Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6362/22.1T8ALM.L1-7
Relator: ANA MÓNICA MENDONÇA PAVÃO
Descritores: CONTRATO-PROMESSA
INCUMPRIMENTO BILATERAL
CULPAS CONCORRENTES
DEVOLUÇÃO DO SINAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/25/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: (da responsabilidade da relatora - art.º 663º/7 CPC):
I. A aplicação das sanções previstas no art.º 442º/2 CC pressupõe uma resolução com base no incumprimento definitivo do contrato-promessa, que seja imputável apenas à contraparte e não uma situação de incumprimento imputável a ambas as partes.
II. Se ambos os promitentes contribuíram para o não cumprimento do contrato-promessa, verificando-se uma situação de incumprimento bilateral do contrato e de culpas concorrentes em medida equivalente, deve convocar-se a aplicação do disposto no art.º 570º do Código Civil.
III. Sendo as culpas concorrentes em idêntica medida para o incumprimento do contrato-promessa, não existirá direito a qualquer indemnização pelo incumprimento do contrato (devolução do sinal em dobro, nos termos do art.º 442º/2), apenas havendo lugar à restituição do sinal em singelo (art.º 433º e 289º).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. RELATÓRIO
A … intentou a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra B …, requerendo que seja reconhecido o incumprimento da ré e, por essa via, a sua condenação no pagamento da quantia de € 20.000,00, correspondente ao valor em dobro do sinal por si entregue no âmbito do contrato-promessa de compra e venda, celebrado em 12 de Novembro de 2020, da fracção “…”, correspondente à cave esquerda do prédio sito no lugar …, Rua … de …, n.º …, descrito na Conservatória do Registo Predial de Almada sob o n.º … da freguesia da Trafaria e inscrito na matriz urbana da União de Freguesias da Caparica e Trafaria sob o art.º ….
Para tanto, alega em suma, que após ter celebrado o aludido contrato consultou o processo de construção e de vistoria da propriedade horizontal do imóvel junto da Câmara Municipal de Almada, apurando que a licença de utilização em vigor espelhava uma construção com áreas, configurações e acessos totalmente distintos da realidade física do imóvel, de que a ré havia informado e documentado ao autor. No dia da escritura pública, questionou a ré sobre as alterações não licenciadas, que contrapôs que tudo estava legal e que, por isso, considerava, sem mais, o contrato não cumprido pelo autor, fazendo seu o sinal entregue.
Invoca que a ré o enganou dolosamente, procurando transferir para si o ónus de legalização das obras clandestinas, motivo pelo qual é impossível a execução específica do contrato.

A ré contestou, alegando, em síntese, que antes da celebração do contrato, apresentou ao autor cópia da licença de utilização e informou-o de que existiam alterações e ampliações que não se encontravam licenciadas junto da Câmara, motivo pelo qual foi acordado um preço de venda inferior ao valor de mercado. Além disso, o autor visitou o imóvel, pelo que tinha perfeito conhecimento das suas características físicas (além das administrativas). Concluindo que a impossibilidade de concretização do negócio definitivo só se deveu à falta de vontade do autor, motivo pelo qual tem direito a fazer seu o sinal que lhe foi entregue.

Foi proferido despacho saneador e fixado o objecto do litígio e os temas da prova.

Foi realizada audiência de julgamento, após o que foi proferida sentença, cujo dispositivo é o seguinte:
“Pelo acima expendido, julga-se a acção parcialmente procedente, por parcialmente provada e, em consequência, decide-se:
i) Declarar resolvido o contrato-promessa de compra e venda celebrado entre o autor C … e ré B …, em 12 de Novembro de 2020, relativamente à fracção “…”, correspondente à cave esquerda do prédio sito no lugar …, Rua … de …, n.º …, Trafaria;
ii) Condenar a ré a restituir ao autor o valor, em singelo, do sinal entregue no âmbito do referido contrato-promessa, na quantia de € 10.000,00 (dez mil euros);
iii) Absolver a ré da entrega do valor remanescente peticionado, na quantia de € 10.000,00 (dez mil euros).
As custas ficam a cargo do autor e da ré, em partes iguais.
Registe e notifique.”

Inconformado com a sentença, veio o autor dela interpor o presente recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões [transcrição]:
A) - A douta sentença recorrida não merece censura em matéria de facto mas, dando como provada a falsidade ideológica dos documentos camarários, fiscais e registrais apresentados pela Ré para a escritura de compra e venda, acaba por não aplicar as normas correspondentes a esses factos e interpreta incorrectamente as declarações negociais das partes, violando o disposto no art.º 607º nº 3 do CPC e nos arts. 236º e 238º do C. Civil;
Com efeito,
B) - Imputa ao A uma formulação imprecisa da sua pretensão, atribuindo-lhe uma putativa intenção de declarar resolvido o contrato-promessa, reconhecendo que este podia exigir a legalização das obras, só que teria concedido à Ré um prazo insuficiente de quatro dias para o fazer;
C) - Também considera que o A não justificou uma alegada perda de interesse na prestação da Ré, nem que a legalização das obras não pudesse ser efectuada;
D) – Ora, o A nunca pretendeu resolver o contrato, nem tal pode resultar das suas declarações negociais dos factos provados 19 e 20:
Na carta de 16 de Dezembro de 2022, o A denuncia a falsidade dos documentos e diz o que deve ser feito para fazer a escritura “de boa-fé” e não fez qualquer interpelação admonitória fixando prazo peremptório para a rectificação dos documentos, nem que perdera o interesse na prestação, tanto que pagou os impostos e levou um cheque bancário para a escritura (doc. 8 da PI);
E) – Por outro lado, a douta decisão entende que a Ré não declarou o contrato-promessa resolvido e a perda do sinal e que nem sequer se recusou a legalizar as obras clandestinas feitas no prédio;
 F) – Ora o comportamento objectivo da Ré comprova exactamente o contrário, posto que no Certificado Notarial que é o doc. 8 da PI e é o facto provado 21, aquela declara que toda a documentação está em ordem, que o A sabia da situação na altura da celebração do contrato e considera “o negócio incumprido por parte do promitente comprador, com todas as consequências legais e contratuais daí advenientes.”
