Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
| ||
Relator: | MARIA JOÃO AREIAS | ||
Descritores: | INSOLVÊNCIA LEGITIMIDADE CRÉDITO PROVA DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA DESPACHO SANEADOR | ||
![]() | ![]() | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 11/02/2010 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
![]() | ![]() | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário: | 1. No processo de insolvência, embora não haja lugar a despacho saneador, nada obsta a que, findos os articulados, o juiz conheça do mérito do pedido de declaração de insolvência, desde que o processo o permita, sem necessidade de mais provas. 2. O facto de o crédito ser litigioso não lhe retira legitimidade processual para requerer a insolvência do pretenso devedor, devendo-lhe, ser permitido, em regra, no processo de insolvência a produção de prova com vista à demonstração do seu crédito. 3. Contudo, a prova a produzir no âmbito de tal processo com vista à determinação da existência do crédito do requerente não poderá deixar de ser uma prova sumária, sendo que, por força dos princípios de urgência e celeridade que lhe subjaz, o processo não atribui às partes as garantias de um processo declarativo comum. 4. A ausência de factos suficientes para o preenchimento de algum dos factores índice da situação de insolvência previstos no nº1 do art. 20º do CIRE, importará, por si só, a improcedência do pedido. (sumário da Relatora) | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
![]() | ![]() |
Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa (7ª Secção): 1. RELATÓRIO H., S.A., instaura o presente processo especial de insolvência contra L, Lda., Alegando, em síntese, ter um crédito sobre a Requerida que esta persiste em não pagar não obstante os diversos contactos da Requerente para esse efeito, e que a Requerida, com um passivo superior ao activo, não dispõe de capacidade financeira suficiente para proceder ao cumprimento de todas as suas obrigações vencidas. Citada, a Requerida referiu que o crédito que a Requerente invocou ter sobre si não existe, ao que acresce que não tem outros créditos incumpridos e que não se encontra numa situação de insolvência. Pelo juiz a quo, e com fundamento que o pedido sempre se encontraria votado à improcedência, foi proferida decisão de improcedência da acção, não declarando a insolvência da requerida. Inconformado com tal decisão, a requerente dela interpôs recurso de apelação, concluindo a respectiva motivação, com as seguintes conclusões: I. A sentença recorrida para julgar improcedente a acção da Recorrente, em matéria de direito, invocou a noção geral de situação de insolvência, prevista no art. 3º, nº 1 e 2 do CIRE, e a falta de preenchimento de dois requisitos: a demonstração do crédito da Recorrente e a verificação de pelo menos um dos “factos-índice” ou “índices de insolvência”, previstos no art. 20º, nº 1 do CIRE. II. A sentença recorrida não pode ser admissível legalmente tendo sido proferida pelo Ex.mo Juiz a quo, antes da realização da audiência de julgamento, num claro atropelo aos mais elementares princípios jurídicos, como é do caso do princípio da segurança e certeza jurídica, e do inquisitório. III. Em primeiro lugar, o Ex. mo Juiz a quo não podia ter proferido a sentença nesta fase processual, quando se aguarda o novo agendamento para a realização da audiência de julgamento, e com os fundamentos aduzidos. IV. Quando aos fundamentos, a sentença recorrida entende que a obrigação em que a ora Recorrente funda o seu crédito “não é actualmente certa sequer quanto à sua existência” e que não se encontram preenchidos os índices da insolvência a que se refere o art. 20º, nº 1, alíneas b) e h) do CIRE. V. Ora, com base nestes fundamentos, o Ex.mo Juiz a quo deveria ter rejeitado a petição inicial da ora Recorrente por esta não reunir os requisitos legais para poder sustentar o seguimento da acção, devendo indeferir liminarmente o pedido de declaração da insolvência, nos termos do art. 27º, nº 1, alínea a) do CIRE. VI. Nos autos em apreço, o Ex.mo Juiz a quo admitiu a petição inicial apresentada pela Recorrente, ordenando a citação da Requerida, por despacho datado de 16-04-2010, que foi aceite por todos os intervenientes processuais. VII. Pelo que, e em contra-senso absoluto como o decido, o Ex.mo Juiz a quo não pode, fora dos casos do indeferimento liminar, julgar a acção improcedente com base nos mesmos factos que entendeu serem suficientes para admitir a petição inicial da ora Recorrente. VIII. A verdade é que, e uma vez admitida a petição inicial, o Ex.mo Juiz a quo não poderia julgar a acção improcedente sem antes atender a prova indicada pela Recorrente e Recorrida nas suas peças processuais. IX. Em segundo lugar, e ao contrário do que é dito na sentença recorrida, nos autos não constam todos os elementos necessários para a decisão da causa, sendo certo que no processo de insolvência o juiz tem também o dever de “realizar as diligências necessárias à averiguação dos pressupostos invocados e recolher os elementos que o habilitem a decidir”. X. Estando também o processo de insolvência abrangido pelo princípio do inquisitório (art. 11º do CIRE), por maioria de razão, o juiz teria de aferir as várias questões controvertidas entre as partes, mormente a existência do crédito da ora Recorrente (cfr. factos como provados 9º, 10º, 11º e 12º), e a própria solvabilidade da Recorrida, cabendo a esta última a prova deste facto, segundo o art. 30º, nº 4 do CIRE. XI. Ao Ex.mo Juiz a quo para decidir correctamente estas questões controvertidas impunha-se como necessário a realização da audiência de discussão e julgamento, para ouvir a prova indicada pelas partes. XII. Na verdade, “a lei não coloca na disponibilidade do Tribunal a decisão de realizar ou não a audiência de julgamento, sendo esta