Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | CRISTINA ALMEIDA E SOUSA | ||
Descritores: | VIOLÊNCIA DOMÉSTICA OFENSAS À INTEGRIDADE FÍSICA CONVOLAÇÃO CRIME SEMI-PÚBLICO QUEIXA LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 02/06/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIDO | ||
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Sumário: | A solução estabelecida no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 9/2024, para fixação de jurisprudência, proferido no proc. 560/19.2PATVD.L1-A.S1, em 29.05.2024, segundo a qual: «O Ministério Público mantém a legitimidade para o exercício da ação penal e o assistente a legitimidade para a prossecução processual, nos casos em que, a final do julgamento, por redução factual de acusação pública por crime de violência doméstica p. e p. no artigo 152º, nº 1, do Código Penal, são dados como provados os factos integrantes do crime de injúria p. e p. no artigo 181º, nº 1, do Código Penal, desde que o ofendido tenha apresentado queixa, se tenha constituído assistente e aderido à acusação do Ministério Público.» (Diário da República nº 131/2024, Série I de 09.07.2024), deverá ser transposta para crimes semi-públicos como o de ofensa à integridade física simples. Isto, porque só a inexigibilidade de dedução de acusação particular justifica a manutenção da legitimidade do Mº. Pº. para o exercício da acção penal, em virtude de não ser exigível que o assistente preveja que fruto de vicissitudes inerentes à produção de prova e à discussão da causa, os factos integradores do que começou por ser qualificado como crime de violência doméstica, que é um crime público, venham apenas a permitir o preenchimento de um dos tipos legais de crime já previstos na parte especial do CP de natureza particular, sendo injusto que acabe penalizado por ter omitido um acto processual que nem sequer lhe era legalmente permitido praticar (a dedução de acusação particular por crime de natureza pública). Todavia, o prosseguimento do processo, em tais condições só é admissível se tiver sido exercitado atempadamente o direito de queixa, se tiver havido constituição de assistente e este tiver acompanhado a acusação pública, por corresponderem a manifestações de vontade inequívocas e materializadas em actos processuais aptos a suprir a falta da acusação particular, por revelarem a vontade do assistente de que a pessoa indicada como autora do crime que sofreu seja criminalmente perseguida e responsabilizada. Estando em causa, um crime semi-público, a condição essencial para que o processo prossiga é, por identidade de razões, que tenha sido apresentada queixa ou que, em acto de declaração de vontade expressa, a vítima tenha declarado que deseja procedimento criminal e não tenha revogado essa sua declaração, através de uma desistência. Quer a queixa, quer a acusação particular são pressupostos positivos de punição e, nos casos em que o procedimento depende das respetivas pré-existências, sem elas falha a legitimidade do MP para o exercício da ação penal. Esta é a única forma de compatibilizar os princípios constitucionais da tutela jurisdicional efectiva e do direito a um processo justo e equitativo, cujo âmbito subjectivo também tem como destinatários os ofendidos e os assistentes a quem é reconhecido o legítimo interesse específico de verem as suas pretensões apreciadas e julgadas em tempo útil, com sujeição a julgamento do ou dos autores dos crimes, sejam eles públicos, semi-públicos ou particulares de que foram vítimas (arts. 20º nº 1 e 32º nº 7 da CRP e Acs. do TC nºs 24/88, 690/98 e nº 462/2016, in http://www.tribunalconstitucional.pt), com as garantias de defesa reconhecidas ao arguido, nos termos do art.º 32º nºs 1 a 6 da CRP. No caso vertente, foi sempre vontade da ofendida, expressamente manifestada, quer por interposta pessoa, quer quando foi inquirida perante o OPC, de que não houvesse perseguição criminal do arguido por qualquer dos factos objecto deste processo, nos quais terão, necessariamente, de ser incluídos os que foram descritos na matéria de facto provada. Não estão, pois, reunidos os pressupostos legais que permitam retirar as devidas consequências punitivas do crime de ofensa à integridade física que, de acordo com a matéria de facto fixada na sentença recorrida, o arguido cometeu, pelo que a sentença recorrida não pode manter-se, na parte em que condenou o arguido como autor material de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art.º 143º, nº1, do C Penal, na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de 6€, no montante de 720€ e na fixação em 80 dias de prisão subsidiária (art.º 49º, nº 1, do C Penal). Impõe-se, assim, a extinção do procedimento criminal, por falta de legitimidade do Mº. Pº. para a acção penal. (sumário da responsabilidade da relatora) | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: I – RELATÓRIO Por sentença proferida no dia 15 de Julho de 2024, no processo comum singular nº 349/22.1PALSB do Juízo Local Criminal de Lisboa - Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, foi decidido: Julgar a acusação deduzida pelo Mº. Pº. parcialmente provada e procedente e, em consequência: а) condenar o Arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art.º 143º, nº 1, do C Penal, na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de 6€, no montante de 720€; b) fixar 80 dias de prisão subsidiária (art.º 49º, nº1, do C Penal); a) absolver AA da prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152º, nº1, a), do C Pena, pelo qual vinha acusado. O arguido interpôs recurso desta sentença, tendo sintetizado as razões da sua discordância, nas seguintes conclusões: (não há conclusões 1 a 44) 45. Por todos os factos e prova analisados, a ofendida, e consequentemente o Ministério Público, não faz prova que esta tenha sido agredida, e muito menos pelo recorrente. 46. O recorrente considera injusta a pena que o tribunal a quo aplicou, devendo o recorrente ser absolvido. Porquanto, 47. Não ficou provado que o recorrente tenha praticado qualquer ato de ofensa à integridade física simples. 48. Nenhuma testemunha viu qualquer tipo de agressão. 49. O depoimento da testemunha BB foi um depoimento indireto, pois nunca assistiu a nenhuma agressão, nem reteve o teor dos telefonemas entre a ofendida e o recorrente. 50. A própria ofendida não quis prestar qualquer depoimento, nem quis que o recorrente se ausentasse da sala de Audiência para prestar o depoimento. Pelo que, 51. Forçoso é concluir que não tem medo do recorrente, pois, não houve qualquer agressão. 52. Pelo exposto, requer-se assim que V. Exas dêem provimento ao presente recurso, e em consequência seja o recorrente absolvido do crime de ofensa à integridade física simples, não sendo aplicada qualquer pena ao recorrente. Nestes termos e nos demais de direito, deve ser dado provimento ao presente recurso, e em consequência ser a Sentença recorrida revogada, sendo o recorrente absolvido do crime de ofensa à integridade física simples, não sendo aplicada qualquer pena ao recorrente. Admitido o recurso, o Mº. Pº. apresentou resposta na qual concluiu que o Tribunal a quo não violou qualquer das normas ou princípios indicados pelo recorrente, pelo que deve ser mantida e confirmada na íntegra a sentença recorrida, negando provimento ao recurso. Remetido o processo a este Tribunal, na vista a que se refere o art.º 416º do CPP, a Exma. Sra. Procuradora Geral da República Adjunto emitiu parecer, no sentido da manutenção da sentença recorrida, pugnando pela improcedência do recurso. Cumprido o disposto no art.º 417º nº 2 do CPP, não houve resposta. Colhidos os vistos e realizada a conferência, nos termos e para os efeitos previstos no art.º 418º e no art.º 419º nº 3 al. c) do CPP, cumpre decidir. II – FUNDAMENTAÇÃO 2.1. DO ÂMBITO DO RECURSO E DAS QUESTÕES A DECIDIR: De acordo com o preceituado nos arts. 402º; 403º e 412º nº 1 do CPP, o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação. Além destas, o tribunal está obrigado a decidir todas as questões de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afectem o recorrente e dos vícios previstos no art.º 410º nº 2 do CPP, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito. Umas e outras definem, pois, o objecto do recurso (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do CPP, à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, 2011, págs. 1059-1061 e Acórdão do Plenário das Secções do STJ nº 7/95 de 19.10.1995, in Diário da República, I.ª Série-A, de 28.12.1995). Das disposições conjugadas dos arts. 368º e 369º por remissão do art.º 424º nº 2, todos do Código do Processo Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso pela seguinte ordem: Em primeiro lugar das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão; Em segundo lugar, das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pela impugnação alargada, se deduzida, nos termos do art.º 412º do CPP, a que se seguem os vícios enumerados no art.º 410º nº 2 do mesmo diploma; Finalmente, as questões relativas à matéria de Direito. Seguindo esta ordem lógica, no caso concreto e atentas as conclusões, as questões a tratar são as seguintes: Se a sentença é nula, nos termos da al. a) do nº 1 do art.º 379º do CPP, por falta de fundamentação; Se a sentença é nula, por ter sido feita uma alteração substancial de factos sem cumprimento do disposto no art.º 359º do CPP. Se se verifica o vício decisório da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; Se se verifica o vício decisório do erro notório na apreciação da prova; Se houve violação do princípio da presunção da inocência e do princípio in dúbio pro reo, previsto nos Artigo 32º nº 2 da CRP; Se a interpretação e aplicação dos Artigos 13º e 152º do CP, nº 5 do Artigo 97º e nº 2 do Artigo 32º da CRP é incorrecta e inconstitucional. 2.2. