Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7405/20.9T8LSB.L1-2
Relator: INÊS MOURA
Descritores: TRANSMISSÃO DO ARRENDAMENTO
INCONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/10/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. No art.º 57.º do NRAU o legislador não distingue arbitrariamente os descendentes a quem confere o direito à transmissão do arrendamento por morte do arrendatário, mas antes a define um regime mais favorável em razão da situação de maior fragilidade de alguns descentes, tratando de forma diferente o que é diferente, em situação que não contraria o princípio constitucional da igualdade previsto no art.º 13.º da CRP.
2. O regime mais restritivo dos casos em que pode haver lugar à transmissão do arrendamento para os descentes, por morte do arrendatário, imposta pela nova legislação, em limitação do anterior regime legal mais favorável, corresponde a uma opção legislativa que também não representa uma violação do princípio da igualdade, como tem vindo a ser amplamente entendido pela nossa jurisprudência, em particular a do Tribunal Constitucional.
3. O regime transitório definido no art.º 57.º do NRAU para a transmissão do direito ao arrendamento por morte do arrendatário representa uma legítima opção do legislador, não se apresentando como violador do direito à habitação previsto no art.º 65.º da CRP que se apresenta como uma norma programática dirigida ao Estado e não aos particulares.
4. A defesa da questão da inconstitucionalidade da norma em causa pelo R., suscitada na sua contestação e que o mesmo também pretende fazer valer em sede de recurso, naturalmente em seu favor e com prejuízo para o A., não é suscetível de ser qualificado como um ato censurável e contrário à boa fé, num comportamento doloso, nem tão pouco gravemente negligente, elemento subjetivo necessário para a condenação da parte como litigante de má fé, nos termos do art.º 542.º n.º 2 do CPC.
(art.º 663 n.º 7 do C.P.C.)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório
Vem AA intentar a presente ação declarativa de condenação com processo comum, contra BB, pedindo a condenação do R. a entregar o locado livre de pessoas e bens e a pagar uma indemnização no valor vencido de € 2.243,28 acrescido mensalmente de € 2.850,00, abatido o valor que o R. porventura continue a depositar na conta do A.
Alega, em síntese, que é dono e legítimo proprietário da fração autónoma designada pela letra H, correspondente ao ... andar do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Rua..., em ..., fração que foi dada de arrendamento pela sua mãe ao pai do R. e posteriormente transmitido à mãe deste que veio a falecer em 8 de setembro de 2019, tendo caducado o contrato, sem que o R., que não é titular do direito à transmissão do arrendamento, tivesse procedido à entrega do locado ao A. no prazo legal. Conclui que lhe assiste o direito a exigir a restituição do locado, acrescido do valor mensal de € 2.850,00 correspondente ao prejuízo decorrente da privação do locado e da impossibilidade de o arrendar pelo valor que já lhe foi proposto.
O R. veio contestar, excecionando a litispendência e a inadmissibilidade da presente ação por ter sido instaurada quando estavam proibidos os despejos, por legislação especial aprovada por motivo da pandemia do COVID19. Impugnou parcialmente a factualidade alegada, sustentou a transmissão do direito ao arrendamento e invocou a inconstitucionalidade do regime legislativo que entrou em vigor em Junho de 2006, no que respeita ao direito à transmissão do arrendamento, por violar o princípio da igualdade previsto no artigo 13.º da CRP ao discriminar os descendentes a quem o contrato é transmitido e aqueles a quem a lei não reconhece tal direito, e o direito à habitação previsto no artigo 65.º da CRP. Conclui pedindo a sua absolvição do pedido.
O A. veio responder às exceções concluindo pela sua improcedência.
Foi considerado que os autos dispunham dos elementos necessários para conhecer do mérito da causa, tendo sido facultada às partes a possibilidade de alegarem.
Foi afirmada a validade e regularidade da lide, tendo sido julgada improcedente a exceção de litispendência bem como a exceção de inadmissibilidade legal do presente processo quanto ao pedido de entrega do locado e foi proferida decisão final que julgando a ação procedente, condenou o R. a entregar ao A., livre e devoluta de pessoas e bens, a fração autónoma designada pela letra H, correspondente ao ... andar do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Rua..., em ..., e a pagar ao A. uma indemnização correspondente ao dobro do valor da renda – 606,72 € (seiscentos e seis euros e setenta e dois cêntimos) – por cada mês em que o R. não procedeu à entrega do locado, desde 8 de Março de 2020 até à efetiva entrega, diminuído do valor que o R. entretanto pagou. Mais se considerou que o art.º 57.º do NRAU não padece das inconstitucionalidades suscitadas.
É com esta decisão que o R. não se conforma e dela vem interpor recurso, pugnando pela sua revogação e substituição por outra que julgue improcedentes os pedidos, apresentando para o efeito as seguintes conclusões que se reproduzem:
“a) O Recorrente vem interpor recurso da decisão que julga a acção procedente, por provada, não se conformando com a douta decisão.
b) O Recorrido intentou acção de processo comum, sendo o objecto de acção contrato de arrendamento, neste caso o celebrado pelo pai do Recorrente, como arrendatário e a mãe do Recorrido, senhoria.
c) O Recorrido entendeu que o contrato de arrendamento não se transmite para o Recorrente por morte da sua mãe arrendatária e que o contrato de arrendamento caducou por óbito da arrendatária.
d) Em consequência, o Recorrido vem exigir a restituição do locado.
e) O Recorrente alegou em sede de contestação, que a não transmissão do presente contrato de arrendamento, fere dois princípios constitucionais,
f) Por um lado, o princípio da igualdade, do artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa, ao discriminar os descendentes a quem o contrato é transmitido e os que não vêem ser transmitido.