obrigatória sempre que seja deduzida oposição”, e ao decidir de forma diversa, a decisão recorrida violou entre outras as normas constantes dos arts. 11º, 27º, 35 e 36º do CIRE. XIII. Além do mais, ainda que fosse legitimo ao Ex.mo Juiz a quo proferir sentença, sem a realização da audiência de julgamento - o que se admite por mera cautela de patrocínio - a verdade é que a decisão a proferir, de acordo com o direito constituído, jamais poderia ter sido de não declaração da insolvência. XIV. Nos termos do art. 3º, nº 1 do CIRE, o conceito de insolvência caracteriza-se pela impossibilidade, por parte do devedor, de cumprir as suas obrigações, não tendo a impossibilidade que abranger todas as obrigações assumidas pelo devedor, e que as mesmas se encontrem vencidas. XV. Na insolvência há a «insusceptibilidade de satisfazer obrigações que, pelo seu significado no conjunto do passivo do devedor, ou pelas próprias circunstâncias do incumprimento, evidenciam a impotência, para o obrigado, de continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos». XVI. Pelo que a situação de insolvência, como pressuposto objectivo para a declaração de insolvência, corresponde a «uma impossibilidade de cumprir pontualmente as respectivas obrigações por carência de meios próprios e por falta de crédito», não dependendo a impossibilidade de incumprimento algum. XVII. No caso de pessoas colectivas e de patrimónios autónomos, por cujas dívidas nenhuma pessoa singular responda pessoal e ilimitadamente, directa ou indirectamente – situação da ora Recorrida - insolvência é também a superioridade manifesta do passivo em relação ao activo, avaliado segundo normas contabilísticas aplicáveis (art. 3º, nº 2 do CIRE). XVIII. Pelos factos dados como provados – concretamente 13º, 14º, 15º, 16º- é manifesto que a Recorrida tem um passivo muito superior ao seu activo, apresenta valores negativos de capital próprio, e de ser evidente o agravamento progressivo da sua situação económico-financeira. XIX. Da contabilidade da Recorrida resulta claramente a impossibilidade desta em pagar as suas dívidas, pois de outra forma não estaríamos perante um agravamento da situação líquida negativa desde 2008. XX. Pelo exposto, é manifesto que, se ao juiz fosse legítimo a prolação de decisão nesta fase, não lhe restaria senão julgar como provada a situação de insolvência da Recorrida até porque era a esta a quem competia fazer prova da sua solvência, o que no caso, apenas poderia ser feito com a demonstração da revalorização do activo, nos termos do disposto no art. 30, nº 4 do CIRE, e não o logrou fazer. XXI. Os factos enunciados no art. 20º do CIRE constituem meros indícios ou presunções de insolvência, nesta base a sentença recorrida afirma – neste sentido bem - que estes índices surgem por opção do legislador “ciente da dificuldade de prova efectiva da insolvência” quando requerida “por outros interessados que não o devedor”. XXII. Sendo certo que o devedor pode sempre ilidir a presunção, provando que se encontra numa situação de solvabilidade, mesmo com a ocorrência de um dos factos tipo (art. 30, nº 3 do CIRE). XXIII. No entanto, não pode bastar à Recorrida alegar que se encontra no âmbito de um Procedimento Extrajudicial de Conciliação para se dar como provado, sem mais, a sua solvabilidade. XXIV. A Recorrente alegou na sua petição inicial o índice previsto no art. 20º, nº 1, alínea b) do CIRE que traduz na falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações. XXV. Resulta dos autos, e a própria Recorrida o admite, a dificuldade que sente em cumprir as suas obrigações, confessando que só o recurso ao Procedimento Extrajudicial de Conciliação junto do IAPMEI, permitiu minimizar a grave situação financeira em que se encontra, o que por si só evidencia uma situação de penúria generalizada. XXVI. Ao contrário do vertido na sentença recorrida, a existência de um Procedimento Extrajudicial de Conciliação e o seu alegado cumprimento não significa sem mais que a Recorrida deixou de estar numa “situação de penúria”, ao contrário, este facto exterioriza as dificuldades da Requerida em cumprir a generalidade das suas obrigações. XXVII. Além do mais, nos autos não constam elementos de prova quanto ao cumprimento pela Requerida do plano de pagamentos estabelecido no Procedimento Extrajudicial de Conciliação, o pagamento do crédito reclamado pela Recorrente ou o valor reclamado em sede executiva por uma trabalhadora, encontrando-se pendente a respectiva acção executiva. XXVIII. Estas circunstâncias a par dos elementos contabilísticos da Recorrida, à luz da experiência comum e em termos de razoabilidade, são reveladoras de que esta está impossibilitada de cumprir atempadamente os seus compromissos, até porque vendido o seu património nunca poderá pagar a todos os seus credores. XXIX. Outro facto índice alegado pela Recorrente prende-se com a questão da Recorrida ser uma das entidades referidas no nº 2 do artigo 3º, e ser manifesta a superioridade do passivo sobre o activo segundo o último balanço aprovado, nos termos do art. 20º, nº 1, alínea h) do CIRE. XXX. Quanto ao preenchimento deste facto-índice, sempre se dirá que a Recorrente, na sua petição inicial, alegou o que lhe competia: evidenciar a insuficiência do activo da Recorrida em relação ao passivo, com recurso a elementos da contabilidade desta. XXXI. Por sua vez, à Recorrida cabia ilidir esta presunção, não constando nos factos dados como provados da sentença recorrida a prova efectuada neste sentido (art. 30, nº 4 do CIRE). XXXII. Deste modo, o Ex.mo Juiz a quo não poderia ter decidido como decidiu, sendo evidente que a Recorrente invocou factos que se subsumiam nos factos-índices previstos no art.20º do CIRE e a Recorrida não logrou ilidir estas presunções, pelo que a sentença recorrida violou os normativos constantes nos arts. 3º, 20º, 30º e 35º do CIRE. XXXIII. No