Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
| Processo: |
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| Relator: | ALBERTINA PEREIRA | ||
| Descritores: | CONTRATO DE TRABALHO MOTORISTA DE SERVIÇOS PÚBLICOS DEVER DE OBEDIÊNCIA DEVER DE ZELO DEVER DE DILIGÊNCIA DEVER DE LEALDADE JUSTA CAUSA DE DESPEDIMENTO | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 01/27/2021 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | N | ||
| Texto Parcial: | S | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | CONFIRMADA A SENTENÇA | ||
| Sumário: | I - É de considerar muito grave e ilícita a conduta do autor que, enquanto motorista de serviços públicos, apesar de ter recebido o pagamento de passageiras que se faziam transportar no autocarro que conduzia ao serviço da ré, apenas imprimiu os respetivos títulos de transportes ao chegar à paragem de autocarro onde se encontravam funcionários da ré com funções de fiscalização após tê-los avistado, e que se não fora a intervenção de tais agentes, teria feito seus os valores que lhe haviam sido pagos pelo dito transporte. II - A referida conduta consubstancia violação pelo trabalhador dos seus deveres de obediência, zelo, diligência e lealdade e faz quebrar irremediavelmente a base da confiança em que assenta a relação laboral, criando no espírito da ré empregadora a fundada dúvida sobre a idoneidade futura do autor, constituindo justa causa de despedimento. (Elaborado pela relatora) | ||
| Decisão Texto Parcial: | Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa 1. Relatório 1.1. AAA interpôs a presente acção especial de impugnação da regularidade e licitude do despedimento contra BBB, pedindo a declaração da ilicitude do seu despedimento e a condenação da ré a reintegrá-lo, sem prejuízo da sua categoria profissional e antiguidade, bem como a pagar-lhe todas as retribuições que deixou de auferir desde o dia 25 de Novembro de 2019, até ao trânsito em julgado da sentença, sem prejuízo do disposto no artigo 98º-N, nº1 a 3 do Código de Processo de Trabalho. A ré apresentou articulado motivador do despedimento, alegando que no dia 17.07.2019 o autor/trabalhador tentou apropriar-se abusiva e ilegítima do valor de € 6,00, resultante da venda de três títulos de transporte que foram cobrados, mas não foram emitidos nem entregues no momento da compra na paragem do Aeroporto, tentativa essa que só não foi bem sucedida porque aquele emitiu as três tarifas de bordo em falta na paragem do Saldanha, 23,16 e 4 segundos antes da equipa de fiscalização entrar no autocarro, e que a deslealdade e a desonestidade em que se consubstanciou a sua conduta, compromete irremediavelmente a subsistência da relação laboral, abalando de forma definitiva a confiança da ré/empregadora no autor/trabalhador; O autor contestou, tendo invocado que é falsa a tentativa de apropriação que lhe é imputada; que apresentou as 3 tarifas de bordo porque lhe foi solicitado, após ter sido instado pelo fiscalizador Jorge Alves; que na recta da Avenida da República teve um flashback do que se tinha passado no aeroporto e ficou na dúvida se estaria tudo bem com as tarifas de bordo vendidas, pelo que pelo sim e pelo não imprimiu 3 títulos de transporte ainda na Avenida da República e não no Saldanha, sendo falso que o mesmo tenha visto os fiscais na paragem, até porque essa paragem não é visível antes de se chegar à mesma. Foi proferido despacho saneador, tendo-se dispensado a fixação do objecto do litígio e a enunciação dos temas da prova. Instruída a causa, teve lugar a realização da audiência final. Proferida sentença, nela se finalizou com o seguinte dispositivo: “Face ao exposto, decide julgar-se improcedente a acção de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento intentada pelo Autor/Trabalhador AAA contra a Ré/Empregadora BBB e, consequentemente, mais se decide absolver a Ré/Empregadora do pedido (de ilicitude do despedimento e consequências legais) contra si formulado pelo Autor/Trabalhador.” 