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO A decisão de facto, quanto aos factos provados, aos factos não provados e respectiva motivação, é a seguinte (transcrição parcial): а) O Arguido AA e DD conheceram-se em data indeterminada do ano de 2018, e mantiveram um relacionamento amoroso de namoro, sem coabitação, que veio a ter o seu términus em 11 de Maio de 2022. b) Durante este período, o Arguido e DD, por várias vezes, terminaram e reataram a sua relação amorosa. c) A relação entre os dois foi pautada por manifestações de ciúme, por parte do Arguido, mais velho cinco anos do que DD; mas, também, por manifestações de ciúme, por parte da Ofendida. d) No dia 10.05.2022, no contexto dessa relação pautada por manifestações de ciúme, o Arguido desferiu-lhe um murro na fonte, lado esquerdo, atingindo-lhe a orelha; e atingiu-a com o relógio de pulso na cara, ferindo-lhe a boca. e) DD, com dores e ferida, acabou por telefonar à sua mãe, pedindo-lhe ajuda, a qual a conduziu ao Hospital de S. José, onde deu entrada pelas 20h39m, sob o episódio de urgência nº7133381. f) Com esta conduta, o Arguido provocou dores a DD e equimoses da região frontal e malar direita, hematoma da região malar esquerda, escoriações do pavilhão auricular esquerdo, escoriações várias a nível cervical. g) Tais lesões determinaram DD um período de quinze (15) dias de doença, sem afectação da capacidade de trabalho geral e profissional. h) DD terminou a sua relação de namoro com o Arguido no dia 11/05/2022. i) O Arguido, ao actuar conforme o descrito, quis ofender a saúde de DD, atingindo-a fisicamente e causando-lhe sofrimento, o que logrou. j) O Arguido agiu de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei e, não obstante, não se coibiu de a praticar k) O Arguido exerce profissão na área de controlo da qualidade, auferindo 1.600€ por mês; vive em casa de sua mãe, com os irmãos; não tem filhos. l) O Arguido revela um percurso profissional regular, encontrando-se empregado com vínculo laboral, com o apoio familiar, em especial dos avós paternos, o que se constitui um ponto positivo a nível pessoal. No domínio afectivo manteve esta relação mais duradoura com DD, envolta num quadro de disfuncionalidade, devido ao facto de terminarem e reatarem a relação por diversas vezes. m) Do certificado de registo criminal do Arguido consta a seguinte condenação: Tribunal Lisboa - J.L. Criminal - Juiz 12; do processo: 48/17.6 SXLSB; Data da decisão: 16/05/2018; Crime: detenção de arma proibida; Data da prática dos factos: 12/12/2017; Condenação: 120 dias de muita, à taxa diária de 5€, no montante de 600€; Trânsito em julgado: 04/09/2018. * 2.2. - Matéria de facto não provada Com interesse para a decisão, não resultou provado: - que o Arguido, no contexto da relação de namoro que tinha com a Ofendida, lhe tenha dito “és uma puta”, “vaca”, “nojenta de merda”, “otária”; - que o Arguido, em datas indeterminadas e em várias ocasiões, na sequência de discussões, tenha agredido na cara, com bofetadas, e empurrado DD; - que, em datas indeterminadas e em várias ocasiões, durante o relacionamento, o Arguido a tenha proibido de sair ou de estar com outros rapazes, exigindo ver o seu telemóvel para controlar a sua rede social; - que no dia 25 de Novembro de 2019, cerca das 1lh45m, o Arguido se tenha dirigido à Escola EB 2/3 …, frequentada por DD, e, ao vê-la ao portão de entrada na companhia do colega EE, se lhe tenha dirigido, e dito: “O QUE ESTAS AQUI A FAZER? VAI JA LA PARA DENTRO, EU JA TE TINHA AVISADO QUE NÃO TE QUERIA AQUI À PORTA COM ESSE GAJO”, “SÓ NÃO LEVAS PORQUE EU PROMETI.”; - que DD se tenha sentido humilhada, começado a chorar e entrado para dentro do recinto escolar; - que o Arguido tenha continuado a contactar telefonicamente DD; - que, no dia 26-07-2022, o Arguido lhe tenha telefonado, questionando-a por diversas sobre as suas saídas, perguntando-lhe: “COM QUE AMIGOS ANDAS A SAIR? QUERO SABER O QUE ANDAS A FAZER COM OS TEUS NOVOS AMIGOS”, tendo aquela desligado de imediato a chamada telefónica; - que, volvidos alguns minutos, o Arguido tenha voltado a ligar para o telemóvel daquela, proferindo: “QUARTA-FEIRA VOU AO TEU TRABALHO! VOU CONTAR AO TEU PATRÃO O QUE ANDAS A FAZER VOU AO TEU TRABALHO PARA TE ENVERGONHAR”; - que no dia 10 de Maio de 2022, cerca das 18h30m, na Avenida Ucrânia, em Lisboa, quando ambos se encontravam no interior da viatura automóvel do Arguido, este, ao ver que DD tinha recebido mensagens “sms”, tenha querido vero telemóvel daquela, exigindo-lhe que a mesma o desbloqueasse; - que apesar de DD, inicialmente lhe ter dito que não, tenha acabado por aceder a desbloquear o telemóvel e mostrado as mensagens, mas com o telemóvel na sua mão, o que o Arguido não aceitou - que, como DD retivesse o telemóvel na sua mão, o Arguido lhe tenha tirado o telemóvel; - que DD tenha acabado por aceder a que o Arguido ficasse com o seu telemóvel na sua posse e lesse as “sms” que recebeu, por forma a fazer cessar as agressões; - que o Arguido tenha querido proferir para DD as expressões supra referidas, causar-lhe humilhação e medo e atingir a honra e a consideração da mesma, bem sabendo que a sua conduta era adequada a provocar tais resultados; - que o Arguido tenha querido agredir psicologicamente DD, afectando-lhe, deste modo, o bem-estar físico e psíquico, a sua liberdade, e que o tenha logrado; - que o Arguido, sabendo que tinha o dever de respeitar DD, com quem mantinha uma relação de namoro, tenha actuado da forma descrita, violando os seus mais elementares direitos, causando-lhe um profundo sentimento de insegurança, e que o tenha querido e logrado conseguir; - que o Arguido tenha actuado com o intuito de causar medo a DD, bem sabendo que a sua conduta era adequada a causar tal resultado, tendo a liberdade necessária para se determinar de acordo com essa avaliação. * 2.3.- Motivação (…) O Tribunal formou a sua convicção com base nas declarações do Arguido AA, relativas às respectivas condições pessoais, familiares e profissionais. Relativamente aos factos, remeteu-se ao silêncio. A Ofendida DD, usou da prerrogativa de não prestar depoimento. Declarou não pretender que ao Arguido seja aplicada pena acessória de afastamento em relação à sua pessoa, e renunciou a ser pelo mesmo indemnizada. Atendeu o Tribunal ao depoimento prestado por FF, Assistente Social a desempenhar funções no Agrupamento Auxiliar da Escola frequentada por DD. A depoente recordou que a relação entre a Ofendida e o Arguido era disfuncional, existindo ciúmes da parte de ambos. Teve conhecimento de um único episódio, e viu, num telemóvel, imagens de hematomas que a Ofendida apresentava. A Ofendida também tinha um percurso escolar disfuncional, problemas de assiduidade; mas, respeitava o Professor, em sala de aula. A Ofendida assumia a responsabilidade por essa disfuncionalidade. A depoente afirmou nunca ter visto o Arguido, o qual não era aluno deles. A testemunha prestou um depoimento credível, denotando conhecimento de alguns factos, um depoimento objectivo e isento que mereceu inteiro crédito ao Tribunal. Atendeu o Tribunal ao depoimento de GG, a qual foi colega quer da Ofendida, quer do Arguido. A depoente recordou que Arguido e Ofendida tinham uma “relação tóxica”, eram ambos ciumentos e agrediam-se mutuamente. Relativamente ao documentado a fls. 47 e 48 do Inquérito apenso, afirmou que só viu fotografias. Esclareceu que não ouviu HH “chamar nomes” a DD. Recordou que os mesmos terminaram bem o namoro. A testemunha prestou um depoimento claro, denotando conhecimento da situação e dos contornos da relação entre o Arguido e a Ofendida, um depoimento equidistante, objectivo e isento; pelo que mereceu inteiro crédito ao Tribunal. Atendeu o Tribunal ao depoimento de II, o qual foi colega do Arguido; sendo que já não têm muito contacto. O depoente presenciou um episódio entre o Arguido e a Ofendida, uma troca de palavras em tom de voz, mas elevado. Porém, entretanto, já não sabe se eles ainda namoram. A testemunha prestou um depoimento claro, mas denotando escasso conhecimento da situação e dos exactos contornos da relação entre o Arguido e a Ofendida; no entanto, um depoimento objectivo e isento, não obstante ser antigo colega do Arguido. Pelo que mereceu inteiro crédito ao Tribunal. Atendeu o Tribunal ao depoimento de JJ, Assistente no Automóvel-Clube, mãe da Ofendida. A depoente recordou que o relacionamento entre o Arguido e a Ofendida era turbulento, e ambos eram ciumentos. Esclareceu a depoente que só se apercebia de telefonemas, não retinha do teor do que era dito, mas percebia que Ofendida e Arguido eram agressivos um com o outro. Após a Ofendida ficava a chorar, e gritava. Numa determinada situação, a Ofendida telefonou à depoente, dizendo que o Arguido lhe batera [cfr. factos de alíneas d), e), f), g)]. A testemunha prestou um depoimento claro, denotando conhecimento da situação e dos contornos da relação entre o Arguido e a Ofendida, um depoimento objectivo e isento, não obstante ser mãe da mesma; pelo que mereceu inteiro crédito ao Tribunal No que à Defesa diz respeito: Atendeu o Tribunal ao depoimento de KK, amigo do Arguido há cerca de sete anos, o qual é padrinho de uma filha do depoente. Afirmou que muito raramente esteve com o casal Arguido/Ofendida. Nas poucas vezes em que esteve, aparentavam ter uma relação normal Não conheceu ao Arguido outra namorada. Definiu o mesmo com uma pessoa bondosa, sendo que o Arguido merece a sua confiança. A testemunha prestou um depoimento claro, denotando conhecimento a respeito do habitual modo-de-ser do Arguido, um depoimento que se afigurou objectivo e isento; pelo que mereceu inteiro crédito ao Tribunal Atendeu o Tribunal ao depoimento de LL, amigo do Arguido há cerca de três/quatro anos. Afirmou que nunca saiu com o casal Arguido/Ofendida. Só presenciou uma troca de palavras entre ambos, mas que não chegaram a ser agressivas. Não conheceu ao Arguido outra namorada. Definiu o mesmo com uma boa pessoa, calma e respeitadora. A testemunha prestou um depoimento claro, denotando conhecimento a respeito do habitual modo-de-ser do Arguido, um depoimento que se afigurou objectivo e isento; pelo que mereceu inteiro crédito ao Tribunal Atendeu o Tribunal ao depoimento de MM, amigo do Arguido desde os onze anos. Afirmou que algumas vezes saiu com o casal Arguido/Ofendida. O Arguido sempre foi carinhoso com a Ofendida, e aparentavam ter uma relação normal. Nunca o viu exigir nada da Ofendida, nunca o viu assumir comportamentos agressivos, mesmo com outras namoradas. Definiu o mesmo com uma pessoa calma, que respeita as outras pessoas. A testemunha prestou um depoimento claro, denotando conhecimento a respeito do habitual modo-de-ser do Arguido, o qual conhece desde os onze anos, um depoimento que se afigurou objectivo e isento; pelo que mereceu inteiro crédito ao Tribunal. Mais atendeu o Tribunal aos seguintes