que concerne ao preenchimento do pressuposto da legitimação do credor requerente, a Recorrente na sua petição inicial alegou e juntou elementos de prova acerca da existência do seu crédito. XXXIV. Sustenta a sentença recorrida que o crédito alegado pela Recorrente teria que ser certo, líquido e exigível, o que não se poderá de modo nenhum aceitar. XXXV. Em primeiro lugar, a posição doutrinal em que o Ex.mo Juiz a quo se baseia para fundamentar a decisão proferida quanto a este aspecto tem como base o art. 8º do C.P.E.R.E.F, e não na actual redacção do art. 20º do CIRE. XXXVI. Em segundo lugar, os pressupostos da acção executiva têm lugar e apenas neste tipo de acção, não se podendo extravasar esses pressupostos para acção de insolvência. XXXVII. Além do mais é posição unânime da jurisprudência que “qualquer credor tem legitimidade para requerer a insolvência do devedor, não importando que o crédito esteja vencido ou não, declarado ou não, mesmo sendo o crédito condicional e qualquer que seja a sua natureza”. XXXVIII. Como bem se decidiu no Acórdão da Relação do Porto de 26-01-2010 “I – a atribuição de legitimidade para deduzir o pedido de insolvência apenas ao credor cujo crédito não tenha sido contestado, restringiria, grave e injustificadamente, o meio de tutela jurisdicional do direito de crédito – seja do requerente da insolvência seja dos demais credores do requerido – representado pela insolvência. II – É ao autor ou requerente que compete assegurar o preenchimento dos pressupostos processuais, desde logo a legitimidade ad causam e para isso é indispensável que se lhe assegure a possibilidade de realização da prova, no processo de insolvência, dos factos correspondentes, se estes forem controvertidos.” XXXIX. É também certo que o crédito do requerente não tenha de estar reconhecido por decisão judicial ou pelo próprio devedor, devendo depois em sede de verificação de créditos determinar-se ou não pela sua existência, pelo que a decisão recorrida teria de dar por assente o interesse em agir e a legitimidade processual activa da ora Recorrente. XL. Por fim, a sentença recorrida entra em contradição ao afirmar que está demonstrado nos autos a situação de insolvência iminente da Recorrida (art. 3º, nº 4 do CIRE), que se traduz numa situação mais gravosa, e não lograr provado o o preenchimento nenhum facto índice do art. 20º do CIRE invocado pela Recorrente. XLI. Deste modo, a sentença recorrida terá de ser revogada e julgar-se a acção de declaração de insolvência da Recorrida, procedente, por provada. A Requerida apresentou contra-alegações no sentido da improcedência do recurso e que nos dispensamos de reproduzir. II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO. Considerando que as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste tribunal, e apesar da extensão das mesmas, por deficiente cumprimento do estipulado no art… do CPC, as questões a decidir são, unicamente as seguintes: 1. Se o juiz podia, nesta fase processual, e sem proceder a audiência de julgamento, conhecer do mérito da acção. 2. Se os elementos constantes dos autos permitiriam, desde já, conhecer do mérito, impondo a solução a adoptada pelo juiz a quo: a. Existência do crédito do requerente; b. Verificação de algum dos factores índice da declaração de insolvência. III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO. 1. Possibilidade de conhecimento do mérito da acção sem realização prévia de audiência de julgamento. Pretende a recorrente que, não tendo o juiz do processo indeferido liminarmente o requerimento inicial nos termos do art. 27º, nº1, al. a), do CIRE, e tendo ordenado a citação da requerida, não poderia julgar a acção improcedente com base nos mesmos factos que entendeu ser suficientes para admitir a petição inicial. E, encontrando-se o processo de insolvência abrangido pelo princípio do inquisitório (art. 11º do CIRE), impunha-se a realização da audiência para ouvir a prova indicada pelas partes – “a lei não coloca na disponibilidade do tribunal a decisão de realizar ou não a audiência de julgamento, sendo esta obrigatória sempre que seja deduzida oposição”. Cumpre decidir da questão em apreço. O processo de insolvência rege-se pelo Código de Processo Civil em tudo o que não contrarie as disposições do CIRE – art. 17º do CIRE. No processo de insolvência, há sempre lugar a despacho liminar, indeferindo-se liminarmente o pedido de declaração de insolvência quando seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, excepções dilatórias insupríveis de que deva conhecer oficiosamente – nº1 do art. 27º do CIRE. Segundo o nº1 do art. 35º do CIRE, tendo havido oposição do devedor ou tendo a audiência deste sido dispensada, é logo marcada audiência de discussão e julgamento para um dos cinco dias subsequentes. Ou seja, de tal norma resulta que, no processo de insolvência não haverá, em regra lugar, a despacho saneador, tal como se encontra definido no art. 510º do CPC (embora se encontre previsto que o juiz no início da audiência proceda à selecção da matéria de facto relevante que considere assente e a que constituiu a base instrutória – nº5 do art. 35º do CIRE), pelo que, findos os articulados, que se resumem, em regra, ao requerimento inicial e à oposição, o juiz designará dia para audiência de julgamento. Contudo, nada obstará a que, se antes de iniciada a audiência de julgamento, o juiz chegar à conclusão de que o processo contém, desde logo, e sem necessidade de mais provas, todos os elementos necessários a conhecer de alguma excepção peremptória, ou do próprio pedido de declaração de insolvência, passe a conhecer de imediato do mérito da acção. Assim como, se pelo Requerido tiver sido invocada alguma excepção dilatória ou peremptória que importe a extinção da instância, também o juiz deverá proceder nesta fase processual à sua apreciação. E, a nosso ver, em