se recusa a abandonar a residência, assim como se recusa a entregar as chaves da porta, tornando-se por vezes muito agressivo, e a segunda denúncia em 06/10/2022 (processo 633/22.4PBMTA) em que denunciou que o mesmo forçou a sua presença na habitação, recusando-se a sair da mesma, nada contribuindo para as despesas, que a chama de PUTA, DROGADA, ANDAS A DAR NA CONA, DEVIAS PARAR MAIS TEMPO EM CASA; que a situação piorou desde o início de Junho quando o mesmo levou a sua namorada CC para morar com ele na sua casa, que nenhum deles trabalha, permanecem na habitação o dia todo, sem contribuir nem ajudar nas tarefas diárias; que o suspeito é muito agressivo verbalmente ameaçando-a dizendo SE EU SAIR DAQUI TU TAMBÉM NÃO FICAS AQUI QUE EU QUEIMO A CASA; SE DIRIGIRES MAIS UMA VEZ A PALAVRA A BRUNA QUANDO ARRANJAR ÁCIDO ATIRO-TE COM ELE. (...) Que a sua filhamenorduranteasfériasdeverãopresenciavadiariamenteasconstantes discussões verbais e físicas entre o seu irmão e a dita namorada CC, pelo que com receio da sua integridade física trancava-se no quarto, aditando em 13/10/2022, que o filho sempre foi agressivo verbalmente, que já a agrediu fisicamente porque não queria que ela mantivesse contacto com um amigo; que o mesmo não pode ser contrariado ofendo-a e chamando-a de DROGADA, ÉS UMA PUTA, VACA, BÊBADA, VOU-TE MATAR, QUALQUER DIA ESFAQUEIO-TE, APANHO-TE A DORMIR ATIRO-TE ÁCIDO, SE MUDARES A FECHADURA VOU QUEIMAR A PORTA E QUEIMO A CASA CONTIGO E OS GATOS LÁ DENTRO; que o mesmo não trabalha e é consumidor de produtos estupefacientes, há cerca de 6 meses levou a namorada de 29 anos lá para casa, com quem também é agressivo; que no ano passado o mesmo mostrou-lhe a si e à irmã menor, UMA PISTOLA DE PEQUENO PORTE DE COR CINZENTA e algumas munições, que o mesmo embrulhou num pano e levou de volta para o seu quarto, dizendo que era para a sua defesa.
2.–As ofensas verbais são diárias, o mesmo não é de acordo que ela namore, ofendendo-a, dizendo-lhe diversas vezes ANDAS NA PUTARIA, QUANDO PASSARES POR MIM E PELOS MEUS AMIGOS NÃO OLHES PARA NÓS
3.–a arguida já havia pedido inúmeras vezes ao BB e à Assistente para abandonarem a sua casa, o que o BB se recusava perentoriamente a fazer.
4.–no dia 20 de dezembro de 2022 cerca das 23h00 ao chegar à sua residência e ao constatar que o lava-louça estava cheio de louça por lavar, arremessou alguns para o chão, dizendo que estava farta de os aturar e que tinham que sair da sua casa.
5.–que o BB ao ver a mãe a partir os pratos foi no seu encalce, empurrando-a e fazendo com que a mesma caísse no chão, tendo de seguida lhe desferido pontapés, agarrado com as mãos nos seus cabelos, dizendo-lhe e fazendo o movimento descendente para o chão, dizendo agora vais varrer isto tudo com a tua cara;
6.–que quando a mesma lhe pediu para parar pois estava com falta de ar e precisava da bomba da asma ele lhe disse “não, agora é que vais morrer puta do caralho”,
7.–que a mesma tentou agarrar-se à mesa da sala de jantar para se levantar, tendo puxado a toalha e com tal movimento caído no chão uma faca que ali se encontrava em cima da mesa,
8.–que quando persistindo as agressões voltou a cair no chão, agarrou na faca e conseguindo se libertar e posicionar nas costas do BB desferiu-lhe um golpe no tronco na zona do externo
9.–que ao ser atingido, e quando a assistente já descia as escadas gritando por socorro, o BB gritou “CC corre corre pede ajuda, estou a sangrar muito”
10.–que a assistente ao ouvir tais expressões, teve intenção de voltar a subir, tido sido impedida pela vizinha, que lhe disse para descer e pedir ajuda.
11.–A arguida tinha medo do filho e nos últimos meses sentia-se pressionada, desesperada, deprimida, e muito chorosa.

n)-Os factos enquadram-se no crime de homicídio privilegiado, uma vez que o Tribunal a quo (que não dispõe de razão de ciência) não permitiu obter e se munir de qualquer prova pericial (avaliação forense médico psiquiátrica) que infirmasse ou caraterizasse a “explosão de emoção violenta”
o)-Com base na prova produzida, o primeiro golpe foi desferido numa situação de legítima defesa e o homicídio que acabou por ser perpretado pela arguida enquadra-se no artº 133º do Código Penal, pois que aquela actuou sob compreensível emoção violenta ou desespero, devendo a mesma ser condenada numa pena de prisão de 1 a 5 anos, o que se requer.
p)-Por fim, na esteira de ao presente recurso, nos fundamentos e motivos supra expostos não ser dado cabal provimento, sempre se dirá que o acórdão em crise deverá ser corrigido quanto à pena em concreto a aplicar à arguida, numa pena especialmente atenuada não superior a seis anos de prisão, em conjugação com o disposto no art. 72.º.1 e 2.a) e b) CP e 73.º.1.b) do mesmo diploma legal, ou caso assim não se entenda, deve a arguida ser condenada, o que se requer ainda subsidiariamente numa pena fixada no seu limite mínimo.
q)-No entendimento da recorrente foram violadas as seguintes normas
(…)».

3.–O recurso do acórdão condenatório foi admitido a subir nos próprios autos, de imediato e com efeito suspensivo; e muito embora não tenha sido proferido despacho de admissão do recurso intercalar interposto da decisão de 05/12/2023, de indeferimento da perícia psiquiátrica forense, supriu-se tal irregularidade em sede de exame preliminar.
4.– Notificado o Ministério Público do requerimento e alegações de recurso, veio em resposta subscrever os fundamentos das decisões recorridas, entendendo deverem ser mantidas e julgados os recursos improcedentes.
5.–Subidos os autos a esta Relação, o Exm.º Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer em que, acompanhando a argumentação das respostas aos recursos em primeira instância, pugna pela parcial procedência do recurso do acórdão condenatório «reduzindo-se a pena para próximo do mínimo legal»
6.–Foi dado cumprimento ao disposto no art. 417º/2 do Código de Processo Penal, sem que a arguida se pronunciasse.
7.–O processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia da com o preceituado no art. 419º/3, b) do Código de Processo Penal.

II–FUNDAMENTAÇÃO

1.–QUESTÕES A DECIDIR

Como é jurisprudência pacífica, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – como sejam a deteção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto emergentes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras experiência comum, previstos no art. 410º/2 do Código de Processo Penal, e a verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos do art. 379º/2 e 410º/3, do mesmo código – é pelas conclusões extraídas pela recorrente na motivação apresentada que se delimita o objeto do recurso e se fixam os limites de cognição do tribunal superior.

Assim, são as seguintes as questões a decidir:

1.ª-Deveria ter sido deferida a realização de perícia forense de psiquiatria na pessoa da arguida para aferição da sua imputabilidade?
2.ª-Ocorre vício de violação do princípio in dubio pro reo?
3.ª-A prova produzida impunha decisão diferente da tomada quanto aos pontos 4., 7., 10. a 15., dos factos provados, existindo erro de julgamento?
4.ª-Os factos provados enquadram-se no crime de homicídio privilegiado, tendo a arguida atuada sob compreensível emoção violenta ou desespero?
5.ª-Deverá a pena a aplicar à arguida fixar-se no mínimo legal?