elementos de prova constantes dos autos: - Auto de denúncia de violência doméstica, a fls. 2-5; - Ficha de avaliação de risco - RDV- L, a fls. 6-7; - cópia de fotografia, a fls. 17-18; - Assentos de nascimento, a fls. 26-27, 2829; - Aditamento nº 2, a fls. 66; - Elementos clínicos, a fls. 74-78; - Aditamento nº 5, a fls. 82; - Auto de notícia, a fls. 2 - 5 do Inq. 144/19.5S9LSB; - Cópias de fotografias a fls. 4748 do Inq. 144/109.5 S9LSB; - Relatório da perícia de avaliação do dano corporal em direito penal, a fls. 93-94. Bem assim, ao Relatório para determinação da sanção entretanto junto na fase de julgamento. Antecedentes criminais: C.R.C. junto aos autos. Assinalou a DGRSP, no seu Relatório, que o facto de não ter sido possível contactar DD, bem como a não abordagem da relação pelo Arguido, impossibilitou uma avaliação de risco. No que concerne à matéria de facto não provada, o Tribunal elencou todos os factos que, tendo sido alegados, e revestindo-se de interesse para a decisão da causa, ficaram prejudicados. O Tribunal formou, pois, a sua convicção com base na ausência de qualquer prova da prática dos mesmos; e, ainda, formou a sua convicção atendendo às regras da experiência comum. Com efeito, a recusa da Ofendida em prestar depoimento (direito que lhe assiste), a par do silêncio do Arguido (direito que lhe assiste), fez ruir uma parte da acusação. Ainda com relevância para o desfecho do presente recurso, importa considerar a seguinte factualidade: Quando inquirida como testemunha, em 13 de Novembro de 2019, perante o OPC, no âmbito do NUIPC 144/19.5S9LSB que veio a ser incorporado neste processo, (conforme despachos do Mº.Pº de 10.10.2022, com a referência Citius 395398307 e de 7.12.2022, com a referência Citius 395484701), a ofendida DD havia declarado que não desejava procedimento criminal contra o arguido (auto de inquirição de fls. 39 e 40). A denúncia dos factos objecto do inquérito com o NUIPC 349/22.1PALSB ao OPC foi feita pela mãe da vítima, NN, em 11 de Maio de 2022 (auto de denúncia com o NPP 209048/2022 e NUIPC 000349/22.1 PALSB, com a referência Citius 25737719). O Aditamento nº 2 àquele auto de denúncia refere ainda que (transcrição): Em aditamento ao Auto de Denúncia com NPP e NUIPC em epígrafe (ou seja, NPP: 209048/2022 e NUIPC: 000349/22.1 PALSB), informo o seguinte: Na data e hora supramencionadas, enquanto me encontrava a desempenhar funções de policiamento de proximidade, compareceu a mãe da vítima, associada como denunciante no presente auto de denúncia, informando que a vítima não quis acompanhá-la a este departamento policial, no sentido de lhe ser efetuada Ficha RVD-2L. Importa salientar, que este departamento policial tentou por inúmeras vezes entrar em contacto com a vítima, não sendo possível uma vez que esta não atendeu nenhuma das chamadas, por esse motivo, contactou-se a denunciante no intuito de que esta pudesse contactar a vítima e transporta-la a este departamento policial para efetuar as diligências necessárias para dar seguimento ao processo, resultando essa tentativa também infrutífera. Assim, compareceu neste departamento policial a denunciante, que informou que a vítima não deseja procedimento criminal contra o suspeito, nem qualquer procedimento por parte desta Polícia, sendo esse o motivo de não comparecer ao INML de Lisboa nem nesta Esquadra (aditamento ao auto de denúncia de 13 de Junho de 2022, junto em 14 de Junho de 2022, com a referência Citius 25747063). 2.3. APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO Quanto à nulidade por falta de fundamentação: A fundamentação das decisões judiciais implica, em geral, um processo argumentativo de justificação da afirmação de que a determinados factos é aplicável uma determinada solução jurídica, através da enumeração e explicitação das razões de facto e de direito que conduziram a uma determinada subsunção jurídica dos factos e ao sentido da decisão. Numa dimensão endoprocessual, a fundamentação serve propósitos de clareza e compreensão pelos seus destinatários, essenciais ao cumprimento da decisão e ainda de controlo da legalidade da actividade jurisdicional e do acerto e justiça da decisão, pelas autoridades judiciárias de recurso. Numa vertente extraprocessual, as exigências de fundamentação assumem-se como um mecanismo de legitimação democrática dos próprios Tribunais e da administração da Justiça. «A consagração constitucional do princípio da fundamentação das decisões judiciais é uma garantia do processo judicial, no sentido de um procedimento justo e adequado de acesso ao direito e de realização do direito. Mas é sobretudo o reconhecimento de que os tribunais, constitucionalmente investidos do poder de julgar, em nome do povo, têm que dar conta do modo como exercem esse poder através da fundamentação das suas decisões, assim se legitimando a sua própria função.» (Mouraz Lopes, “Gestão Processual: Tópicos para um incremento da qualidade da decisão judicial”, in Julgar, n.º 10, janeiro-abril 2010, p. 143. No mesmo sentido, Rogério Bellentani Zavarize, A Fundamentação das Decisões judiciais. 1 ed. – Campinas/SP: Millennium, 2004, p.123; Lenio Luiz Streck e Igor Raatz, O Dever de Fundamentação das Decisões Judiciais sob o Olhar da Crítica Hermenêutica do Direito, doi:10.12662/2447-6641oj.v15i20.p160-179.2017, Julho de 2017, https://www.researchgate.net/publication/322218024; Michele Taruffo, Il controllo di razionalità della decisione fra logica, retorica e dialettica https://iris.unipv.it/handle/11571/210955?mode=full.47#record, Francesco Conte, Il Significato constituzionale dell´obblligo di motivazione. In: GRINOVER, Ada Pelegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel; WATANABE, Kazuo (Coord.) págs. 30-31, https://books.google.pt). O dever de fundamentação das decisões judiciais, seja qual for a jurisdição em que sejam proferidas, é, pois, um dos alicerces do Estado de Direito Democrático, na medida em que assegura que o processo seja justo e equitativo, de harmonia com o disposto no art.º 20º nºs 4 e 5 da Constituição, em face da aptidão do princípio da motivação para impedir a arbitrariedade e a descriminação, bem assim, para conferir imparcialidade às decisões, assegurando, por esta via, o respeito pelos direitos liberdades e garantias fundamentais dos seus destinatários, em sintonia com os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da igualdade e da proporcionalidade, nos termos dos arts. 2º; 13º e 18º da Constituição, respectivamente. Em suma, o princípio da exigência de fundamentação assume-se como garantia da imparcialidade do juiz, do controle da legalidade da decisão, e da possibilidade de impugnação das decisões, a par da possibilidade de controle do exercício do poder judiciário fora do contexto processual, por parte do povo em nome de quem deve ser feita a administração da justiça, no contexto de uma concepção democrática do poder. Assim é que o dever de fundamentar uma decisão judicial é uma consequência da previsão contida no artigo 205º nº 1 da Constituição da República Portuguesa, que estabelece que «as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei». Na vertente processual penal, este imperativo constitucional densifica-se em várias disposições legais, desde logo, no princípio geral consagrado no art.º 97º nº 5 do CPP, quanto à exigência da especificação dos motivos de facto e de direito de qualquer decisão Mais especificamente, no que se refere à sentença, o artigo 374º nº 2 do Código de Processo Penal impõe, a propósito do requisito da fundamentação, que a mesma contenha a «exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal». O artigo 374º nº 2 do Código de Processo Penal impõe, a propósito do requisito da fundamentação, que a mesma contenha a «exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal». E o nº 3 indica quais as menções que o dispositivo deverá conter, incluindo as disposições legais aplicáveis e a decisão de condenação ou de absolvição. Cumpre referir, antes de mais, que relativamente à sentença e/ou ao acórdão, atento o disposto nos artigos 379º n.ºs 1 al. a) e 2 e 374º nº 2 do CPP, à falta de fundamentação, isto é, à total e absoluta ausência de fundamentação, deve equiparar-se a fundamentação insuficiente, posto que uma decisão parcialmente fundamentada tem de ser entendida como não fundamentada, consabido que não existe meia fundamentação, tal como não existe meia comunicação (Paulo Saragoça da Mata, in “Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, Almedina, página 265; e acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 16.11.2005, in Coletânea de Jurisprudência, n.º 187, página 210, de 04.01.2006, proc. n.º 3801/05 - 3.ª Secção, de 19.11.2008, processo nº 08P3776, in http://www.dgsi.pt e do Tribunal Constitucional, de 17 de Abril de 1997, disponível in www.tribunalconstitucional.pt e Acs. da Relação do Porto de 15.02.2019, processo 108/10.4PEPRT-H.P1 e de 30.10.2019, processo 220/18.1GAACR. P1 in http://www.dgsi.pt). A sentença recorrida contém a exposição da matéria de facto provada e não provada, o exame crítico das provas, como exposto nos motivos da convicção, quanto à decisão de facto, sendo que os meios de prova foram identificados, foram criticamente analisados, percebendo-se com toda a clareza e de forma expressa qual foi o processo cognitivo e de raciocínio lógico desenvolvido pelo Tribunal, na apreensão da prova e subsequente fixação da matéria de facto, quanto a todos os factos, mas é quanto à conclusão de que tais factos integram o crime de ofensa à integridade física simples e não o crime de violência doméstica, por que o arguido vinha acusado, que o mesmo acusa a decisão condenatória de falta de fundamentação. Ora, neste conspecto, o texto da sentença recorrida é o seguinte (transcrição parcial de páginas 9 a 18 da referida decisão): «(…) a Jurisprudência dos Tribunais Superiores tem entendido que as condutas, para configurarem o crime de violência doméstica, devem revelar um “plus” de danosidade. Tem de poder concluir-se pela sua adequação a afectar a dignidade do outro elemento do casal, sendo precisamente este elemento que permite destrinçar este tipo penal de todos os outros que se encontram previstos no Código Penal e que tutelam bens jurídicos que acabam por também ser aqui tutelados (cfr. Ac. T.R.E. de 30.06.2015, relatado pela Ex.ma Sra. Desembargadora