tais casos, impõe-se mesmo que o faça, sob pena de, prosseguindo os autos para audiência de julgamento, se estarem a praticar actos inúteis e, como tal proibidos por lei (art. 137º do CPC). E, note-se que, não nos encontramos, nesta fase, perante um despacho de rejeição liminar do requerimento inicial – não foi esse o juízo de valor proferido pelo juiz a quo na decisão recorrida (embora, em nosso entendimento nada obstasse a que tendo o juiz ordenado a citação do réu, viesse, mais tarde, e nomeadamente em caso de falta de oposição do requerido, a indeferir o pedido de insolvência por manifesta improcedência do mesmo). Com efeito, como sempre se entendeu e consta expressamente do nº 5 do art. 234º, do CPC, o despacho de citação nunca constitui caso julgado formal, não se considerando precludidas as questões que podia ter sido motivo de indeferimento liminar[1]. De qualquer modo, no caso concreto não se tratou de uma rejeição do requerimento inicial por motivos que podiam ter levado ao indeferimento liminar do requerimento inicial: a apreciação do juiz a quo no despacho recorrido, resultou da análise dos elementos constantes dos autos à data em que tal despacho foi proferido, nomeadamente, da conjugação da posição assumida pela Autora no requerimento inicial com a posição assumida pela Ré na sua oposição e documentos juntos pelas partes, bem como dos factos já considerados por assentes documentalmente ou por acordo. Assim, nada obsta a que – e embora no processo de insolvência não se encontre previsto, como regra, a existência do denominado “despacho saneador”, por questões de celeridade processual –, se conheça do pedido de declaração de insolvência findos os articulados, desde que o processo contenha todos os elementos, sem necessidade de mais provas, para uma decisão conscienciosa, segundo as várias soluções possíveis de direito. 2. Se os elementos dos autos impunham desde já a improcedência do pedido, dispensando a audiência de julgamento. 2.1. Factos considerados como assentes pelo tribunal a quo, e relativamente aos quais não foi levantada qualquer reclamação: 1. L, S.A. pessoa colectiva nº ..., é uma sociedade anónima com, e encontra-se matriculada na Conservatória do Registo Comercial. 2. Tem por objecto social a indústria gráfica em geral, podendo importar e exportar máquinas, equipamentos, matérias-primas ou produtos de qualquer natureza. 3. Tem o capital social de 9.334.831,00 €. 4. A Requerente é uma sociedade anónima cujo objecto engloba, entre outras, a actividade de gestão de participações sociais noutras sociedades. 5. Em 03/08/2004, por escrito particular epigrafado de “contrato de compra e venda de acções”, foram intervenientes: - G., também designada por “Compradora”; - A Requerida L, S.A.; - A Requerente H, S.A., e - GA, SGPS, S.A. 6. Nesse escrito, as partes declararam acordar que: a) A L “vende, transmite e entrega à Compradora, e esta compra à L (…) a totalidade da sua participação, representativa de 32% do capital social da N, (…), pelo preço de €2.500.000,00 (…), que será pago na data da assinatura do presente contrato (…), do qual a L dá pelo presente pela quitação à Compradora.” b) A H “vende, transmite e entrega à Compradora, e esta compra à H (…) a totalidade da sua participação, representativa de 20,51% do capital social da N, (…), pelo preço de €2.500.000,00 (…)”, pago nas mesmas condições que as referidas para a L. c) A G e a Compradora “prometem reciprocamente a compra e venda da totalidade das acções detidas pela primeira na N, na percentagem de 9,02% do capital social, à Compradora ou a quem esta designar, pelo preço proporcional e nas mesmas condições de compra” das acordadas para as acções anteriormente referidas. 7. Em 29/12/2006, a G e a GL, S.A. assinaram um escrito particular nos termos do qual a primeira declarou vender à segunda, e a segunda declarou comprar, pelo preço de €859.370,24, as acções que a primeira detinha na N correspondentes à totalidade da sua participação nesta sociedade, na percentagem de 9,0256% do capital social. 8. A Requerente fez incluir na petição a formação de um acordo com a Requerida, do qual terá resultado que o produto da venda das acções da G, detida pela Requerida, seria dividido entre ambas, em partes iguais. 9. A Requerente juntou um documento – impugnado – , datado de 29/07/2004, dito como assinado e enviado pela G, do qual consta que: “No quadro das negociações que ocorreram entre a H, a L e a P, tendentes à aquisição por esta última Entidade de posição de accionista na N e no respeito pelo espírito que presidiu à fixação do preço de venda final e sua repartição pelas entidades vendedoras vimos, por este meio, declarar que tomando por base o valor de alienação das posições da H e L ora concretizadas, resulta para a posição remanescente de 9,03% detida pela G o valor potencial de euros 860.000. Se e quando, nos termos do Contrato nesta data firmado entre as partes, tal posição for alienada, caberá à H 50% de tal valor, que esta empresa se compromete a liquidar” 10. A Requerente fez incluir na petição inicial, como devido e não pago pela Requerida, o montante de €430.000,00 correspondente aos 50% do valor da alienação efectuada pela G, SGPS, S.A. da participação que detinha no capital social da N. 11. Consta de uma carta datada de 20/09/2009, que a Requerida declarou à Requerente que “a L não reconhece a existência de qualquer montante em dívida à H”. 12. Consta de uma carta datada de 04/12/2009, que a Requerida declarou à Requerente que “é falso que a L tenha reconhecido ou não tenha negado a existência do crédito reclamado por V. Exas. antes da carta/fax de 20/11/2009. Pelo contrário, a L negou sempre a existência do referido crédito (…). É também falso que a L tenha feito quaisquer propostas tendo em vista o pagamento do referido crédito, que não reconhece”. 