2. ––– APRECIAÇÃO DOS RECURSOS

1.-Do Recurso Intercalar

Do Iter Processual e Despacho Recorrido

Em 22/12/2022 foi a arguida, detida em flagrante delito, sujeita a primeiro interrogatório judicial, vindo a ficar indiciada pela prática de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos arts. 131º/1 e 132º/1 e 2, a), e) e j), do Código Penal e sujeita à medida de coação de prisão preventiva;
Em 20/06/2023 foi deduzido despacho de acusação contra a arguida para julgamento perante Tribunal Coletivo pela prática de crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131º e 132º/1 e 2, a), e) e j) do Código Penal, com fundamento nos seguintes factos:
1.–BB, nasceu em ... de ... de 2002 e é filho da arguida AA.
2.–No início de 2021, BB foi residir com a sua mãe na residência desta, sita na ..., no ....
3.–BB não trabalhava nem estudava vivendo a expensas da arguida.
4.–O relacionamento entre BB e a arguida foi sempre pautado por conflitos, tendo a arguida apresentado queixa contra o mesmo pela prática de um crime de violência doméstica, que deu origem ao inquérito n.º 633/22.4PBMTA que correu termos no Núcleo de Ação Penal desta SEIVD e no qual foi proferido despacho de arquivamento em 3 de janeiro de 2023.
5.–Juntamente com a arguida e com BB residia CC, namorada de BB e DD, nascida a ........2007, filha da arguida e irmã do BB.
6.–Há cerca de duas semanas, a arguida dirigiu-se a EE, sua vizinha, e disse-lhe que estava farta do filho, que não o queria lá em casa, que o tiro que BB havia levado há um tempo atrás deveria ter sido na cabeça e que qualquer dia se passava e que quem o matava era a própria.
7.–No dia 20 de dezembro de 2022, cerca das 23h00, ao chegar à sua residência e após verificar que a casa se encontrava desarrumada, a arguida dirigiu-se à cozinha e arremessou pratos contra o chão, partindo-os.
8.–Após, a arguida agarrou em vários pratos e dirigiu-se à porta do quarto de BB, local onde este se encontrava com a namorada CC.
9.–Naquele local, a arguida arremessou os pratos contra o chão, partindo-os.
10.–Confrontada por BB acerca dos motivos de tal comportamento, a arguida disse-lhe que estava farta do aturar e que tinha que sair de casa.
11.–BB solicitou à arguida que se acalmasse e que se não o fizesse iria chamar a polícia.
12.–Ao que, a arguida se dirigiu a BB e disse “podes chamar, chama que é isso que eu quero”.
13.–E, em ato continuo dirigiu-se à cozinha da residência, local onde se muniu de uma faca de cozinha com o cabo em madeira com 12 cm de cabo e 15 cm de lâmina.
14.–Ao ver a arguida agarrar na faca, BB dirigiu-se à mesma dizendo “tem calma, estás a fazer o quê”.
15.–Seguidamente, a arguida, empunhando a aludida faca, correu na direção de BB.
16.–Receando o comportamento da arguida, BB fugiu na direção da sala da residência, tendo sido perseguido pela arguida.
17.–Em ato contínuo, a arguida, empunhando a faca acima descrita, dirigiu-se a BB e desferiu-lhe golpes no tronco.
18.–Ao ouvirem os gritos de BB e na sequência do pedido de ajuda de CC, FF e EE, vizinhas da arguida, dirigiram-se à residência da arguida.
19.–Ao presenciar a conduta da arguida, FF dirigiu-se-lhe e disse “que fizeste AA, para que ele já não está a resistir”.
20.–Nesse momento, a arguida agarrou numa das pernas de BB, que aparentava encontrar-se inconsciente, e puxou-o arrastando-o até ao corredor da residência ao mesmo tempo que, por várias vezes, disse “ele está a fingir” e “fiz o que tinha de ser feito, ele tem de morrer, ele merece”.
21.–De seguida, a arguida colocou-se sobre o corpo de BB e, ao mesmo tempo que disse “ele vai morrer, ele tem de morrer”, empunhando a aludida faca, desferiu-lhe um golpe no pescoço, golpes no tronco e pontapés na cabeça.
22.–Enquanto a arguida levava a cabo a conduta supra descrita, FF gritava para que a mesma parasse e fez menção de a agarrar, apenas não o logrando fazer porquanto a arguida apontou a faca na sua direção.
23.–Ao que, FF, receando o comportamento da arguida, fugiu do local.
24.–Seguidamente, a arguida voltou a desferir golpes no tronco de BB.
25.–De seguida, GG, vizinho do 2.º esquerdo, de modo a fazer com que a arguida cessasse com a sua conduta, agarrou-a e retirou-lhe a faca das mãos.
26.–Enquanto era agarrada pelo vizinho, a arguida, com as pernas, agarrou BB pelo pescoço e, por várias vezes, disse “ele ainda não morreu, mas eu vou matá-lo, vou matá-lo”.
27.–Em certo momento, a arguida conseguiu soltar-se do vizinho e dirigiu-se a BB e desferiu-lhe um pontapé na cabeça.
28.–Após ser detida pelos agentes da PSP que se deslocaram ao local a arguida dirigiu-se a EE e disse “vês eu disse que o ia fazer e fiz”.
29.–Em consequência direta e necessária da conduta da arguida, BB sofreu várias lesões traumáticas:

I)–Hábito externo:
(…)Cabeça: escoriação malar esquerda, oblíqua inferoposteriormente, com 1cm de comprimento.
Pescoço: A. Ferida cortoperfurante na face lateral esquerda do pescoço, oblíqua inferoposteriormente, com 1,5 cm de comprimento e diástase de 0,6cm.
Tronco:
Três feridas supraclaviculares esquerdas, oblíquas inferomedialmente:
B.–a mais lateral, cortoperfurante, com 2cm de comprimento e diástase de 0,6cm;
C.–a do meio, cortante, com 1,1cm de comprimento e diástase de 0,6cm, com pequena cauda terminal na extremidade inferior;
D.–a mediana, cortante, superficial, com 1x0,4cm, com pequena cauda terminal na extremidade inferior.
E.–Ferida cortante infraclavicular direita, horizontal, superficial, com 5,4cm de comprimento e 0,2cm.
F.–Ferida cortoperfurante sobre a clavícula esquerda, inferiormente à ferida B, com 1cm de comprimento e diástase de 0,3cm.
G.–Ferida cortoperfurante sobre o apêndice xifóide, mediana, oblíqua inferolateralmente, com 3,5cm de comprimento e diástase de 1cm, com cauda terminal na extremidade inferior (esquerda).
(…)

II)–Hábito Interno:

CABEÇA:
(…)
Meninges: dura – máter e leptomeninges íntegras. Hemorragia subdural na convexidade parieto-occipital esquerda.
Encéfalo: parênquima globalmente edemaciado e congestionado, sem lesões traumáticas. Vasos da base sem deposição lipídica evidente.
PESCOÇO:
Tecido celular subcutâneo e músculos: solução de continuidade do tecido celular subcutâneo e dos músculos esternocleidomastoideu, esternohioideu e esternotiroideu esquerdos, e tirohioideus, bilateralmente (em relação com as feridas A e B), com infiltração hemorrágica. Infiltração hemorrágica dos músculos esternocleidomastoideu e esternohioideu direitos, sem solução de continuidade.
Vasos e nervos: rolo vásculo-nervoso (carótida, jugular e vago) íntegro, bilateralmente. Artérias carótidas comuns com estrias lipídicas dispersas.
Osso hioide e estruturas cartilagíneas: íntegros, com infiltração hemorrágica ao nível da lâmina da cartilagem tiroide (em relação com a ferida A).
Laringe e traqueia: solução de continuidade da epiglote à esquerda e da membrana tiroideia bilateralmente, com infiltração hemorrágica (em relação com a ferida A). Mucosa rosada. Com escassa quantidade de fragmentos alimentares parcialmente digeridos.
Glândula tiroide: acastanhada, sem nódulos nem quistos.
Faringe e esófago: serosa com solução de continuidade (em relação com a ferida B). Parede íntegra. Mucosa rosada. Com escassa quantidade de fragmentos alimentares parcialmente digeridos.
TÓRAX:
Paredes: infiltração hemorrágica difusa em relação com as feridas descritas ao exame do hábito externo.
Esterno: fratura do apêndice xifoide, com infiltração hemorrágica (em relação com a ferida G).
(…)
Pericárdio e cavidade pericárdica: solução de continuidade do saco ao nível da face posterolateral direita, com extensa infiltração hemorrágica (em relação com a ferida G). Hemopericárdio quantificado em 125 ml.
Coração: laceração transfixante da face posterolateral do ventrículo direito, com infiltração hemorrágica (em relação com a ferida G). (…)
Válvulas: cúspides móveis. Sem calcificações.
Artérias coronárias: três vasos sem deposição lipídica evidente.
Aorta: com escassas estrias lipídicas dispersas.
Artéria Pulmonar: sem alterações macroscópicas.
Traqueia e brônquios: parede íntegra. Mucosa rosada. Contendo abundante quantidade de sangue e de fragmentos alimentares parcialmente digeridos.
Pleuras parietais e cavidades pleurais: sem derrames. Sem aderências.
Pulmões e pleuras viscerais: superfície lisa. Parênquima crepitante, arroxeado e congestivo. (…)
Esófago: parede íntegra. Mucosa rosada. (…)”
30.–Tais lesões foram causa direta e adequada da morte de BB.
31.–Ao agir da forma supra descrita a arguida atuou com o propósito de tirar a vida a BB, seu filho, o que efetivamente fez, utilizando uma faca, cujas características bem conhecia, desferindo vários golpes em zonas corporais que sabia alojarem órgãos e estruturas vitais à vida.
32.–Agiu a arguida com forte determinação em causar a morte a morte da vítima, seu filho, golpeando-o com uma faca em zonas corporais que sabia alojarem órgãos vitais, perseguindo na sua conduta mesmo após verificar que a vítima se encontrava inconsciente, bem sabendo que tal conduta era apta a causar a morte, o que previu e quis.
33.–Com a sua conduta, a arguida agiu com frieza de ânimo, com desconsideração total da vida humana da vítima, causando-lhe sofrimento e agonia, e consequentemente, a sua morte.
34.–A arguida conhecia as características da faca que detinha, bem sabendo que a mesma potencia gravemente a lesão da integridade física de outras pessoas, sendo apta para ferir e para matar, tendo-a utilizado na concretização da sua conduta, conforme previu e quis.
35.–A arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.».

Em 10/08/2023 foi proferido despacho de recebimento da acusação.
Em 04/09/2023 mediante requerimento com a referência 36889131 a arguida apresentou contestação oferecendo o merecimento dos autos, juntou o seu rol de testemunhas e requereu a realização de Perícia Psiquiátrica para avaliação de inimputabilidade.
Por despacho de 06/09/2023 foi a contestação admitida tendo relativamente à perícia requerida sido decidido o seguinte:
«(…)
Mais vem a defesa requerer a realização de uma perícia psiquiátrica, mas sem que em momento algum alega qualquer facto, ou patologia anterior, que fundamente a necessidade de realização de tal perícia. Assim, deverá a defesa, em 5 dias, esclarecer qual a patologia de que a arguida padece, esclarecer qual o acompanhamento médico que a mesma tem, juntar eventuais relatórios médicos e autorização da mesma para aceder aos seus elementos médicos/clínicos e indicação onde esteve ou está a ser acompanhada.».

No mesmo despacho, foi ainda determinado o seguinte:
«Atenta a leitura da decisão acusatória, e atenta a forma como os factos se mostram descritos, entende o Tribunal que se mostrará relevante apurar a situação da personalidade da arguida através de realização de Perícia sobre as suas características psíquicas, nos termos do artigo 160.º, do C.P.P., pelo que deverá ser requerida a realização da mesma à DGRSP, com urgência. Remeta cópia da acusação.