G) - Assim, a declaração escrita da Ré deve ser interpretada à luz do art.º 236º nº 1 do C.Civil, ou seja, “com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário” lhe atribuiria, estando vedado ao juiz interpretar aquela declaração no sentido que lhe imputa ou seja, de que a ré não declarou o contrato resolvido e o sinal prestado pelo autor perdido, nem que se recusava a efectuar a legalização em falta, tanto que esse sentido não tem um mínimo de correspondência com o texto citado. (art.º 268º nº 1 do C. Civil)
H) - E tanto assim foi que, até ao presente, a Ré não regularizou a situação, o que os documentos actualizados juntos em 27 de Maio de 2024 pela Ref. …07 demonstram, nem fixou ao A qualquer prazo peremptório para a realização da escritura.
I)- Por conseguinte, a declaração negocial da Ré no Certificado Notarial de doc. 8 da PI só pode ser interpretada no sentido de que, estando os papeis por si considerados em ordem e recusando-se o A a outorgar a escritura, ter declarado aí e desde logo o contrato incumprido pelo promitente comprador, com as “consequências legais e contratuais daí advenientes”, ou seja, com a perda do sinal prestado.
J) - Perante este comportamento, ou seja, a declaração da Ré de considerar o contrato não cumprido por culpa do A, não cabia a este fazer uma interpelação admonitória fixando um prazo peremptório para a realização da escritura, ou, ainda para efeitos de a Ré obter junto da câmara a legalização das obras clandestinas, posto que esta declarou no dia da escritura que os papéis estavam em ordem, logo que nada havia a tratar.
K) - A Ré, com a sua declaração – recebida no acto pelo A - procedera efectivamente a uma resolução do contrato-promessa, revestindo esse acto, não de simples mora, mas de incumprimento definitivo, na medida em que declarou expressamente não pretender já cumprir a prestação a que estava adstrita, tendo adoptado uma conduta incompatível com a espectativa de cumprimento: os papéis estavam em ordem e a escritura só não se realizava na hora porque o A a isso se recusava.
L) - Conforme bem ensina o douto Acórdão do STJ de 9 de Maio de 2024 sobre estas questões e consultável em dgsi.pt:
III. Quando o devedor toma atitudes ou comportamentos que revelem, inequivocamente, a intenção de não cumprir a prestação a que se obrigou, porque não quer ou não pode, o credor não tem de esperar pelo vencimento da obrigação (se ainda não ocorreu), não tendo, sequer, de alegar e provar a perda de interesse na prestação do devedor, nem tem de o interpelar admonitoriamente, para ter por não cumprida a obrigação.
M) – E porque estava vedada ao A a execução específica do contrato, porque a Ré o declarara resolvido, ainda que ilicitamente, só restava ao A deduzir o pedido pela forma como o fez: pedir indemnização pela resolução ilícita do contrato por parte da Ré, a qual, dada a natureza do sinal constituído, só poderá ser o dobro do seu valor, tal como peticionado. (art.º 442º nº 2 do C. Civil)
Conclui que deve o recurso ser julgado procedente e, por via dele, proferida decisão que, anulando a anterior, considere a acção procedente e provada com todas as legais consequências.

A recorrida contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II. QUESTÕES A DECIDIR
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados nos artigos 635º/4 e 639º/1 do Código de Processo Civil, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importa, no caso, apreciar e decidir se, perante o não cumprimento do contrato-promessa, o A. tem direito à devolução do sinal em dobro.
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III. FUNDAMENTAÇÃO
III.1. Factos
Factos provados
O tribunal de 1ª instância julgou provados os seguintes factos [transcrição]:
1) Pela ap. de 2011/10/12, mostra-se registada a aquisição a favor da ré, por partilha e sucessão hereditária, do prédio sito no lugar do …, Rua … de …, n.º …, com a área total de 178 m2, área coberta de 100 m2 e área descoberta de 78 m2, composto de casa de habitação de dois pisos e logradouro, descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Almada sob o n.º … da freguesia de Trafaria, inscrito na respectiva matriz urbana sob o artigo … da União das Freguesias de Caparica e Trafaria.
2) Pela ap. de 2020/08/03, mostra-se registada a constituição da propriedade horizontal do prédio referido no ponto 1), sendo composto por três fracções autónomas individualizadas pelas letras “A”, “B” e “C”.
3) Na matriz urbana da fracção “…”, mostra-se, além do mais, inscrita uma “área bruta privativa” de 43,1500 m2
4) A fracção “…” do referido prédio tem a licença de habitação n.º …, de 14 de Setembro de 1977, emitida pela Câmara Municipal de Almada.
5) De acordo com essa licença de habitação, a fracção “…” tem uma área bruta privativa de 31,88 m2.
6) Em data não concretamente apurada, mas anterior à indicada no ponto 1), o referido prédio sofreu obras de ampliação e modificação das áreas cobertas e descobertas e alterações das entradas e saídas das caves correspondentes às fracções A e ….
7) Tais alterações não foram objecto de licenciamento camarário.
8) Por acordo escrito denominado de “CONTRATO DE PROMESSA DE COMPRA E VENDA”, datado de 12 Novembro de 2020, subscrito pela ré, na qualidade de “promitente vendedora” e pelo autor, na qualidade de “promitente comprador”, cujas assinaturas se encontram reconhecidas presencialmente por notário (que se dá por integralmente reproduzido), a ré prometeu vender, livre de quaisquer ónus ou encargos, ao autor, que prometeu comprar, a fracção designada pela letra “…” – Cave Esquerda, destinada a habitação, com a licença de habitabilidade n.º … de 14/09/1077 emitida pela Câmara Municipal de Almada, com entrada exclusiva pela Rua … de …, do prédio referido no ponto 1), que pelo valor de € 45.000,00, a entregar pelo autor à ré da seguinte forma: a) € 10.000,00, a título de sinal e princípio de pagamento, de que a autora deu quitação; b) € 35.000,00, a entregar no acto da outorga da escritura pública de compra e venda e/ou contrato particular, contra a respectiva quitação, a realizar-se no prazo de 30 dias.
9) Nesse escrito, lê-se, além do mais, que “verificando-se o incumprimento definitivo do presente Contrato de Promessa por culpa do PROMITENTE COMPRADOR, a PROMITENTE VENDEDORA terá o direito de promover a execução específica do contrato, nos termos do artigo 830.º do Código Civil, ou em alternativa, resolver o contrato. Optando pela resolução do contrato, a PROMITENTE VENDEDORA, terá direito a fazer suas a importância já recebida a título de sinal, nos termos da primeira parte do n.º 2 do artigo 442.º do Código Civil” – cf. cláusula 2.ª, 1.