13. Com valores reportados a 30/06/2008, a Requerida registou o activo de 74.157.707,00 €, o passivo de 76.634.034,00 € e o capital próprio de 2.476.327,00 € negativos. 14. No exercício de 2008, a Requerida registou o activo de 74.915.501,00 €, o passivo de 75.842.757,00 € e o capital próprio de 927.256,00 negativos €, 15. Com valores reportados a 30/06/2009, a Requerida registou o activo de 76.380.429,00 €, o passivo de 82.589.163,00 € e o capital próprio de 6.208.734,00 € negativos. 16. Com valores reportados a 30/09/2009, a Requerida registou o activo de 73.712.713,00 €, o passivo de 81.624.078,00 € e o capital próprio de 7.911.365,00 € negativos. 17. Em Janeiro de 2010 tinha 367 trabalhadores ao seu serviço. 18. No âmbito de Procedimento Extrajudicial de Conciliação, firmou com o IAPMEI um contrato de consolidação financeira, datado de 31/07/2005, no qual foram acordadas condições de regularização das dívidas perante o IAPMEI, Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, Direcção-Geral dos Impostos e credores privados. 19. Em 03/05/2010 tinha a sua situação regularizada perante o IAPMEI. 20. Em 08/01/2010 tinha a sua situação regularizada perante a Segurança Social. 21. Consta de uma certidão emitida pela Direcção-Geral dos Impostos que em 21/01/2010 a Requerida tinha dívidas nas quantias de: • €343.134,46 (acrescido de juros e custas) - englobada no Plano Extrajudicial de Conciliação que “a Requerida está a cumprir normal e regularmente desde Agosto do ano de 2005” e garantida através de garantia bancária; • €38.585,20 (acrescido de juros e custas) – englobada no referido Plano e garantida através de garantia bancária; • €1.186.162,10 – “suspenso nos termos do nº 1 do art. 169º do C.P.P.T.”; • €259.245,23 – “suspenso nos termos do nº 1 do art. 169º do C.P.P.T.”, Tribunal do Comércio concluindo-se que a Requerida “tem a sua situação tributária regularizada”. 22. A Requerida admite ter pendente contra si uma acção executiva movida por uma ex-trabalhadora, no valor de €65.990,80. * Na decisão recorrida, o pedido de declaração de insolvência foi considerado improcedente, com fundamento, essencialmente, em que: - a obrigação em que a requerente funda o seu crédito não é certa nem sequer quanto à sua existência, pelo que haveria que previamente ver esclarecidos todos os contornos numa acção declarativa de condenação, não se tratando de matéria que cumpra conhecer num processo especial de insolvência; - ainda que assim não se entendesse, a pretensão da requerente acabaria por claudicar, por falta de demonstração dos factores índices alegados no art. 20º, als. h) e b), do CIRE. Passamos a analisar cada um dos referidos fundamentos que levaram o juiz a quo a pronunciar-se pela improcedência imediata do pedido, dispensando a realização de audiência de julgamento. a) Natureza do crédito do requerente. De harmonia com o disposto no art. 1º do CIRE, o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem por finalidade a liquidação de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista no plano de insolvência. A noção de insolvência é dada pelo nº1 do art. 3º do CIRE, “É considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas”. Segundo o art. 20º nº1 do CIRE, a declaração de insolvência de um devedor pode ser requerida por qualquer credor, ainda que condicional e qualquer que seja a natureza do seu crédito. Dependendo a legitimidade (substantiva) do autor para requerer a declaração de insolvência dos requeridos, da sua qualidade de credor – ainda que condicional e qualquer que seja a natureza do seu crédito –, duas questões têm sido largamente debatidas na nossa jurisprudência e doutrina e dado azo a diferentes respostas: - uma, se o crédito do requerente tem de ser certo, líquido e exigível; - outra, se tal crédito tem de se encontrar reconhecido judicialmente, ou pelo menos, não se tratar de crédito litigioso. Quanto à primeira das questões, é doutrina tendencialmente dominante que o crédito do requerente da insolvência não tem de estar vencido: Segundo Catarina Serra, encontrando-se em causa o exercício de um direito de acção judicial declarativa e não o exercício de um poder de execução, o credor pode requerer o início do processo de insolvência independentemente do incumprimento, da mora ou mesmo do vencimento do respectivo crédito[2]. “É assim necessário, para se poder requerer a declaração de insolvência apenas a existência do crédito, não se exigindo que o mesmo esteja vencido, e muito menos que o credor possua título executivo[3]”. Para Sousa de Macedo, “o credor a prazo ou condicional tem direito a requerer a falência, uma vez que prove que o devedor cessou pagamentos de dívidas certas e líquidas. Compreende-se que assim seja, pois, de outro modo, o credor estaria sujeito a não encontrar valores no património do devedor quando o prazo se vencesse ou a obrigação se cumprisse[4]”. “Se fosse legalmente exigido o incumprimento do crédito do credor requerente, não sendo suficiente o incumprimento de um crédito de qualquer credor, poderíamos cair no seguinte absurdo: temos, por um lado, um devedor que já se encontra numa situação de suspensão generalizada das suas obrigações vencidas e em que nenhum legitimado desencadeia o procedimento de insolvência, e, por outro lado, um credor cujo crédito ainda não se venceu mas que nada pode fazer perante o descalabro financeiro do seu devedor[5]”. Ou seja, o titular de um crédito não vencido tem o direito de requerer a insolvência do devedor, desde que o mesmo se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas. Contudo, maiores divergências se descortinam na jurisprudência quanto à legitimidade do credor cujo crédito se repute de litigioso para requerer a insolvência[6]. Segundo o art. 25º, ns. 1 e 2 do CIRE, quando o pedido não provenha do próprio devedor, o requerente da declaração de insolvência deve justificar na petição a