Em 15/09/2023 veio a arguida dar resposta ao solicitado, por requerimento de com a referência a 37002897, esclarecendo o seguinte:
«A defesa da Arguida requereu a realização de Perícia Psiquiátrica, ao abrigo do disposto no art. 160º do Código de Processo Penal, porquanto entende ser pertinente para o apuramento da verdade material e boa decisão da causa, avaliar a Arguida neste particular, atendendo a que a mesma já teve comportamentos auto lesivos na prisão, que já haviam vários processos de violência doméstica a decorrer e principalmente porque a Arguida já tinha sido aconselhada pelo Médico de Família no sentido de ser seguida em Psiquiatria e sempre negou e nunca foi submetida nem a avaliação, nem a tratamento. Pelo que, a Perícia deverá ser realizada, sendo que deverão os Senhores Peritos responder aos seguintes quesitos (se possível for):
1)-Qual o quadro psicofísico da arguida, à data dos factos?
2)-Qual a sua capacidade para avaliar o alcance dos seus actos e de se determinar de acordo com eles, à data dos factos?
3)-Qual o seu grau de perigosidade, à data dos factos e actualmente?
4)-Qual o seu grau de imputabilidade ou inimputabilidade, à data dos factos e actualmente?
Mais se requer sejam extraídas cópia dos presentes autos a fim de serem analisadas pelos Senhores Peritos, designadamente: cópia do auto de notícia ou denúncia, auto de interrogatório, acusação, processos pendentes e Certificado de Registo Criminal.

Em 19/09/2023 foi proferido despacho de designação de julgamento com a referência 428648553, determinando-se o seguinte:

«No que respeita à requerida perícia psiquiátrica, continua a defesa a nada alegar sobre eventual questão de anomalia psíquica de que a arguida padeça, ou tenha padecido, pelo que por ora se entende que não se mostra pertinente a sua realização. Aguardarão os autos pela junção da perícia psicológica já ordenada e que responderá de forma conseguida às questões colocadas no requerimento que antecede.».

Foi iniciado o julgamento em 04/10/2023, com a tomada de declarações à arguida e às testemunhas, e finda essa sessão veio a ser proferido o seguinte despacho:

«Solicite ao ... o episódio de urgência da arguida AA que terá ocorrido no dia 21-12-2022, e igualmente todo o processo clínico da mesma constante no devido hospital dos dias de facto em questão e do dia seguinte relatório hospitalar se a arguida foi assistida, fazendo constar expressamente que a arguida deu autorização a que o Tribunal tenha acesso ao mesmo.

Oficie ao DIAP da Moita e à Seivd do Seixal para que nos sejam remetidas cópias de todas as queixas /denuncia/participação crimes que a arguida apresentou contra o ofendido BB e igualmente cópias dos despachos finais proferidos.

Por se mostrar pertinente para a decisão da causa e ao abrigo do artigo 340º do CPP determina-se a inquirição do agente HH, melhor identificado a fls. 4.
(…)».

Em 26/10/2023 foi apresentado o Relatório Social e de Personalidade da arguida subscrito pelo Técnico Superior da DGRSP que se identifica como Psicólogo Clínico, com as seguintes conclusões:

«6.–CONCLUSÕES

Da avaliação efetuada conclui-se que:
O processo de desenvolvimento de AA foi marcado por acontecimentos precoces negativos, como sejam, a entrega da mesma aos cuidados da madrasta e alegado progenitor e a disfuncionalidade do modo de vida deste agregado na presença simultânea da mãe biológica. O não estabelecimento de vinculações afetivas securizantes bem como a incerteza em relação à sua paternidade afetou negativamente a construção da sua identidade, modelo este relacional que a mesma veio, mais tarde, a reproduzir com para com a sua família constituída;
Do ponto de vista cognitivo a arguida apresenta um nível inferior à média do seu grupo etário, aspeto que surge correlacionado com falhas precoces ao nível das vinculações parentais, bem como a ausência de estímulos intelectuais e à entrada tardia no contexto escolar, sendo por isso passível para ser responsabilizada pelos seus atos;
Evidencia frieza e distanciamento afetivo, não expressando sentimentos de afeto, quando se refere à vítima, revelando, assim, existência de traços de personalidade de natureza antissocial, entre os quais se destaca a dificuldade conformar-se com regras e convenções sociais, a existência de um estilo de comunicação pautado por omissões e distorções da realidade, um deficiente controlo comportamental que leva a manifestações de agressividade, bem como uma postura de desresponsabilização ou de responsabilização externa do seu comportamento que reduzem a capacidade de aprender com as experiências de vida;
A vivência em família numerosa onde sempre foi vista “como uma filha diferente”, citando o ex-companheiro, parece ter originado uma repressão das suas emoções, as quais, a determinada altura, são exteriorizadas de forma primária e de acordo com o princípio do prazer imediato;
Em privação da liberdade há sensivelmente 10 meses, assume uma atitude de externalização do seu comportamento, vitimizando-se face aos factos pelos quais se encontra acusada, o que configura um fator de risco criminógeno. Esta minimização, representa uma distorção cognitiva e constitui um fator de risco e um indicador negativo em relação à inflexão do comportamento.
Assim, atendendo aos elementos avaliados e à especificidade da natureza e gravidade dos factos pelos quais AA se encontra acusada, consideramos que beneficiaria de um acompanhamento psicológico que lhe permitisse resolver atitudes e crenças disfuncionais que manifesta relativamente a si própria e aos outros, bem como desenvolver competências de gestão emocional, controlo comportamental e relacionamento interpessoal, por forma a reduzir o risco de exibição de condutas anti-normativas e violentas no futuro, as quais podem surgir exteriorizadas de forma auto e/ou heteroagressiva, sendo de destacar a sintomatologia de ideação suicida que evidenciou.»
Nesse relatório constam, entre outras referências relativas à trajetória de vida da arguida e relação com a vítima, seu filho, as seguintes:
«(…)
Segundo o ex-companheiro (II), a relação deste com a arguida foi descrita como turbulenta, com altos e baixos (sic), motivada pelo consumo de bebidas alcoólicas por parte da mesma que se agravou muito com o falecimento do filho mais velho de AA, há sensivelmente 18 anos, por afogamento, na ..., no ....
Esta situação terá tido um impacto negativo significativo ao nível emocional e afetivo da arguida. Segundo a mesma fonte, AA foi acompanhada em psiquiatria com indicação para internamento por depressão, agravada pelos episódios imoderados de consumo de álcool, tendo realizado várias tentativas de suicídio, duas delas por precipitação para a via férrea.
(…)
Acerca dos factos pelos quais está acusada, AA menciona que a sua relação com o filho, (vítima), “sempre foi muito difícil” (sic), porque este foi uma criança muito instável e problemática, adotando, desde cedo, uma postura desafiante e de oposição com os adultos e com os pares, motivo que a levou a entregá-lo ao progenitor quando o mesmo contava 11 anos de idade. Menciona, a este propósito, que o filho aos 14 anos esfaqueou um colega na escola e, por volta dos 15/16, esfaqueou outro jovem da sua idade. Alude, também, corroborado pelo ex-companheiro, que a vítima chegou a ser baleada duas vezes, por rixas e acerto de contas entre grupos rivais, atendendo ao percurso delinquente que o mesmo trilhava.
Em dezembro de 2021, após o progenitor o ter retirado de sua casa, por suspeita de venda ilícita de substâncias estupefacientes, este foi, novamente, viver com a arguida, no agregado também composto pela filha mais nova da reclusa e pela companheira do primeiro que, entretanto, veio a engravidar.
A relação com a vítima foi descrita como imprevisível. Segundo a arguida, o filho poderia estar bem-disposto como no segundo seguinte, porque contrariado, ficava muito violento, com comportamentos de agressividade verbal e física. Refere, também, que era raro o dia em que a roupa da vítima não estava “salpicada de sangue” (sic), narrando, assim, aquilo que apelidou de um temperamento muito agressivo da vítima nos vários contextos por onde se movia.
Ainda a este propósito, AA relata um conflito do filho com um companheiro da arguida, referindo que este terá partido a porta da casa de banho da residência, agredido e expulsado da habitação o referido sujeito.
(…)».
No exercício do contraditório em relação a este relatório, a defesa da arguida apresentou requerimento em 06/11/2023, pelo qual, além do mais, expôs o seguinte:

1.º-A referida perícia não foi elaborada por psicólogo forense;
2.º-Contém factos que não correspondem à realidade, pois a arguida apenas teve episódios de consumo "imoderado" / "excessivo" de álcool no âmbito da depressão por morte do filho, e há mais de 14 anos, tendo na altura realizado várias tentativas de suicídio, duas delas com precipitação para a via férrea, para o qual obteve tratamento. Não tendo posteriormente ou atualmente nenhum problema com consumo de álcool.
3.º-O referido relatório é insuficiente no que tange ao percurso profissional e integração familiar (3 filhas e netos) sendo totalmente omisso no que tange aos antecedentes de saúde, não aferindo portanto, nem descartando quaisquer patologias psiquiátricas;
Mais
4.º-A sobredita perícia não responde minimamente aos quesitos, quer de quadro psicofísico, capacidade e inimputabilidade em razão das concretas circunstâncias dos factos ou anomalias psíquicas, cujas respostas são absolutamente essenciais à boa decisão da causa; De facto,
5.º-O relatório em apreço parte do crime de homicídio qualificado (e seu desvalor) para sem mais acomodar juízos e resultados opinativos e qualificar a personalidade da arguida.
(…)
8.º-Com acuidade, o NUIPC 696/21.0PBMTA em que a arguida apresentou queixa em 20-11-2021 indicando que o filho lhe havia atirado um frasco de perfume contra a sua cabeça, tendo recebido tratamento hospitalar - suturada com dois pontos), queixando-se que o mesmo está sempre a chamá-la "DROGADA, PUTA, VACA, BÊBADA" DIZENDO "VOU-TE MATAR, QUALQUER DIA ESFAQUEIO-TE, APANHO-TE A DORMIR E A TIRO-TE ÁCIDO, SE MUDARES A FECHADURA VOU QUEIMAR A PORTA E QUEIMO A CASA CONTIGO E COM OS GATOS LÁ DENTRO", que o mesmo é consumidor de produtos estupefacientes, guarda na sua casa algumas quantidades de produto, desconfiando que o mesmo vende.
Que o mesmo lhe terá mostrado a si e à filha menor, uma pistola e munições, que poderá ainda ter no seu quarto.
Que as ofensas verbais são diárias e que o mesmo não é de acordo que ela namore, dizendo-lhe ANDAS NA PUTARIA, QUANDO PASSARES POR MIM E PELOS AMIGOS NÃO OLHES PARA NÓS
(…)
10.º-Sendo absolutamente patente, pelas informações e prova já mediada, que a arguida desde jovem, tem tido uma vida sofrível, sido sistematicamente vítima de violência e agressões, por vários homens, e pela vítima (o que foi já amplamente corroborado e mediado em julgamento pelas várias testemunhas quer da acusação quer da defesa).
(…)
13.º-Enfim, partindo apenas da qualificação e da perversidade do homicídio levada a cabo no libelo acusatório, a perícia efectuada por profissional que não é psicólogo forense, assenta em factos/premissas que não correspondem à realidade e olvida por completo o contexto em que o crime ocorreu, o estado psicológico da arguida aquando do seu cometimento, o antecedente e actual estado de saúde da arguida (com ideação suicida), eventual existência de patologias, surtos psicóticos, e stress ante e pós traumático, o que inquina forçosamente a percepção, avaliação, e os resultados insertos no relatório.
(…)
15.º-A dita perícia, ainda que emanada da DGRSP, talvez por incorretamente partir da acomodação da qualificação do facto criminoso e se encontrar realizada por mero psicólogo clínico, não tem a qualidade pericial exigível nem se apresenta credível do ponto de vista do juízo cientifico,
16.º-Sendo completamente omissa na resposta aos quesitos (que a perícia requerida pela defesa oportunamente indicou e que -de resto- o Tribunal esperava também obter);
17.º-Não logrou sequer considerar o estado emocional e capacidade psicológica da arguida no momento da prática do crime;
18.º-Não logrou contextualizar, enquadrar e compreender os sentimentos de revolta e injustiça;
19.º-Integrar a desresponsabilização e vitimização;
20.º-e compaginar ou explicar a frieza extrema com a ideação suicida patenteada, não se olvidando por certo que durante toda a segunda sessão de julgamento foi por todos e seguramente pelo Tribunal também observado que a arguida permaneceu sempre a chorar;
(…)
24.º-Assim, é por demais evidente que a dita perícia inquinada sob falsas premissas/factos, não procedeu convenientemente à avaliação das características psíquicas (personalidade), pois que não aferiu sequer da sua independência de causas patológicas;
25.º-Manifestamente não avaliou corretamente a culpa da arguida;
26.º-E lamentavelmente assenta em antecedentes criminais inexistentes, problemas de adição ou falta de afecto, limpeza ou organização, que também não ocorrem, interpretando e integrando erroneamente os dados de acordo com o seu juízo opinativo.
PELO QUE NÃO PODERÁ RELEVAR PARA APURAMENTO DA VERDADE
Assim, apenas por cautela de patrocínio, a par dos esclarecimentos que o dito técnico deverá prestar em audiência de discussão e julgamento, o que desde já se requer.
Vem a defesa da arguida, considerando quer as declarações da própria, quer toda a profícua prova já mediada, que apontam claramente para um contexto de vitimização por violência e humilhação prolongada e para um quadro psicológico de desespero e estado de afecto, reforçar o pedido e absoluta necessidade para a realização de uma PERÍCIA FORENSE MÉDICO-PSIQUIÁTRICA a afectuar pelo IML, ao qual deverão ser remetidos os elementos relevantes, nomeadamente documentação médica da arguida, "extractos" dos processos crime em que a arguida foi queixosa/ofendida .com acuidade em que a aqui vítima foi denunciado), gravação das declarações prestadas pela arguida na audiência de julgamento, e das gravações das testemunhas, com acuidade do exmarido e pai da vítima, com os seguintes quesitos:
a)-Qual o quadro psicofísico da arguida na ocasião dos factos e actualmente?;
b)-Qual a sua capacidade para avaliar o alcance dos seus actos e de se determinar de acordo com eles, na data dos factos e actualmente?;
c)-Qual o seu grau de imputabilidade ou inimputabilidade, à data dos factos e actualmente?
d)-Se à data dos factos a arguida actuou sob perturbação emocional (emoção violenta) num quadro de estado de afeto que lhe diminuiu consideravelmente a culpa ?
e)-E se tal perturbação, doença ou anomalia psíquica possuiu carácter acidental e bem assim se possui carácter permanente ou temporário, com incidência do seu grau de perigosidade.
Perícia médica psiquiátrica forense esta, absolutamente necessária e imprescindível ao enquadramento jurídico dos factos no tipo legal de homicídio qualificado e verificação de todas as circunstâncias (qualificativas e desqualificativas), em suma, perícia fundamental ao apuramento da existência de perturbação que diminua consideravelmente a culpa, e por conseguinte essencial à boa decisão da causa.».

Nesta sequência, por despacho de 09/11/2023 com a referência 430132435 o Tribunal a quo proferiu o seguinte despacho:
«Pronunciar-nos-emos sobre a perícia psiquiátrica após a junção dos elementos clínicos já solicitados, pois que, até ao momento não existe qualquer diagnostico de doença psiquiátrica grave relevante. Será notificado o perito médico para que o mesmo posso prestar esclarecimentos em julgamento.».

Em 16/11/2023, com a referência 430426656 foi junto aos autos o histórico dos registos clínicos da arguida dos últimos 10 anos, resultando do mesmo, além de vários episódios de urgência em que apresentava ferimentos alegadamente ocasionados por namorados ou companheiros:
i.-Relatório para o médico de família datado de 15/11/2023 subscrito pela psiquiatra Dra. JJ no ..., com o seguinte teor: «Observei a D. AA hoje numa primeira consulta de Psiquiatria. Parece-me afecta de personalidade com traços borderline (com impulsividade e baixa tolerância a frustração) num contexto de luto patológico.
Medico com: (…)
Tem indicação para continuar a psicoterapia já iniciada pela psicóloga do vosso centro de saúde, uma vez que já tem uma relação terapêutica estabelecida que me parece muito favorável e devido também aos nossos muito limitados recursos humanos.»
ii.-Primeira consulta de psiquiatria em 09/07/2010 com a mesma Psiquiatra com diagnóstico de «luto patológico e personalidade com traços borderline».
iii.-Em 10/03/2015 consulta de psiquiatria, sendo sido prescritos os medicamentos sertralina e quetiapina;
iv.-em 11/11/2022 teve episódio de urgência hospitalar por estado de inconsciência/síncope com a indicação: «crise de ansiedade derivado do filho estar internado no hospital e não o poder ver.

Na sessão de julgamento de 16/11/2023 foi proferido o seguinte despacho:
«Concede-se prazo de 10 dias para a defesa da arguida se pronunciar sobre elementos clínicos. (…)
Notifiquem-se do teor dos documentos referentes às queixas que chegaram ao processo o Ministério Publico, a defesa da arguida e a assistente.
(…)
Designo o próximo dia 5 Dezembro de 2023, pelas 14 horas para continuação da próxima sessão de julgamento.».