10) Constar, igualmente, que “verificando-se o incumprimento definitivo do presente Contrato de Promessa por culpa da PROMITENTE VENDEDORA, o PROMITENTE COMPRADOR terá o direito de promover a execução específica do contrato, nos termos do artigo 830.º do Código Civil, ou em alternativa, resolver o contrato. Optando pela resolução do contrato, o PROMITENTE COMPRADOR, terá direito a receber da PROMITENTE VENDEDORA o dobro do valor do sinal já pago, nos termos da primeira parte do n.º 2 do artigo 442.º do Código Civil” – cf. cláusula 2.ª, 2.
11) Lê-se, ainda, que “a marcação do contrato definitivo, ficará a cargo da PROMITENTE VENDEDORA, que deverá avisar o PROMITENTE COMPRADOR do dia, hora e local, onde vais ser efectuada com antecedência mínima de 10 dias” – cf. cláusula 4.ª.
12) Previamente à subscrição do acordo referido no ponto 8), o autor visitou a fracção …
13) Em momento anterior à subscrição daquele acordo, a ré entregou ao autor cópia da planta a fls. 8 verso, sem os sublinhados e anotações dela constantes (doc. 2 da P.I).
14) Por carta datada de 4 de Dezembro de 2020, remetida pela ré ao autor, que a recebeu, por carta registada com aviso de recepção que se dá por integralmente reproduzida), a ré comunicou ao autor que a escritura definitiva de compra e venda da fracção “…” referida no ponto 5) se encontrava agendada para o dia 14 de Dezembro de 2020.
15) Por carta datada de 10 de Dezembro de 2020, remetida pelo autor à ré, que a recebeu, por carta registada com aviso de recepção (que se dá por integralmente reproduzida), o autor solicitou à ré o adiamento da escritura definitiva de compra e venda pelo prazo de sete dias, até ao próximo dia 21, para reunir o valor do remanescente do preço.
16) Em data não concretamente apurada, mas não posterior a 10 de Dezembro de 2020, o autor acedeu às plantas a fls. 17 verso e 18 (que se dão por integralmente reproduzidas), que serviram de base à escritura pública de propriedade horizontal do prédio e da licença de utilização da fracção.
17) Tais plantas apresentam uma construção com áreas, configurações e acessos diversos dos apresentados na planta referida no ponto 12) e da realidade física da fracção ….
18) Por carta remetida, em 15 de Dezembro de 2020, pela ré ao autor, que a recebeu, por correio registado com aviso de recepção (que se dá integralmente por reproduzida), a ré comunicou ao autor nada ter a opor à alteração da data da escritura, que ficou reagendada para o dia 22 de Dezembro de 2020.
19) Por carta datada de 16 de Dezembro de 2020, remetida pelo autor à ré, que a recebeu (que se dá por integralmente reproduzida), o autor comunicou, além do mais, à ré o seguinte:
“2. O Imóvel que prometi comprar, tal como se apresenta.
3. Trata-se de um imóvel com alterações CLANDESTINAS, por ter ocorrido, AMPLIAÇÃO, ultrapassando o alinhamento do limite do lote confinante lateral, propriedade da promitente vendedora.
(…)
5. A fração objecto do Contrato de Promessa de Compra e Venda não tem licença
de utilização da alteração de utilização.
6. Ao nível dos Serviços Municipalizado de Almada, não existe igualmente nenhum
projecto de alterações, confirmado pelos Serviços.
(…)
Para a realização da escritura de Boa Fé
Documentos necessários apresentar,
- Certidão toponímica com o número de polícia atribuído pela CM Almada;
- Alvará de licença de utilização da alteração de utilização por ter ocorrido uma transformação, amplicação e reconstrução, sujeitas a controlo prévio e licenciamento e, - Subsequente a rectificação à Escritura de Propriedade Horizontal, quanto ao Logradouro da Fração “…” enquanto unidade independente e parte comum, também a rectificação do n.º de polícia.
(…).”
20) Por documento denominado de “CERTIFICADO”, datado de 22 de Dezembro de 2020, subscrito pela autora e pelo réu e exarado pelo notário D … (que se dá integralmente por reproduzido), fez-se constar o seguinte:
«(…) a escritura não foi outorgada em virtude de C … ter declarado o seguinte: falta a exibição do alvará de licença de utilização (da alteração de utilização), decorrente da ampliação e modificação (área coberta e descoberta) ainda quanto à disposição do prédio em que as entradas da cave esquerda e cave direita deixam de acesso a tardoz e passam a ter acesso pela frente, isoladas entre si e com entradas e saídas independentes para a via pública.
A falta de licença de utilização da alteração de utilização pode ser considerada uma limitação que onera anormalmente o imóvel. Esta limitação é invocada contra a vendedora porque à data da assinatura do contrato-promessa esta limitação não era do conhecimento do comprador. A certidão da conservatória do registo predial está em desconformidade com a realidade. Não existe a certidão da renúncia ao ónus de servidão militar. A caderneta predial tem uma área dependente em desconformidade e falta a menção da área do terreno integrante da fracção. Falta também a certidão da Câmara Municipal com o número de polícia atribuído à fração.”»
21) Lê-se, ainda, que «[a] identificada B … declarou então o seguinte: “da minha parte forma cumpridos todos os requisitos estabelecidos no contrato-promessa de compra e venda redigido pelo promitente- comprador, designadamente no que diz respeito ao agendamento da escritura, a qual se encontrava originariamente marcada neste mesmo cartório para o dia catorze de Dezembro de dois mil e vinte, tendo sido adiada a pedido do promitente comprador, e por mim aceite. Foi então reagendada para a presente data, por acordo das partes e tendo em conta as limitações da agenda do cartório. Todos os documentos solicitados pelo promitente comprador para outorga do contrato-promessa de compra e venda foram entregues, assim como as chaves de acesso à fração autónoma, que não me foram devolvidas, nada mais tendo sido solicitado até à comunicação entregue na data de ontem, sendo que, no meu entendimento, e uma vez que o promitente comprador conhecia, ainda antes da outorga do contrato-promessa de compra e venda, o imóvel em causa, as condições do negócio e encontrando-se reunida toda a documentação para a outorga da escritura na presente data, considero o negócio incumprido por parte do promitente comprador, com todas as consequências legais e contratuais daí advenientes.”»
*
Factos não provados
O tribunal de 1ª instância julgou não provados os seguintes factos:
a) No contexto da subscrição do acordo referido no ponto 8), o autor e a ré acordaram que a venda seria realizada por preço inferior ao valor de mercado, pelo facto de existirem alterações à fracção que não foram licenciadas.
b) A alterações não licenciadas a que se refere o ponto 6) eram do conhecimento do autor antes da subscrição do acordo aludido no ponto 8).