1.2. Inconformado com esta decisão dela recorre o autor, concluindo que: (…) 1.3. Não consta que tenham sido apresentadas contra-alegações. 1.4. O recurso foi admitido na espécie, efeito e regime de subida adequados. 1.5. O Exmo. Procurador-Geral-Adjunto nesta Relação teve vista dos autos e elaborou parecer no sentido da manutenção da sentença, não tendo sido apresentada resposta ao dito parecer. 1.6. Foram colhidos os vistos e realizada a conferência Cumpre apreciar e decidir Objecto do recurso O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso e das não apreciadas pela solução dadas a outras, ainda não decididas com trânsito em julgado - artigos 635.º, números 3 e 4, 639.º, n.º 1, 608.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil (CPC). Assim, as questões a apreciar no âmbito do presente recurso consistem na impugnação da matéria de facto; em aquilatar se não ocorre justa causa para o despedimento do autor. 3. Fundamentação de facto Encontram-se provados os seguintes factos: 1) Em 22/07/2019, a Ré/Empregadora instaurou um processo disciplinar ao Autor/Trabalhador, 2) No âmbito do qual, em 26/09/2019, foi deduzida a Nota de Culpa que consta de fls. 26v a 27v dos autos que constituem o Apenso relativo ao Processo Disciplinar e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, na qual está consignado que «… 2. No dia 17.07.2019, o arguido desempenhou as suas funções na carreira (…), chapa 2, entre as 15:41 horas e as 23:11 horas, com o autocarro (…). 3. Pelas 21:35 horas do dia 17.07.2019, o arguido iniciou viagem no terminal do Prior Velho com destino ao terminal das Amoreiras. 4. Sensivelmente pelas 22:02 horas chegou à paragem do Saldanha, local onde se encontrava uma equipa de agentes de fiscalização composta pelos trabalhadores (…), (…) e (…) os quais entraram no autocarro e validaram os seus títulos de transporte pelas 22h02m42s, 22h02m46s e 22h02m54s, respetivamente. 5. Após iniciarem a ação de fiscalização, o trabalhador (…) detetou 2 (duas) clientes de nacionalidade espanhola a transportarem-se com uma tarifa de bordo no valor de € 2,00, válida apenas para uma das clientes. 6. Por tal situação configurar uma irregularidade, foram instadas por este agente, (…), as quais responderam que tinham entrado na paragem do Aeroporto, pagaram € 4,00 por duas tarifas de bordo e que o arguido lhes entregou apenas a tarifa que possuíam. 7. Por sua vez, o trabalhador (…) detetou 2 (duas) clientes estrangeiras, de nacionalidade não apurada, a transportarem-se sem qualquer título de transporte. 8. Por esta situação também configurar uma irregularidade, foram as clientes instadas por este agente, (…), as quais responderam que tinham entrado na paragem do Aeroporto, pagaram 2 (duas) tarifas de bordo no valor total de € 4,00, entregaram uma nota de € 10,00 e receberam € 6,00 de troco, todavia, o arguido não lhes entregou qualquer tarifa. 9. Face às irregularidades detetadas, o trabalhador (…) aproximou-se do Arguido para o confrontar, todavia, sem que ninguém tivesse solicitado, o arguido apresentou 3 (três) tarifas de bordo emitidas instantes antes, pela seguinte ordem: “n.º 4637/03770/19 às 22h02m19s”. “n.º4637/03771/19 às 22h02m26s e “n.º 4637/03772/19 às 22h02m38s”… 11. As paragens do Aeroporto, onde entraram as clientes e a do Saldanha, onde entrou a equipa de agentes fiscalização, distam uma da outra aproximadamente 5,50 km, sendo que entre ambas existem 11 paragens da carreira (…). 