g) E por outro lado, o direito à habitação, previsto no artigo 65º da Constituição da República Portuguesa.
h) O NRAU, ao admitir a caducidade do contrato de arrendamento por óbito do original arrendatário, viola não só um mas dois princípios constitucionais.
i) O Recorrente invoca a inconstitucionalidade do artigo 57.º do NRAU na parte em que nega a transmissão do arrendamento a todos os descendentes e em que viola o direito à habitação.
j) A Meritíssima Juíza a quo considerou que a lei não prevê a transmissão do direito de arrendamento ao descendente como neste caso, que o NRAU não está ferido de inconstitucionalidades na diferença de regime que institui, nomeadamente na transição de sistemas.
k) A douta decisão também considerou não haver violação do direito constitucional à habitação, com o que o Recorrente não se conforma.
l) A douta decisão condenou o Recorrente a pagar uma indemnização correspondente ao dobro do valor da renda por cada mês de mora na restituição do locado desde 8 de Março de 2020 até entrega efectiva do locado, devendo descontar-se os valores entretanto depositados pelo Recorrente, quantia à qual acrescem juros de mora de 4%.
m) O Recorrente não se conforma com tal decisão.
n) Com a entrada em vigor do NRAU em Junho de 2006, colocou-se a questão de poder entender-se que a transmissão do contrato de arrendamento dos descendentes maiores e sem incapacidade deixaria de ser possível.
o) O Recorrente sempre foi próximo da mãe e essa proximidade estreitou-se ainda mais progressivamente, por a mesma ter começado a exigir cuidados acrescidos em virtude da sua idade e estado de saúde.
p) Entre o Recorrente e sua mãe, não existia uma mera convivência, mas uma comunhão de meios de vida e o apoio fundamental do R. à sua mãe enfraquecida pela doença e a idade.
q) O Recorrente não procurou outras soluções para habitação, numa altura em que seria bastante menos complicado fazê-lo, por cumprir o seu dever de filho e dar o necessário apoio à sua progenitora.
r) A legislação em vigor à data em que o Recorrente foi viver com a mãe, inequivocamente, protegia os seus interesses, e garantia-lhe a transmissão do arrendamento por óbito da sua mãe.
s) Com a entrega deste locado, o Recorrente fica sem casa onde viver, não tendo solução a dar ao seu problema de habitação face à conjuntura do arrendamento em ....
t) A mudança de paradigma no arrendamento ditou a alteração legislativa, deixando de se entender impor o sacrifício ao senhorio e a bem do interesse público pelo aumento do mercado de arrendamento.
u) Contudo, o paradigma de equilíbrio de interesses se alterou.
v) A alteração legislativa só reforçou o abandono forçado dos descendentes de locados que, ainda há bem pouco tempo, era indiscutivelmente transmitido o direito de arrendamento por morte dos progenitores.
w) Isso contribuiu para um “boom” do alojamento local, com consequente despovoamento do centro histórico de ... e ..., pela prática de rendas proibitivas para as famílias e opções diversas do arrendamento tradicional.
x) A mudança de paradigma, vertida em legislação foi um dos efeitos perversos, do qual ainda se virá a pagar um elevado preço no futuro.
y) A instituição de um regime transitório que impede a transmissão a descendentes, mesmo que a coabitação date de um período em que a legislação permitia tal transmissão, fere dois princípios constitucionais.
z) Por um lado, o princípio da igualdade, do artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa, ao discriminar os descendentes a quem o contrato é transmitido e os que não vêem o direito ser transmitido.
aa) Se é certo que as pessoas vulneráveis devem ser especialmente protegidas, não é menos certo que o arrendatário na ... histórica enfrenta uma situação inédita.
bb) Não só enfrenta os preços proibitivos e a concorrência do alojamento local, uma situação agora minorada no auge da pandemia, como a própria pandemia
tornou precária a situação económica, social e psicológica das pessoas.
cc) E por outro lado, o direito à habitação, previsto no artigo 65º da Constituição da República Portuguesa.
dd) À família média Portuguesa, tornou-se impossível arrendar no centro histórico de ..., situação que contribui para a desertificação dessa zona fulcral da cidade, e para a “Disneyficação” da ....
ee) A negação do direito dos descendentes, independentemente, de idade e estado de saúde contribui de decisiva forma para esse problema, sendo certo que o arrendamento não se tornaria eterno, um dos principais argumentos contra a transmissão, se tal transmissão se fizesse somente em um grau, de pais para filhos.
ff) Em cerca de uma geração, um período relativamente curto, estará resolvida a questão do arrendamento.
gg) O NRAU, ao admitir a caducidade do contrato de arrendamento por óbito de do original arrendatário, viola não só um mas dois princípios constitucionais.
hh) O recente acórdão do Tribunal da Relação do Porto datado de 7/10/2019, no âmbito do processo n.º 2346/18.2T8GDM.P1 pronunciou-se sobre esta questão em sentido contrário ao aqui defendido, mas entende o Recorrente que é importante a esta matéria aduzir novos argumentos, incluindo a recente pandemia.
ii) E deve ser tal matéria novamente submetida a julgamento e quiçá, ser a matéria novamente analisada pelos tribunais superiores, numa altura em que se assiste a um novo paradigma.
jj) O Recorrente invoca a inconstitucionalidade do artigo 57.º do NRAU na parte em que nega a transmissão do arrendamento a todos os descendentes e em que viola o direito à habitação.
kk) Face ao exposto, tem de ser reconhecida a transmissão do contrato de arrendamento para o Recorrente por óbito de sua mãe, consequentemente e à luz de todo o expendido, deve declarar-se a inconstitucionalidade das normas do artigo 57º do NRAU, na parte em que nega a transmissão do arrendamento a todos os descendentes.
ll) Declarando-se tal inconstitucionalidade, e alterado o artigo 57.º, deve declarar-se que se operou a transmissão do contrato de arrendamento para o Recorrente por óbito da sua mãe, e, consequentemente, o Recorrente ser absolvido dos pedidos formulados pelo Recorrido, com as legais consequências.