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O tribunal de 1ª instância consignou ainda que:
Inexistem outros factos provados ou não provados com relevância para a decisão da causa.
O Tribunal não se pronuncia quanto à demais matéria alegada pelas partes nos articulados por ser repetida, conclusiva ou assumir cariz normativo.
*
III.2. Apreciação jurídica
Na presente acção, o autor/apelante pretende que seja reconhecido o incumprimento da ré/apelada e, por essa via, a sua condenação no pagamento da quantia de €20.000,00, correspondente ao valor em dobro do sinal por si entregue no âmbito do contrato-promessa de compra e venda celebrado com a ré em 12 de Novembro de 2020, que teve por objecto a fracção “…”, correspondente à cave esquerda do prédio sito no lugar …, Rua … de …, n.º …, descrito na Conservatória do Registo Predial de Almada sob o n.º … da freguesia da Trafaria e inscrito na matriz urbana da União de Freguesias da Caparica e Trafaria sob o art.º … (factos provados 1 e 8).
Na sentença sob recurso foi decidido julgar a acção parcialmente procedente, e, em consequência:
i) Declarar resolvido o contrato-promessa de compra e venda celebrado entre as partes;
ii) Condenar a ré (R) a restituir ao autor (A) o valor, em singelo, do sinal entregue no âmbito do referido contrato-promessa, na quantia de € 10.000,00;
iii) Absolver a ré da entrega do valor remanescente peticionado, na quantia de €10.000,00.
Insurge-se o apelante contra o entendimento da 1ª instância, de acordo com o qual não existiu incumprimento definitivo por parte da ré, nos termos e para os efeitos do art.º 801º e 808º ambos do Código Civil, concluindo o tribunal que ocorreu incumprimento bilateral do contrato-promessa e culpas concorrentes, que reputou equivalentes (art.º 570º), considerando aplicável o regime geral da resolução previsto no art.º 433º e 434º, que por ter eficácia retroactiva, conduz à restituição, em singelo, do sinal recebido, nos termos do art.º 289º ex vi art.º 433º.
  Esgrime o recorrente que nunca pretendeu resolver o contrato, ao contrário da R. que considerou o negócio incumprido pelo A., assim resolvendo o contrato-promessa, o que impediu a execução específica, não restando outra alternativa ao A. que não pedir indemnização pela resolução ilícita do contrato por parte da R., ou seja, a restituição do sinal em dobro.
A questão a decidir prende-se, assim, com o não cumprimento do contrato-promessa de compra e venda celebrado entre o A/ora apelante, enquanto promitente-comprador e a R./ora apelada, enquanto promitente-vendedora, importando aferir se é imputável ao A. ou à R. ou a ambos a não celebração do contrato prometido.
Vejamos os factos, com maior relevância para a decisão, dados como provados na sentença recorrida (sendo cada facto antecedido da respectiva numeração constante da sentença):
3) Na matriz urbana da fracção “…”, mostra-se, além do mais, inscrita uma “área bruta privativa” de 43,1500 m
4) A fracção “…” do referido prédio tem a licença de habitação n.º …, de 14 de Setembro de 1977, emitida pela Câmara Municipal de Almada.
5) De acordo com essa licença de habitação, a fracção “…” tem uma área bruta privativa de 31,88 m
6) Em data não concretamente apurada, mas anterior à indicada no ponto 1), o referido prédio sofreu obras de ampliação e modificação das áreas cobertas e descobertas e alterações das entradas e saídas das caves correspondentes às fracções A e ….
7) Tais alterações não foram objecto de licenciamento camarário.
8) Por acordo escrito denominado de “CONTRATO DE PROMESSA DE COMPRA E VENDA”, datado de 12 Novembro de 2020, subscrito pela ré, na qualidade de “promitente vendedora” e pelo autor, na qualidade de “promitente comprador”, cujas assinaturas se encontram reconhecidas presencialmente por notário (que se dá por integralmente reproduzido), a ré prometeu vender, livre de quaisquer ónus ou encargos, ao autor, que prometeu comprar, a fracção designada pela letra “…” – Cave Esquerda, destinada a habitação, com a licença de habitabilidade n.º … de 14/09/1077 emitida pela Câmara Municipal de Almada, com entrada exclusiva pela Rua … de …, do prédio referido no ponto 1), que pelo valor de € 45.000,00, a entregar pelo autor à ré da seguinte forma: a) € 10.000,00, a título de sinal e princípio de pagamento, de que a autora deu quitação; b) € 35.000,00, a entregar no acto da outorga da escritura pública de compra e venda e/ou contrato particular, contra a respectiva quitação, a realizar-se no prazo de 30 dias.
9) Nesse escrito, lê-se, além do mais, que “verificando-se o incumprimento definitivo do presente Contrato de Promessa por culpa do PROMITENTE COMPRADOR, a PROMITENTE VENDEDORA terá o direito de promover a execução específica do contrato, nos termos do artigo 830.º do Código Civil, ou em alternativa, resolver o contrato. Optando pela resolução do contrato, a PROMITENTE VENDEDORA, terá direito a fazer suas a importância já recebida a título de sinal, nos termos da primeira parte do n.º 2 do artigo 442.º do Código Civil” – cf. cláusula 2.ª, 1.
10) Constar, igualmente, que “verificando-se o incumprimento definitivo do presente Contrato de Promessa por culpa da PROMITENTE VENDEDORA, o PROMITENTE COMPRADOR terá o direito de promover a execução específica do contrato, nos termos do artigo 830.º do Código Civil, ou em alternativa, resolver o contrato. Optando pela resolução do contrato, o PROMITENTE COMPRADOR, terá direito a receber da PROMITENTE VENDEDORA o dobro do valor do sinal já pago, nos termos da primeira parte do n.º 2 do artigo 442.º do Código Civil” – cf. cláusula 2.ª, 2.
11) Lê-se, ainda, que “a marcação do contrato definitivo, ficará a cargo da PROMITENTE VENDEDORA, que deverá avisar o PROMITENTE COMPRADOR do dia, hora e local, onde vais ser efectuada com antecedência mínima de 10 dias” – cf. cláusula 4.ª.
12) Previamente à subscrição do acordo referido no ponto 8), o autor visitou a fracção ….
13) Em momento anterior à subscrição daquele acordo, a ré entregou ao autor cópia da planta a fls. 8 verso, sem os sublinhados e anotações dela constantes (doc. 2 da P.I).
