Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
266/21.2JELSB.L1-3
Relator: ADELINA BARRADAS DE OLIVEIRA
Descritores: TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
ESTABELECIMENTO PRISIONAL
CONSUMO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: Apreendido em Estabelecimento Prisional um pedaço de canábis (resina), com o peso líquido de 0,054g, não se tendo provado que se destinava à venda a terceiros, mas sim a consumo individual, tem o arguido de ser absolvido por não se mostrar preenchido o ilícito p. e p. pelo artigo 25.º, alínea a) do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, por referência à tabela I-C anexa da Lei 15/93 de 22.01 nem o art.º 40º do mesmo diploma legal.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acórdão proferido na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

Nos presentes autos veio o MP inconformado com a sentença que absolveu os arguidos AA e BB da prática de um crime de tráfico de menor gravidade, previsto e punido pelos artigos 21º e 25º, al. a) do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro.
Apresentou o recorrente as seguintes
CONCLUSÕES:

I. O presente recurso funda-se em divergências que se prendem com a absolvição dos arguidos AA e BB, da prática, cada um, de um crime de tráfico de menor gravidade, previsto e punido pelo artigo 25º, al. a) do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, com referência ao art.º 21º do mesmo diploma.
II. Entendeu o Tribunal a quo estar perante uma situação de consumo partilhado, não punível enquanto tráfico.
III. Não só entendemos que existe o vício previsto no art.º 410º, nº2, al. a) do código de processo penal no que respeita ao ponto 3 dos factos provados na douta sentença, insuficientemente concretizado quando confrontado com a motivação da matéria de facto.
IV. Como não concordamos com tal visão jurídica dos factos provados porquanto no caso concreto e atentando nos factos provados não restam dúvidas que o descrito comportamento de ambos os arguidos, para além de não poder ser visto como revestido de ilicitude diminuída - pois que se tratam de reclusos a passar estupefaciente num estabelecimento prisional, sendo certo que o arguido BB cumpre pena de prisão precisamente pelo crime de tráfico de estupefacientes, - promoveu e permitiu a difusão do consumo ilegal de estupefacientes, no estabelecimento prisional, o que lhe confere uma componente coletiva socialmente relevante, resultando assim num risco relevante, para o bem jurídico protegido ‘saúde pública’, mas também e não menos importante para a coesão, segurança e tranquilidade do estabelecimento prisional.
Nestes termos e nos demais de direito aplicável, que Vossas Excelências doutamente suprirão, devem os arguidos AA e BB ser condenados pela prática do crime de tráfico de menor gravidade, previsto e punido pelo artigo 25º, al. a) do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, por referência ao art.º 21º do mesmo diploma.
Contudo, V. Exas decidindo farão, uma vez mais, a já costumada JUSTIÇA.
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Neste Tribunal pronunciou-se o Exmo. Procurador Geral Adjunto pugnando pela procedência do recurso interposto.
(...)
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Da decisão recorrida resulta:
Com relevo para a decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos:
1) No dia ...-...-2021 os arguidos encontravam-se presos no Estabelecimento Prisional anexo à sede da PJ, em Lisboa;
2) Nessa data, pelas 15h45m, o arguido AA encontrava-se no pátio do EP;
3) Nessas circunstâncias, o arguido AA passou pela janela um pedaço de canábis (resina), com o peso líquido de 0,054g, ao arguido BB que se encontrava dentro da cela de ambos e que aceitou referido o produto;
4) A quantidade de estupefacientes referida seria sempre suficiente para uma dose diária ou menos, ainda que o grau de pureza (THC) fosse de 100%;
5) Os arguidos AA e BB destinavam o referido produto estupefaciente ao consumo de ambos;
6) Os arguidos AA e BB agiram em conjugação de vontades e esforços e no desenvolvimento de um plano previamente urdido, com o propósito concretizado de receber e ter consigo o mencionado estupefaciente, cujas características, natureza e quantidade conheciam;
7) Os arguidos AA e BB atuaram de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
Quanto aos antecedentes criminais dos arguidos, provou-se que:
8) O arguido CC foi condenado:
a. No proc. n.º 798/11.0..., por sentença transitada em julgado a 22-09-2011, pela prática, a 13-08-2011, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º do DL. n.º 2/98, de 3 de janeiro, na pena de 50 dias de multa à taxa diária de 5,00€, o que perfaz o total de 250,00€, substituída por 50 horas de trabalho, extinta a 22-09-2015;
b. No proc. n.º 44/14.5..., por sentença transitada em julgado a 15-01-2019, pela prática, a 14-02-2014, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º do DL. n.º 2/98, de 3 de janeiro, na pena de 1 ano e 2 meses de prisão suspensa por igual período com regime de prova, extinta a 15-03-2020;
c. No proc. n.º 65/18.9..., por sentença transitada em julgado a 10-09-2020, pela prática, a 16-04-2018, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º do DL. n.º 2/98, de 3 de janeiro, na pena de 8 meses de prisão, extinta a 25-01-2022;
d. No proc. n.º 250/13.0..., por sentença transitada em julgado a 15-01-2019, pela prática, a 11-09-2013, de um crime de tráfico de quantidades diminutas e de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25.º, al. a), com referência ao artigo 21.º, n.º 1, ambos do DL n.º 15/93, de 22 de janeiro, na pena de 18 meses de prisão suspensa, extinta a 15-07-2020;