O A. veio responder ao recurso pugnando pela sua improcedência e manutenção da decisão proferida, mais requerendo a condenação do R. como litigante de má fé, por entender que o presente recurso visa apenas atrasar o trânsito em julgado da sentença.
II. Questão prévia
- da ausência de efectivas conclusões do recurso
Constata-se que o Recorrente no seu requerimento de interposição do recurso não formula efetivas conclusões, apenas assim denominando a alegação de recurso que replica sob tal epígrafe, incumprindo o dever de apresentar verdadeiras conclusões do recurso como é exigência do art.º 639.º do CPC e assume maior relevância na medida em que é através das mesmas que é delimitado o objeto do recurso, nos termos do art.º 635.º, constituindo aliás fundamento de rejeição do recurso o facto da alegação de recurso não conter conclusões, conforme dispõe expressamente o art.º 641.º n.º 2 al. d) do CPC.
A Recorrente limita-se a apresentar as suas alegações para depois as reproduzir no que denomina Conclusões e que mais não são do que uma réplica da motivação apresentada.
Não obstante o art.º 641.º n.º 2 al. d) do CPC estabeleça que o requerimento é indeferido quando a alegação não contenha conclusões, temos vindo a seguir o entendimento de que quando é observada esta prática, infelizmente bastante comum, é excessivo proceder-se à rejeição do recurso sem que pelo menos se convide a parte a corrigir o vício, atento o disposto no art.º 639.º n.º 3 do CPC e considerando ainda, em interpretação benevolente ou favorável à parte, que formalmente são apresentadas conclusões. Este entendimento tem sido defendido por parte da jurisprudência, do que apenas é exemplo o Acórdão do STJ de 29 de setembro de 2015 proferido no proc. 818/07.3TBAMD.L1.S1 in www.dgsi.pt
Considerando assim que, pelo menos em termos formais, o Recorrente apresentou conclusões, não obstante as mesmas não observem os requisitos previstos no art.º 639.º n.º 1 e n.º 2 do CPC é excessiva a rejeição do recurso sem que, pelo menos, se convide a Recorrente a proceder ao seu aperfeiçoamento, designadamente a sintetizá-las, em concordância como o disposto no n.º 3 do mesmo artigo.
Não obstante a divergência que se conhece da jurisprudência sobre esta questão, esta é a posição com a qual nos identificamos e consideramos também mais em consonância quer com o princípio da cooperação expresso no art.º 7.º n.º 1 do CPC, quer com a justa composição do litígio que se pretende alcançar com prevalência do mérito e da substancia em detrimento da mera formalidade processual.
No caso, considera-se, porém, inútil formular convite ao Recorrente para corrigir as conclusões do recurso, na medida em que das mesmas podem retirar-se com segurança as questões que o Recorrente pretende submeter à apreciação deste tribunal, o que também foi compreendido pelo Requerido, como resulta da resposta ao recurso que apresentou, sendo que tal ato apenas iria atrasar o prosseguimento do processo, optando-se assim por não o determinar.
III. Questões a decidir
São as seguintes as questões a decidir, tendo em conta o objeto do recurso delimitado pelo Recorrente nas suas conclusões- art.º 635.º n.º 4 e 639.º n.º 1 do CPC - salvo questões de conhecimento oficioso- art.º 608.º n.º 2 in fine:
- da inconstitucionalidade do artigo 57.º do NRAU por negar a transmissão do direito ao arrendamento a todos os descendentes, em violação do princípio da igualdade e do direito à habitação;
- da litigância de má fé do R.
IV. Fundamentos de Facto
Não havendo qualquer alteração a fazer e não tendo sido impugnada a decisão sobre a matéria de facto, tendo em conta o disposto no art.º 663.º n.º 6 do CPC remete-se para a decisão do tribunal de 1ª instância que considerou provados os seguintes factos:
1. Está registada a favor do Autor a aquisição da propriedade da fracção autónoma designada pela letra H, correspondente ao ... andar do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Rua..., em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...15 da freguesia ... e inscrito na matriz urbana da freguesia ... sob o artigo ...85.º.
2. Por escrito datado de 1 de Outubro de 1953, a mãe do Autor, CC, deu de arrendamento ao pai do Réu, DD, à data casado, em regime de comunhão geral, com EE, mãe do Réu, o fogo referido em 1. do prédio que ainda não estava constituído em propriedade horizontal.
3. Por sentença de 19 de Novembro de 1974, transitada em 28 de Novembro do mesmo ano e proferida pelo Tribunal de Família ..., foi decretada a separação judicial de pessoas e bens entre os pais do Réu, DD e EE, tendo a separação judicial de pessoas e bens sido convertida em divórcio por sentença de 18 de Novembro de 1976, transitada em 6 de Dezembro do mesmo ano.
4. Desde, pelo menos, a data da separação judicial de pessoas e bens que o arrendatário DD deixou de habitar no locado, tendo vindo a falecer no ..., com última residência habitual no ..., e no estado de casado com FF, em 23 de Fevereiro de 2014.
5. EE manteve-se a residir no locado.
6. Em 8 de Setembro de 2019, com última residência habitual no locado e no estado civil de divorciada de DD, faleceu EE.
7. O Réu comunicou ao Autor o falecimento da arrendatária sua mãe por carta recebida em 7 de Dezembro de 2019, invocando o direito de transmissão do arrendamento a seu favor, pelo facto de viver em economia comum com EE há mais de dois anos.