14) Por carta datada de 4 de Dezembro de 2020, remetida pela ré ao autor, que a recebeu, por carta registada com aviso de recepção que se dá por integralmente reproduzida), a ré comunicou ao autor que a escritura definitiva de compra e venda da fracção “…” referida no ponto 5) se encontrava agendada para o dia 14 de Dezembro de 2020.
15) Por carta datada de 10 de Dezembro de 2020, remetida pelo autor à ré, que a recebeu, por carta registada com aviso de recepção (que se dá por integralmente reproduzida), o autor solicitou à ré o adiamento da escritura definitiva de compra e venda pelo prazo de sete dias, até ao próximo dia 21, para reunir o valor do remanescente do preço.
16) Em data não concretamente apurada, mas não posterior a 10 de Dezembro de 2020, o autor acedeu às plantas a fls. 17 verso e 18 (que se dão por integralmente reproduzidas), que serviram de base à escritura pública de propriedade horizontal do prédio e da licença de utilização da fracção.
17) Tais plantas apresentam uma construção com áreas, configurações e acessos diversos dos apresentados na planta referida no ponto 12) e da realidade física da fracção ….
18) Por carta remetida, em 15 de Dezembro de 2020, pela ré ao autor, que a recebeu, por correio registado com aviso de recepção (que se dá integralmente por reproduzida), a ré comunicou ao autor nada ter a opor à alteração da data da escritura, que ficou reagendada para o dia 22 de Dezembro de 2020.
19) Por carta datada de 16 de Dezembro de 2020, remetida pelo autor à ré, que a recebeu (que se dá por integralmente reproduzida), o autor comunicou, além do mais, à ré o seguinte:
“2. O Imóvel que prometi comprar, tal como se apresenta.
3. Trata-se de um imóvel com alterações CLANDESTINAS, por ter ocorrido, AMPLIAÇÃO, ultrapassando o alinhamento do limite do lote confinante lateral, propriedade da promitente vendedora.
(…)
5. A fração objecto do Contrato de Promessa de Compra e Venda não tem licença
de utilização da alteração de utilização.
6. Ao nível dos Serviços Municipalizado de Almada, não existe igualmente nenhum
projecto de alterações, confirmado pelos Serviços.
(…)
Para a realização da escritura de Boa Fé
Documentos necessários apresentar,
- Certidão toponímica com o número de polícia atribuído pela CM Almada;
- Alvará de licença de utilização da alteração de utilização por ter ocorrido uma transformação, amplicação e reconstrução, sujeitas a controlo prévio e licenciamento e, - Subsequente a rectificação à Escritura de Propriedade Horizontal, quanto ao Logradouro da Fração “.. enquanto unidade independente e parte comum, também a rectificação do n.º de polícia.
(…).”
20) Por documento denominado de “CERTIFICADO”, datado de 22 de Dezembro de 2020, subscrito pela autora e pelo réu e exarado pelo notário D … (que se dá integralmente por reproduzido), fez-se constar o seguinte:
«(…) a escritura não foi outorgada em virtude de C … ter declarado o seguinte: falta a exibição do alvará de licença de utilização (da alteração de utilização), decorrente da ampliação e modificação (área coberta e descoberta) ainda quanto à disposição do prédio em que as entradas da cave esquerda e cave direita deixam de acesso a tardoz e passam a ter acesso pela frente, isoladas entre si e com entradas e saídas independentes para a via pública.
A falta de licença de utilização da alteração de utilização pode ser considerada uma limitação que onera anormalmente o imóvel. Esta limitação é invocada contra a vendedora porque à data da assinatura do contrato-promessa esta limitação não era do conhecimento do comprador. A certidão da conservatória do registo predial está em desconformidade com a realidade. Não existe a certidão da renúncia ao ónus de servidão militar. A caderneta predial tem uma área dependente em desconformidade e falta a menção da área do terreno integrante da fracção. Falta também a certidão da Câmara Municipal com o número de polícia atribuído à fração.”»
21) Lê-se, ainda, que «[a] identificada B … declarou então o seguinte: “da minha parte forma cumpridos todos os requisitos estabelecidos no contrato-promessa de compra e venda redigido pelo promitente- comprador, designadamente no que diz respeito ao agendamento da escritura, a qual se encontrava originariamente marcada neste mesmo cartório para o dia catorze de Dezembro de dois mil e vinte, tendo sido adiada a pedido do promitente comprador, e por mim aceite. Foi então reagendada para a presente data, por acordo das partes e tendo em conta as limitações da agenda do cartório. Todos os documentos solicitados pelo promitente comprador para outorga do contrato-promessa de compra e venda foram entregues, assim como as chaves de acesso à fração autónoma, que não me foram devolvidas, nada mais tendo sido solicitado até à comunicação entregue na data de ontem, sendo que, no meu entendimento, e uma vez que o promitente comprador conhecia, ainda antes da outorga do contrato-promessa de compra e venda, o imóvel em causa, as condições do negócio e encontrando-se reunida toda a documentação para a outorga da escritura na presente data, considero o negócio incumprido por parte do promitente comprador, com todas as consequências legais e contratuais daí advenientes.”»

Flui do acervo factual apurado que, em 12/11/20, A. e R. celebraram um contrato-promessa de compra e venda (art.º 410º/1 do CC), nos termos do qual aquele prometeu comprar e esta prometeu vender a fracção autónoma identificada no facto provado  1 e 8, pelo preço global de €45.000,00, tendo sido entregue pelo promitente-comprador à promitente-vendedora, na data de assinatura do contrato-promessa, a quantia de €10.000 a título de sinal, ficando o A. obrigado ao pagamento do remanescente no acto da outorga da escritura pública de compra e venda.
Estipularam as partes que a marcação da escritura ficava a cargo da promitente vendedora, que deveria avisar o promitente comprador com, pelo menos, 10 dias de antecedência, tendo a R. comunicado ao A. uma primeira data para realização da escritura (14/12/20), data que veio a ser adiada para 22/12/20, a pedido do A. a fim deste “reunir o valor do remanescente do preço” (conforme carta enviada à R. pelo A. em 10/12/20, solicitando o adiamento por 7 dias), sendo o R. avisado da nova data por carta remetida pela R. em 15/12/20.