Ana Maria Barata de Brito, e infra também citado). (…) «Quanto ao bem jurídico protegido por esta incriminação, e como bem escreve o Prof. Taipa de Carvalho (in “Comentário Conimbricense do Código Penal - Parte Especial”, Coimbra Editora, Tomo I, pág. 332), trata-se de “bem jurídico complexo, que abrange a saúde física, psíquica e mental, e bem jurídico este que pode ser afetado por toda uma multiplicidade de comportamentos que (…) afetem a dignidade pessoal do cônjuge”. «Mais esclarece o mesmo ilustre Professor (ob. e local citados), que a ratio do tipo legal de crime previsto no artigo 152º do Código Penal não está, pois, “na proteção da comunidade familiar, conjugal (...), mas sim na proteção da pessoa individual e da sua dignidade humana”. «No dizer de Plácido Conde Fernandes (in “Violência Doméstica - Novo Quadro Penal e Processual Penal”, Jornadas Sobre a Revisão do Código Penal, Revista do CEJ, nº 8, 1º semestre de 2008, pág. 305), “o bem jurídico, enquanto materialização direta da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efetivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à sua degradação pelos maus tratos”. «A nosso ver, preenche este tipo legal de crime a prática de qualquer ato de violência que afete a saúde - física, psíquica ou emocional - da vítima (no caso, o cônjuge ou aquele que vive em condições análogas às dos cônjuges), diminuindo ou afetando, do mesmo modo, a sua dignidade enquanto pessoa inserida naquela realidade conjugal. «O crime pode, pois, realizar-se através de uma pluralidade de atos, ou através de um único ato, que atinja a saúde física, psíquica ou moral do cônjuge e afete a sua dignidade pessoal. «Porém, é exigível, sempre, que os atos praticados (plúrimos ou isolados, reiterados ou não), apreciados à luz da vida em comum, possam, de modo relevante, colocar em risco a saúde do cônjuge, tornando-o vítima de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade. «À luz do exposto, e conforme bem salienta Nuno Brandão (in “A Tutela Penal Especial Reforçada da Violência Doméstica”, Revista Julgar, nº 12, pág. 19), no crime de violência doméstica “devem estar em causa atos que, pelo seu carácter violento, sejam, por si só ou quando conjugados com outros, idóneos a refletir-se negativamente sobre a saúde física ou psíquica da vítima”, sendo ainda necessária a avaliação da “situação ambiente” e da “imagem global do facto” para se decidir pelo preenchimento, ou não, do tipo legal de crime em questão. «Assim sendo, a intervenção penal deve manter, também aqui, a sua função de proteção de última ratio, não devendo o julgador tentar, através de tal intervenção, modelar e ajustar comportamentos (no âmbito das relações de conjugalidade), punindo criminalmente aquilo que, bem vistas as coisas, é apenas merecedor de censura ético-moral. «É que, a não ser assim, poder-se-ia chegar à absurda situação de existir perseguição criminal de comportamentos que, pura e simplesmente, se afastem de determinados padrões de comportamento socialmente dominantes. «Ora, em conformidade com o que vem de dizer-se, os factos dados como provados nestes autos são insuficientes para o preenchimento dos elementos do crime de violência doméstica (pelo qual o arguido foi condenado em primeira instância). «A nosso ver, e muito embora se possa considerar que esses factos se situam perto da fronteira da punibilidade, eles não atingem a intensidade exigida pelo referido tipo legal de crime, não sendo, por isso, materialmente ilícitos. «Na verdade, a conduta do arguido, considerada individualmente (ato a ato praticado) e também na sua globalidade complexiva, não configura uma efetiva e relevante situação de expressão de um abuso de poder na relação afetiva com a ofendida, situação que seja suscetível de atingir a integridade pessoal da ofendida nessa relação. «Os episódios de vida em apreciação são, tão só, reveladores de um quadro de relacionamento deteriorado, que se foi degradando ao longo do tempo, sobretudo a partir do momento em que a ofendida (com ou sem culpa sua, é irrelevante) passou a ter muitas dificuldades em manter relações sexuais com o arguido, e em que este, além do consumo excessivo de álcool, passou a imputar à ofendida o facto de a mesma ter amantes. «Apesar dessa degradação, das constantes discussões, da recusa da ofendida no relacionamento sexual com o arguido, dos episódios de embriaguez do arguido, e das repetidas vezes em que este disse à ofendida que ela tinha amantes, ambos se foram mantendo na relação, de comum acordo, com interajuda, sem violência física (na expressão da ofendida, o arguido “nunca lhe bateu”), sem injúrias ou violência verbal (para além, é óbvio, da referida imputação sobre a existência de amantes por parte da ofendida), sem ameaças, sem agressões psicológicas (pequenas ou grandes), e, sobretudo, não sendo visível aqui, minimamente, qualquer relação de dominância ou de prepotência do arguido sobre a ofendida. «Mais: arguido e ofendida foram-se relacionando entre si e foram interagindo um com o outro, sempre, em condições de relativa paridade e/ou igualdade conjugal (de que é sintomático, entre outros, o episódio em que a ofendida, vendo o arguido embriagado num estabelecimento de café, lhe fecha a porta da habitação, não o deixando entrar em casa e obrigando-o a dormir no carro). «Considerando a “situação ambiente”, analisando a “imagem global do facto”, e vistos os concretos atos cometidos pelo arguido, entendemos, pois, não estar preenchido o tipo legal de crime em questão. (…) «Em face da realidade trazida à Audiência de Julgamento, e da matéria dada como provada, socorrendo-nos não só da Doutrina, mas igualmente da Jurisprudência existente, vasta e de sentido idêntico à que ora vem de ser citada, não resultou provado, pelo menos com o grau de consistência necessário a uma condenação penal, que o Arguido tenha praticado o crime que lhe é imputado; tal como é afirmado no Acórdão supra, citando o Professor Nuno Brandão “ (…) Considerando a “situação ambiente”, analisando a “imagem global do facto”, e vistos os concretos atos cometidos pelo arguido.” A par dos comportamentos assumidos pelo Arguido, impõe-se considerar, também, os comportamentos assumidos pela Queixosa, a qual, de acordo com o depoimento de algumas testemunhas, também tinha manifestações de ciúmes em relação ao Arguido, sendo a relação entre ambos notoriamente “tóxica”. «Atente-se na natureza turbulenta e desestruturada desta relação, com separações e reconciliações; sendo que o Tribunal se viu privado de um cabal esclarecimento, uma vez que a Ofendida não quis prestar depoimento; assim como não pretendeu que ao Arguido seja aplicada pena acessória de afastamento em relação à sua pessoa, e renunciou a ser indemnizada pelo mesmo. «Por referência ao crime de violência doméstica que é imputado ao Arguido, a consideração que o Tribunal, neste caso, faz da “situação ambiente”, analisando a “imagem global do facto”, leva-nos a concluir que não é visível, qualquer exercício de subjugação, de dominância e de prepotência do Arguido sobre a Queixosa. «O “plus de danosidade” referido no Acórdão supra-citado não resultou provado, no caso ora em apreço, e os factos praticados pelo Arguido, integrados e interpretados no âmbito desta concreta conjuntura e da inter-relação muito peculiar deste “casal”, não se nos afigura que possam ser qualificados como maus-tratos. «Perante a realidade trazida à audiência de julgamento, não se provou a prática de actos que traduzem aquele grau de crueldade, de desrespeito pelo outro parceiro da comunidade conjugal, que impregna um crime de violência doméstica e, sobretudo, aquela relação de domínio, de subjugação do Arguido sobre a Queixosa. Afigura-se-nos ser o Arguido uma pessoa tendencialmente normativa e tranquila, sendo definido por aqueles que o conhecem como um jovem calmo e bondoso. «A matéria de facto provada integra, sim, a prática pelo Arguido de um crime de ofensa à integridade física, uma vez que, num acto de descontrolo – de acordo com aquela que foi a prova alcançada neste processo -, o mesmo atingiu a Ofendida na sua integridade física, nomeadamente com um murro na fonte e uma pancada com o relógio de pulso que a atingiu na boca, o que a deixou magoada e lesionada. «O Tribunal não vislumbra, aqui, a prática de um crime de violência doméstica, e entende operar a convolação sobredita. «Cumprindo absolver o Arguido da prática do crime de violência doméstica, será a sua conduta apreciada à luz do crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo art.º 143º, nº 1, do C. Penal. «Dispõe o art.º 143º, nº 1, do C. Penal: "Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa". São, por conseguinte, elementos constitutivos deste crime: quanto ao tipo objectivo, a verificação de ofensa no corpo ou na saúde de outrem; no que tange ao tipo subjectivo, a existência de dolo, em qualquer das modalidades consignadas no art.º 14º, do Código Penal, constituído pelo conhecimento e vontade de praticar os elementos objectivos do tipo. O bem jurídico protegido é a integridade física da pessoa humana. Como claramente resulta das palavras da Profª Paula Ribeiro de Faria, no Comentário Conimbricense do Código Penal (cfr. Tomo I, pág. 202 e ss.), trata-se de um crime material e de dano. O tipo legal abrange um determinado resultado que é a lesão do corpo ou da saúde de outrem, fazendo-se a imputação objectiva deste resultado à conduta ou omissão do agente de acordo com as regras gerais. Trata-se de um tipo legal de realização instantânea, bastando para o seu preenchimento a verificação do resultado descrito (a gravidade dos efeitos ou a sua duração poderão conduzir à qualificação da lesão como ofensa à integridade física grave ou ser valorados no âmbito da determinação da medida da pena). O tipo legal fica preenchido mediante a verificação de qualquer ofensa no corpo ou na saúde, independentemente da dor ou sofrimento causados, ou de uma eventual incapacidade para o trabalho. Objecto da acção é o corpo humano. Por outro lado, a ofensa ao corpo não poderá ser insignificante. Porém, a apreciação da gravidade da lesão deverá partir de critérios objectivos (duração e intensidade do ataque ao bem jurídico e necessidade de tutela penal, se bem que não perdendo totalmente de vista factores individuais). No que respeita ao tipo subjectivo de ilícito, o tipo legal do art.143º exige dolo em qualquer das suas modalidades. No caso dos autos, o Arguido molestou fisicamente a Ofendida, sua namorada, atingindo-a na fonte e na boca, tendo-lhe provocado lesões e dor nas zonas atingidas; por outro lado, a conduta do Arguido foi adequada a produzir um resultado típico desvalioso, traduzido nas lesões e dores descritas – ofensa no corpo ou na saúde de outrem – pelo que, nos termos do art.