Por requerimento datado 04/12/2023, referência 37780673, a defesa da arguida apresentou requerimento mediante o qual, além do mais, expôs e requereu o seguinte:
«(…)
2.º–Por pertinente à boa decisão de causa, considerando que nem o sobredito relatório nem os esclarecimentos do senhor Perito lograram responder aos quesitos; quer de quadro psicofísico, capacidade e inimputabilidade em razão das concretas circunstâncias dos factos ou anomalias psíquicas (falta de dados/informações), cujas respostas são absolutamente essenciais à boa decisão da causa, requer-se igualmente despacho que se pronuncie sobre a requerida (em tempo) e absolutamente necessária PERÍCIA FORENSE MÉDICO-PSIQUIÁTRICA, essencial para avaliar o estado emocional e capacidade psicológica da arguida no momento da prática do crime, quadro psicológico de desespero e estado de afecto; e correctamente
avaliar das características psíquicas (personalidade), independente de causas patológicas (devendo neste conspecto relevar o Relatório de Psiquiatria da Dra. JJ 09/07/2010 junto aos autos, que apontava para transtorno de personalidade borderline);
PERÍCIA FORENSE MÉDICO-PSIQUIÁTRICA a afectuar pelo IMLao qual deverão ser remetidos os elementos relevantes, nomeadamente documentação clínica do ... da arguida, "extractos" dos processos crime em que a arguida foi queixosa/ofendida com acuidade em que a aqui vítima foi denunciado, especificamente a CERTIDÃO INFRA), gravação das declarações prestadas pela arguida na audiência de julgamento, e das gravações das testemunhas, com acuidade do ex-marido e pai da vítima, com os seguintes quesitos:
a)-Qual o quadro psicofísico da arguida na ocasião dos factos e actualmente?;
b)-Qual a sua capacidade para avaliar o alcance dos seus actos e de se determinar de acordo com eles, na data dos factos e actualmente?;
c)-Qual o seu grau de imputabilidade ou inimputabilidade, à data dos factos e actualmente?
d)-Se à data dos factos a arguida actuou sob perturbação emocional (emoção violenta) num quadro de estado de afeto que lhe diminuiu consideravelmente a culpa ?
E se tal perturbação, doença ou anomalia psíquica possuiu carácter acidental e bem assim se possui carácter permanente ou temporário, com incidência do seu grau de perigosidade.
Perícia médica psiquiátrica forense esta, absolutamente necessária e imprescindível ao enquadramento jurídico dos factos no tipo legal de homicídio qualificado e verificação de todas as circunstâncias (qualificativas e desqualificativas), em suma, perícia fundamental ao apuramento da existência de perturbação que diminua consideravelmente a culpa, com consequente alteração da qualificação jurídica para o crime de homicídio privilegiado,
(…)
4.º–Ademais, por igualmente ser necessário à boa decisão requer a junção da certidão do inquérito no 633/22.4PBMTA da 4a secção Seixal DIAP Regional de Lisboa, no qual foram incorporados os autos n o 696/21.0PBMTA, do qual resulta os seguintes factos, por ordem cronológica:
696/21.OPBMTA
Fls.30 e seguintes:
a)-A arguida apresentou queixa contra o ofendido em 19-11-2021 por este a ter agredido, arremessando uma garrafa de perfume que a atingiu na cabeça e ter também agredido a sua filha menor DD, irmã daquele, com um jornal que utilizou para lhe bater na face;
b)-A referida queixa deu entrada na Unidade Central em 24-11-2021 e foi registada e distribuída em 09-12-2021 com o n o 696/21.0PBMTA e autuada como ofensa à integridade física simples;
c)-A arguida prestou declarações em 23-12-2021 em que confirmando a queixa, aditou que o filho foi para sua habitação há cerca de dois meses, mas que na segunda semana começou a incumprir as regras; que tal situação origina bastantes discussões que o mesmo a injuria com vários impropérios devido ao facto desta sair à noite para se divertir com amigos; que no meio da discussão o ali denunciado pegou num frasco de perfume e atirou-o em sua direcção atingindo-a na cabeça e de seguida agrediu a irmã com um jornal na face. Que o mesmo se recusa a abandonar a residência assim como se recusa a entregar as chaves da porta, tornando-se por vezes muito agressivo. "Continua a desejar procedimento criminal contra o denunciado" (fls. 34,35)
d)-O denunciado foi constituído arguido em 18-01-2022 e não prestou declarações (fls.36)
Ora, inacreditavelmente
e)-Os autos prosseguiram com a magistrada do Ministério Público a ordenar que a queixosa fosse contactada para apurar se (volvido um mês !?)) a mesma mantinha o desejo de procedimento criminal (fls.38) !? e na inacção daquela, insistindo mesmo por essa declaração de vontade por escrito, através de notificação por OPC (fls.40) o que veio a acontecer por mero e-mail de 22-03-2022. (fls.41)
f)-Também inacreditavelmente - por os factos não serem de todo susceptíveis de integrar a prática de um crime de ofensa à integridade física simples (o que veio a ser declarado cfr despacho de fls. 26) - lamentavelmente os referidos autos foram arquivados por homologação de tal inusitada e pedida desistência de queixa. (fls.42 e 43)
633/22.4PBMTA
g)-Em 06-10-2022 a arguida volta (naturalmente) a apresentar queixa, relatando os factos anteriormente denunciados, que o mesmo forçou a sua presença na habitação, recusando-se a sair da mesma, nada contribuindo para as despesas, que a chama de PUTA, DROGADA, ANDAS A DAR NA CONA, DEVIAS PARAR MAIs TEMPO EM CASA; que a situação piorou desde o início de Junho quando o mesmo levou a sua namorada CC para morar com ele na sua casa, que nenhum deles trabalha, permanecem na habitação o dia todo, sem contribuir nem ajudar nas tarefas diárias; que o suspeito é muito agressivo verbalmente ameaçando-a dizendo SE EU SAIR DAQUI TU TAMBÉM NÃO FICAS AQUI QUE EU QUEIMO A CASA; SE DIRIGIRES MAIs UMA VEZ A PALA VRA A BRUNA QUANDO ARRANJAR ÁCIDO A TIRO-TE COM ELE. (...) Que a sua filha menor durante as férias de verão presenciava diariamente as constantes discussões verbais e físicas entre o seu irmão e a dita namorada CC, pelo que com receio da sua integridade física trancava-se no quarto. (fls. 16)
h)-Em complemento a vítima esclareceu, "que não tem nenhum sítio para onde ir, no entanto também não quer abandonar a casa" (fls. 17)
i)-A queixa foi remetida ao MP em 07-10-2022, registada, distribuída e autuada no mesmo dia como Violência Doméstica (fls.2)
j)-A aqui arguida prestou declarações em 13-10-2023 referindo que o filho sempre foi agressivo verbalmente, que já a agrediu fisicamente porque não queria que ela mantivesse contacto com um amigo; que o mesmo não pode ser contrariado ofendo-a e chamando-a de DROGADA, ÉS UMA PUTA, VACA, BÊBADA, VOU-TE MATAR, QUALQUER DIA ESFAQUEIO-TE, APANHO-TE A DORMIR ATIRO-TE ÁCIDO, SE MUDARES A FECHADURA VOU QUEIMAR A PORTA E QUEIMO A CASA CONTIGO E OS GATOS LÁ DENTRO;
que o mesmo não trabalha e é consumidor de produtos estupefacientes, há cerca de 6 meses levou a namorada de 29 anos lá para casa, com quem também é agressivo;
que no ano passado o mesmo mostrou-lhe a si e à irmã menor, UMA PISTOLA DE PEQUENO PORTE DE COR CINZENTA e algumas munições, que o mesmo embrulhou num pano e levou de volta para o seu quarto, dizendo que era para a sua defesa.
As ofensas verbais são diárias, o mesmo não é de acordo que ela namore, ofendendoa, dizendo-lhe diversas vezes ANDAS NA PUTARIA, QUANDO PASSARES POR MIM E PELOS MEUS AMIGOS NÃO OLHES PARA NÓS (...) (fls 8 e 8v)
k)-O nível de risco foi avaliado em ELEVADO, tendo sido proposto ao MP medida de coação ao ofensor e verificar se se encontram reunidos os pressupostos para detenção do ofensor fora de flagrante delito (fls.32 e seguintes)
l)-As condenações por crimes violentos do suspeito não eram desconhecidas, cfr CRC junto aos autos (fls.4 e seguintes)
Contudo a protecção da vítima especialmente vulnerável, lamentavelmente concretizou-se tão somente nas suas declarações para memória futura /cfr despacho 28-10-2022 (cfr.fls. 20 a 22), agendadas em 03-11-2022 para o dia 15 dezembro de 2022.
A referida certidão corrobora assim as várias declarações prestadas, evidenciando que a arguida apresentou a primeira queixa contra o ofendido, por factos susceptíveis de integrar o crime de violência doméstica em 19-11-2021 (agressões físicas, verbais, recusa em abandonar casa e controlo sobre a sua vida e contactos), que foi incorrectamente arquivada pelo titular do inquérito e da acção penal, por homologação de desistência de queixa (a seu pedido e insistência, quando a mesma apenas há um mês tinha declarado querer procedimento criminal)
Quadro de enorme violência e desgaste psicológico, que naturalmente persistiu, com apresentação de nova queixa em 06-10-2022, com factos ainda mais gravosos (existência de arma de fogo e ameaças) da qual a única protecção que teve foi prestar declarações para memória futura em 15 dezembro de 2022, com o próprio denunciado a ser notificado e alertado para a diligência e existência do processo

Em 05/12/2023, na penúltima sessão de julgamento, foi então proferida a decisão recorrida de indeferimento da perícia requerida, com o seguinte teor [transcrição]:
«(…)
Quanto à realização de perícia médico-psiquiátrica, a mesma tem por escopo apurar da existência de patologias psiquiátricas que tenham relevância e que possam influir na imputabilidade dos arguidos.
Não há qualquer elemento clínico que indique que a arguida padece de uma qualquer doença psiquiátrica que a tenha, aquando dos factos, determinado no seu comportamento.
Para além de não existirem quaisquer elementos clínicos, houve já pronúncia por parte de um perito que realizou a perícia psicológica e que confirmou não existirem indícios da existência desse tipo de patologia.
Acresce que a perícia médico-psiquiátrica nunca apreciaria o estado emocional, a capacidade psicológica e o quadro psicológico da arguida no momento da prática dos factos, pois que tal não seria possível de ser visto em qualquer exame médico actual. Tal perícia não será também o tipo de exame que permita avaliar das características psíquicas independentes de causas patológicas, pois que essa avaliação foi realizada pela perícia psicológica já realizada.
Assim entende o tribunal que a diligência de prova ora requerida pela defesa não se mostra adequada para a prova que a mesma pretende realizar, sendo que as questões suscitadas, excepto a questão da imputabilidade ou inimputabilidade, e a existência ou não de anomalia psíquica, serão matérias apreciadas pelo tribunal da prova que foi produzida nos autos, não podendo ser demostrado por qualquer perícia.
Assim e quanto à realização de perícia médico-psiquiátrica, e nos termos do art.º. 340º, nº4, alínea c), do C.P.P, vai a mesma indeferida.
Notifique.
(…)».