12. Se não fosse a ação dos agentes de fiscalização, o A. teria ficado para si com o valor de € 6,00, correspondente a 3 (três) tarifas de bordo no valo unitário de € 2,00, que haviam sido pagas pelas clientes aquando da sua entrada na paragem do Aeroporto, mas não foram emitidas nem entregues às clientes, só o fazendo após ter constatado a presença da equipa de agentes de fiscalização na paragem…». 3) A qual foi entregue, em 20/09/2019, ao Autor/Trabalhador, 4) No âmbito do referido processo disciplinar, em 21/11/2019, a Ré/Empregadora deliberou aplicar ao Autor/Trabalhador a sanção disciplinar de despedimento com justa causa, com base nos fundamentos de facto e de direito constantes da Decisão de fls. 42/43v e do Relatório Final de fls. 35 a 39, ambos dos autos que constituem o Apenso relativo ao Processo Disciplinar e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, 5) Tendo o Autor/Trabalhador tomado conhecimento da referida Decisão em 25/11/2019. 6) Aquando do despedimento, o Autor/Trabalhador auferia ao serviço da Ré/Empregadora a remuneração base tráfego de € 877,99, acrescida de anuidades e trianuidades no montante mensal de € 27,00. 7) O Autor/Trabalhador foi admitido ao serviço da Ré/Empregadora no dia 17.02.2016, para exercer as funções de motorista de serviços públicos, sendo que atualmente desempenhava essas funções na Estação da Musgueira. 8) No dia 17.07.2019, o Autor/Trabalhador desempenhou as suas funções na carreira (…), chapa 2, entre as 15:41 horas e as 23:11 horas, com o autocarro (…). 9) Pelas 21:35 horas do dia 17.07.2019, o Autor/Trabalhador iniciou viagem no terminal do Prior Velho com destino ao terminal das Amoreiras. 10) Sensivelmente pelas 22:02 horas chegou à paragem do Saldanha, local onde se encontrava uma equipa de agentes de fiscalização composta pelos trabalhadores (…) (…) e (…), os quais entraram no autocarro e validaram os seus títulos de transporte pelas 22h02m42s, 22h02m46s e 22h02m54s, respetivamente. 11) Após iniciarem a acção de fiscalização, o trabalhador (…) detetou 2 (duas) clientes de nacionalidade espanhola a transportarem-se com uma tarifa de bordo no valor de € 2,00, válida apenas para uma das clientes. 12) Por tal situação configurar uma irregularidade, foram instadas por este agente, (…), as quais responderam que tinham entrado na paragem do Aeroporto, pagaram € 4,00 por duas tarifas de bordo e que o Autor/Trabalhador lhes entregou apenas a tarifa que possuíam. 13) Por sua vez, o trabalhador (…) detetou 2 (duas) clientes estrangeiras, de nacionalidade estrangeira (Dubai), a transportarem-se sem qualquer título de transporte. 14) Por esta situação configurar uma irregularidade, foram as clientes instadas por este agente, (…), as quais responderam que tinham entrado na paragem do Aeroporto, pagaram 2 (duas) tarifas de bordo no valor total de € 4,00, entregaram uma nota de € 10,00 e receberam € 6,00 de troco, todavia, o Autor/Trabalhador não lhes entregou qualquer tarifa. 15) Face ao referido em 11) a 14), o trabalhador (…) aproximou-se do Autor/Trabalhador para o confrontar, e este apresentou 3 (três) tarifas de bordo emitidas instantes antes, pela seguinte ordem: “n.º 4637/03770/19 às 22h02m19s”. “n.º4637/03771/19 às 22h02m26s e “n.º 4637/03772/19 às 22h02m38s”. 16) As paragens do Aeroporto, onde entraram as clientes e a do Saldanha, onde entrou a equipa de agentes fiscalização, distam uma da outra aproximadamente 5,56 km, sendo que entre ambas existem 11 paragens da carreira (…). 17) Se não fosse a ação dos agentes de fiscalização, o Autor/Trabalhador teria ficado para si com o valor de € 6,00, correspondente a 3 (três) tarifas de bordo no valo unitário de € 2,00, que haviam sido pagas pelas clientes aquando da sua entrada na paragem do Aeroporto, mas não foram emitidas nem entregues às clientes, só o fazendo após ter constatado a presença da equipa de agentes de fiscalização na paragem 18) No ano de 2018, o Autor/Trabalhador foi objeto de uma sanção disciplinar de Repreensão Registada, no âmbito do Processo Disciplinar n.