e. No proc. n.º 1680/11.7..., por sentença transitada em julgado a 07-03-2018, pela prática, a 07-07-2011, de dois crimes de tráfico de quantidades diminutas e de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25.º, al. a), com referência ao artigo 21.º, n.º 1, ambos do DL n.º 15/93, de 22 de janeiro, na pena de 10 meses de prisão suspensa por 1 ano com regime de prova, prorrogada por 2 anos, extinta a 30-06-2022;
f. No proc. n.º 1239/14.7..., por sentença transitada em julgado a 15-01-2019, pela prática a 08-08-2014, de um crime de furto simples, p. e p. pelo artigo 203.º do Código Penal, na pena de 1 ano de prisão suspensa pelo mesmo período, extinta a 15-01-2020;
g. No proc. n.º 434/12.8..., por sentença transitada em julgado a 02-05-2015, pela prática a 16-11-2012, de um crime de resistência e coação sobre funcionário, p. e p. pelo artigo 347.º, n.º 1 e 2 do Código Penal e um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º do DL. n.º 2/98, de 3 de janeiro, na pena de 1 ano e 4 meses suspensa pelo mesmo período sujeita a regime de prova, extinta a 02-09-2019;
h. No proc. n.º 350/11.0..., por sentença transitada em julgado a 26-09-2021, pela prática, a 05-09-2021, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º do DL. n.º 2/98, de 3 de janeiro, na pena de 150 dias de multa, à taxa diária de 5,00€, o que perfaz o total de 750,00€, substituída por 150 horas de trabalho, extinta a 26-09-2015;
i. No proc. n.º 356/12.2..., por sentença transitada em julgado a 02-07-2012, pela prática, a 12-06-2012, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º do DL. n.º 2/98, de 3 de janeiro, na pena de 6 meses de prisão suspensa por um ano, prorrogada por mais um ano, extinta a 06-05-2016;
j. No proc. n.º 361/12.9..., por sentença transitada em julgado a 19-11-2022, pela prática, a 22-09-2012, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º do DL. n.º 2/98, de 3 de janeiro, na pena de 200 dias de multa à taxa diária de 5,00€, o que perfaz o total de 1.000,00€, extinta a 20-11-2016;
k. No proc. n.º 201/13.1..., por sentença transitada em julgado a 29-01-2019, pela prática, a 11-07-2013, de um crime de tráfico de quantidades diminutas e de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25.º, al. a), com referência ao artigo 21.º, n.º 1, ambos do DL n.º 15/93, de 22 de janeiro, na pena de 18 meses de prisão suspensa por igual período, com regime de prova, extinta a 20-07-2020;
l. No proc. n.º 384/11.5..., por sentença transitada em julgado a 17-06-2013, pela prática, a 04-10-2011, de um crime de atos preparatórios p. e p. pelo artigo 26.º e 275.º, por referência ao artigo 272.º, n.º 1, al. b), todos do Código Penal, na pena de 30 dias de multa, à taxa diária de 5,00€, o que perfaz o total de 150,00€;
m. No proc. n.º 51/18.9..., por sentença transitada em julgado a 21-05-2018, pela prática, a 28-03-2018, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º do DL. n.º 2/98, de 3 de janeiro, na pena de 7 meses de prisão, suspensa por 1 ano, com regime de prova, extinta a 22-11-2021;
n. No proc. n.º 44/18.6..., por sentença transitada em julgado a 29-03-2019, pela prática, a 05-02-2018, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º do DL. n.º 2/98, de 3 de janeiro, na pena de 10 meses de prisão suspensa por 1 ano, sujeita a regime de prova, extinta a 29-03-2020;
o. No proc. n.º 61/18.6..., por sentença transitada em julgado a 20-02-2020, pela prática, a 01-05-2018, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º do DL. n.º 2/98, de 3 de janeiro, na pena de 20 meses de prisão suspensa por igual período, sujeita a regime de prova.
9) O arguido AA foi condenado:
a. No proc. n.º 326/16.1..., por sentença transitada em julgado a 15-11-2017, pela prática a 16-10-2016, de um crime de consumo de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 40.º, n.º 2, do DL n.º 15/93, de 22 de janeiro, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de 6,00€, o que perfaz o total de 360,00€, extinta a 29-04-2019;
b. No proc. n.º 285/17.3..., por sentença transitada em julgado a 18-06-2018, pela prática, a 02-03-2017, de um crime de tráfico de quantidades diminutas e de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25.º, al. a), com referência ao artigo 21.º, n.º 1, ambos do DL n.º 15/93, de 22 de janeiro, na pena de 15 meses de prisão, suspensa por igual período, sujeita a regime de prova, revogada para pena de prisão efetiva, extinta a 10-11-2020;
c. No proc. n.º 262/18.7..., por sentença transitada em julgado a 20-11-2020, pela prática, a 11-03-2018, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, al. b) e c) e n.º 2 do Código Penal, na pena de 2 anos e 8 meses de prisão suspensa por igual período, subordinada a regime de prova e pena acessória de proibição de contacto com a vítima pelo mesmo período, revogada para pena de prisão efetiva;
d. No proc. n.º 344/21.8..., por sentença transitada em julgado a 21-03-2022, pela prática, a 05-04-2021 e 16-04-2021, de dois crimes de roubo
qualificado, p. e p. pelo artigo 210.º, n.º 2 do Código Penal, na pena de 10 anos de prisão efetiva;
e. No proc. n.º 250/21.6..., por sentença transitada em julgado a 28-10-2022, pela prática, a 28-03-2021, de um crime de roubo qualificado, p. e p. pelo artigo 210.º, n.º 2 do Código Penal, na pena de 6 anos de prisão efetiva;
f. No proc. n.º 250/21.6..., por sentença transitada em julgado a 03-04-2023, pela prática, a 28-03-2021, de um crime de roubo qualificado, p. e p. pelo artigo 210.º, n.º 2 do Código Penal, na pena de 12 anos de prisão efetiva;
10)O arguido BB foi condenado:
a. No proc. n.º 563/05.4..., por sentença transitada em julgado a 15-11-2021, pela prática, a 03-03-2002, de um crime de maus tratos, p. e p. pelo artigo 152.º-A, n.º 1, alínea a) do Código Penal, na pena de 1 ano e 6 meses suspensa pelo mesmo período, extinta a 31-05-2023;
b. No proc. n.º 99/18.3..., por sentença transitada em julgado a 01-06-2018, pela prática, a 16-09-2017, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21.º do DL n.º 15/93, de 22 de janeiro, na pena de 9 anos e 6 meses de prisão efetiva.