8. O Autor respondeu, por carta enviada em 11/12/2019, na qual refere que o Réu não alega, nem prova, nenhuma das condições referidas no artigo 57.º do NRAU, que o arrendamento para habitação só não caducaria por morte do primitivo arrendatário e que a falecida mãe do Réu era já transmissária do mesmo, concluindo pela não aceitação da transmissão do arrendamento por falta de fundamento legal e solicitando que o locado, devidamente livre de pessoas e bens, fosse entregue até ao dia 7 de Março de 2020, data em que se completariam seis meses do óbito da arrendatária.
9. O Réu não nem entregou o locado.
10. O Réu depositou, em Março de 2020, a renda no valor de 606,72 €.
IV. Razões de Direito
- da inconstitucionalidade do artigo 57.º do NRAU por negar a transmissão do direito ao arrendamento a todos os descendentes, em violação do princípio da igualdade e do direito à habitação
Defende o Recorrente que o regime transitório previsto no art.º 57.º do NRAU que impede a transmissão do arrendamento a todos os descendentes fere o princípio da igualdade constitucionalmente consagrado no artigo 13.º da CRP e o direito à habitação contemplado no art.º 65.º da CRP.
A sentença recorrida considerou que o art.º 57.º do NRAU aplicável ao caso não prevê a transmissão do direito ao arrendamento ao descendente que resida há mais de 2 anos com o arrendatário se não estiver numa das situações previstas nas alíneas d), e) e f), circunstâncias que o Réu não alegou verificarem-se, não lhe reconhecendo o direito à transmissão do arrendamento, mais entendendo não padecer a aludida norma de inconstitucionalidade.
Não contesta o Recorrente a definição do regime legal aplicável, mormente o recurso ao disposto no art.º 57.º do NRAU na apreciação da situação em presença, limitando a sua discordância à questão da inconstitucionalidade desta norma.
A Lei 6/2006 de 27 de fevereiro, veio estabelecer o intitulado novo regime do arrendamento urbano (NRAU), tendo no seu art.º 59.º regulado a sua aplicação no tempo, dispondo no seu n.º 1: “O NRAU aplica-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias.”
Estas normas transitórias são as contempladas nos art.º 26.º a 58.º da referida lei.
Os art.º 26.º n.º 1 e 28.º impõem a aplicação do novo regime a todos os contratos celebrados não só na vigência do Decreto Lei 321-B/90 de 15 de outubro, como também aos contratos de arrendamento para habitação celebrados em momento anterior ao da sua vigência, com as especificidades previstas no mencionado art.º 26.º.
Com a Lei 31/2012 de 14 de agosto, o legislador veio introduzir alterações significativas ao NRAU, fazendo este diploma parte de um pacote legislativo que visou estabelecer diversas medidas com o objetivo de dinamizar o mercado do arrendamento urbano num contexto de crise, na concretização dos princípios aprovados no denominado Memorando de Entendimento com a Troika assinado a 17 de maio de 2011 e celebrado entre o Estado Português, o Fundo Monetário Internacional, a Comissão Europeia e o Banco Central Europeu.
O art.º 1.º da Lei 31/2012 de 14 de agosto dispõe quanto ao seu objecto:
“A presente lei aprova medidas destinadas a dinamizar o mercado de arrendamento urbano, nomeadamente:
a) Alterando o regime substantivo da locação, designadamente conferindo maior liberdade às partes na estipulação das regras relativas à duração dos contratos de arrendamento;
b) Alterando o regime transitório dos contratos de arrendamento celebrados antes da entrada em vigor da Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro, reforçando a negociação entre as partes e facilitando a transição dos referidos contratos para o novo regime, num curto espaço de tempo;
c) Criando um procedimento especial de despejo do local arrendado que permita a célere recolocação daquele no mercado de arrendamento.”
Com referência à questão que nos ocupa, dispõe o art.º 26.º n.º 2 que à transmissão por morte se aplica o disposto nos art.º 57.º e 58.º, sendo que o primeiro se refere aos arrendamentos para habitação e o segundo aos arrendamentos para fins não habitacionais.
Este art.º 57.º do NRAU, sobre a transmissão por morte no arrendamento para habitação, dispõe:
“1. O arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário quando lhe sobreviva:
a) Cônjuge com residência no locado;
b) Pessoa que com ele vivesse em união de facto há mais de dois anos, com residência no locado há mais de um ano;
c) Ascendente em 1.º grau que com ele convivesse há mais de um ano;
d) Filho ou enteado com menos de 1 ano de idade ou que com ele convivesse há mais de 1 ano e seja menor de idade ou, tendo idade inferior a 26 anos, frequente o 11.º ou o 12.º ano de escolaridade ou estabelecimento de ensino médio ou superior;
e) Filho ou enteado, que com ele convivesse há mais de um ano, com deficiência com grau comprovado de incapacidade igual ou superior a 60%.
f) Filho ou enteado que com ele convivesse há mais de cinco anos, com idade igual ou superior a 65 anos, desde que o RABC do agregado seja inferior a 5 RMNA.
2 - Nos casos do número anterior, a posição do arrendatário transmite-se, pela ordem das respetivas alíneas, às pessoas nele referidas, preferindo, em igualdade de condições, sucessivamente, o ascendente, filho ou enteado mais velho.
3 - O direito à transmissão previsto nos números anteriores não se verifica se, à data da morte do arrendatário, o titular desse direito tiver outra casa, própria ou arrendada, na área dos concelhos de Lisboa ou do Porto e seus limítrofes ou no respetivo concelho quanto ao resto do País.
4 - Sem prejuízo do disposto no número seguinte, quando ao arrendatário sobreviva mais de um ascendente, há transmissão por morte entre eles.