º 10º, nº1, do C.P. a acção é-lhe imputável. Por outro lado, mostra-se também preenchida a tipicidade subjectiva, na medida em que o Arguido agiu sabendo e querendo ferir o corpo da Ofendida, ciente de se tratar de sua namorada, a quem devia um particular respeito, por essa mesma qualidade; portanto, com dolo directo, nos termos do art.º 14º, nº1, do C. Penal. Estão preenchidos todos os elementos do tipo legal de crime, pelo que se conclui ter o Arguido, com a conduta descrita, incorrido na prática de um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo art.º 143º, nº 1, do C. Penal. Em suma, o Tribunal recorrido considerou que a agressão física demonstrada nos factos provados d) a g), naquele contexto existencial de relação pautada por ciúmes e agressões recíprocas e sendo um acto isolado, a imagem global do facto não revestiu aquele «plus» especialmente violador do bem jurídico acautelado no art.º 152º do CP, ou seja, a dignidade pessoal e a saúde física e psíquica da ofendida que caracteriza a violência doméstica, antes preenchendo os elementos constitutivos, objectivos e subjectivos da ofensa à integridade física simples. E explicou os motivos de facto e de direito em que alicerçou essa sua interpretação, com recurso à caracterização de cada um dos tipos de crime em análise e consequente subsunção aos factos provados. Aliás, das motivações do recurso, resulta até evidente que o recorrente compreendeu perfeitamente qual foi o raciocínio do Tribunal e respectivas conclusões, tanto mais que pretende ser absolvido do crime de ofensa à integridade física simples, por entender que existem insuficiência da matéria de facto para a decisão e erro notório na apreciação da prova, acusando ainda o Tribunal de ter operado uma alteração substancial dos factos ao condená-lo por crime diferente daquele por que vinha acusado e em virtude de em tempo oportuno não ter sido apresentada queixa, já que o crime determinante da condenação tem natureza semi-pública. Não existe, pois, qualquer omissão ou deficiência importante de fundamentação que retire à sentença recorrida plena validade e eficácia. A segunda causa de nulidade invocada no recurso, é a prevista no art.º 379º nº 1 al. b) do CPP. A este propósito, o recorrente veio invocar que foi «(…) efetuada uma alteração substancial dos factos, o Tribunal a quo, com a devida vênia e respeito, nos termos e efeitos do Artigo 359º do Código do Processo Penal, não deveria tomar em conta o facto para o efeito da condenação nos presentes autos. «E, «44. Dado que o crime de ofensa à integridade física simples depende de queixa, queixa essa que não foi apresentada pela ofendida, o ora recorrente deveria ter sido automaticamente absolvido! O art.º 379º do CPP contém o regime especial das nulidades exclusivamente previstas para a sentença, entre as quais se contam, na al. b) do nº 1, a condenação por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstas nos artigos 358º e 359º, que regem a alteração não substancial e a alteração substancial de factos, respectivamente. O art.º 1º al. f) do CPP define «alteração substancial dos factos» como a que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis. Pressupõe, pois, uma diferença radical de identidade, de grau, de tempo ou espaço, que transforme a descrição factual vertida na acusação em outra manifestamente diferente, no que se refere aos seus elementos essenciais, e que determine a imputação de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis. Trata-se de um conceito operativo que permite, por exclusão e em conjugação com a previsão contida no art.º 358º nº 1 do CPP, densificar o que é a alteração não substancial de factos. Tanto, num caso como noutro, do que se trata é de um aliud em relação aos factos descritos na acusação (ou na pronúncia). As diferenças são de grau, intensidade, ou abrangência da transformação do tema do julgamento e da sua maior ou menor compressão nas garantias de defesa do arguido e no seu direito ao contraditório. O tipo incriminador contido no art.º 152º do CP pune a conduta do agente que inflija maus tratos físicos ou psíquicos, que podem incluir, designadamente, “castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais”, ao cônjuge ou ex-cônjuge, a pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação. O crime de violência doméstica consuma-se com a conduta causalmente adequada a provocar maus-tratos físicos ou maus-tratos psíquicos Os maus-tratos físicos consistem em actos que se traduzem em qualquer forma de violência física, designadamente e, por regra, em ofensas corporais, enquanto que os maus tratos psíquicos correspondem a condutas que ofendem a integridade moral ou o sentimento de dignidade, incluindo humilhações, provocações, quer estas se reconduzam a actos, gestos, palavras, expressões, escritos, etc., puníveis, em si mesmas, como crimes de injúria e difamação, ou ameaça, sequestro ou coacção quer não. Com efeito, no tipo está incluída uma vasta gama de condutas, desde comportamentos que isolada e objectivamente analisados são apenas ética e socialmente censuráveis, mas acabam por assumir relevância jurídico-penal, como modos de execução do crime de violência doméstica, até comportamentos que, em si mesmo considerados, correspondem a outros tipos de ilícito penal, como sejam, os crimes de ofensa à integridade física, nas suas diferentes modalidades; de ameaça simples ou agravada, de coacção simples, de difamação e injúrias, simples ou qualificadas, mas que, por efeito da sua subsunção a uma única norma incriminadora, deixam de ter relevância jurídico-penal autónoma e ganham uma nova dimensão normativa, justamente, a do crime de violência doméstica (Teresa Féria, in Ousar Vencer a Violência sobre as Mulheres na Família - Guia de Boas Práticas Judiciais Capítulo I Sobre O Crime De Maus-Tratos Conjugal, editado em NOVOS, pela Associação Portuguesa de Mulher Juristas, e publicado in www.AMJP.pt.; Projecto de Recomendação e de Exposição de Motivos, do Comité Restrito de Peritos Sobre a Violência na Sociedade Moderna, BMJ 335-5; Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código Penal”, 2.ª edição actualizada, UCE, 465-466; André Lamas Leite, in “A violência relacional íntima: reflexões cruzadas entre o direito penal e a criminologia”, na Revista Julgar, n.º 12 (Especial), 2010, p. 45). Para que tal suceda é imperativo que os factos, isolados ou reiterados, apreciados à luz da tal relação de proximidade e vinculação existencial entre o agente e a vítima, pela sua natureza e pelos efeitos que possam ter na possibilidade da vida em comum, ou de manutenção das relações de diferente natureza de entre as enumeradas no art.º 152º do CP, coloquem a pessoa ofendida numa situação que se deva considerar de vítima, mais ou menos permanente, de um tratamento lesivo da sua saúde física e mental, incompatível com a sua dignidade e liberdade, nesse contexto de intimidade. Assim, se na ponderação da «imagem global do facto», a conduta ou as condutas revelarem o “especial desvalor da acção” ou a “particular danosidade social do facto” que fundamentam a especificidade deste crime, ou seja, gravidade ou intensidade suficientes para colocar em crise o bem jurídico protegido com a incriminação da violência doméstica, será aplicável o citado art.º 152º do CP. Se da imagem global dos factos não resultar este quadro de maus tratos, nos moldes e com os contornos acima referidos, que justifiquem aquela especial tutela e punição agravada, a situação integrará a prática de um ou dos vários crimes em causa, os quais reassumem a sua autonomia, à luz de cada um dos tipos legais que os preveem, se e quando praticados sem esta tónica de tratamento cruel, desumano e degradante, ofensivo da personalidade da vítima, considerada na sua globalidade e de afronta intensa ou reiterada à sua dignidade, ao seu bem estar físico, psíquico e emocional e à sua liberdade individual de decisão e acção, animadas do propósito de predomínio e de manutenção de uma relação de abuso de poder e de controlo sobre a mesma. Com efeito, o traço distintivo que permite conferir esta forma específica e reforçada de tutela, mediante a incriminação do art.º 152º do CP a condutas que sem essa especial incriminação só seriam social ou moralmente censuráveis ou só seriam enquadráveis como crimes de ofensas corporais simples ou qualificadas, de ameaças simples ou agravadas, de coacção simples, de sequestro simples, de coacção sexual, de violação, de injúria ou de difamação, etc., é a existência de um «estado de agressão permanente que permite concluir pelo exercício de uma relação de domínio ou de poder, proporcionada pelo âmbito familiar ou quase-familiar, deixando a vítima sem defesa numa situação humanamente degradante.» (Plácido Conde Fernandes In “Violência doméstica – novo quadro penal e processual penal” – Revista do CEJ, n.º 8, 1.º semestre, página 307). «Para este efeito (da incriminação pelo tipo legal de violência doméstica), deve entrar em cena a desconsideração pela dignidade pessoal da vítima imanente ao comportamento violento próprio dos maus tratos. Esse desprezo do agressor pela sua dignidade revela um pesado desvalor de ação que agrava a ilicitude material do facto» (Nuno Brandão, in Tutela penal especial reforçada da violência doméstica, Revista Julgar, n.