Do relatório social do arguido CC, resulta que:
11)“CC regista um percurso de vida marcado pelo abandono sócio familiar desde tenra idade, tendo o seu processo de crescimento e de desenvolvimento decorrido entre a família de origem, a da avó e colégios de proteção a crianças e jovens vítimas de maus tratos, com integração e convivência com pares marginais desde idade precoce, associados a tráfico e consumo de estupefacientes, de baixo nível de escolaridade, sem experiência profissional, mas mantendo-se laboralmente ativo”;
12)“Cedo demonstrou desmotivação e desadaptação ao sistema de acolhimento/ internamento”, “tendo-se repercutido nos escassos progressos a nível escolar, tendo apenas terminado o 6.º ano de escolaridade e frequentado um curso de nível II, com
equivalência ao 9.º ano de escolaridade, na área de eletricista de instalações, sem o ter terminado”;
13)“Durante a permanência em colégios e respetivas fugas, foi conhecendo outros pares de cariz desviante em bairros problemáticos”
14)Iniciou o consumo de estupefacientes em idade muito precoce;
15) Atualmente arranjou emprego na Carglass, loja de vidros automóveis, onde aufere cerca de 1.100,00€ mensais, mantendo-se profissionalmente ativo, bem como inserido familiarmente e numa relação amorosa que considera estável;
16) “Diz-se saudável e portador de comportamentos aditivos de consumo de estupefacientes, consumo que faz diariamente várias vezes ao dia”.
Do relatório social do arguido AA, resulta que:
17) “O processo de socialização do arguido foi caracterizado por uma vivência em ambiente familiar de violência doméstica, onde o pai apresentava comportamentos agressivos para com a mãe, tendo este também sido vítima de maus tratos físicos”;
18) Completou o 7.º ano de escolaridade, tendo, posteriormente, abandonado os estudos;
19) “Na atualidade, em meio prisional, revela, de uma forma geral, alguma desadaptação”,
imaturidade, “permeabilidade a pares com características pró-criminais e fragilidades aditivas”;
20) Tem um filho menor;
21) Foi visitado na prisão apenas uma vez pela mãe e por um tio;
22) Atualmente frequenta o EFA B3 – Escolar com assiduidade e interesse;
Do relatório social do arguido BB, resulta que:
23) “BB foi adotado com um ano de idade, na sequência, segundo refere, de abandono por parte da mãe biológica”;
24) Na família de acolhimento, BB descreve ter vivenciado um ambiente instável, marcado por maus-tratos protagonizados pelos pais adotivos”, tendo saído voluntariamente de casa após atingir a maioridade;
25) Tem um filho maior, residente nos Países Baixos, com o qual contacta regularmente;
26) O pai adotivo já faleceu e desconhece o paradeiro da mãe adotiva;
27) Tem apoio da irmã (filha biológica do casal adotante), residente no Reino Unido;
28) “Tem histórico de consumo de substâncias estupefacientes, nomeadamente haxixe”;
29) Tem o 8.º ano de escolaridade, registando uma “trajetória laboral irregular, desenvolvida em torno de desempenhos indiferenciados, nomeadamente na apanha de fruta sazonal, bem como na angariação clientes para empresas de telecomunicações”;
Da audiência de discussão e julgamento resultou provado que:
30) O arguido CC trabalha como técnico da Carglass, auferindo cerca de 760,00€ líquidos mensais;
31) Vive em casa arrendada, despendendo 650,00€ de renda, quantia que partilha com a sua namorada com quem vive e de quem está à espera de um bebé;
32) O arguido AA encontra-se preso no Estabelecimento Prisional Vale dos Judeus, trabalhando na limpeza e gestão de rede da prisão, auferindo quantias variadas que se situam entre os 30 e os 90€ mensais;
33) Tem um filho com sete anos de idade;
34) O arguido BB confessou integralmente e sem reservas os factos constantes da acusação, tendo verbalizado arrependimento;
35)Está atualmente desempregado, uma vez que até há pouco tempo cumpria pena de prisão efetiva, encontrando-se em entrevistas para o centro de emprego;
36) Não aufere qualquer rendimento por enquanto;
37) Vive em Setúbal em casa de familiares;
2. Factos não provados
a) O arguido CC arremessou pela janela da sua cela um pedaço de canábis (resina), com o peso líquido de 0,054g, na direção do arguido AA, com o fito de lho entregar;
b) Os arguidos receberam o mencionado produto de estupefacientes com o fito de o entregar a terceiros.