origem, natureza e montante do seu crédito, devendo oferecer todos os meios de prova de que disponha. Como defende Luís Manuel Teles de Meneses Leitão, não se exigindo que o credor possua título executivo, terá de fazer prova do crédito, prova que poderá ser realizada por qualquer meio, designadamente por testemunhas, apresentação do contrato que o gerou ou documentação da conta corrente[7]. Ou seja, o facto de o crédito ser litigioso não lhe retira legitimidade processual para requerer a insolvência do pretenso devedor – disporá de legitimidade processual para requerer a insolvência qualquer terceiro/credor que arrogue ser titular de crédito sobre o requerido, ainda que este crédito seja litigioso. Mas, para que a insolvência venha a ser decretada, ele terá de demonstrar a sua qualidade de credor, como facto constitutivo do seu direito a requerer a insolvência do requerido. E tal demonstração poderá, em regra, ser efectuada no processo de insolvência, havendo que proceder-se a audiência de julgamento para determinação da existência de tal crédito e dos demais pressupostos de que a lei faz depender a declaração de insolvência do devedor. Contudo, no caso concreto, a ora requerente fundamenta o seu crédito na celebração de um “contrato de compra e venda de acções”, datado de 03.08.2004, pelo qual a requerente (H) e a requerida (L), declararam vender à GL, S.A., a totalidade das suas participações sociais na sociedade N, e que correspondiam, respectivamente, a 20,51% e a 32%, do capital social desta sociedade. Em tal contrato, por sua vez, a sociedade G SGPS, totalmente detida pela requerida, prometeu igualmente vender à GL a sua participação de 9,02 % na N. E, segundo a Requerente, a requerente e a requerida acordaram que “o preço global de 5.000.000,00 €”, da venda das participações sociais que detinham na sociedade N, “seria dividido entre ambas em duas partes iguais”, e ainda que “nos termos da negociação estabelecida entre as partes, ficou previsto que o produto desta prometida venda seria dividido entre a Requerente e a requerida em partes iguais”. Ora, a Requerida nega terminantemente o invocado acordo de repartição do preço das acções em partes iguais pela requerente e pela requerida, do qual faz derivar a existência do seu crédito. E, do teor do documento em causa não resulta minimamente o alegado acordo de divisão do preço a meias, entre a ora requerente e a ora requerida, e respeitante às acções por estas vendidas à GL, e, muito menos, qualquer acordo de divisão, entre a requerente e a requerida, do preço das acções da G prometidas vender à GL. Com efeito, o que consta do art. 2º de tal contrato, sob a epígrafe “Preço Contratual”, é o seguinte: 1. “O preço contratual a pagar pela compradora à L é de 2.500.000,00 €, e será pago na data da assinatura do presente contrato, através de cheque do qual a L dá pelo presente plena quitação à compradora”; 2. “O preço contratual a pagar pela compradora à H é igualmente de 2.500.000,00 € e será pago pela compradora nas mesmas condições e prazos previstos no número anterior. E, quanto à promessa de compra e venda respeitante à da participação social da G, consta do art. 3º do contrato: 1. “Pelo presente contrato, a G e a compradora prometem reciprocamente a compra e venda das acções detidas pela primeira na sociedade à compradora ou a quem esta designar, pelo preço e nas mesmas condições da compra das acções contratuais previstas no presente contrato globalmente consideradas”. Ou seja, de tal contrato não resulta: 1º - que existisse qualquer preço global de 5.000.000,00 € para a venda das participações sociais da Requerente e da Requerida; 2º- que o preço de venda das acções da ora requerente e o preço das acções da ora requerida fosse para dividir a meias entre a Requerente e a requerida (segundo o texto do contrato, a compradora terá pago directamente e a cada uma das vendedoras o preço devido pelas respectivas acções); 3º - e, muito menos, que o preço das acções prometidas vender da G fosse para dividir entre a Requerente e a requerida. Ou seja, tal acordo, a existir, terá sido verbal. De qualquer modo, note-se que a Requerente nem sequer dá uma explicação (plausível ou não) para que a requerida acordasse em dividir com a Requerente o preço de alienação das acções de uma outra sociedade, detida totalmente por si. Ora, se se admite que, em regra, no processo de insolvência se possa discutir a existência do crédito alegado pelo requerente, a prova a produzir no âmbito de tal processo não poderá deixar de ser uma prova sumária, sendo que, por força dos princípios de urgência e celeridade que lhe subjaz, o processo não atribui às partes as garantias de um processo declarativo comum. “Uma vez que a legitimidade deve ser provada pelo requerente, parece que bastará ao devedor tornar duvidosa a existência do crédito para que o tribunal tenha de indeferir o requerimento de insolvência, sem prejuízo da possibilidade de o credor continuar a poder instaurar processo judicial para cobrança desse crédito[8]”. Ou seja, tratando-se de crédito não reconhecido pela requerida e, não se encontrando o invocado crédito sustentado minimamente no contrato por si junto aos autos, entende-se que a demonstração do mesmo não se compagina com os termos simplificados do processo especial de insolvência, o qual, no sentido de garantir a celeridade processual, se encontra reduzido a dois articulados e a prazos de oposição extremamente curtos. Assim, e sem prejuízo de se entender que, em regra, nada obsta a que o credor litigioso discuta e possa demonstrar no processo de insolvência a existência do seu crédito, no caso concreto, entende-se que tal demonstração terá de ser efectuada pela Requerente mediante acção declarativa autónoma instaurada especialmente para o efeito. De qualquer modo, para o caso de se entender que os presentes autos deveriam prosseguir