º D-47/2018, por no dia 12.07.2018 ter enviado um email à Ré/Empregadora a questionar a ação de sensibilização em curso destinada a todos os tripulantes, em que fez afirmações que sabia não serem verdadeiras, atentando ao bom nome dos visados. 19) O Autor/Trabalhador sabia e tinha consciência de que a regra na empresa Ré/Empregadora é receber o dinheiro para pagamento dos bilhetes e de seguida emitir o respectivo título de transporte. 3.2. Matéria de facto não provada a) A apresentação pelo Autor/Trabalhador referida em 15) ocorreu sem que ninguém tivesse solicitado. 4. Fundamentação de Direito 4.1. Da impugnação da matéria de facto (…) Em face do exposto, e sem outras considerações, resta-nos julgar improcedente a presente questão. 4.2. Da não verificação da justa causa de despedimento A posição do autor sobre esta questão assentou, em grande medida, na impugnação da decisão da matéria facto e consequente alteração da matéria de facto provada e não provada a que se não procedeu, como acima se consignou. Adiantando-se, desde já, salvo o devido respeito, estar o autor carecido de razão. Como é sabido, a noção de justa causa consta do art.º 351.º do Código do Trabalho, sendo abundante a jurisprudência e a doutrina sobre o tema, razão pela qual se dá aqui como reproduzido o que temos vindo a referir, a esse respeito, em inúmeros arestos, como sucedeu, por exemplo, no Acórdão deste TRL de proc. 31543/16. 3T8LSB.L1-4, in www.dgsi.pt. onde se consignou: “…constitui “justa causa de despedimento o comportamento culposo do trabalhador que pela sua gravidade e consequências, torne praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho”, pautando-se este juízo por critérios de razoabilidade e exigibilidade. Na apreciação da justa causa, deve atender-se, no quadro de gestão da empresa, ao grau de lesão dos interesses do empregador, ao carácter das relações entre as partes ou entre o trabalhador e os seus companheiros e às demais circunstâncias que no caso sejam relevantes - n.º 3 do mesmo artigo, art.º 330.º, n.º 1 (Cfr. acórdão do STJ de 21.04.2016, proc. 229/14.5T8LLG.P1.S1). A noção de justa causa tem sido muito abordada pelos nossos tribunais e pela doutrina, encontrando-se firmado o entendimento de que a mesma é integrada pelo seguinte: (i)- elemento subjectivo, traduzido num comportamento culposo do trabalhador, por acção ou omissão; (ii) um elemento objectivo, traduzido na impossibilidade da subsistência da relação de trabalho; (iii) nexo de causalidade entre aquele comportamento e esta impossibilidade. Na ponderação da gravidade da culpa e das suas consequências, importará considerar o entendimento de um “bonnus pater familie”, de um “empregador razoável”, segundo critérios de objectividade e de razoabilidade, em função das circunstâncias de cada caso em concreto (Acórdãos do STJ de 8.6.84, AD 274, pág. 1205, de 16.11.98 AD, 290, pág. 251, de 8.7.88, AD, 324, pág. 1584 e 6.6.90, Actualidade Jurídica, 10, pág. 24). Deve ainda frisar-se, que o apuramento da “justa causa” se corporiza, essencialmente, no elemento da impossibilidade prática e imediata da subsistência da relação de trabalho. Relativamente à interpretação desta componente objectiva de “justa causa”, tem-se entendido que a mesma se traduz na impossibilidade de subsistência do vínculo laboral que deve ser reconduzida à ideia de “inexigibilidade” da manutenção vinculística, numa perspectiva de impossibilidade prática”, no sentido de imediatamente comprometer, e sem mais, o futuro do contrato. Para tanto, a impossibilidade do vínculo laboral deve ser apreciada tendo em consideração todos os interesses que estão na base da relação contratual, existindo sempre que a manutenção do contrato constitua uma insuportável e injusta imposição do empregador (Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.03.2016, Processo 695/03.3TTGMR.G1.S1, acessível in www.dgsi.pt).” Como também refere, a propósito, Monteiro Fernandes “Direito do Trabalho”, 13.