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3. Motivação da matéria de facto
A convicção do Tribunal assentou na análise crítica da prova produzida em audiência de julgamento, assim como do teor dos documentos constantes dos autos, análise esta feita segundo o princípio da livre apreciação, nos precisos termos do artigo 127.º do Código de Processo Penal, isto é, segundo as regras da experiência e livre convicção do julgador.
Em sede de audiência de discussão e julgamento, os arguidos decidiram prestar declarações, tendo o arguido CC negado a prática de qualquer envolvimento nos factos pelos quais vem acusado, afirmando que se encontrava a dormir na sua cela, que partilha com mais quatro pessoas, quando os guardas o acordaram, revistaram a cela e não encontraram nada.
Já o arguido AA, começou por afirmar que não se lembra destes factos pelos quais vem acusado, admitindo, porém, recordar-se de uma rusga que fizeram na sua cela, que partilhava com o arguido BB, onde encontraram um pedaço de haxixe, que era para o seu consumo próprio.
Por último, o arguido BB, confessou integralmente e sem reservas os factos pelos quais vem acusado, tendo afirmado que o arguido AA estava cá fora, quando lhe passou pela janela da cela de ambos haxixe que se destinava ao consumo de ambos.
Tanto o arguido AA como o arguido BB afirmaram desconhecer o envolvimento do arguido CC nos factos, tendo o primeiro afirmado que não se lembra onde adquiriu o produto estupefaciente.
Ora, o Tribunal valorou quase na totalidade as declarações referidas, prestadas separadamente, isto é, na ausência dos coarguidos, uma vez que se demonstraram espontâneas e credíveis quando conjugadas com o resto da prova produzida,
Assim, o Tribunal deu como provados os factos n.ºs 1 a 5 com base nestas declarações, quando conjugadas com o depoimento do guarda prisional DD, que descreveu de forma clara e objetiva que foi alertado pelo colega que estava na torre de serviço, que observa os reclusos quando estão no pátio, de que foi projetado da janela da cela n.º 29 um objeto que se vem a constatar que era um recipiente que os reclusos usam como cinzeiro. Mais relatou este guarda que esse objeto foi recebido pelo arguido AA que se encontrava no pátio e o entregou através da janela da cela n.º 7, onde estava o arguido BB. Por último, afirmou esta testemunha que interpelaram o arguido BB e este confessou no imediato que tinha produto estupefaciente consigo, entregando o objeto.
Além do depoimento desta testemunha, o Tribunal considerou ainda o depoimento de EE, também guarda prisional em serviço na altura dos factos, que afirmou, de forma coincidente com o primeiro, de que foi alertado por um colega que estava na torre de que um produto tinha sido passado pelo arguido AA para a sua cela partilhada com BB, tendo posteriormente apreendido tal produto e mandado para análise.
Por último, a testemunha FF, guarda prisional que se encontrava na torre de vigia, não pôde contribuir para a formação da convicção do Tribunal, uma vez que informou não se recordar da situação dos autos.
No que respeita ao tipo de produto e quantidade (factos provados n.ºs 3 e 4), o Tribunal baseou-se no exame do LPC, de fls. 33, que, concretamente quanto ao facto provado n.º 4 diz “ainda que o teor em THC fosse de 100% teríamos apenas uma dose”.
Quanto ao destino do produto estupefaciente (facto provado n.º 5), foi considerado o depoimento dos arguidos AA e BB, tendo o primeiro afirmado que era para o seu consumo individual e o segundo acrescentado que era para o consumo de ambos.
No que respeita aos factos provados n.ºs 6 e 7, deram-se os mesmos como provados tendo em conta a factualidade objetiva provada, as regras da experiência comum e as próprias declarações dos arguidos em sede de audiência de discussão e julgamento.
Ora, é manifesto para o cidadão médio, como se presumem os arguidos, que a conduta por ambos perpetrada é proibida e punida por lei, facto ainda mais notório tendo em conta que ambos já foram condenados por crimes da mesma natureza e revelaram consciência da gravidade dos factos em audiência de discussão e julgamento, especialmente no que toca ao arguido BB que verbalizou arrependimento quanto aos mesmos.
Quanto aos antecedentes criminais dos arguidos (factos provados n.ºs 8, 9 e 10), estes foram dados como provados com base nos certificados de registo criminal juntos aos autos.
Já as suas condições sociais, económicas e familiares (factos provados n.ºs 11 a 37) deram-se como provadas com base nos relatórios sociais juntos aos autos conjugados com as suas declarações prestadas em sede de audiência de discussão e julgamento.
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Por último, no que respeita aos factos não provados, o Tribunal não ficou convencido de que o arguido CC tenha arremessado pela janela da sua cela o produto estupefaciente em causa (facto não provado a)) com base nas suas próprias declarações, que foram no sentido de negar qualquer envolvimento nos factos, conjugadas com as declarações dos outros dois coarguidos que também negaram o seu envolvimento, e, ainda, com as declarações de ambas as testemunhas referidas.