para demonstração do crédito invocado pelo requerente, passamos a analisar se o mesmo se passa com os demais pressupostos da declaração de insolvência. b) Verificação de algum dos factores índices da situação de insolvência. Segundo o art. 20º nº1 do CIRE, “A declaração de insolvência de um devedor pode ser requerida por quem for legalmente responsável pelas suas dívidas, por qualquer credor, ainda que condicional e qualquer que seja a natureza do seu crédito, ou ainda pelo Ministério Público, em representação das entidades cujos interesses lhe estão legalmente confiados, verificando-se alguns dos referidos factos: a) Suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas; b) Falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações; c) fuga do titular da empresa ou dos administradores do devedor com abandono do local em que a empresa tem sede ou exerce a sua principal actividade, relacionados com a falta de solvabilidade do devedor e sem designação de substituo idóneo; d) dissipação, abandono, liquidação apressada ou ruinosa de bens e constituição fictícia de créditos; e) Insuficiência de bens penhoráveis para pagamento do crédito do exequente verificada em processo executivo movido contra o devedor; f) Incumprimento de obrigações previstas em plano no insolvência ou em plano de pagamentos, nas condições previstas na al. a) do nº1 e no nº2 do art. 218º; g) Incumprimento generalizado, nos últimos seis meses, de dívidas de algum dos seguintes tipos: i) tributárias; ii) de contribuições e quotizações para a segurança social; iii) créditos emergentes de contrato de trabalho, ou da violação ou cessação deste contrato; iv) rendas de qualquer tipo de locação, incluindo a financeira, prestações do preço da compra ou de empréstimo garantido pela respectiva hipoteca, relativamente a local em que o credor realize a sua actividade ou tenha a sua sede ou residência; h) Sendo o devedor uma das entidades referidas no nº2 do artigo 3º, manifesta superioridade do passivo sobre o activo segundo o último balanço aprovado, ou atraso superior a nove meses na aprovação e depósito das contas, se a tanto estiver obrigado. O art. 20º, enumera, no seu nº1, factores/índices ou factores reveladores da situação de insolvência do devedor. “É através deles que, normalmente, a situação de insolvência se manifesta ou se exterioriza. Por isso, a verificação de qualquer um deles permite presumir a situação de insolvência do devedor e é condição necessária para a iniciativa processual de certos sujeitos, nomeadamente dos responsáveis legais pelas dívidas do devedor, dos credores e do Ministério Público7”. Contudo, o devedor pode elidir tal presunção, provando que, não obstante a ocorrência de um ou mais factos enunciados no nº1 do art. 20º, a situação de insolvência não se verifica, conforme resulta do nº3 do art. 3º. Ou seja, “o devedor pode afastar a declaração de insolvência não só através da demonstração de que não se verifica o factor indiciário alegado pelo requerente, mas também mediante a invocação de que, apesar da verificação do mesmo, ele não se encontra efectivamente em situação de insolvência, obviando-se a quaisquer dúvidas que pudessem colocar-se (e se colocaram, na vigência do CREREF) quanto ao carácter ilidível das presunções consubstanciadas nos indícios8”. “Mais se esclarece que, invocando o devedor a sua solvência, é a ele que caberá a respectiva prova, a qual deve basear-se, caso o devedor esteja legalmente obrigado a manter contabilidade organizada, nos elementos dessa escrituração, devidamente arrumados, sem prejuízo da aplicação dos critérios específicos de avaliação do activo e passivo mencionados9”. Contudo, e antes de mais, o requerente tem de alegar e demonstrar a verificação de algum(uns) dos factores índices previstos no nº1 do art. 20º, a fim de que se possa presumir a situação de insolvência do devedor. Da leitura do requerimento inicial ressalta que o Autor fundamenta o seu pedido de insolvência no incumprimento do seu crédito de valor muito elevado, e no facto de a requerida já à data de 30 de Junho de 2008, apresentar um passivo de 76.634.034,00 €, enquanto que o seu activo não ultrapassa o montante de 74.157.707,00 €. Tais factos alegados pelo requerente levar-nos-ão a questionar se os mesmos integrarão os seguintes factores índices enumerados no nº1 do art. 20º do CIRE: b) Falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações; h) Manifesta superioridade do passivo sobre o activo segundo o último balanço aprovado, ou atraso superior a nove meses na aprovação e depósito das contas, se a tanto estiver obrigado. Haverá que analisar se os factos alegados integram algum dos alegados factores índices da situação de insolvência, nomeadamente, se a alegada falta de cumprimento revela uma impossibilidade de a requerida satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações. É que, se em ponto algum do regime se exige que para pedir a declaração de insolvência, o credor seja titular de um crédito lesado ou sequer vencido10 (pode tratar-se até de um crédito condicional), é necessário que pelo menos algumas delas se encontrem vencidas, uma vez que, para a declaração de insolvência a lei exige a suspensão generalizada das suas obrigações vencidas ou um incumprimento que pelas sua características revele a impossibilidade de cumprimento. Quanto ao pretenso crédito da requerente, embora de valor substancialmente elevado, o seu não pagamento por parte da requerida não pode ser visto como uma impossibilidade de cumprimento de obrigações: a requerida não procede ao respectivo pagamento porque não reconhece a existência de tal crédito. Com efeito, como refere a requerida e se encontra comprovado pelas cartas datadas de 16.09.2009, 20.11.2009, e 04.12.2009 (doc. ns. 7, 8 e 9, juntos com a oposição – fls. 452 a 453), a requerida sempre negou a existência do