º 12 (Especial), 2010, p. 9 a 24. No mesmo sentido, Acs. da Relação do Porto de 10.09.2014 proc. 648/12.0PIVNG.P1; de 15.12.2016 proc. 192/15.4GBVFR.P1 e de 13.11.2019, proc. 109/19.7GAARC.P1; Ac. da Relação de Évora de 08.01.2013, proc. 113/10.0TAVVC.E1; de 30.06.2015 proc. 1340/14.7TAPTM.E1, de 22.11.2018, proc. 526/16.4 GFSTB.E1 e de 11.07.2019, proc. 627/17.1GDSTB.E1, Acs. da Relação de Lisboa de 07.10.2015, proc. 735/14.0PLSNT-3; 4.10.2016, proc. 311/15.0JAPDL.L1-5; de 7.02.2017, proc. 1816/14.6PFLRS.L1-5; de 01.06.2017, proc. 3/16.0PAPST.L1, de 13.02.2019, proc. 428/17.7PCSNT.L1-3, de 18.09.2019, proc. 1745/17.1PBFUN.L1 e de 08.01.2020, proc. 56/17.7T9OER.L1-3; Acs. da Relação de Coimbra de 17.01.2018, proc. 204/10.8GASRE.C1 e de 07.02.2018, proc. 663/16.5PBCTB.C1, de 20.02.2019, proc. 335/17.3PBCTB.C1, de 18.12.2019, proc. 169/18.8PBCLD.C1 de 05.02.2020, proc. 71/16.8GGCBR.C1, Ac. da Relação do Porto de 13.01.2021, proc. 799/18.8GBPNF.P1, da Relação de Guimarães de 02.05.2023, proc. 212/22.6GBBCL.G1, Ac. do STJ de 15.02.2023, proc. 7528/13.0TDLSB.L3.S1, Ac. da Relação do Porto de 30.10.2024, proc. 497/22.8PIPRT.P1, in http://www.dgsi.pt). «A ratio do tipo não está, pois, na protecção da comunidade familiar, conjugal, educacional ou laboral, mas sim na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana» (Américo Taipa de Carvalho, in "Comentário Conimbricense do Código Penal", vol. I, pág. 332), embora em contextos muito particulares de subordinação existencial, no âmbito duma relação de coabitação conjugal ou análoga, ou outra forma estreita de relação de vida, incluindo de namoro, protegendo «a saúde, enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana e da garantia da integridade pessoal contra os tratos cruéis, degradantes ou desumanos, num bem jurídico complexo que abrange a tutela da sua saúde física, psíquica, emocional e moral» (Plácido Conde Fernandes, Violência Doméstica, Novo Quadro Penal e Processual Penal, in Jornadas sobre a Revisão do Código Penal, Revista do CEJ, 1.º semestre de 2008, n.º 8, pág. 305. No mesmo sentido, Maria Manuela Valadão e Silveira, Sobre o Crime de Maus Tratos Conjugais, Revista de Direito Penal, vol. I, n.º 2, ano 2002, ed. da UAL, págs. 32-33 e 42; Augusto Silva Dias, Materiais Para o Estudo da Parte Especial do Direito Penal, Crimes Contra a Vida e a Integridade Física, 2.ª edição, AAFDL, 2007, pág. 110). A matéria de facto provada, na apreciação da sua imagem global, não revela minimamente a relação de opressão/subjugação, o tratamento degradante ou humilhante dispensado à vítima, num contexto de relação de abuso de poder, de afronta à dignidade da pessoa agredida, como é próprio da violência doméstica em que o arguido tenha sido, exclusivamente, o agressor e a ofendida a vítima. O que demonstra é apenas uma situação isolada em que o arguido desferiu um murro na fonte do lado esquerdo de DD, atingindo-lhe a orelha e atingiu-a com o relógio de pulso na cara, ferindo-lhe a boca, tendo-se ainda demonstrado que desta lesão resultaram quinze dias de doença e que o arguido quis ofender a saúde de DD, atingindo-a fisicamente e causando-lhe sofrimento, o que logrou, tendo agido de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei. Daí que o enquadramento jurídico-penal da matéria de facto provada se mostre correctamente realizado por corresponder as todos os elementos constitutivos do tipo de ofensa à integridade física p. e p. pelo art.º 143º nº 1 do CP. Ora, o crime de violência doméstica, quando considerado na dimensão de castigos corporais ou maus tratos físicos está numa relação de especialidade com o crime de ofensa à integridade física (na acepção de «relação que se estabelece entre dois ou mais preceitos, sempre que numa lei (lex especialis), se contêm todos os elementos de outra (lex generalis) e, além disso, ainda algum ou alguns outros elementos especializadores» - cfr. Eduardo Correia, in A Teoria do Concurso em Direito Penal, pág. 127). Por isso, que nem existe qualquer alteração substancial de factos, nem tão-pouco, o Tribunal recorrido tinha sequer o dever de proceder a qualquer comunicação nos termos e para os efeitos previstos no art.º 358º nºs 1 e/ou 3 do CPP porquanto o mesmo representa um “minus” em relação ao crime de violência doméstica por que o arguido e recorrente vinha acusado, sendo que a sua defesa em relação a essa acusação já incluía a defesa quanto a tal crime e, portanto, não encerra qualquer efeito surpresa ou alguma compressão das garantias de defesa consagradas no art.º 32º da CRP (ver, neste sentido, Acs. da Relação do Porto de 28.03.2007, proc. 0710448, da Relação de Lisboa de 17.06.2015, proc. 48/13.5PFPDL.L1-3, Acs. da Relação de Guimarães de 21.10.2013, proc. n.º 353/11.5GDMR.G1, de 2.11.2015, proc. n.º 77/14.1TAAVV.G1, de 25.09.2017, proc. n.º 505/15.9GAPTL.G1, da Relação do Porto de 13.01.2021, proc. 799/18.8GBPNF.P1, Ac. da Relação do Porto de 30.10.2024, proc. 497/22.8PIPRT.P1, in http://www.dgsi.pt). O grande obstáculo à manutenção desta condenação não está, pois, em qualquer causa de nulidade da sentença. E também não reside na verificação de qualquer dos vícios decisórios invocados da insuficiência da matéria de facto para a decisão ou erro notório na apreciação da prova. O art.º 410º nº 2 do Código de Processo Penal, estabelece a possibilidade de o recurso se fundamentar na insuficiência da matéria de facto provada para a decisão; na contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão, ou no erro notório na apreciação da prova, «mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito». Trata-se de vícios estruturais cuja apreciação não envolve nem pode envolver qualquer sindicância à prova produzida, no Tribunal de primeira instância, porque só o texto da decisão recorrida os pode evidenciar. Referem-se apenas à forma como a decisão se encontra redigida, pelo que a indagação da sua existência faz-se, exclusivamente, a partir da análise do respectivo texto, na sua globalidade, sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, ainda que constem do processo, com excepção das regras de experiência comum. Trata-se de vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei. Vícios da decisão, não do julgamento (Maria João Antunes, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Janeiro-Março de 1994, pág. 121). A insuficiência da matéria de facto para a decisão, verifica-se sempre que a conclusão extravase as premissas, em virtude de a matéria de facto provada e não provada ser insuficiente para fundamentar decisão, segundo as diversas soluções de direito potencialmente aplicáveis e essa insuficiência resulta da inobservância dos princípios do inquisitório e da descoberta da verdade material, ou seja, quando na exposição da matéria de facto exarada no texto da sentença, se constata a ausência de elementos de informação que, podendo e devendo ter sido obtidos e julgados provados ou não provados, são necessários para alicerçar com segurança o sentido da decisão, seja de condenação, seja de absolvição, o que se verificará quando o tribunal recorrido tenha deixado de investigar, como lhe competia, factos pertinentes ao objecto do processo, tal como configurado pela acusação e pela defesa, ou que resultem da discussão da causa, a ponto tal, que esse défice factual impede a aplicação do direito à situação de vida submetida à apreciação do Juiz (cfr. Acs. do STJ de 12.03.2015, proc. 40/11.4JAAVR.C2; de 24.02.2016, processo 502/08.0GEALR.E1.S1; de 12.07.2018, processo 172/17.5S7LSB.L1.S1 e de 06.02.2019, processo 1074/15.5PAOLH.E1.S1, in http://www.dgsi.pt.; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Edição, 2007, Rei dos Livros, pág. 69 e Pereira Madeira, in Código de Processo Penal Comentado, 2016, 2ª edição, Almedina, pág. 1274). O erro notório na apreciação da prova supõe que do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com o senso comum, deflua de forma fácil, evidente e ostensiva que factualidade ali exarada é arbitrária, contrária à lógica, a regras científicas ou de experiência comum, ou assenta na inobservância de regras sobre o valor da prova vinculada, ou das leges artis (Acs. do STJ de 12.03.2015, processo 40/11.4JAAVR.C2; de 06.12.2018, processo 22/98.0GBVRS.E2.S1 e de 03.04.2019, processo 38/17.9JAFAR.E1.S1 e Simas Santos e Leal Henriques, in “Recursos em Processo Penal, 7ª ed., 2008, Editora Rei dos Livros, pág. 77). «Verifica-se erro notório na apreciação da prova quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que está notoriamente errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando de um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum (…)» (Leal-Henriques e Simas Santos no Código de Processo Penal Anotado, vol. II, 2ª edição, pág. 740, em anotação ao artigo 410º). «É o erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem de formação média facilmente dele se dá conta» (Germano Marques da Silva – Curso de Processo Penal, Vol III, pág. 341). Mas nem o recorrente extraiu seja de excerto do texto da sentença recorrida qualquer dos vícios que invocou, sendo certo que, da simples leitura do texto da sentença, deste não resulta que se tenha retirado de qualquer dos factos uma conclusão inaceitável, à luz da lógica ou de critérios de razoabilidade, nem que tenha sido considerado provado algum facto de verificação notoriamente impossível, ou sido dado como não provado algo que resulta evidente que aconteceu, nem qualquer ambiguidade, ou contradição entre os factos ou entre os factos e a motivação ou entre algum destes items e a fundamentação de direito e a decisão, do mesmo modo que não se detecta a falta de realização de alguma das diligências probatórias tidas por necessárias para o apuramento da verdade dos factos constantes da acusação, ainda possíveis mas pura e simplesmente omitidas. De resto, sob a denominação destes vícios decisórios da insuficiência da matéria de facto para a decisão e de erro notório, o que o recorrente fez, foi insurgir-se contra o exame crítico da prova e consequente fixação da matéria de facto com fundamento em erro de julgamento, matéria que é pertinente ao mecanismo da impugnação ampla e cuja procedência depende do cumprimento do ónus de impugnação especificada previsto no art.º 412º nºs 3, 4 e 6 do CPP. O erro do julgamento verifica-se sempre que o Tribunal tenha dado como provado um facto acerca do qual não foi produzida prova e, portanto, deveria ter sido considerado não provado, ou inversamente, quando o Tribunal considerou não provado um facto e a prova é clara e inequívoca, no sentido da sua comprovação. O mecanismo por via do qual deverá ser invocado é o da impugnação ampla da matéria de facto, que se encontra prevista e regulada no art.º 412º nºs 3, 4 e 6 do CPP, a qual envolve a reapreciação da actividade probatória realizada pelo Tribunal, na primeira instância e da prova dela resultante, mas com limites, porque, além de não se traduzir num novo julgamento, está subordinada ao cumprimento de um dever muito específico de motivação e formulação de conclusões do recurso (Maria João Antunes, in RPCC – Ano 4 Fasc.1 – pág. 120; Acórdão do STJ n.