Com efeito, pese embora estas testemunhas tenham afirmado que o produto estupefaciente veio da cela n.º 29, a verdade é que essa cela era partilhada por quatro reclusos, não tendo nenhum dos guardas prisionais visto, concretamente, o arguido CC a arremessar o referido produto. Ademais, a testemunha FF que se encontrava na torre de vigia e foi quem alertou para a remessa do produto da cela n.º 29 para o pátio, afirmou não se recordar de todo da situação.
Por último, o facto não provado b) foi assim considerado com base nas declarações dos próprios arguidos conjugadas com as regras da experiência comum, que tal quantidade de produto estupefaciente não é suficiente para ser partilhada com terceiros além dos próprios arguidos.
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III. Do Direito
1. Enquadramento jurídico-penal dos factos
Sendo este o quadro factual que resultou provado, importa agora subsumi-lo às respetivas normas do Direito Penal, procurando determinar se os arguidos deverão ser responsabilizados criminalmente.
Aos arguidos é imputada a prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelos artigos 21.º, n.º 1 e 25.º, alínea a) do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, com referência à tabela I-C anexa ao mesmo diploma.
Estatui o artigo 21.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, que “quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40.º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos.”.
Já na Tabela I-C encontra-se referida a substância “resina de canábis”.
Por outro lado, estatui o artigo 25.º, alínea a) do mesmo Decreto-Lei que “se, nos casos dos artigos 21.º e 22.º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da ação, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de: a) prisão de um a cinco anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI”.
Assim, o crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade constitui um tipo legal privilegiado relativamente ao tipo fundamental do artigo 21.º que resulta da constatação de uma diminuição considerável da ilicitude, a partir de uma avaliação casuística da situação de facto.
O crime de tráfico de estupefacientes, quer do artigo 21.º, quer do artigo 25.º, é um crime de perigo abstrato, protetor de diversos bens jurídicos pessoais, tais como a vida, a integridade física, a liberdade de determinação dos consumidores de estupefacientes, e, em geral, a saúde pública, entendida como saúde da coletividade, cumprindo-se a finalidade da norma através da proibição de comportamentos que facilitem ou promovam a difusão de estupefacientes na comunidade, dado o risco que o seu consumo comporta para a saúde pública.
Nos crimes de perigo abstrato, como é o caso, o perigo não é elemento do tipo, mas apenas motivo da proibição. Isto significa que a perigosidade para o bem jurídico não tem de ser comprovada no caso concreto, sendo a conduta do agente punida independentemente de resultar provado um perigo efetivo para este bem jurídico.
O tipo objetivo do crime de tráfico de estupefacientes preenche-se com qualquer um dos comportamentos ou das condutas enunciadas no artigo 21.º, podendo o crime consumar-se com a prática pelo agente de atos de cultivo, produção, fabrico, extração, preparação, oferta, venda, distribuição, compra, cedência, receção, transporte, importação ou exportação ou simples detenção ilícita de produtos estupefacientes proibidos constantes nas tabelas anexas ao DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro, sem que para tal se encontre autorizado e fora dos casos do artigo 40.º, isto é, fora dos casos em que a finalidade é o consumo próprio.
Ora, esta delimitação do crime de tráfico de estupefacientes tem vindo a ser caracterizada por alguma doutrina e jurisprudência como “desmesuradamente ampliada”, confirmando-se, com ela, “a tendência a uma intervenção omnicompreensiva do que se decidiu chamar ‘ciclo da droga’, o que é dizer, à penalização de todo o comportamento que suponha uma contribuição, por mínima que seja, ao seu consumo” – cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 14-07-2020 (William Themudo Gilman), proc. n.º 61/18.6..., disponível em www.dgsi.pt.
Com efeito, o teor literal desta norma abarca uma quantidade significativa de comportamentos que, face à realidade atual e à consciência comunitária, são penalmente irrelevantes, dada a sua escassa ou nula danosidade social.
É exemplo disto, por exemplo, o caso de três amigos que se encontram reunidos em casa e um deles acende um cigarro de canábis e passa para o outro, que fuma e, posteriormente, passa para o seguinte, encontrando-se todos a partilhar o mesmo cigarro. Ora, esta situação encontra-se abrangida na referida norma, enquanto oferta, cedência ou receção de produto estupefaciente que não tem como finalidade a de consumo exclusivo do próprio.
No entanto, crê este Tribunal que esta situação nunca será percecionada pela comunidade em geral como o cometimento de um crime de tráfico de estupefacientes.
Ademais, conforme referido, encontramo-nos perante um crime de perigo abstrato, sendo a saúde pública o bem jurídico a proteger pela incriminação. Desta forma, exige-se que o comportamento em causa seja em abstrato suscetível de criar um perigo para a saúde pública, isto é, promova a difusão do consumo ilegal de estupefacientes na nossa sociedade, ainda que tal não tenha efetivamente acontecido.