invocado crédito. A improcedência do pedido não advirá, assim, directamente do facto do crédito do requerente ser tido por litigioso, mas do facto de, tratando-se de crédito litigioso, do seu incumprimento não poder retirar-se ou deduzir-se qualquer incapacidade em cumprir as suas obrigações – o devedor não cumpre, porque em seu entender, não deve. E, para além do seu alegado crédito, a requerente limita-se a alegar a existência de um outro crédito no valor de 65.990,80 €, respeitante a uma execução que se encontra pendente no tribunal de trabalho. Ora, o referido incumprimento, desacompanhado das circunstâncias em que o mesmo ocorreu, e tendo em conta o seu valor relativo face à dimensão da requerida, não pode, por si só constituir o índice de insolvência previsto na al. b) do nº1 do art. 20º, não podendo dele retirar-se que o mesmo resulte de uma situação de penúria ou incapacidade patrimonial generalizada. Quanto ao segundo dos índices invocados pela requerente: manifesta superioridade do passivo sobre o activo, segundo o último balanço aprovado. Segundo a requerente, à data de 30 de Junho de 2008, a requerida apresentava um passivo no valor de 76.634.034,00 € e um activo no valor de 74.157.707,00 €, e que os resultados líquidos do exercício apontavam para um prejuízo de 2.116.645,00 €, factos estes que foram considerados como provados. E, ainda que, no final do ano de 2008, e de acordo com o relatório de contas final, a requerida apresenta um passivo total de 75.842.757,00 €, e um activo no valor de 74.915.501, 00 €, factos estes também dados como provados. Ora, como se afirma na sentença recorrida, se o passivo é superior ao activo, tal diferença deixa de ser manifesta se atendermos aos valores em questão. Como se refere no Acórdão da Relação de Lisboa de 15-10-2009, “conjugando a al. h) do nº1 do art. 20º, com o nº2 do art. 3º, ambos do CIRE, constata-se que a relação entre o activo e o passivo não se basta com qualquer défice do activo. Exige-se uma desconformidade significativa, traduzida na superioridade manifesta, expressiva, do activo sobre o passivo[9]”. Também Luís A. Fernandes e João Labareda, quanto ao significado do adjectivo manifesta, se pronunciam no sentido de que a superioridade há-de ser significativa, como forma de indiciar a insusceptibilidade de cumprir[10]: “Verdadeiramente, o que está em causa é assumir que a insuficiência do activo em relação ao passivo só deve, ela própria, constituir um índice seguro de solvabilidade quando reveste uma expressão que, de acordo com a normalidade da vida, torna insustentável, a prazo, o pontual cumprimento das obrigações do devedor[11]”. Como tal, não se consideram demonstrados quaisquer dos factores índices por si alegados, e que nos permitiriam concluir pela impossibilidade de cumprimento das suas obrigações vencidas, pelo que, o pedido de insolvência teria, desde logo, e necessariamente de improceder. E, como afirma Catarina Serra, a verificação de, pelo menos, um dos factores índices que constam do nº20 e cuja enumeração é taxativa, continua a ser necessária para a acção dos credores, dos responsáveis legais pelas dívidas do devedor ou pelo Ministério Público[12]. “Constitui ónus da requerente da insolvência a alegação e prova dos factores índices ou presuntivos da insolvência”, sendo que só após a alegação de algum dos factores índice, passará a cumprir ao devedor o afastamento da presunção, mediante a prova da sua solvabilidade[13]”. E, uma vez que os factos alegados pelo autor sempre seriam insuficientes para preencher algum dos factores índice previstos no nº1 do art. 20º, pelo que a requerida encontrar-se-ia dispensada de provar a sua solvabilidade. Face às considerações expostas e, ainda que se entendesse que o processo deveria prosseguir para determinação da existência do crédito invocado pela requerente, a insuficiência de factos que pudessem preencher algum dos factores índice previstos no nº1 do art. 20 – importando necessariamente a improcedência do pedido de declaração de insolvência – tornaria tal prosseguimento inútil, não se descortinando qualquer necessidade ou utilidade de prosseguimento dos autos para audiência de julgamento. IV – DECISÃO Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida. Custas pela apelante. Lisboa, 2 de Novembro de 2010 Maria João Areias Luís Lameiras Roque Nogueira ----------------------------------------------------------------------------------------- [1] Norma esta que constava já do CPC de 1939, no § único do art. 483º. [2] “A Falência no Quadro da Tutela Jurisdicional dos Direitos de Crédito”, Coimbra, Editora, 2009, pag. 264. [3] Cfr., Luís Manuel Teles de Meneses Leitão, “Direito de Insolvência”, Almedina, pag. 128. [4] “Manual do Direito das Falências”, Vol. I, Almedina, pag. 384 a 390. [5] Cfr., Maria do Rosário Epifânio, “Manual de Direito da Insolvência”, Almedina, Outubro 2009, pag. 36, nota 71. [6] Cfr., em sentido afirmativo, entre outros: Acórdãos da Relação do Porto de 16.12.2009 de 26.01.2010, e Acórdão da Relação de Coimbra de 26.05.2009; e, em sentido negativo, exigindo que o crédito seja reconhecido judicialmente ou que seja aceite pelo devedor, Acórdão da Relação de Lisboa de 05.06.2008, Acórdão da Relação do Porto de 05.03.2009, e Acórdão da Relação de Coimbra de 03.012.2009 (todos disponíveis in http://www.dgsi.pt.) [7] Cfr., obra citada, pag. 128. [8] Cfr., Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, “Direito da Insolvência”, pag. 143 e 144. [9] Acórdão disponível in http://www.dgsi.pt/jtrl. [10] Cfr., “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, QUID JURIS, Lisboa 2008, pag.141, nota 20. [11] Cfr., Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, obra citada, pag. 74, nota 10 ao art. 3º. [12] Obra citada, pag. 261. [13] Cfr., Acórdão da Relação de Lisboa de 06.03.2008, disponível in http://www.dgsi.pt/jtrl. |