Seis dias antes da data da escritura, o A. comunicou à R. que a fracção prometida vender tinha sido objecto de “alterações clandestinas”, não tinha licença de utilização relativamente a essas alterações (nos serviços municipalizados  de Almada, não existia projecto de alterações), indicando os vários documentos necessários “para a realização da escritura de boa fé”, entre os quais “o alvará de licença de utilização da alteração de utilização por ter ocorrido uma transformação, amplicação e reconstrução, sujeitas a controlo prévio e licenciamento” e “subsequente rectificação à escritura de propriedade horizontal, quanto ao logradouro da fração “B” enquanto unidade independente e parte comum, também a rectificação do n.º de polícia.”
Como resulta claro da factualidade provada (que não foi objecto de impugnação) e do contrato-promessa que constitui o documento nº 1 junto com a petição inicial (ref citius …52), não consta deste acordo qualquer cláusula sobre a questão da legalização/licenciamento das alterações efectuadas no imóvel, estando demonstrado que havia desconformidade entre a área bruta constante da licença de habitação e a área inscrita na matriz (factos provados 3 a 5) e que, em data não concretamente apurada mas anterior à aquisição do prédio pela R. (em 12/10/2011), o imóvel sofreu obras de ampliação e modificação das áreas cobertas e descobertas e entrada e saída da cave alterações, que não foram objecto de licenciamento (factos provados 6 e 7).
Nenhuma das partes diligenciou pela obtenção da respectiva licença antes da escritura de compra e venda, sendo manifesto que no curto espaço em que a escritura foi marcada pela R. e no também curto prazo de adiamento solicitado pelo A., muito dificilmente seria possível obter a dita licença.
As partes nada combinaram e certamente anteviam que a escritura não se pudesse realizar no aprazado dia 22/12/2020. O que se espelhou no certificado exarado pelo notário nesta data, aí constando que a escritura não foi outorgada em virtude de o A. ter declarado que faltava a exibição do alvará de licença de utilização (das alterações), invocando que se tratava de uma limitação que onerava o imóvel e de que o promitente comprador não tinha conhecimento à data da assinatura do contrato-promessa (facto provado 20); por sua vez, a R. declarou que havia cumprido todos os requisitos estabelecidos no contrato-promessa, designadamente quanto ao agendamento da escritura, e que todos os documentos solicitados pelo promitente comprador para outorga do contrato-promessa foram entregues e que este conhecia o imóvel e as condições do negócio, pelo que a R. considerou “o negócio incumprido por parte do promitente comprador, com todas as consequências legais e contratuais daí advenientes” (facto provado 21).

O tribunal recorrido enquadrou a questão da seguinte forma, que, adiante-se, não nos merece censura:
«(…) Atenta a factualidade dada como provada, ficou demonstrada que a fracção … teve obras de alteração e ampliação das áreas de construção e dos seus acessos para as quais não foi emitida uma licença de alteração de utilização e, ainda, que existem discrepâncias significativas entre a área bruta privativa que se encontra inscrita na matriz (que se crê mais aproximada do estado físico da fracção) e a constante da licença de utilização emitida em relação à fracção (43,1500 m contra 31,88 m2).
Ora, a falta de licenciamento das alterações introduzidas na fracção constituía, efectivamente, um entrave legal à celebração do contrato definitivo de compra e venda, atento ao disposto no art.º 1.º, n.º 1 do DL n.º 281/99, de 26-07, que prevê que “não podem ser realizados actos que envolvam a transmissão da propriedade de prédios urbanos ou de suas fracções autónomas sem que se faça prova da existência da correspondente autorização de utilização”, acrescentando o n.º 4 que “a apresentação de autorização de utilização (…) é dispensada se a existência desta estiver anotada no registo predial e o prédio não tiver sofrido alterações.”
Como se refere no Acórdão do TRE de 12-04-2018, proc. n.º 7715/16.0T8STB.E1 (disponível em dgsi.pt), esta redacção impõe, na transmissão da propriedade de prédios urbanos, não só a prova da existência da autorização de utilização do prédio urbano, mas ainda que as alterações que o imóvel tenha sofrido estejam devidamente enquadradas na licença de utilização.
Por seu turno, o Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação (RJUE), aprovado pelo DL n.º 555/99, de 16-12, na sua anterior redacção dada pela Lei n.º 136/2014, de 09-09, que se encontrava em vigor à data dos factos, impunha no seu art.º 62.º, n.º 2, a obrigação de ser requerida e emitida a competente licença de utilização, mesmo no caso de obras de alteração não sujeitas a controlo prévio, a fim de ser verificada “a conformidade da utilização prevista com as normas legais e regulamentares que fixam os usos e utilizações admissíveis, bem como a idoneidade do edifício ou sua fracção autónoma para o fim pretendido, podendo contemplar utilizações mistas”.
Assim, as obras de alteração e ampliação efectuadas impunham a obtenção da competente licença de utilização, o que não se verificava à data em que foi designada a data para a realização da escritura do contrato definitivo.
Por outro lado, da factualidade apurada não foi possível concluir que o autor conhecia as desconformidades entre a licença de utilização da fracção e o edificado no local, tal como percepcionado através da visita ao local e da exibição da planta apresentada pela ré, e que, mesmo assim, aceitou celebrar o contrato-promessa.
Efectivamente, o que ficou provado é que o autor teve acesso às plantas que serviram de base à escritura de propriedade horizontal do prédio e da licença de utilização da fracção em data posterior à celebração do contrato-promessa, embora anterior à data designada para a celebração do contrato definitivo.
Por outro lado, das disposições conjugadas dos arts. 879.º, al. b) e 882.º, n.ºs 1 e 2, do Cód. Civil resulta que a obrigação de entrega da coisa, na compra e venda de imóveis, compreende a entrega dos documentos associados ao direito de fruir e dispor plenamente da coisa, entre os quais se inclui a licença de utilização, por ser documento necessário a assegurar a aptidão da coisa para o fim ou função normal a que se destina e dever ser mencionado no acto de transmissão, nos termos do já citado art.º 1.º, n.º 2, do DL n.º 281/99 de 26-07 – neste sentido, cf. o já citado Ac. do TRE de 12-04-2018.
Assim, conclui-se que o autor poderia exigir da ré a legalização das obras efectuadas à fracção, conforme o fez através da carta de 16 de Dezembro de 2022.
Contudo, o prazo concedido para o efeito (quatro dias antes da data designada para a escritura) era manifestamente insuficiente para a legalização das alterações, pelo que nunca poderia servir de interpelação admonitória, para efeitos do art.º 801.º, n.º 1 do Cód. Civil.
Por outro lado, nada foi alegado pelo autor para justificar a perda do interesse na celebração do contrato definitivo, nem que a legalização das alterações à fracção não pudesse ser efectuada num prazo mais alargado.