Por este motivo, tem surgido na doutrina e na jurisprudência a figura do “consumo partilhado atípico”, ou seja, de um “comportamento ou grupo de comportamentos que embora integrando numa interpretação puramente literal da descrição do artigo 21º, acabam, mercê de uma interpretação teleológica com fundamento na ausência de risco relevante para o bem jurídico protegido - a saúde pública -, por ser excluídos do tipo de ilícito de tráfico de estupefacientes” – cfr. a título de exemplo, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 14-07-2020 supra citado, assim como, acórdãos do Tribunal da Relação de Évora de 18-06-2019 e 03-07-2012, proc. n.º 2613/15.7... e 224/09.5... (GG) e, ainda, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 06-07-2011, proc. n.º 2171/09.1... (HH), todos disponíveis em www.dgsi.pt.
Assim, foram-se criando várias situações atípicas em que, dada a ausência de perigo relevante para o bem jurídico protegido, uma vez que o estupefaciente não é destinado à sua difusão, mas apenas à partilha num grupo restrito de pessoas, se consideram penalmente irrelevantes.
No entanto, é manifesto que nem todos os casos de consumo partilhado se afastam do crime de tráfico de estupefacientes, sendo necessário aferir, por exemplo, se se verifica onerosidade na cedência, se as quantidades cedidas são superiores às legalmente previstas para o consumo diário criminalmente atípico e se os destinatários são ou não pessoas próximas, por ordem a concluir se tais comportamentos produzem perigo, em abstrato, de disseminação da droga ou de incentivo relevante ao seu consumo.
Neste sentido, indica-nos o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 06-07-2011, suprarreferido, alguns pressupostos para se poder considerar que estamos perante um “autoconsumo de grupo”. São eles:
que esse consumo seja “(i) gratuito e restrito a um grupo delimitado de consumidores,
(ii) em que as quantidades em causa correspondam às legalmente previstas para o consumo diário criminalmente atípico e
(iii) se destinem a um consumo esporádico e imediato”.
Descendo ao caso em apreço, importa, primeiramente, afirmar que, tendo resultado não provado que o arguido CC arremessou pela janela da sua cela um pedaço de canábis (resina) com o peso líquido de 0,054g, é manifesto que não se encontram preenchidos, quanto a este arguido, os elementos objetivos nem subjetivos deste tipo de crime, pelo que se considera que o mesmo não praticou o crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, pelo qual vem acusado.
Já no que respeita aos arguidos AA e BB, resultou provado que no dia ...-...-2021 os arguidos encontravam-se presos no Estabelecimento Prisional anexo à sede da PJ, em Lisboa, encontrando-se o arguido AA no pátio do EP, quando passou pela janela um pedaço de canábis (resina) com o peso líquido de 0,054g, correspondente a uma dose diária ou menos, ao arguido BB que se encontrava dentro da cela de ambos e que aceitou o referido produto.
Mais resultou provado que os arguidos destinavam o referido produto estupefaciente ao consumo de ambos.
Ora, entende-se que estes factos se enquadram, precisamente, naquilo que tem vindo a ser entendido como um caso de “consumo partilhado atípico”, uma vez que a quantidade de produto estupefaciente que foi partilhada entre ambos os arguidos – 0,054g – é muito diminuta e corresponde a uma dose diária ou menos, tendo-o sido com o fito de partilha entre ambos, enquanto companheiros de cela e consumidores de produtos estupefacientes.
Ademais, não se descortina qualquer tipo de perigo, ainda que abstrato, para a divulgação ou propagação deste produto no estabelecimento prisional onde os mesmos se encontravam, tendo em conta que, sendo uma quantidade tão diminuta, seria impossível de partilhar por mais reclusos, tanto que do exame laboratorial consta que o produto apreendido daria para uma dose de consumo diária ou ainda menos do que isso.
Assim, entende-se não estarem verificados os elementos objetivos do tipo de crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25.º, alínea a) do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, por referência à tabela I-C anexa, pelo que vão também os arguidos AA e BB absolvidos do mesmo.
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Importa agora aferir se os arguidos AA e BB podem ser condenados pelos factos que resultaram provados, ainda que a outro título.
Decorre do artigo 2.º, n.º 1 do Código Penal que “as penas e as medidas de segurança são determinadas pela lei vigente no momento da prática do facto ou do preenchimento dos pressupostos de que dependem”, acrescentando o seu n.º 4 que “quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente”.
Por outro lado, dispõe o artigo 3.º do mesmo Código que “o facto considera-se praticado no momento em que o agente atuou ou, no caso de omissão, deveria ter atuado, independentemente do momento em que o resultado típico se tenha produzido.”
Ora, na versão em vigor à data dos factos e interpretada à luz do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Uniformização de Jurisprudência n.º 8/2009, de 05 de agosto, o artigo 40.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, estabelecia o artigo 40.º desta lei que “quem consumir substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias, é punido com pena de prisão até 1 ano ou de multa até 120 dias.”
Sucede que a 01 de outubro de 2023 entrou em vigor a Lei n.º 55/2023, de 8 de setembro que introduziu alterações ao artigo 40.º do referido decreto-lei atribuindo-lhe a seguinte redação:
“1 - Quem, para o seu consumo, cultivar plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas i a iv é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 30 dias.
2 - A aquisição e a detenção para consumo próprio das plantas, substâncias ou preparações referidas no número anterior constitui contraordenação.
3 - A aquisição e a detenção das plantas, substâncias ou preparações referidas no n.º 1 que exceda a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias constitui indício de que o propósito pode não ser o de consumo.”
Desta forma, importa ponderar qual a redação que, no caso concreto, é mais favorável aos arguidos, devendo ser essa a aplicar por parte do Tribunal.