º 3/2012, de 8/3/2012, DR, I Série, n.º 77, de 18/4/2012 Acs. da Relação de Guimarães de 6.11.2017, proc. 3671/13.4TDLSB.G1; da Relação de Évora de 09.01.2018 proc. 31/14.3GBFTR.E1; da Relação de Coimbra de 08.05.2018, proc. 30/16.0GANZR.C1; da Relação de Lisboa de 12.06.2019, processo 473/16.0JAPDL.L1, in http://www.dgsi.pt). Assim, nos termos do nº 3 do art.º 412º do CPP, quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e c) as provas que devem ser renovadas». Acontece que o recorrente não cumpriu, nem por aproximação, o apontado ónus de especificação legalmente exigido para o conhecimento da impugnação da decisão sobre a matéria de facto que formulou. Basta atentar em que, nas conclusões delimitadoras do objecto do respectivo recurso, nem sequer identifica os concretos pontos de facto impugnados, precisamente porque o que pretende é a substituição integral da convicção do tribunal recorrido pela sua, partindo de uma imagem global da prova alicerçada em excertos de depoimentos testemunhais e segmentos de documentos cujo conteúdo também foi tido em consideração no exame crítico da prova feito na primeira instância e precisamente com o mesmo significado e alcance que o arguido lhes atribui. A falta de especificação dos concretos pontos da matéria de facto, só por si, já compromete totalmente a possibilidade de este Tribunal de recurso sindicar a matéria de facto fixada no acórdão recorrido, pois que a inobservância do ónus de impugnação especificada conduz à não verificação do circunstancialismo referido na al. b) do art.º 431º, tornando inviável a modificabilidade da decisão sobre a matéria de facto. Acresce que não contendo as motivações tal especificação exigida por lei, nem se trata de insuficiência das conclusões, mas sim de deficiência substancial da própria motivação ou de insuficiência do próprio recurso, insusceptível de aperfeiçoamento, com a consequência de o mesmo não poder ser conhecido. E do que fica referido, resulta necessariamente, também a improcedência da invocação de que houve violação do princípio «in dubio pro reo». O princípio in dúbio pro reo, corolário do princípio constitucional da presunção de inocência do arguido, contemplado no art.º 32º nº 2 da Constituição, é um princípio de prova e um mecanismo de resolução dos estados de incerteza, na convicção do julgador, quanto à verificação dos factos integradores de um crime. Pressupõe que a dúvida se mantenha insanável, depois de esgotado todo o iter probatório e feito o exame crítico de todas as provas e resolve a dúvida cominando-lhe como consequência a consideração dos factos como não provados e a consequente absolvição do arguido. Assim, a violação do princípio in dubio pro reo pode e deve ser conhecida como vício do texto da decisão, na modalidade de erro notório na apreciação da prova, como previsto no art.º 410º nº 2 al. b) do CPP assumindo, nesta vertente, uma natureza subjectiva de dúvida histórica que o tribunal do julgamento, deveria ter tido e não teve. Assim, se é o estado de dúvida subjectivamente sentida pelo julgador aquando da valoração e exame crítico dos meios de prova que constitui o pressuposto específico do princípio in dubio pro reo, o mesmo não se mostrará violado quando o tribunal de julgamento não se confrontou com dúvida séria sobre a demonstração do facto desfavorável ao arguido e a aferição da sua existência é feita, como é próprio dos vícios decisórios previstos no citado art.º 410º, exclusivamente, através da análise do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras de experiência comum, mas sem qualquer recurso à prova produzida, ou a qualquer outro elemento exterior. E também haverá violação do princípio in dubio pro reo, sempre que o tribunal do julgamento tenha julgado provado facto desfavorável ao arguido, não obstante a prova disponível não permitir, de forma racional e objectiva, à luz das máximas de experiência comum, das regras da lógica, dos conhecimentos científicos aplicáveis, ou das normas e princípios legais vigentes em matéria de direito probatório, com o grau de certeza ou convencimento «para além de toda a dúvida razoável», dar por verificada a realidade desse facto, mesmo que do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras do senso comum, não resulte que o Tribunal se tenha confrontado, subjetivamente, com qualquer dúvida insuprível, no momento da decisão (cfr. nesse sentido, Acs. da Relação de Évora de 19.08.2016, processo 36/14.4GBLLE.E1 e da Relação de Lisboa de 29.11.2016, processo 18/14.6PFLRS.L1-5; de 07.05.2019, processo 485/15.0GABRR.L2, in http://www.dgsi.pt). Nesta hipótese, releva a concepção objectiva da dúvida, mas a mesma só se verificará se, cumprido o ónus de indicação dos precisos pontos de facto acerca dos quais a prova redunda num «non liquet» e bem assim, dos concretos meios de prova de que as lacunas da prova se manifestaram e que, por terem sido incorrectamente valorados, alicerçaram uma convicção positiva acerca dos factos a que se referem, nos moldes exigidos pelo art.º 412º nºs 3, 4 e 6 do CPP. Ora, nem o Tribunal manifestou qualquer incerteza quanto à produção de prova, no sentido de a mesma ser concludente e esclarecedora acerca dos factos que deu como provados, nem pode ser dado como verificado o erro de julgamento, em virtude de o recorrente não ter cumprido o tríplice ónus de impugnação especificada de que depende a modificabilidade da decisão de facto com tal fundamento, nos termos do art.º 412º nºs 3, 4 e 6 do CPP. O grande obstáculo à manutenção da condenação do recorrente prende-se com a natureza semi-pública do crime de ofensa à integridade física e da inexistência de condições de procedibilidade que se traduzem no exercício atempado do direito de queixa, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 143º nºs 1 e 2, 113º a 117º do CP e, ainda, do art.º 49º do CPP. Ora, estas condições de procedimento não estão verificadas, no presente processo, pois que, nem os factos objecto deste processo forma sequer denunciados pela própria DD e sim pela sua mãe, a ofendida procurou, sempre que lhe foi possível, eximir-se ao contacto com o OPC, apenas tendo sido inquirida no âmbito de um inquérito que veio a ser incorporado neste processo sendo certo que sempre que confrontada, foi sempre declarando que não deseja procedimento criminal contra o arguido. E, nem se diga que é aceitável que, quando o procedimento criminal se inicia com o envolvimento do ofendido, que não apresenta formalmente queixa por se reputar a investigação a crime de natureza pública, não se poderá deixar de considerar a validade do procedimento caso, após julgamento, se conclua pela qualificação do facto como crime de natureza semi-pública (cfr., neste sentido, Acs. da Relação de Coimbra de 11.05.2016, processo 771/13.4GCVIS.C1, da Relação de Lisboa de 17.06.2015, processo 48/13.5PFPLD.L1-3, da Relação de Guimarães de 09.12.2019, processo 945/17.9GAEPS.G1 e da Relação de Coimbra de 03.02.2021, proc. 231/16.1GABBR.C1, in http://www.dgsi.pt). Não existe qualquer transformação de um crime de violência doméstica, em outro qualquer crime de natureza semi-pública ou particular, como se o primeiro degenerasse em algum dos segundos, ou, pelo menos, essa afirmação não pode ser feita, quando depois de produzida a prova sobre uma acusação por crime de violência doméstica, tudo se queda num «non liquet» e o que se prova são apenas actos susceptíveis de integrar outros tipos de crime previstos na parte especial do Código Penal, como o de injúria ou difamação, ameaça ou ofensa à integridade física. E, perante as lacunas da prova e a dúvida razoável, sendo tão válida a dedução de que nunca houve sequer violência doméstica, como a de que houve mas a prova produzida só permitiu comprovar a existência de factos integradores de outros crimes, apenas poderá haver condenação pelos mesmos se, em relação a eles, estiverem reunidas, as condições de procedibilidade que, de acordo com objectivos de política criminal em atenção a um certo escalonamento de graus de importância dos bens jurídicos visados com as incriminações e outros interesses de ordem pública associados a uma tutela mais ou menos reforçada das vítimas, forem legalmente exigíveis para a própria existência do procedimento criminal. O que resulta das disposições conjugadas dos arts. 49º e 50º do CPP e das normas contidas nos arts. 113º a 117º do CP, são exigências de procedimento, sem cuja verificação não é possível sequer instaurar um processo criminal e iniciar uma investigação, sendo certo que a lei não distingue entre processos a instaurar e já instaurados, nem entre a aquisição da notícia do crime, antes de iniciada a investigação, ou já depois de produzida toda a prova, na fase da audiência de discussão e julgamento. E tanto assim é que a renúncia ao direito de queixa, como a desistência da mesma, estando a investigação ou o processo já em curso, não implicam só a perda de legitimidade do Mº. Pº. para o exercício ou prossecução da acção penal. Têm como consequência, pura e simplesmente, a inexistência de procedimento criminal ou a sua extinção (art.º 116º do CP). Ora, nos termos do art.