É certo que a ré declarou, na data da escritura, que considerava o negócio incumprido por parte do autor, mas não a título definitivo e, em todo o caso, a ré não declarou o contrato resolvido e o sinal prestado pelo autor perdido, nem que se recusava a efectuar a legalização em falta.
Nessa medida, inexiste, por parte da ré, um incumprimento definitivo, nos termos e para os efeitos dos arts. 801.º, n.º 1 e 808.º, n.º 1 do Cód. Civil.
Ora, a jurisprudência dos Tribunais Superiores tem entendido que só pode haver lugar à resolução do contrato-promessa, com a consequente entrega do sinal em dobro, verificando-se uma situação de incumprimento definitivo, o que, aliás, ficou previsto no clausulado do contrato-promessa – neste sentido, cf., a título exemplificativo, Ac. TRC de 16-02-2017, p. 2336/12.9TBLRA.C1, Ac. TRL de 11-03-2021, p. 4592/19.2T8ALM.L1-2, disponíveis em dgsi.pt
Sem prejuízo, também não se pode deixar de censurar a ré por não ter adoptado, de forma diligente e de acordo com padrões de boa-fé no cumprimento do contrato (art.º 762.º, n.º 2, do Código Civil), uma actuação apta à legalização das obras de alteração e ampliação de fracção, de forma a que tudo estivesse regularizado na data designada para a escritura do contrato definitivo de compra e venda.
Nessa medida, considera-se que existe no caso dos autos uma situação incumprimento bilateral do contrato-promessa e de culpas concorrentes, que se reputam de equivalentes, devendo as consequências de não se ter obtido o efeito pretendido com o contrato incumprido ser distribuídas entre as partes na mesma proporção, em face do disposto no art.º 570.º do Cód. Civil.
Nessa medida, tem aplicação o regime geral da resolução previsto nos arts. 433.º e 434.º do Cód. Civil, que por ter eficácia retroactiva, conduz à restituição, em singelo, do sinal recebido, nos termos do art.º 289.º, ex vi art.º 433.º do Cód. Civil – neste sentido, cf. os Acs. STJ de 25-11-2010, p. 3018/06.6TVLSB. L1, e de 15-03-2012, p. 9818/09.8TBVNG.P1.S1; e o Ac. TRE de 12-04-2018, já citado (todos disponíveis em dgsi.pt).
Em face do acima exposto, deve a ré ser condenada na restituição ao autor do valor em singelo, na quantia de € 10.000,00, e ser absolvida do pagamento dos remanescentes €10.000,00.»

Afigura-se-nos correcta a solução e fundamentação vertidas na sentença, em face do acervo factual provado, atendendo ao objecto da acção definido pelo pedido e causa de pedir, e considerando o quadro normativo relativo à resolução contratual, em conjugação com o regime especial do contrato-promessa (arts 410º e seguintes e 441º e 442º do Código Civil).
Sublinhe-se que a pretensão do A. na presente acção traduz-se num pedido indemnizatório, ou seja, a devolução do sinal em dobro, imputando à ré o incumprimento do contrato-promessa. Neste contexto, concordamos com o tribunal a quo quando afirma que subjaz ao pedido formulado pelo A. um outro, ou seja, a resolução do contrato-promessa, na medida em que, como melhor se explanará infra, a resolução constitui pressuposto da aplicação do regime previsto no art.º 442º/2 do Código Civil.
Quanto à R., defende-se imputando ao A. a culpa pela não celebração do contrato definitivo.
Acolhemos inteiramente o entendimento do tribunal a quo, segundo o qual os factos demonstrados não permitem imputar em exclusivo ao A. ou à R. o não cumprimento do acordo.
Desde logo não se extrai do acordo que competisse ao promitente comprador ou ao promitente vendedor a obrigação de proceder à legalização das obras de alteração/ampliação do imóvel em apreço.
Por outro lado, ambos os contraentes sabiam que a escritura do contrato definitivo dependia da apresentação da documentação do imóvel, incluindo o alvará do licenciamento das obras de ampliação.
Embora tivesse sido julgado não provado que o A. antes da subscrição do contrato-promessa tivesse conhecimento das alterações não licenciadas, o certo é que sendo esse conhecimento seguramente anterior à data da escritura de compra e venda, o A. não diligenciou no sentido da obtenção do alvará do licenciamento, nem solicitou à R. que o fizesse. Pediu o adiamento da primeira data da escritura com fundamento na necessidade de obter o remanescente do preço, sem invocar a questão das obras, limitando-se a comunicar à R. em 16/12/20 (seis dias antes da escritura, aprazada para 22/12/20) que não havia licença de utilização e que era necessário o respectivo alvará para a realização da escritura. Não pediu a remarcação da escritura, nem concedeu à R. um prazo razoável para a “legalização” das obras, sendo do conhecimento geral que os licenciamentos, da competência das entidades camarárias, são processos demorados. Quanto à R., também não tratou de resolver a questão, sabendo que não havia licença e nenhuma resposta dando à carta que o A. lhe enviou em 16/12/20, para depois no dia da escritura imputar ao A. o incumprimento do contrato.
Contudo, do comportamento dos contraentes, que se extrai dos factos, não resulta a sua perda de interesse na prestação, nem se pode considerar a comunicação do A à R.. como interpelação admonitória, já que a referida carta não contem os requisitos desta interpelação, para efeitos de converter a mora em incumprimento definitivo, não estabelecendo um prazo razoável para R. obter os documentos em falta para a escritura (art.º 808º do Código Civil).
Ora, a mora só se converte em incumprimento definitivo pela perda subsequente do interesse do credor ou pela interpelação admonitória (art.º 808º nº 1 e 2 CC).
No que concerne à perda de interesse do accipiens terá de resultar, objectivamente, das condições e das expectativas concretas que estiveram na origem da celebração do negócio, bem como das que, posteriormente, venham a condicionar a sua execução, não podendo resultar de simples mudança da vontade do credor, nem de qualquer circunstância que justifique a extinção do contrato aos olhos do credor. A perda do interesse há-de ser justificada segundo o critério de razoabilidade, próprio do comum das pessoas (vide Antunes Varela, in Rev. Leg. Jur., ano 118º, pág. 55).
Donde, para que se verifique causa justificativa da resolução não basta, que, havendo sido estipulado um prazo para a celebração do contrato prometido (sendo que, no caso, as partes não convencionaram um prazo fixo ou absoluto), não haja sido outorgado o contrato definitivo.