Ora, se à primeira vista parece que a lei posterior – descriminalizadora, porquanto determina que o consumo de estupefacientes, que antes era crime por força da interpretação conjugada do artigo 40.º, n.º 2 e da referida jurisprudência, deixa de o ser, antes consubstanciando uma contraordenação – entende-se que, neste caso concreto, a lei mais favorável aos arguidos será aquela que se encontrava vigente na data da prática dos factos.
Assim se entende, uma vez que a lei anterior tem como requisito para a punição do crime de consumo que as substâncias ou preparações sejam em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias. Já a nova lei, não faz depender a punição enquanto contraordenação de qualquer quantidade específica.
Ora, in casu, o exame laborial presente nos autos não específica qual a percentagem de pureza do produto estupefaciente, nem tão-pouco para quantas doses diárias correspondia, afirmando que “ainda que o teor em THC fosse de 100%, teríamos apenas uma dose”, o que implica a absolvição dos arguidos sem mais considerações, uma vez que a quantidade apurada sempre seria inferior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.
Pelo exposto, tratando-se de canábis para consumo partilhado entre os colegas de cela, não especificando o relatório pericial o grau de pureza da substância estupefaciente apreendida, mas afirmando-se que seria necessariamente correspondente a uma dose diária ou menos, não podemos considerar a conduta dos arguidos integradora nem do crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade do qual vêm acusados, nem do crime de consumo de estupefacientes.
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2. Do destino dos bens apreendidos
Uma vez que do exame do LPC, de fls. 33, consta que o produto foi totalmente consumido, nada há a determinar quanto à sua destruição.
IV. Dispositivo
Termos em que se julga totalmente improcedente, por não provada, a acusação pública e em conformidade se decide:
a) Absolver o arguido CC pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelos artigos 21.º e 25.º, al. a), do DL n.º 15/93;
b) Absolver o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelos artigos 21.º e 25.º, al. a), do DL n.º 15/93;
c) Absolver o arguido BB pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelos artigos 21.º e 25.º, al. a), do DL n.º 15/93.
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- O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art.º 410º nº 2 do C.P.P.
(Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95).
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Cumpre decidir:
Entende o recorrente que existe o vício previsto no art.º 410º, nº 2, al. a) CPP no que respeita ao ponto 3 dos factos provados.
Que tratando-se de reclusos a passar estupefaciente num estabelecimento prisional, foi promovida e permitida a difusão do consumo ilegal de estupefacientes, no estabelecimento prisional, existe um risco relevante, para o bem jurídico protegido ‘saúde pública’, e para a segurança e tranquilidade do estabelecimento prisional.
Entende, pois, o recorrente que os arguidos em vez de absolvidos devem ser condenados pelo crime de tráfico pelo qual vinham acusados
Vejamos:
Convém ter presente que o tribunal de 2ª Instância não faz um novo julgamento, uma indiscriminada expedição destinada a repetir toda a prova, mas sim um trabalho de reexame da apreciação da prova nos pontos incorretamente julgados, segundo o recorrente, e a partir das provas que, no mesmo entender, impõem decisão diversa da recorrida – artº412º, nº 3, a) e b) do C.P.P. e levam à transcrição nº 4 do artº412º do C.P.P.
Face á forma escolhida para a impugnação levada a cabo pelo recorrente que invocou a existência do vício contido no art.º 410 nº 2 a) CPP- A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, afastada fica, a possibilidade deste tribunal sindicar a prova gravada1 devendo resumir-se a apreciação do recurso á factualidade apurada evertida na decisão sob recurso e só essa.
Alegado o vício em causa, os recorrentes devem especificar os factos que em seu entender eram necessários para a decisão que deveria ter sido proferida, os factos que o Tribunal a quo devia ter indagado e conhecido e não indagou e consequentemente não conheceu, podendo e devendo fazê-lo.
Há, pois, que convencer o Tribunal de recurso de que realmente faltam factos, e quais factos, identificando, pois, os mesmos, necessários para a decisão e convencer que não foi levada a cabo indagação a respeito deles.
O recorrente fundamenta com o perigo para a saúde pública e tranquilidade do EP mas nem sequer apontou perturbações internas no interior do EP devidas aos factos em causa que, certamente, a existirem, devem ter sido resolvidos pelo regulamento interno do mesmo EP.
A insuficiência para decisão da matéria de facto provada não se confunde com a insuficiência da prova para os factos que erradamente foram dados como provados.
Na primeira critica-se o Tribunal por não ter indagado e conhecido os factos que podia e devia, tendo em vista a decisão justa a proferir de harmonia com o objeto do processo; na segunda censura-se a errada apreciação da prova levada a cabo pelo Tribunal: teriam sido dados como provados factos sem prova para tal.
Esta segunda opção tem a ver com a impugnação da matéria de facto nos termos do n.º 3 do art.º 412.º do Código de Processo Penal, com reapreciação da prova e não com a verificação dos vícios do n.º 2 do art.º 410.º, do Código de Processo Penal que terão que ser visíveis no texto da decisão, sem recurso a quaisquer provas documentadas.
Também nada tem a ver com o vício da insuficiência o caso em que os recorrentes enumeram uma série de factos que foram dados como não provados e que na sua ótica deviam ser dados como provados.