º 9º do CC, aplicável em qualquer ramo de direito, o intérprete não pode extrair seja de que norma jurídica for, um significado que não tenha no seu texto um mínimo de correspondência, devendo o intérprete presumir que o legislador adoptou as melhores soluções e as soube expressar de forma correcta. Por isso, a construção de uma assim denominada degradação do crime de violência doméstica para crime de ofensa à integridade física simples, sem que tenha ocorrido qualquer queixa-crime e a admissão de que possa dar lugar a uma condenação por um crime semi-público ou particular, acarreta ainda a transformação de crimes particulares e semi-públicos em crimes públicos por simples acto de vontade do Tribunal e apenas porque inicialmente, foram participados como formas de acção típica do crime de violência doméstica, sem que tenha havido demonstração da verificação deste tipo de crime e por simples acto de vontade do Tribunal que assim se substitui ao ofendido no suprimento de uma vontade – a de perseguição criminal de determinada pessoa por um determinado crime – que deve ser expressa e não se pode presumir. Por isso mesmo, viola os princípios da legalidade e da tipicidade em Direito Penal, pois da configuração dos crimes também faz parte a sua natureza pública, semi-pública ou particular (sendo que é em cada uma das normas incriminadoras inseridas na parte especial do CP, que o legislador toma posição sobre essa matéria), a que estão associados diferentes requisitos ou condições essenciais que se referem, não só à instauração, como à manutenção e à extinção do procedimento criminal (cfr., v.g., as normas contidas nos arts. 51º e 52º do CPP e nos arts. 114º a 116º e 117º do CP). Também gera incerteza e insegurança jurídicas e acaba, de forma enviesada, por dar aos ofendidos pela prática dos crimes de injúria, difamação, ofensa à integridade física simples ou ameaça simples, um tratamento de privilégio, apenas porque, segundo a notícia do crime, o processo se iniciou como um inquérito por crime de violência doméstica e em detrimento desproporcional e injustificado daquelas pessoas que igualmente ofendidas por crimes idênticos, estes são participados sem qualquer ligação a contextos de violência doméstica. Esta não pode ter sido a intenção do legislador, ou tê-la-ia previsto de forma expressa e uma interpretação diversa acaba, fruto deste tratamento de excepção, sem que se verifiquem factos que o justifiquem, por afrontar o princípio constitucional da igualdade (art.º 13º da CRP), introduzindo um factor acrescido de protecção especial à vítima, como se o crime ainda fosse o de violência doméstica, o que não corresponde minimamente às opções de política criminal, nem à realidade dos factos, segundo a prova. A ofendida declarou expressamente que não pretendia a instauração de procedimento criminal contra o arguido, o que não pode deixar de ser visto, como uma renúncia, ou, no mínimo, como uma desistência de queixa. Ora, as consequências da desistência da queixa estão legalmente estabelecidas e importam a extinção do procedimento criminal, por falta de legitimidade do Mº. Pº. para prosseguir a acção penal, tal como previsto no art.º 51º do CPP e no art.º 116º do CP. Trata-se de uma declaração de vontade incondicional e que não pode ser revogada, ou substituída por outra de sinal contrário, pois que, como estabelece o nº 2 do citado art.º 116º a desistência da queixa impede que a mesma seja renovada. O que bem se compreende, em sintonia com os princípios da segurança jurídica e do direito do arguido a ver definida, com trânsito em julgado e em prazo razoável, a sua situação jurídico-penal, sendo esta, de resto, uma das manifestações do processo justo e equitativo constitucionalmente consagrado. Corroborando esta solução, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 9/2024, para fixação de jurisprudência, proferido no proc. 560/19.2PATVD.L1-A.S1, em 29.05.2024 estabeleceu que: «O Ministério Público mantém a legitimidade para o exercício da ação penal e o assistente a legitimidade para a prossecução processual, nos casos em que, a final do julgamento, por redução factual de acusação pública por crime de violência doméstica p. e p. no artigo 152º, nº 1, do Código Penal, são dados como provados os factos integrantes do crime de injúria p. e p. no artigo 181º, nº 1, do Código Penal, desde que o ofendido tenha apresentado queixa, se tenha constituído assistente e aderido à acusação do Ministério Público.» (Diário da República nº 131/2024, Série I de 09.07.2024). Com efeito, esta solução estabelecida para o crime de injúria, deverá ser transposta para crimes semi-públicos como o de ofensa à integridade física simples, porquanto, como o próprio acórdão refere, só a inexigibilidade de dedução de acusação particular justifica a manutenção da legitimidade do Mº. Pº. para o exercício da acção penal, em virtude de não ser exigível que o assistente preveja que fruto de vicissitudes inerentes à produção de prova e à discussão da causa, os factos integradores do que começou por ser qualificado como crime de violência doméstica, que é um crime público, venham apenas a permitir o preenchimento de um dos tipos legais de crime já previstos na parte especial do CP de natureza particular, sendo injusto que acabe penalizado por ter omitido um acto processual que nem sequer lhe era legalmente permitido praticar (a dedução de acusação particular por crime de natureza pública). Todavia, o prosseguimento do processo, em tais condições só é admissível se tiver sido exercitado atempadamente o direito de queixa, se tiver havido constituição de assistente e este tiver acompanhado a acusação pública, por corresponderem a manifestações de vontade inequívocas e materializadas em actos processuais aptos a suprir a falta da acusação particular, por revelarem a vontade do assistente de que a pessoa indicada como autora do crime que sofreu seja criminalmente perseguida e responsabilizada. Estando em causa, um crime semi-público, a condição essencial para que o processo prossiga é, por identidade de razões, que tenha sido apresentada queixa ou que, em acto de declaração de vontade expressa, a vítima tenha declarado que deseja procedimento criminal e não tenha revogado essa sua declaração, através de uma desistência. « (…) O princípio da oficialidade do processo consagrado no artigo 219º, nº 1, da CRP, refletido nos artigos 48º do CPP, 2º e 4º da L. 68/2019, de 27/08, (EMº.Pº) e 3º da L. 62/2013, de 26/08,(LOSJ), segundo o qual a promoção processual dos crimes é tarefa estadual a realizar oficiosamente e em completo alheamento da vontade e da atuação dos particulares, atribuindo-se ao MºPº a iniciativa e promoção processuais, não vale para os crimes semipúblicos, cujo procedimento está dependente de prévia queixa, nem para os crimes particulares, cujo procedimento, além da prévia queixa e da prévia constituição como assistente, depende também de dedução de acusação particular. (48º, 49º e 50º CPP). Quer a queixa, quer a acusação particular são pressupostos positivos de punição e, nos casos em que o procedimento depende das respetivas pré-existências, sem elas falha a legitimidade do MP para o exercício da ação penal. «Queixa é a manifestação de vontade de procedimento criminal corporizada em qualquer meio capaz de a levar ao conhecimento do Ministério Público em tempo, apresentada pelo respetivo titular do direito, em regra, o ofendido, para que, com os factos relatados, o MP exerça a ação penal contra o autor do crime. (111º CP e 49º CPP). Trata-se de um pressuposto processual, um pressuposto positivo de punição, “cujo conteúdo contende com o próprio direito substantivo, na medida em que a sua teleologia e as intenções político-criminais que lhe presidem têm ainda a ver com condições de efetivação da punição, que nesta mesma encontram o seu fundamento e a sua razão de ser” (cfr. arts 113º, 114º, 115º e 116º do CP) (Figueiredo Dias, “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, 1993, p. 663). Como condição de procedibilidade é conditio sine qua non do início do processo.» (…) «Com a apresentação da queixa, com a constituição de assistente e com o acompanhamento da acusação pública e a persistência em sede de julgamento da vontade consubstanciada naquelas peças processuais o ofendido manifestou inequívoca e reiteradamente a sua vontade de que o processo fosse desencadeado, prosseguisse e terminasse com a condenação do arguido.» (Ac. do STJ de 29.05.2024, Proc. 560/19.2PATVD.L1-A.S1, AUJ nº 9/2024, in http://www.dgsi.pt). Esta é a única forma de compatibilizar os princípios constitucionais da tutela jurisdicional efectiva e do direito a um processo justo e equitativo, cujo âmbito subjectivo também tem como destinatários os ofendidos e os assistentes a quem é reconhecido o legítimo interesse específico de verem as suas pretensões apreciadas e julgadas em tempo útil, com sujeição a julgamento do ou dos autores dos crimes, sejam eles públicos, semi-públicos ou particulares de que foram vítimas (arts. 20º nº 1 e 32º nº 7 da CRP e Acs. do TC nºs 24/88, 690/98 e nº 462/2016, in http://www.tribunalconstitucional.pt), com as garantias de defesa reconhecidas ao arguido, nos termos do art.º 32º nºs 1 a 6 da CRP. Ora, no caso vertente, foi sempre vontade da ofendida, expressamente manifestada, quer por interposta pessoa, quer quando foi inquirida perante o OPC, de que não houvesse perseguição criminal do arguido por qualquer dos factos objecto deste processo, nos quais terão, necessariamente, de ser incluídos os que foram descritos na matéria de facto provada. Não estão, pois, reunidos os pressupostos legais que permitam retirar as devidas consequências punitivas do crime de ofensa à integridade física que, de acordo com a matéria de facto fixada na sentença recorrida, o arguido cometeu, pelo que a sentença recorrida não pode manter-se, na parte em que condenou o arguido como autor material de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art.º 143º, nº1, do C Penal, na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de 6€, no montante de 720€ e na fixação em 80 dias de prisão subsidiária (art.º 49º, nº1, do C Penal). Impõe-se, assim, a extinção do procedimento criminal, por falta de legitimidade do Mº.Pº. para a acção penal. E, embora por razões diversas das invocadas no recurso, a sentença recorrida não poderá ser integralmente confirmada e o recurso merece provimento parcial. Fica assim prejudicada a apreciação da questão da inconstitucionalidade suscitada neste recurso. III – DISPOSITIVO Termos em que decidem, neste Tribunal da Relação de Lisboa: Em conceder provimento ao recurso, revogando parcialmente a sentença recorrida, na parte em que condenou o arguido AA como autor material de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art.º 143º, nº1, do C Penal, na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de 6€, no montante de 720€ e na fixação em 80 dias de prisão subsidiária (art.º 49º, nº 1, do C Penal) e, em consequência, julgam extinto o procedimento criminal por falta de legitimidade do Mº. Pº. para o exercício da acção penal. Sem Custas – art.º 513º do CPP. Notifique. * Acórdão elaborado pela primeira signatária em processador de texto que o reviu integralmente (art.º 94º nº 2 do CPP), sendo assinado pela própria e pelos Juízes Adjuntos. Tribunal da Relação de Lisboa, 6 de Fevereiro de 2025 Cristina Almeida e Sousa Ana Paula Grandvaux Carlos Alexandre |