Proferido o acórdão condenatório pelo qual a arguida, considerada imputável, foi condenada pela prática de um crime de homicídio qualificado previsto e punido pelo disposto nos arts. 131º e 132º/1 e 2,a), do Código Penal, em 11/01/2024, deu entrada nos autos documento designado de «Nota de observação – 10/01/2024 AA», subscrita pelo médico psiquiatra assistente do ..., KK, na sequência de observação da arguida após a leitura do acórdão condenatório, e reenvio da mesma com critérios para internamento em psiquiatria, para o serviço de urgência do SNS, da qual consta, entre o mais o seguinte:
«(…) Todos os elementos apurados até agora, levam-nos à conclusão de que existe forte probabilidade de estarmos perante crime praticado em face de compreensível emoção violenta e/ou desespero. Pelo exposto, acredito ser meu dever alertar para a pertinência e até mesmo necessidade, de que seja providenciada pela realização de uma avaliação através de perícia de psiquiatria forense que melhor integre os vários elementos com vista a aferir, não a existência de inimputabilidade, mas sim de existência de compreensível emoção violenta e/ou desespero que possa enquadrar tal crime em Homicídio Privilegiado (art. 133º do CP) ou não.
Atendendo a que a actividade neste Hospital Prisional é estritamente assistencial, e por ser necessário existir separação entre o papel assistencial e pericial, de acordo com a leges artis médico-legal, a pronuncia técnico-científica relativa à critérios ou não para existência de emoção violenta e/ou desespero, tal perícia de psiquiatria forense deverá ser elaborada com base no artigo 159º do CPP a ser deferida a instituição competente, o INML, com vista a apreciação dos critérios do art. 133º do CP. Entende-se que nesta tarefa deve o psiquiatra actuar sempre como perito e não como clínico, podendo levar ao implícito afastamento hipocrático da cabeceira do doente. Este desiderato de total imparcialidade só será alcançado se o examinando for observado de forma objectiva e independente de intenções terapêuticas ou de paternalismo, implicando pois uma relação diferente da habitual. Uma observação sem viés portanto, que será do interesse de todos a bem da verdade.
(…)».

Das regras relativas à realização de perícia psiquiátrica para verificação de imputabilidade
Está em causa no recurso em análise aferir se, como considerou o Tribunal a quo, não se justifica a realização de perícia psiquiátrica por não ser adequada para a prova que com a mesma se pretende realizar, sendo que as questões suscitadas e a existência ou não de anomalia psíquica, serão matérias apreciadas pelo tribunal a partir da prova que foi produzida nos autos; ou se, pelo contrário, como alega a recorrente, se impõe a realização de perícia de psiquiatria forense a fim de avaliar a sua imputabilidade em relação ao crime que lhe está imputado.
Vejamos antes de mais as regras aplicáveis.
Nos termos do preceituado no art. 124º do Código de Processo Penal, constituem objeto da prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou medida de segurança aplicáveis.
A prova pericial constitui um dos meios de prova legalmente admitidos, tendo lugar quando a perceção ou a apreciação desses factos objeto da prova exijam especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos - art. 151º do Código de Processo Penal.
Assim, deve produzir-se prova pericial quando o processo e a futura decisão se defrontarem com factos cuja perceção e apreensão requeiram conhecimentos especializados que estão para além das possibilidades de constatação e/ou perceção, efetivas ou presumidas, do tribunal nas áreas técnica, científica e artística, presumindo-se o respetivo juízo técnico subtraído à livre apreciação do julgador nos termos previstos no art. 163º do Código de Processo Penal.
A perícia é ordenada, oficiosamente ou a requerimento por despacho da autoridade judiciária, contendo a indicação do objeto da perícia, dos quesitos a responder pelos peritos e da entidade que à mesma procederá – art. 154º/1 do Código de Processo Penal.
Quando se tratar de perícia sobre características físicas ou psíquicas de pessoa que não haja prestado consentimento, o despacho previsto no número anterior é da competência do juiz, que pondera a necessidade da sua realização, tendo em conta o direito à integridade pessoal e à reserva da intimidade do visado – art. 154º/3 do Código de Processo Penal.
Mas basta que exista requerimento para que seja deferida a realização da perícia?
Evidentemente que não.
Desde logo terá que ser possível formular um juízo de necessidade e adequação quanto a tal tipo de prova, considerando o seu objeto, como já referido, definido no art. 124º do Código de Processo Penal.
Nessa medida, para que se mostre justificada, por necessária e adequada, a realização de prova pericial, terão que encontrar-se alegados, pela acusação ou pela defesa[1], ou resultarem da discussão da causa, factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou medida de segurança aplicáveis, para cuja perceção e compreensão, por depender de conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos, se mostre pertinente e indispensável a perícia.
As perícias podem, assim, ser realizadas em qualquer das fases processuais, nada impedindo que só no decurso do julgamento se colham os elementos tendentes a habilitar o Tribunal a tomar uma posição fundada relativamente à necessidade ou não da sua realização; na verdade, nos termos do preceituado no art. 340º do Código de Processo Penal, o tribunal tem o poder-dever de investigar oficiosamente os factos que constituirão o suporte da sua decisão, devendo para tal ordenar a produção de todos os meios de prova essenciais à descoberta da verdade e boa decisão da causa.
As perícias médico-legais e forenses, com regime específico previsto sob o art. 159º do Código de Processo Penal, tendo por objeto questões psiquiátricas, podem ter a participação de especialistas de psicologia e criminologia - nº 6 – e ser realizadas a requerimento do representante legal do arguido, ou dos familiares e afins indicados sob o nº 7.
De resto, se na própria audiência «(…) se suscitar fundadamente a questão da inimputabilidade do arguido, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, ordena a comparência de um perito para se pronunciar sobre o estado psíquico daquele», e «Em casos justificados, pode requisitar a perícia a estabelecimento especializado», interrompendo essa audiência – art. 351º/1, 3 e 4, do Código de Processo Penal.
Não o fazendo, incorre, de resto, em nulidade, dependente de arguição, nos termos previstos no art. 120º/1, e 2, d), do Código de Processo Penal.[2]
Isto porque, não só a afirmação imputabilidade penal do arguido se mostra indispensável para que se conclua pelo cometimento de um crime e sua punibilidade, como a forma de a comprovar é por meio da realização de uma perícia médico-legal de psiquiatria.
Senão vejamos.
Preceitua o art. 20º/1 do Código Penal que «É inimputável quem, por força de anomalia psíquica, for incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação.».
Nos termos do art. 20º/2 do Código Penal, pode ainda ser declarado inimputável «quem, por força de uma anomalia psíquica grave, não acidental e cujos efeitos não domina, sem que por isso possa ser censurado, tiver, no momento da prática do facto, a capacidade para avaliar a ilicitude deste ou para se determinar de acordo com essa avaliação sensivelmente diminuída»; segundo o nº 3 do mesmo preceito, «A comprovada incapacidade do agente para ser influenciado pelas penas pode constituir índice da situação prevista no número anterior.».
Como nos diz Paulo Pinto de Albuquerque [3], a anomalia psíquica inclui não apenas a doença mental (com base orgânica), mas também as psicoses exógenas e endógenas, a oligofrenia, as psicopatias, as neuroses, as taras sexuais, as perturbações profundas de consciência (patológicas ou não patológicas). Portanto, a anomalia psíquica pode ser acidental e transitória (como insistiu EDUARDO CORREIA na comissão de revisão do CP de 1963-1964, contrariando GOMES DA SILVA, in ACTAS CP/EDUARDO CORREIA, 1965a:140 143) […)» (negrito nosso).
Também Figueiredo Dias vê na expressão «anomalia psíquica» um alargamento do substrato biopsicológico da inimputabilidade, tendo por referência o anteriormente previsto no Código Penal, «afastando-o (…) das controvérsias de índole médico-científica acerca do conceito de doença mental – permanente, transitória, ou mesmo acidental (…)». [4]
Segundo o autor, foi propósito do legislador evitar que se reduzisse aquele substrato aos casos de transtornos devidos a causas orgânico-corporais, ou àqueles casos com manifestações no âmbito intelectual (capacidade de entendimento ou de avaliação), ou ainda àqueles que se traduzem em alterações da atividade mental.
Na prática, pretendeu-se evitar que o substrato biopsicológico da inimputabilidade ficasse reduzido às situações catalogáveis do ponto de vista médio-científico como doenças, «passando a compreender todo e qualquer transtorno ocorrido ao inteiro nível do psíquico, adquirido ou congénito.».
Assim e para além das psicoses (sendo paradigmática a esquizofrenia) e da oligofrenia, com manifestações orgânicas, mais ou menos evidenciáveis, configuram também anomalia psíquica no sentido legal, as anomalias sexuais, as psicopatias e as neuroses, que são perturbações graves da personalidade sem uma base orgânica; constituem fenómenos de desvio de natureza psíquica relativamente ao normal mas que não constituem doençaou enfermidade corpórea. [5]
Entende-se por psicopatias peculiaridades do caráter devidas à própria disposição natural e que afetam em permanência, de forma sensível, a capacidade de levar uma vida social ou de comunicação normal; por neuroses entendem-se as anomalias de comportamento adquiridas, que se apresentam como reações anómalas episódicas e são, as mais das vezes, suscetíveis de tratamento; a sua relevância para efeitos da imputabilidade, dada a amplitude de situações abrangidas, impõe que se trate de desvio ou distúrbio grave ou muito grave, de tal forma que as torne equiparáveis quanto aos efeitos psíquicos, a uma verdadeira psicose.
Por último, as perturbações profundas de consciência reconduzem-se a estados anómalos de longa ou curta duração, durante os quais se encontram profundamente perturbadas as relações entre a consciência de si mesmo e a do mundo exterior, ou em todo o caso a estrutura psíquica do agente; podem ser patológicas, integrando-se na categoria das psicoses, ou não patológicas; neste caso, não implicam qualquer doença ou enfermidade, sendo antes de natureza fisiológica ou psicológica, do que são exemplo os casos extemos de fadiga, de esgotamento ou de sono, hipnose ou estados intensos de afeto; estes últimos casos – estados de afeto ou passionais –, não sendo geradores de incapacidade para avaliar a ilicitude do facto e se determinar de acordo com essa avaliação, encontrarão solução as mais das vezes no âmbito da exclusão da culpa em nome de uma ideia de inexigibilidade, com respaldo na figura do estado de necessidade desculpante, ou da atenuação da culpa, como sucede no tipo legal de crime de homicídio privilegiado previsto pelo art. 133º do Código Penal.
Ora, nenhum juiz com um nível de formação normal se encontra habilitado com os conhecimentos científicos médicos necessários para diagnosticar uma anomalia psíquica.
Por outro lado, a tarefa de integração normativa quanto ao juízo de (in)capacidade do arguido para avaliar a ilicitude do facto ou para se determinar de acordo com essa avaliação, reportado ao momento da sua prática, carece, nas palavras de Figueiredo Dias[6], de uma «estreita e frutuosa colaboração do perito com o juiz» sem prejuízo de neste particular caber ao juiz, peritus peritorum («perito dos peritos»), a última palavra.
Numa tarefa cooperativa, perito e juiz procurarão a «racionalização retrospetiva de um processo psiquicamente anómalo»; se conseguida essa racionalização, estabelecendo-se uma «unitária e global capacidade de controlo por parte do agente», deve o agente considerar-se imputável apesar da anomalia psíquica de que padeça e do seu grau de gravidade; não sendo possível estabelecer a conexão objetiva de sentido que liga o processo anímico do agente ao facto praticado (“racionalização”) em virtude da interferência da anomalia psíquica, de tal forma «que torne impossível a compreensão do facto como facto do agente», então teremos uma situação de inimputabilidade.[7]
Tudo para concluir que, sendo alegada pela defesa a inimputabilidade do arguido no momento da prática dos factos, e encontrando-se apuradas circunstâncias concretas que apontem para a possibilidade de o arguido ter sofrido de anomalia psíquica incapacitante da avaliação da ilicitude da sua conduta, o meio de prova adequado a fazer prova desse facto, cuja produção deve por isso ser ordenada, é a perícia médico-legal de psiquiatria. [8]
A sua realização para definição da imputabilidade do agente a quem se atribui a prática de factos subsumíveis a um tipo legal de crime, mostra-se, na realidade, essencial à decisão jurídica do caso, na justa medida em que, considerando-se o arguido inimputável, terá de ser absolvido[9], sem prejuízo da aplicação de medida de segurança uma vez verificada a sua perigosidade – art. 91º do Código Penal.
Trata-se, assim, de meio de prova necessário e essencial para a demonstração do facto consistente na imputabilidade, que não pode ser substituído por declarações prestadas pelo arguido, avaliadas pelo Tribunal segundo o princípio da livre apreciação das provas. [10]
*
Da perícia médico-legal em psiquiatria para definição da imputabilidade, que vimos de tratar, se distingue a perícia sobre a personalidade, regulada sob o art. 160º do Código de Processo Penal nos seguintes termos:
«1-Para efeito de avaliação da personalidade e da perigosidade do arguido pode haver lugar a perícia sobre as suas características psíquicas independentes de causas patológicas, bem como sobre o seu grau de socialização. A perícia pode relevar, nome Não há qualquer elemento clínico que indique que a arguida padece de uma qualquer doença psiquiátrica que a tenha, aquando dos factos, determinado no seu comportamento.
2-A perícia deve ser deferida a serviços especializados, incluindo os serviços de reinserção social, ou, quando isso não for possível ou conveniente, a especialistas em criminologia, em psicologia, em sociologia ou em psiquiatria.
3- Os peritos podem requerer informações sobre os antecedentes criminais do arguido, se delas tiverem necessidade.».