O que acontece é que o recorrente não concorda com a forma como o tribunal apreciou a prova, preocupado que está com os efeitos da factualidade apurada na organização do ambiente prisional- a resolver pelo Regulamento Geral dos Estabelecimentos Prisionais - e relativamente à saúde pública.
Não pode, contudo, o recorrente pretender que se subverta o princípio da vinculação temática do tribunal.
Há também que não esquecer que o ónus da prova não cabe aos arguidos. Habitando a intenção geral com que o arguido detém droga nos arcanos inexpugnáveis do ser humano, ela tem de ser deduzida de factos exteriores, percetíveis e provados seguindo as regras da lógica e da experiência comum.
O tribunal retirou de toda a factualidade dada como provada, apreciada de acordo com as regras da livre apreciação da prova, devidamente fundamentada e apoiada nos depoimentos prestados inclusive por guardas prisionais, e pela prova pericial (nomeadamente o relatório da polícia científica que foi claro ao dizer que, o montante encontrado nem que tivesse 100% de pureza daria para dividir por quem quer que fosse), a decisão que bem fundamentou.
O ponto 3 da decisão dado como provado (Nessas circunstâncias, o arguido AA passou pela janela um pedaço de canábis (resina), com o peso líquido de 0,054g, ao arguido BB que se encontrava dentro da cela de ambos e que aceitou referido o produto), encontra apoio nas regras da lógica e da experiência e é suficiente para a decisão encontrada, estando, ao contrário do pretendido, devidamente fundamentado na decisão sob recurso.
Os arguidos destinavam claramente a substância encontrada na quantidade apurada, a consumo. É isso que a prova nos diz.
Não pode o tribunal partir para conjeturas e entender que havia tráfico no EP, ou que os arguidos traficavam estupefaciente dentro do mesmo. Não há um único facto provado ou que indicie essa situação.
A decisão proferida é absolutamente logica encontra-se devida e suficientemente fundamentada quer de facto quer de direito.
E mesmo quanto ao prejuízo da factualidade para o bem jurídico - saúde pública ( uma das razões que o recorrente aponta para a necessidade da condenação), o tribunal quo diz, e bem, que não se encontra ameaçada já que o comportamento apurado não é em abstrato suscetível de criar um perigo para a saúde pública, isto é, não promove a difusão do consumo ilegal de estupefacientes na nossa sociedade.
Por outro lado, há que ter em conta não só a quantidade, mas o número diminuto de envolvidos, havendo claramente ausência de perigo relevante para o bem jurídico protegido, uma vez que o estupefaciente não é destinado à sua difusão, mas apenas à partilha num grupo restrito de pessoas - duas pessoas.
Há que ter em conta, como diz o Tribunal a quo que, sendo uma quantidade tão diminuta, seria impossível partilhá-la com e por mais reclusos, tanto que do exame laboratorial consta que o produto apreendido daria para uma dose de consumo diária ou ainda menos do que isso mesmo que a sua pureza fosse de 100%.
Fez depois o tribunal a quo uma abordagem à lei no tempo e avocou a versão em vigor à data dos factos e interpretada à luz do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Uniformização de Jurisprudência n.º 8/2009, de 05 de agosto, o artigo 40.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, estabelecia o artigo 40.º desta lei que “quem consumir substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias, é punido com pena de prisão até 1 ano ou de multa até 120 dias, não esquecendo a entrada em vigor da Lei 55/2023 de 8 de Setembro que entrou em vigor a 1.10.23 e introduziu alterações ao art.º 40º concluindo pela lei mais favorável é a que estava em vigor à data da prática dos factos e implicou a absolvição dos arguidos sem mais considerações, uma vez que a quantidade apurada sempre seria inferior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias já que correspondia a uma dose diária ou menos.
É certo que sempre temos entendido que, tendo os factos lugar em “estabelecimento prisional” a que alude o art.º 24º, tendo em conta o momento em que o perigo se manifesta e o meio, a circunstância agravante funciona independentemente da natureza ou da quantidade da substância estupefaciente. Desde que, essa substância seja traficada. Ora, tal não se apurou.
Não há insuficiência da matéria de facto para a decisão atingida, há é insuficiência para a condenação pretendida. Não tem o Tribunal de se preocupar com a gestão interna do EP, nem está em risco a saúde pública tendo em conta o já supra referido e explanado na decisão recorrida.
O tribunal baseou a sua decisão sobre a realidade dos factos na íntima convicção que formou a partir do exame e da ponderação das provas produzidas.
Em resumo:
Apreendido em Estabelecimento Prisional um pedaço de canábis (resina), com o peso líquido de 0,054g, não se tendo provado que se destinava à venda a terceiros, mas sim a consumo individual, tem o arguido de ser absolvido por não se mostrar preenchido o ilícito p. e p. pelo artigo 25.º, alínea a) do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, por referência à tabela I-C anexa da Lei 15/93 de 22.01 nem o art.º 40º do mesmo diploma legal.
Assim sendo
Nega-se provimento ao recurso interposto, mantem-se a decisão recorrida na íntegra.
Sem custas por a elas não haver lugar
Ac. elaborado e revisto pela relatora.

Lisboa 20.03.2024
Adelina Barradas de Oliveira
Maria da Graça dos Santos Silva
Rosa Vasconcelos
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1. Neste sentido Ac. do STJ de 31/10/2007, P07P3218, relator Cons. II, acessível nas bases de dados.