ª Edição, Almedina, pág. 55), «[n]ão se trata, evidentemente, de uma impossibilidade material, mas de uma inexigibilidade, determinada mediante um balanço in concreto dos interesses em presença – fundamentalmente o da urgência da desvinculação e o da conservação do vínculo(...). Basicamente, preenche-se a justa causa com situações que, em concreto (isto é, perante a realidade das relações de trabalho em que incidam e as circunstâncias específicas que rodeiem tais situações), tornem inexigível ao contraente interessado na desvinculação o respeito pelas garantias de estabilidade do vínculo (termo aposto ao contrato, sanções disciplinares conservatórias)” No presente caso, a ré alegou ter o autor infringido com o seu comportamento os mais elementares deveres profissionais, o que se traduziu numa conduta manifestamente desonesta, fraudulenta, dado que tinha perfeita consciência de que se ia apropriar de uma quantia a que sabia não ter direito em prejuízo da ré. Refere que o autor lesou os interesses da ré, e que a deslealdade e a desonestidade em que se consubstanciou a sua conduta compromete irremediavelmente a subsistência da relação laboral, abalando de modo definitivo a confiança da ré no autor. Analisando a questão, cumpre referir o seguinte: No âmbito do contrato de trabalho, para além do dever de trabalhar que recai sobre o trabalhador, encontra-se o mesmo também adstrito a um conjunto de outros deveres (acessórios) que se encontram enunciados no n.º 1 do art.º 128.º do Código do Trabalho, como é o “dever de obediência” por via do qual deve o mesmo “Cumprir as ordens e instruções do empregador respeitantes a execução ou disciplina do trabalho, bem como a segurança e saúde no trabalho, que não sejam contrárias aos seus direitos ou garantias (alínea e) “Realizar o trabalho com zelo e diligencia” (alínea c) e “Guardar lealdade ao empregador, nomeadamente não negociando por conta própria ou alheia em concorrência com ele, nem divulgando informações referentes à sua organização, métodos de produção ou negócios” (alínea f). Como é evidente, o dever de obediência é o corolário da subordinação jurídica a que se encontra sujeito o trabalhador, tendo como pressuposto o cumprimento de ordens e instruções do empregador ou de quem o represente, sendo um dos pilares essenciais do contrato de trabalho. O dever de realizar o trabalho com zelo e diligência, prende-se “ com o modo de cumprimento da prestação principal, significando que o trabalhador deverá realizar a prestação com atenção, com esforço com empenhamento da vontade e com o cuidado exigíveis a um trabalhador normal colocado na sua situação" (João Leal Amado, “Contrato do Trabalho”, Coimbra Editora, pág. 373). Sustenta a esse respeito Maria do Rosário Palma Ramalho, "Direito do Trabalho Parte I1- Situações Laborais Individuais”", Almedina 2012, págs. 418 e 419 que se trata de dever integrante da prestação principal, e que permite avaliar o modo de cumprimento dessa prestação, “ medida do zelo ou da diligência do trabalhador no desenvolvimento da actividade laboral deve ser aferida segundo o critério geral do bom pai de família, tendo em conta o tipo aquele tipo de trabalhador em concreto”. Referindo, por seu turno, Júlio Gomes, “Direito do Trabalho”, I Volume, Coimbra Editora, pág. 544, citando Carlo Lega, que não se pode deixar de ter em conta a circunstância de que o contrato de trabalho implica ou coenvolve a personalidade do trabalhador, pelo que a sua prestação de trabalho é a “síntese ou o resultado de diversas componentes que respeitam à esfera da capacidade física, intelectual ou moral do trabalhador”. A diligência faz apelo a