Para além da perda objectiva do interesse na prestação, em consequência da mora, o credor pode converter “a mora debitoris” em incumprimento definitivo fixando ao devedor um prazo razoável para cumprir, sob pena de se considerar não cumprida a obrigação. É a chamada interpelação admonitória, declaração receptícia, que deve conter três elementos: intimação para o cumprimento; fixação de um termo peremptório de um prazo para o cumprimento; cominação (declaração admonitória) de que a obrigação se terá como definitivamente não cumprida se não se verificar o cumprimento dentro daquele prazo.
Como se disse, tal não ocorre no caso em apreciação.
Por outra banda, entende-se, como o tribunal recorrido, que a R. não declarou resolvido o contrato pelo facto de ter referido, na data da escritura, que considerava incumprido o negócio por parte do promitente comprador (facto provado 21), não configurando esta declaração de mero anúncio das consequências do incumprimento do promitente comprador uma declaração tácita antecipada de resolução (neste sentido, v. acórdão do TRP de 23/6/2015, P. 646/11.1TBSTS.P1, relator Pedro Martins, www.dgsi.pt).
E, não existindo incumprimento definitivo imputável (exclusivamente) à R., não assiste ao A. o direito de peticionar a restituição do sinal em dobro, nos termos do art.º 442º/2 (2ª parte) do Código Civil.
Com efeito, a aplicação das sanções previstas no art.º 442º/2 CC pressupõe uma resolução com base no incumprimento definitivo do contrato-promessa, que seja imputável apenas à contraparte e não uma situação de incumprimento imputável a ambas as partes.
Na situação sub judice ambas as partes contribuíram para o não cumprimento do contrato-promessa, verificando-se, como se refere na sentença, uma situação de incumprimento bilateral do contrato e de culpas concorrentes em medida equivalente, devendo convocar-se a aplicação ao caso do disposto no art.º 570º do Código Civil.
Na mesma linha, em casos semelhantes pronunciaram-se, entre outros, os seguintes arestos:
- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8/2/24, P. 6527/21.3T8PRT.P1.S1, relatora Fátima Gomes (www.dgsi.pt), onde se escreveu, (subscrevendo a sentença da 1ª instância):
“(…) A culpa é de ambos, e igual. Igual porque na conduta de cada uma das partes não se encontra razão distinta e forte que permita destrinçar qual delas mais concorreu para o resultado e, portanto, é mais censurável.
Nesta situação, já não poderemos socorrer-nos da disciplina prevista no art.º 442º, nº 2, do Código Civil, pois que o direito que as AA. invocam de receber o sinal em dobro pressupõe culpa exclusiva do outro contraente (a promitente vendedora), assim como o direito de a R. fazer seu o sinal entregue pressupõe também culpa exclusiva do outro contraente (as promitentes compradoras). Donde, havendo culpa de ambos os contraentes, AA. e R., o instituto a que deve fazer-se apelo é o previsto no art.º 570º do Código Civil, de onde resulta, aplicando à situação de incumprimento de contrato-promessa, que “a restituição do sinal em dobro pode ser totalmente concedida, reduzida ou excluída, conforme a gravidade das culpas de uma e outra das partes e as consequências delas resultantes”, e que “no caso de se neutralizarem as culpas de ambos os contraentes, resolvido o contrato devem os réus restituir o que receberam” (cfr. Ac. do S.T.J. de 16/02/1995, com o nº de proc. 086085, sumariado em www.dgsi.pt, e bem assim, o Ac. do S.T.J. de 06/10/1970, in B.M.J. 200, pág. 227, e os Acs. da R.P. de 06/05/2004, com o nº de proc. 0432343, e do S.T.J. de 09/09/2008, com o nº de proc. 08A1922, publicados naquele mesmo sítio da Internet).
Pelo que, a conclusão é a de que, nos termos do art.º 570º do Código Civil, deve a R. apenas restituir às AA., em singelo, a quantia que destas recebeu a título de sinal e princípio de pagamento, assim se regressando, no fundo, à situação anterior, como as partes, afinal, acabam por querer, merecem e com o que cada uma já é suficientemente penalizada, embora a títulos diversos.”  (sublinhados nossos)
- acórdão do TRP de 23/6/2015, P. 646/11.1TBSTS.P1, relator Pedro Martins, em cujo sumário se pode ler, no seu ponto 2:
“Se o comportamento de ambas as partes contribuiu de modo semelhante para a impossibilidade superveniente de cumprimento do contrato-promessa, pode ser decretada a resolução deste a pedido de uma delas, com a consequente obrigação de restituição das quantias entregues a título de sinal, sem o acréscimo de indemnização.” (sublinhado nosso)
Como se assinala em sede de fundamentação neste último acórdão (e jurisprudência aí citada),  “Face a um não cumprimento bilateralmente imputável do contrato-promessa, e sendo iguais as culpas de ambas as partes e as consequências delas resultantes, deve excluir-se a indemnização correspondente ao sinal em dobro, tendo em conta o disposto no art.º 570/1 do CC; haverá tão somente lugar à restituição do sinal em singelo, que nesse caso não assume natureza indemnizatória e é antes uma mera consequência da extinção do contrato com o fim de colocar as partes na situação em que estariam se ele não tivesse sido concluído.”
Seguindo idêntica orientação pronuncia-se José Diogo Falcão in “Súmula sobre o incumprimento do contrato-promessa”, concluindo que “sendo as culpas concorrentes em idêntica medida para o incumprimento do contrato-promessa, não existirá direito a qualquer indemnização pelo incumprimento do contrato, apenas havendo lugar à restituição do sinal em singelo.”

Em síntese conclusiva, no caso dos autos não se mostram verificados os requisitos de aplicação do regime previsto no art.º 442º do Código Civil, que exige a imputação culposa (exclusiva) do incumprimento (definitivo) à contraparte, pelo que é de convocar o regime geral da resolução consagrado nos arts 433º e 434º, o que conduz à restituição em singelo do sinal entregue à R. pelo A., em consequência da extinção do contrato (art.º 433º e 289º do Código Civil).
Pelo que, não merecendo censura a análise jurídica da sentença, impõe-se a sua confirmação.
*
IV. DECISÃO
Pelo exposto, acordam em julgar improcedente a apelação e, consequentemente, confirmar a sentença recorrida.
Custas pela apelada (artigo 527º do CPC).
Registe e notifique.
*
Lisboa, 25 de Março de 2025
Ana Mónica Mendonça Pavão
Luís Lameiras
Rute Lopes