5 - Quando a posição do arrendatário se transmita para ascendente com idade inferior a 65 anos à data da morte do arrendatário, o contrato fica submetido ao NRAU, aplicando-se, na falta de acordo entre as partes, o disposto para os contratos com prazo certo, pelo período de 2 anos.
6 - Salvo no caso previsto na alínea e) do n.º 1, quando a posição do arrendatário se transmita para filho ou enteado nos termos da alínea d) do mesmo número, o contrato fica submetido ao NRAU na data em que aquele adquirir a maioridade ou, caso frequente o 11.º ou o 12.º ano de escolaridade ou cursos de ensino pós-secundário não superior ou de ensino superior, na data em que perfizer 26 anos, aplicando-se, na falta de acordo entre as partes, o disposto para os contratos com prazo certo, pelo período de 2 anos.”
Uma vez que, no caso em presença, estamos perante um contrato de arrendamento celebrado em 1953, é este o regime legal aplicável às transmissões do arrendamento para habitação por morte, uma vez que a mãe do R. faleceu já no âmbito da vigência do NRAU.
Este regime transitório é, ainda assim, mais favorável aos descendentes do arrendatário do que o atual regime da transmissão do arrendamento para habitação por morte deste, que vem previsto no art.º 1106.º do C.Civil, mas que só se aplica aos contratos celebrados já após a entrada em vigor do NRAU; é, porém, um regime mais desfavorável para os descendentes do arrendatário que estavam abrangidos de forma mais ampla pela possibilidade de transmissão do direito ao arrendamento por morte do arrendatário prevista no art.º 85.º n.º 1 al. f) do RAU.
Na consideração do regime do art.º 57.º do NRAU não há lugar à transmissão do direito ao arrendamento para o R. por morte da sua mãe, suscitando o Recorrente a inconstitucionalidade desta norma por violação do principio da igualdade previsto no art.º 13.º da CRP uma vez que trata de forma diferente os descendentes do arrendatário ao atribuir tal direito apenas a alguns e por violação do direito à habitação constitucionalmente previsto no art.º 65.º do CRP.
Vejamos se podemos falar de uma violação do princípio da igualdade pelo facto do legislador neste art.º 57.º do NRAU considerar de forma diferente os descendentes do arrendatário apenas conferindo àqueles que se encontrem na situação prevista no n.º 1 al. d), e) e f) a possibilidade de transmissão do direito ao arrendamento por morte do arrendatário e limitando agora os descendentes a quem é conferido tal direito, em confronto com o anterior regime legal.
É uma evidência que a distinção entre os descendentes prevista no art.º 57.º n.º 1 do NRAU ocorre, na medida em que o legislador consagrando como regra a caducidade do arrendamento por morte do arrendatário, prevê que excecionalmente tal possa não acontecer, não se lhe sobreviver um qualquer descendente, mas apenas se lhe sobreviver algum descendente que esteja nas condições previstas naquelas alíneas, designadamente: (i) seja menor de idade ou tendo idade inferior a 26 anos, frequente o 11.º ou o 12.º ano de escolaridade ou estabelecimento de ensino médio ou superior; (ii) tenha idade igual ou superior a 65 anos desde que o RABC do agregado seja inferior a 5 RMNA; (iii) seja portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade igual ou superior a 60%.
Facilmente se vê a razão de ser da distinção que o legislador aqui faz entre os descendentes, na medida em que para efeitos da transmissão do arrendamento  não é esta sua qualidade sem mais que releva, mas antes a especial situação de fragilidade que se verifica nos descendentes que se encontrem nas condições excecionadas por este artigo, em razão da idade, estado de saúde ou condição económica e financeira, pessoas que pela sua fragilidade impõem a necessidade de uma especial proteção, o que justifica que beneficiem de um regime mais favorável.
Não se verifica assim, com tal seleção, uma qualquer violação do princípio da igualdade consagrado no art.º 13.º da CRP, que antes supõe tratar de igual forma o que é igual e de forma diferente o que é diferente.
Como nos diz o Acórdão do STJ de 18 de abril de 2012 no proc. 667/08.1GAPTL.G1-A.S1 in www.dgsi.pt : “Na sua dimensão material ou substancial, o princípio da igualdade, como vem defendendo o Tribunal Constitucional../../../Documents and Settings/sbarreto/Ambiente de trabalho/afj52012.doc - _ftn27, vincula em primeira linha o legislador ordinário, no entanto, não o impede de definir as circunstâncias e os factores tidos como relevantes e justificadores de uma desigualdade de regime jurídico, dentro da sua liberdade de conformação legislativa, visto que este princípio, enquanto limitador da discricionariedade legislativa, apenas proíbe a adopção de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, ou seja, desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável ou sem qualquer justificação objectiva e racional. O princípio da igualdade como proibição de arbítrio não proíbe, pois, que a lei estabeleça distinções. Proíbe, ao invés, que se tratem por igual situações essencialmente desiguais e, obviamente, a descriminação, para além de que, não constitui um critério definidor do conteúdo do princípio da igualdade, antes expressa e limita a competência de controlo judicial, tratando-se de um critério de controlabilidade judicial do princípio da igualdade que não põe em causa a liberdade de conformação do legislador ou a discricionariedade legislativa. A proibição do arbítrio constitui, assim, um critério essencialmente negativo, com base no qual são censurados apenas os casos de flagrante e intolerável desigualdade, não também a solução mais adequada ao fim, mais razoável ou mais justa, controle este vedado ao juiz.”
No regime do art.º 57.º não encontramos uma distinção arbitrária estabelecida pelo legislador, na determinação dos descendentes a quem confere o direito à transmissão do arrendamento por morte do arrendatário, mas antes a definição de um regime mais favorável que é diferente em função da situação de maior fragilidade de alguns descentes.