Como refere Fernando Gama Lobo [11], esta é uma perícia que, não sendo de realização obrigatória, incide sobre o caráter e perfil humano do agente, aferindo do seu grau de sociabilidade, independentemente de causas patológicas; visa sobretudo auxiliar na determinação e aplicação das medidas de coação e da sanção.

António Latas, citando Rute Agulhas e Alexandra Anciães, [12] diz-nos que «A perícia sobre a personalidade constitui um instrumento de apoio técnico aos tribunais, de natureza psico-sócio-jurídica (…) [que] Ao contrário do que é requerido numa perícia psiquiátrica … não tem como objetivo a avaliação psicológica, com vista ao estabelecimento de um diagnóstico, mas antes a compreensão do funcionamento do sujeito, e perceber, à luz desse funcionamento, a motivação subjacente para os factos alegadamente praticados» (negrito nosso).
Assim é que, se o objetivo for o de saber se o agente é ou não imputável ou se sofre de uma patologia do foro psiquiátrico, de nada vale a perícia sobre a personalidade, impondo-se a já referida perícia médico-legal psiquiátrica nos termos previstos no art. 159º do Código de Processo Penal, pois só através desta é possível aferir da verificação de eventuais causas patológicas do seu comportamento criminoso, despistando e sinalizando patologias mentais em ordem a determinar o seu grau de imputabilidade.[13]

Do caso em mãos
Ora, atentando nos factos que enunciámos sob o iter processual e aplicadas as regras que ora vimos de expor, desde já se adianta que não pode subsistir o despacho recorrido pelo qual se inferiu o requerimento formulado pela recorrente, primeiramente na contestação, e subsequentemente, no decurso da audiência de julgamento, para realização de perícia de psiquiatria com vista à determinação da sua inimputabilidade, por ser inadequado à obtenção da prova pretendida, nos termos do art. 340º/4, c), do Código de Processo Penal.
Com efeito, não só nesse despacho se confunde o que constitui uma perícia à personalidade, com previsão no já citado no art. 160º do Código de Processo Penal - que foi efetivamente realizada, diga-se, por um psicólogo clínico -, com uma perícia de psiquiatria forense com vista à determinação da imputabilidade da arguida, a realizar nos termos previstos no art. 159º do Código de Processo Penal, como se revela desconhecimento em relação ao objeto e finalidade desta última perícia; só isso pode explicar que pelo despacho de 19/09/2023, acima extratado, se tenha por possível dar resposta os quesitos formulados pela defesa acerca da inimputabilidade, com recurso à perícia sobre a personalidade.

Senão vejamos.

Primeiro.
Entende o Tribunal a quo que para haver fundamento para se realizar uma perícia psiquiátrica tem que existir prévia anomalia psíquica, exigindo até que haja um diagnóstico devidamente documentado.
Ora, se na maioria dos casos existirá prévia anomalia psíquica, como vimos na exposição precedente, a anomalia psíquica pode ser transitória ou até acidental; por outro lado, pode existir prévia anomalia psíquica que se encontre por diagnosticar.

Segundo.
Ao contrário do afirmado no despacho recorrido, que afirma inexistir «qualquer elemento clínico que indique que a arguida padece de uma qualquer doença psiquiátrica que a tenha, aquando dos factos, determinado no seu comportamento», há de facto nos autos registos clínicos de acompanhamento psiquiátrico da arguida reportados ao ano de 2010, com diagnóstico de traços de personalidade borderline, para além de depressão e tentativas de suicídio.

Terceiro.
Também ao contrário do considerado no despacho recorrido, a perícia sobre a personalidade realizada por um psicólogo clínico, não tendo por escopo o diagnóstico de anomalias psíquicas – tendo por objeto as características psíquicas independentes de causas patológicas - não constitui pronúncia pericial válida nessa matéria, sendo mister para esse efeito uma perícia médico-legal psiquiátrica.
Mais: lido o relatório pericial em questão, não é exato o afirmado no despacho recorrido de que o Sr. perito que realizou a perícia psicológica confirmou não existirem indícios da existência desse tipo de patologia; ainda que se lhe pudesse reconhecer habilitação para o efeito – e não se lhe reconhece -, não perscrutamos de facto nesse relatório qualquer afirmação cabal da qual se possa extrair semelhante conclusão.

Quarto.
Afirma o Tribunal a quo no despacho recorrido para fundamentar o indeferimento da perícia psiquiátrica requerida na contestação deduzida pela arguida que:
«a perícia médico-psiquiátrica nunca apreciaria o estado emocional, a capacidade psicológica e o quadro psicológico da arguida no momento da prática dos factos, pois que tal não seria possível de ser visto em qualquer exame médico actual.».
Nada menos exato.
Perguntamos então: como e em que circunstâncias poderia um arguido invocar a sua inimputabilidade por anomalia psíquica, se é a norma legal que a prevê - o já citado art. 20º do Código Penal -, que expressamente define como inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica, for incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação?
Conforme acima melhor se explanou, não só a perícia psiquiátrica deve, com recurso aos elementos clínicos disponíveis, entre outros dados, diagnosticar eventual anomalia psíquica de que padecesse a arguida à data dos factos, como deve reconstituir retroativamente o processo psíquico da arguida, fazendo a já mencionada «racionalização retrospetiva de um processo psiquicamente anómalo», sempre com reporte à data da prática dos factos.

Quinto e último.
Se é verdade que, como também por nós já escrito, a perícia psiquiátrica pretendida «não será também o tipo de exame que permita avaliar das características psíquicas independentes de causas patológicas, pois que essa avaliação foi realizada pela perícia psicológica já realizada.», não é já correto o entendimento firmado pelo Tribunal a quo no mesmo despacho de «que a diligência de prova ora requerida pela defesa não se mostra adequada para a prova que a mesma pretende realizar, sendo que as questões suscitadas, excepto a questão da imputabilidade ou inimputabilidade, e a existência ou não de anomalia psíquica, serão matérias apreciadas pelo tribunal da prova que foi produzida nos autos, não podendo ser demostrado por qualquer perícia.».
Ora, o que a recorrente pretende demonstrar de acordo com o requerimento que inicialmente formulou – embora posteriormente tenda a referir como tal a atuação sob emoção violenta -, é a sua inimputabilidade para o crime de homicídio que lhe está imputado, e nunca o conseguirá sem uma perícia médico-legal em psiquiatria, como vimos, o único meio de prova admissível para esse efeito.
Mais:sendo, como vimos, ténue a fronteira entre uma perturbação profunda de consciência geradora de inimputabilidade e uma perturbação profunda de consciência geradora de estado de afeto e passional, esta apenas com repercussões na avaliação da culpa do agente, mormente em sede de atenuação da mesma por via do homicídio privilegiado previsto pelo art. 133º do Código Penal, como a arguida tem vindo a defender, será ainda importante que a perícia a realizar se debruce sobre essa possibilidade, se necessário, com a participação de especialistas em psicologia e criminologia, conforme previsto no art. 159º/6 do Código de Processo Penal.