Por outro lado, uma maior restrição dos casos em que pode haver lugar, por morte do arrendatário, à transmissão do arrendamento para os descentes imposta pela nova legislação, em limitação do anterior regime legal mais favorável, também não representa uma violação do princípio da igualdade, como tem vindo a ser amplamente entendido, com particular relevância para a posição manifestada pelo Tribunal Constitucional sobre esta questão, do que apenas é exemplo o Acórdão do TC de 29 de novembro de 2011 no proc. 100/11 in www.pgdlisboa.pt que refere: “Com a criação das aludidas normas transitórias (dos art.ºs 57.º e 58.º), o legislador fez opções legislativas em função dos interesses sócio-económicos que pretendeu salvaguardar, atingindo com as suas prescrições, de forma generalizada e abstracta, um número indefinido de destinatários, supostamente os que se encontrem nas circunstâncias que definiu, sem ter criado, dentre eles, qualquer discriminação ou desigualdade injustificada. Como tem vindo a dizer o Tribunal Constitucional, em inúmeros Acórdãos, o principio da igualdade não proíbe, em absoluto, as distinções, mas apenas aquelas que se afigurem destituídas de um fundamento racional, e, no essencial, o que ele impõe é uma proibição do arbítrio e da discriminação sem razão atendível, postulando que se dê tratamento igual a situações de facto essencialmente iguais e tratamento diferente para situações de facto desiguais – cfr, entre muitos outros, os seus Acórdãos nºs 195/07, de 14/03/2007, 210/07, de 21/03/2007, 254/07, de 30/03/2007, in, respectivamente, págs. 421, 537 e 883, do 68.º Volume da Colectânea de Acórdãos do Tribunal Constitucional. Ora, pelos motivos já anteriormente aflorados, não vemos que aquelas normas transitórias sejam destituídas de fundamento justificativo e racional, que as torne incompreensivelmente desiguais para com determinados destinatários.”
Também neste sentido se pronunciou o Acórdão do TC de 12 de maio de 2010 no proc. 1096/2010, publicado na II série do DR n.º 115/2010 de 16/06/2010, citado na sentença recorrida, nos seguintes termos: “A diferença de regimes a operar sincronicamente tem o seu fundamento na circunstância de nos novos contratos de arrendamento habitacional já não vigorar o sistema de prorrogação forçada para o senhorio do vínculo contratual, ao contrário do que sucede na maioria dos contratos celebrados anteriormente à entrada em vigor do NRAU. Enquanto nestes, com excepção dos contratos de duração limitada previstos no artigo 98.º e seg., do RAU, o senhorio não pode denunciar o contrato no termo do prazo acordado, estando vinculado através de renovações sucessivas, enquanto essa for a vontade do arrendatário, como ocorre com o contrato de arrendamento sub iudice, nos contratos celebrados após a entrada em vigor do NRAU, o prolongamento da relação contratual já não lhe pode ser imposto unilateralmente pelo arrendatário. Nestes novos contratos, o senhorio pode opor-se à renovação do contrato no termo do prazo acordado (artigo 1096.º, n.º 2, e 1097.º, do CC), ou não tendo sido fixado qualquer prazo, pode denunciá-lo com uma antecedência de 5 anos (artigo 1101.º, c), do CC). Na verdade, o alcance do direito à transmissão por morte da posição contratual do arrendatário habitacional está intimamente conexionado com o grau de tutela conferido ao interesse na continuidade da relação contratual. Quando o senhorio deixa de estar sujeito à perduração indefinida do contrato, perdem sentido todos os resguardos e limitações que rodeavam o direito à transmissão com vista a atenuar o impacto negativo que ela ocasionava nos interesses do senhorio (Sousa Ribeiro, na ob. cit., pág. 764-765,). Por isso existe uma diferença decisiva no regime da generalidade dos contratos celebrados anteriormente à entrada em vigor do NRAU, relativamente àquele que disciplina os contratos posteriormente outorgados, que fundamenta e justifica as diferenças de tratamento jurídico da admissibilidade da transmissão por morte da posição do arrendatário consagradas no artigo 1106.º, do CC, para os novos contratos, e no artigo 57.º, do NRAU, para os contratos pré-existentes. (…)”, concluindo que “Tendo sido apurado um suporte material bastante para o tratamento desigual sincrónico apontado pelo Recorrente, não se pode considerar que essa distinção viole o princípio da igualdade plasmado no artigo 13.º, da CRP”.”
Resta concluir pela não verificação da inconstitucionalidade do art.º 57.º do NRAU, por violação do princípio da igualdade previsto no art.º 13.º da CRP.
Alega ainda o R., embora sem apresentar grande justificação para o efeito, que a norma em causa viola do direito à habitação previsto no art.º 65.º da CRP, curiosamente invocando nas suas alegações para este efeito, um único acórdão que é desfavorável à sua pretensão por defender posição contrária à sua sobre esta matéria.
Na avaliação e decisão desta questão pronuncia-se de forma clara e com fundamentação na qual nos revemos, o Acórdão do TRP de 7 de outubro de 2019, no proc. 2346/18.2T8GDM.P1 in www.dgsi.pt, nos seguintes termos: “E, também, não ocorre a violação do direito à habitação (consagrado no art. 65.º, da Constituição), pois que tal direito reveste, acima de tudo, natureza programática, dirigida ao Estado, e está contemplada no art. 57.º, n.º 1, do NRAU, a parte essencial do direito à habitação, ao estabelecer um conjunto, eleito, de beneficiários na transmissão por morte do arrendamento, nomeadamente nos contratos mais antigos e com um regime fortemente vinculístico, encontra-se salvaguardada, adequadamente, a essência do direito à habitação e em relação às pessoas mais vulneráveis, situações em que mais se justifica uma proteção especial. Por isso, ao legislar nos termos conhecidos, o Estado, no âmbito da sua função soberana enquanto legislador, assegurou, em termos razoáveis, o direito à habitação.
E, como decidiu a Relação de Lisboa, seguindo a orientação que vem sendo traçada pelo Tribunal Constitucional, o “art.1º, que baseia a República Portuguesa, além do mais, na dignidade da pessoa humana, tem, no caso, que ser conjugado com o direito à habitação a que alude o citado art.65º. Na verdade, a dignidade da pessoa humana é que legitima e justifica, designadamente, a garantia de condições dignas de existência, que, por seu turno, é indissociável do direito à habitação. É certo que este implica determinadas obrigações positivas do Estado (nºs 2, 3 e 4, do citado art.65º), embora não confira um direito imediato a uma prestação efectiva dos poderes públicos, mediante a disponibilização de uma habitação. Todavia, o incumprimento por parte do Estado e demais entidades públicas das referidas obrigações constitucionais constitui uma omissão constitucional. É igualmente certo que o direito à habitação também pode ser realizado por via do direito de arrendamento, cumprindo ao Estado, além do mais, fomentar a oferta de casas para arrendar. No entanto, como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa, Anotada, vol.I, 4ª ed., págs.836 e 837, « … o direito à habitação não preclude o funcionamento de um mercado de arrendamento, através da possibilidade de despejos em casos justificados e da liberdade de fixação de rendas. O direito à habitação justifica seguramente limitações à propriedade no caso de prédios arrendados e não só (…). Mas essas limitações devem obedecer a um princípio de equidade e de proporcionalidade». E acrescentam aqueles autores, in ob. e loc. cits., «Os titulares passivos do direito à habitação, como direito social, são primacialmente o Estado e as demais colectividades públicas territoriais e não principalmente os proprietários e senhorios». Assim, a Constituição “reconhece a todos, no artigo 65º, o direito à habitação e, em conjugação com o artigo 1º, o direito a uma morada digna, onde cada um possa viver com a sua família” e, “enquanto direito fundamental de natureza social, tal direito “pressupõe a mediação do legislador ordinário destinada a concretizar o respetivo conteúdo” (Ac. nº829/96 – cfr. ainda Acs. nºs 131/92, 508/99 e 29/00)”. Tal artigo, é configurado, fundamentalmente, como um direito à proteção do Estado. O nº2 impõe ao Estado um conjunto de incumbências em vista a assegurar o direito de todos à habitação e os nºs 3 e 4 têm igualmente como destinatários os poderes públicos. Tal direito não se move, à partida, no círculo das relações entre particulares. Destinatários do direito à habitação são o Estado, as regiões autónomas e as autarquias locais e não, em princípio, os proprietários de habitações ou os senhorios (Ac. nº. 130/92 – cfr. Ainda Ac. nº 590/04), sendo que, contudo, a propriedade tem uma “função social” a ponderar sempre que há conflito de interesses entre o inquilino e o senhorio, embora se não revele legítimo, adequado, proporcional nem constitucional “obrigar os proprietários a sub-rogarem-se ao Estado no cumprimento das incumbências infungíveis que, por expresso imperativo constitucional, sobre ele recaem. Por outro lado, a realização do direito à habitação através da imposição de limitações intoleráveis e desproporcionadas ao direito de propriedade, não só não é constitucionalmente exigível (Ac. nº 633/95 – cfr. ainda Acs. nºs 101/92, 130/92 e 570/01), como, em rigor, se apresenta como constitucionalmente interdita”.
Deste modo, atentas as razões do regime introduzido pelo art.57º, do NRAU, e as situações a que o mesmo é aplicável, entendemos que da interpretação e aplicação efetuadas pela decisão recorrida nenhuma violação ao direito à habitação, constitucionalmente consagrado, resulta ocorrer. Não se verificando a invocada inconstitucionalidade, como vimos, pois que há específicas razões para, no domínio do arrendamento, acautelar determinadas situações de presumida maior vulnerabilidade, afastando a caducidade do contrato de locação, por morte do locatário, prevista na al. d), do art. 1051º, do CC, nuns casos e não o fazer noutros (…) E a restrição ou compressão do direito à habitação é admitida e aceite pela Constituição, limitando-se o mesmo ao estritamente necessário à salvaguarda de outro direito ou interesse constitucionalmente protegido (o direito de propriedade privada e de livre iniciativa económica, direitos expressamente previstos nos artºs 61º e 62º da CRP). Não se nos afigura, assim, desproporcional a solução consagrada no regime legal em questão, em que direitos dos inquilinos apenas foram restringidos na medida do necessário a assegurar o direito dos senhorios e o interesse público.”
Atenta a argumentação expendida neste Acórdão, com a qual se concorda e para a qual se remete, já se vê que o art.º 57.º do NRAU e o regime que aí é definido para a transmissão do direito ao arrendamento por morte do arrendatário representa uma legítima opção do legislador, não se apresentando como violador do direito à habitação previsto no art.º 65.º da CRP que se apresenta como uma norma programática dirigida ao Estado e não aos particulares.
Em face do exposto, resta concluir que não se vislumbra que o legislador ao estabelecer no art.º 57.º do NRAU o regime da transmissão do arrendamento por morte do arrendatário, limitando a mesma nos termos aí previstos, tenha violado qualquer norma ou princípio constitucional, designadamente o princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei contemplado no art.º 13.º do CRP ou o direito à habitação previsto no art.º 65.º da CRP.
Considerando-se não existir uma desconformidade material do art.º 57.º do NRAU às normas ou princípios constitucionais, não há razão para se recusar a sua aplicação ao caso, carecendo assim de fundamento a pretendida revogação da sentença recorrida que se mantém.