Resumindo e concluindo:

Em face dos elementos constantes dos autos, com especial relevo para os registos clínicos da arguida entretanto documentados no processo, dos quais decorre ter tido prévias consultas de psiquiatria (desde 2010), diagnóstico de depressão (na sequência do falecimento precoce de um outro filho, por afogamento) e personalidade com traços borderline [14], sendo ainda mencionadas duas tentativas de suicídio na ferrovia, é forçoso concluir que existe, pelo menos, uma dúvida razoável quanto à sua saúde mental e interferência que a mesma possa ter exercido no momento da prática do facto.
Não pode ainda olvidar-se, em reforço, o histórico violento da vítima no seu relacionamento com a arguida e a dinâmica dos factos, quer se considere a versão dos mesmos fornecida pela arguida, que os confessou parcialmente, quer aquela que se considerou provada, e da qual resulta uma violência exacerbada ao ponto de ter sido mantido o comportamento agressor já depois de a vítima se encontrar aparentemente inanimada – 20) a 25) dos factos provados.
A arguida recorrente tem vindo a invocar a este propósito uma atuação em estado de desespero e compreensível emoção violenta, que importa, se possível, indagar se ocorreu e, em caso afirmativo, se ocorreu num quadro de patologia psiquiátrica ou não; no primeiro caso, se foi preservada a capacidade de avaliação da ilicitude do facto e de determinação de acordo com essa avaliação.
Como já referido, não sendo o juiz um perito médico, nem tendo a perícia sobre a personalidade, executada por psicólogo clínico, por objeto identificar anomalias psíquicas e efeitos das mesmas na avaliação da ilicitude dos factos e determinação em conformidade com essa avaliação, não podia o coletivo de Juízas nestas concretas circunstâncias indeferir a requerida perícia médico-legal em psiquiatria por ser o único meio legalmente possível de remover aquela dúvida.
De resto, essa mesma perícia, ainda que conclua pela imputabilidade, poderá também contribuir para densificar o grau de culpa subjacente à conduta, permitindo um mais rigoroso enquadramento jurídico-penal, assim como adequada definição da sanção aplicável.
Por tudo o exposto, conclui-se que não deveria o coletivo de Juízas a quo ter indeferido o requerimento de perícia de psiquiatria forense formulado pela arguida logo na contestação com vista a apurar da sua imputabilidade para o crime que lhe está imputado, e subsequentemente repetido no decurso do julgamento.
Ao fazê-lo, incorreram em nulidade por omissão de diligência que se reputa essencial para a descoberta da verdade, como previsto pelo art. 120º/2,d) do Código de Processo Penal, a qual, não tendo sido nomeada nos requerimentos da arguida a este propósito, é materialmente suscitada pela sucessiva invocação da essencialidade da perícia para a boa decisão da causa, e, não estando sanada, sempre deveria ser conhecida nesta sede nos termos do art. 410º/3 do Código de Processo Penal.

Nos termos do preceituado no art. 122º/1 do Código de Processo Penal «As nulidades tornam inválido o ato em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afetar»; de acordo com o nº 2, «A declaração de nulidade determina quais os atos que passam a considerar-se inválidos e ordena, sempre que necessário e possível, a sua repetição (…)»; ainda segundo o nº 3, «Ao declarar a nulidade o juiz aproveita todos os atos que ainda puderem ser salvos do efeito daquela».

Como nos diz Paulo Pinto de Albuquerque [15], a procedência de uma nulidade sanável nunca dá lugar a reenvio do processo.
Tendo os autos prosseguido com a realização da audiência de julgamento e prolação do acórdão condenatório, que não levou em consideração a prova pericial agora tida por essencial para a boa decisão da causa, mantendo-se válida a produção de prova realizada, impõe-se a anulação daquele acórdão para que venha a ser elaborado um outro que a considere.
Na verdade, com exceção do acórdão condenatório, não cremos que importe anular quaisquer atos de entre os já praticados no julgamento, nomeadamente de produção de prova, os quais se mostram independentes da perícia e do que vier a resultar da mesma, sem prejuízo da necessidade de obtenção de esclarecimentos na sequência do relatório pericial.
Como assim, na procedência do recurso intercalar, será determinada a substituição do despacho recorrido por outro que admita a realização da perícia médico-legal e forense de psiquiatria, definindo, além do mais considerado pertinente, como seu objeto a avaliação da capacidade da arguida para, no momento da prática do facto, avaliar a ilicitude do mesmo ou de se determinar de acordo com essa avaliação; deverão ainda ser definidos os quesitos a que será dada resposta tendo em conta os contributos da defesa, assim como a entidade à qual será deferida, bem como da necessidade de participação de especialistas em psicologia e criminologia, tudo nos termos previstos nos arts. 154º/1 e 159º/6, do Código de Processo Penal.

Para tanto, o mesmo coletivo de Juízas que procedeu ao julgamento e que decidirá dos termos da perícia a realizar, determinará a reabertura da audiência, a qual prosseguirá com oportuna apreciação do relatório pericial que vier a ser apresentado e demais diligências de prova que, em função do seu teor, vierem a justificar-se; proferindo-se, por fim, novo acórdão.

Nessa conformidade, julga-se prejudicada a apreciação do recurso principal que foi interposto em relação ao acórdão condenatório que resultará anulado.
*

III–DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Lisboa em:
conceder provimento ao recurso intercalar interposto pela arguida e consequentemente revogam o despacho de indeferimento da perícia de psiquiatria forense proferido em 05/12/2023, anulando o acórdão condenatório subsequentemente proferido, e ordenando assim:
a substituição daquele despacho por outro que defira o requerimento de perícia de psiquiatria forense com vista à decisão sobre a imputabilidade, a inimputabilidade ou a imputabilidade diminuída da arguida;
a reabertura da audiência de discussão e julgamento e, se necessário, a produção de outros meios de prova tidos por pertinentes;
seja lavrado novo acórdão no qual se proceda a eventuais alterações na matéria de facto provada e na determinação da pena, sem prejuízo da decisão de quaisquer outras questões jurídicas que, se a arguida for considerada inimputável ou inimputável com perigosidade, possam surgir.
julgar prejudicada a apreciação do recurso principal.
*
Sem custas - art. 513º/1 do Código de Processo Penal “a contrario”.
*
Notifique.
*


Lisboa, 21 de maio de 2024


Ana Cláudia Nogueira
Rui Coelho
João Ferreira


1.[]Neste sentido o acórdão da Relação de Évora de 06/06/2023 relatado por João Carrola no processo 49/21.0JAEVR-B.E1, acessível em www.dgsi.pt . 
2.[]Assim, João Conde Correia, citando vários outros autores, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo I, Almedina, 2019, pág. 1253; também Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da CEDH, 4.ª edição, UCE, 2011, pág. 320, nota 6,d..
3.[]In Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da CEDH, 5ª edição, UCE, 2022, pág. 198, nota 3. 
4.[]In Direito Penal Parte Geral, Tomo I – Questões Fundamentais, A Doutrina Geral do Crime, 3.ª edição, Gestlegal, 2019, pág. 672.
5.[]Seguimos aqui de perto, além do expendido a este propósito por Paulo Pinto de Albuquerque na obra citada na nota anterior, a obra de Figueiredo Dias citada na nota anterior, Direito Penal Parte Geral, Tomo I – Questões Fundamentais, A Doutrina Geral do Crime, 3.ª edição, Gestlegal, 2019, págs. 672 a 677
6.[]Ob. cit. na nota anterior, pág. 672, defendendo ainda o autor a consagração da perícia colegial e da perícia interdisciplinarna aferição da questão da imputabilidade. 
7.[]In ob. cit. na nota anterior, págs. 678 e 679. 
8.[]Indicando a perícia médico-legal e psiquiátrica a par da perícia sobre a personalidade, a que se referem os arts. 159º e 160º do Código de Processo Penal, como os meios de prova da anomalia psíquica e perigosidade daí adveniente para efeitos de aplicação de medias de segurança, Figueiredo Dias, in Direito Pena Português As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1999, págs. 444 e 445; no sentido preconizado quanto à avaliação da pertinência e necessidade da perícia, o acórdão da Relação de Guimarães de 13/07/2020, relatado por Ausenda Gonçalves no processo 818/18.8GCBRG-A.G1, acessível in www.dgsi.pt
9.[]Como se conclui no acórdão da Relação de Évora de 18/04/2017, relatado por João Amaro no processo 51/14.8GDPTG.E1, acessível em www.dgsi.pt . 
10.[]Cfr. acórdão da Relação de Évora de 18/04/2017, relatado por João Amaro no processo 51/14.8GDPTG.E1, citado na nota anterior.
11.[]In Código de Processo Penal Anotado, 4ª edição, 2022, Almedina, pág. 311. 
12.[]In Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo II, 3ª edição, Almedina, pág. 485. 
13.[]Cfr. neste sentido, António Henriques Gaspar, José António Henriques dos Santos Cabral, Eduardo Maia Costa, António Jorge Fernandes de Oliveira Mendes, António Pereira Madeira e António Pires Henriques da Graça, in Código de Processo Penal Comentado, 4ª edição revista, 2022, Almedina, págs. 632 e 633
14.[]O transtorno de personalidade borderline, diagnosticável por critérios clínicos, é caracterizado por um padrão generalizado de instabilidade e hipersensibilidade nos relacionamentos interpessoais, instabilidade na autoimagem, flutuações extremas de humor e impulsividade, por Mark Zimmerman, MD, South County Psychiatry, acessível in https://www.msdmanuals.com/pt-pt/profissional/transtornos-psiqui%C3%A1tricos/transtornos-de-personalidade/transtorno-de-personalidade-borderline. 
15.[]In Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da CEDH, 4.ª edição, UCE, 2011, pág. 323, nota 23.