- da litigância de má fé do R.
Vem o Recorrido em sede de recurso, requerer a condenação do R. Recorrente como litigante de má fé, em multa e indemnização, nos termos previstos no art.º 542.º do CPC.
O R. não veio responder a esta questão.
Alega o A., em síntese, que o recurso interposto pelo R. carece de fundamento, apresentando-se como contrário à jurisprudência dos tribunais superiores e do tribunal constitucional, tendo apenas como objetivo protelar o trânsito em jugado da sentença e a entrega do locado, sabendo o prejuízo que tal conduta causa ao A., atuando com dolo ou negligência grave.
O acesso ao direito é constitucionalmente protegido e vem consagrado no art.º 20.º da Constituição da República Portuguesa.
Por seu turno o art.º 2.º do CPC faz eco de tal princípio, com a epígrafe “garantia de acesso aos tribunais”, estabelecendo no seu nº 1: “A proteção jurídica através dos tribunais implica o direito a obter, em prazo razoável, uma decisão judicial que aprecie com a força de caso julgado, a pretensão regularmente deduzida em juízo, bem como a possibilidade de a fazer executar.”
Contudo, o exercício destes direitos tem como corolário a existência de deveres de conduta para as partes que exercem o direito a propor uma ação ou o direito de defesa. Pode falar-se de abuso de direito quando a parte deduz pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar.
O DL 329-A/95 de 12 de Dezembro veio introduzir alterações ao código de processo civil, com significativa relevância ao nível do instituto da litigância de má fé, impondo uma colaboração mais estreita aos intervenientes processuais, nomeadamente com a nova redação que deu ao art.º 266.º relativo ao princípio da cooperação, com a introdução do art.º 266.º-A respeitante ao dever de boa fé processual e ainda com a alteração ao art.º 456.º ao passar a sancionar a litigância de má fé da parte não só quando o seu comportamento é doloso, mas também quando revela negligência grave.
O atual Código de Processo Civil segue essa mesma orientação, mantendo, no essencial, a previsão daquelas normas.
Desde logo os art.º 7.º e 8.º do CPC vêm impor um dever de colaboração estreita aos diversos intervenientes processuais, que devem agir de boa fé, sendo que o art.º 542.º n.º 2 do CPC, tal como o anterior art.º 456.º sanciona a litigância de má fé não só quando a mesma é dolosa, mas também quando a conduta das partes revela negligência grave.
O instituto da litigância de má fé pretende levar as partes a cumprirem tais deveres, sancionando quem não o faça, na prossecução do que não pode deixar de considerar-se “uma boa administração da justiça”.
O art.º 542.º do CPC diz-nos no seu n.º 1: “Tendo litigado de má fé, a parte será condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir”; acrescenta o n.º 2: “Diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
Naturalmente que a litigância de má fé não se confunde com a manifesta improcedência da pretensão formulada pela parte, para isso antes se exige que a conduta processual da parte seja dolosa, ou pelo menos gravemente negligente.
Diz-nos a este propósito o Acórdão do STJ de 18/02/2015 no proc. 1120/11.1TBPFR.P1.S1 in www.dgsi.pt : “Não basta, assim, para que se conclua pela litigância de má fé por alguma das partes no processo, a dedução de pretensão ou oposição sem fundamento, ou a afirmação de factos não verificados ou verificados de forma distinta: tal pode ter ocorrido por a parte se encontrar, embora incorretamente, convencida da sua razão ou de que os factos se verificaram da forma que os descreve, hipótese em que inexistirá má fé. Impõe-se, pois, para que haja litigância de má fé, que a parte, ao deduzir a sua pretensão ou oposição infundamentada ou ao afirmar factos não ocorridos, tenha atuado com dolo ou com negligência grave, ou seja, sabendo da falta de fundamento da sua pretensão ou oposição, ou encontrando-se numa situação em que se lhe impunha que tivesse esse conhecimento.”
Na situação em presença, o que está em causa é a interposição do recurso pelo R. com vista à revogação da sentença proferida pelo tribunal de 1ª instância, estribada na avaliação que o mesmo faz da inconstitucionalidade da norma aplicada, em concreto do art.º 57.º do NRAU.
Se é verdade que a nossa jurisprudência, quer dos Tribunais Superiores, quer do Tribunal Constitucional, têm vindo a pronunciar-se sobre esta matéria no sentido da não verificação da inconstitucionalidade de tal norma, o que também é certo é que tais decisões não têm força vinculativa geral, não podendo deixar de admitir-se a defesa de uma posição diferente que a parte procura fazer valer no processo a seu favor e no recurso que intenta, sendo excessivo ver-se na interposição do presente recurso um mero ato para entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
Dito de outra forma, considera-se que a defesa da questão da inconstitucionalidade da norma em causa pelo R., suscitada na sua contestação e que o mesmo também pretende fazer valer em sede de recurso, naturalmente em seu favor e com prejuízo para o A., não é suscetível de ser qualificado como um ato censurável e contrário à boa fé, num comportamento doloso, nem tão pouco gravemente negligente, elemento subjetivo necessário, como se viu, para a condenação da parte como litigante de má fé, nos termos do art.º 542.º n.º 2 do CPC.
Assim, improcede o pedido de condenação do R. como litigante de má fé.

IV. Decisão:
Em face do exposto, julga-se o presente recurso interposto pelo R. totalmente improcedente, confirmando-se a sentença recorrida, mais se julgando improcedente o pedido de condenação do Recorrente como litigante de má fé.
Custas pelo Recorrente.
Notifique.

Lisboa, 10 de março de 2022
Inês Moura  
Laurinda Gemas  
Arlindo Crua