uma atitude pessoal e voluntarista do agente ao cumprir a sua obrigação contratual. E porque se trata de responsabilidade contratual o padrão de aferição da diligência exigível é objectivo, havendo que atender ao padrão do bom pai de família, embora colocado na situação concreta do trabalhador em questão – “isto é, à natureza das funções que o trabalhador realiza e, porventura, até mesmo à empresa em que se insere e, inclusive, à sua própria posição hierárquica”. O zelo colocado no cumprimento da prestação de trabalho reflete-se sobre a forma como o mesmo é prestado, permitindo aferir se há ou não cumprimento integral da prestação, ou seja se a atividade prestada preenche ou não os objetivos que dela se esperam no contexto da atividade prosseguida pelo destinatário da prestação, a entidade empregadora - Cfr. Acórdão do STJ de 08-10-2015, proc. 290/07.8TTSTS.P3.S1, disponível em www.dgsi.pt. O dever de lealdade, exemplificado pelo legislador através dos deveres de não concorrência e de sigilo, mais não significa do que o dever geral de boa- fé que impende sobre qualquer dos sujeitos contratuais - determinando, a esse respeito o art.º 126.º do Código do Trabalho que “ O empregador e o trabalhador devem proceder de boa fé no exercício dos seus direitos e no cumprimento das respectivas obrigações”. Trata-se de um dever que numa vertente objectiva se traduz na necessidade do trabalhador ajustar o seu comportamento aos princípios da boa-fé no cumprimento do contrato e numa vertente subjectiva se reconduz à relação de confiança entre as partes que impõe que a conduta do trabalhador não seja susceptível de abalar tal confiança e, assim, criar no espírito do empregador a dúvida sobre a idoneidade futura do comportamento do trabalhador - Cfr. Acórdãos do STJ de 17-04-1996, proc. 4429 e de 14-01-1998, proc. 110/97, 4.ª Secção e do TRE de 07-02-2012, proc. 238/10.2TTFAR.E1. Importa relembrar que o autor exerce as funções de motorista de serviços públicos ao serviço de uma empresa de transportes públicos, como é a ré, BBB. Cabendo-lhe no âmbito das respetivas funções de motorista não apenas a condução dos veículos (autocarros) destinados ao transporte de passageiros, como a cobrança e emissão dos respetivos títulos de transporte aos passageiros. Ora, no presente caso, é manifesto que se mostram violados os referidos deveres de obediência, zelo e diligencia e, em particular, o dever de lealdade. Com efeito, desempenhando o autor as funções de motorista de serviços públicos desde 17-02-2016, não podia o mesmo desconhecer que se encontrava obrigado a cobrar os títulos de transporte aos passageiros do autocarro que conduzia, bem como emitir e entregar àqueles o correspondente título de transporte. Como se referiu na sentença recorrida “… apesar de saber que a regra na empresa Ré/Empregadora é receber o dinheiro para pagamento dos bilhetes e de seguida emitir o respectivo título de transporte, aproveitando-se precisamente das funções que exerce como motorista, recebeu de clientes o dinheiro para pagamento de três tarifas/bilhetes, mas não imprimiu nem lhes entregou os respectivos títulos de transporte, o que contraria desde logo aquela regra (violação do dever de zelo e diligência e do dever de obediência), acrescendo que teria ficado para si com o respectivo dinheiro caso não tivesse sido obrigado a imprimir tais bilhetes (mais de 5 km e mais de 11 paragens depois do local onde recebeu o dinheiro das clientes) pela presença e acção de fiscalização de três colegas/agentes, o que tudo consubstancia uma tentativa do Autor/Trabalhador se apropriar de dinheiro que pertence à empresa Ré/Empregadora, que só não se concretizou por factor alheio à sua vontade (violação do dever de lealdade e do dever de boa fé). Para além de tal comportamento constituir uma conduta objectivamente ilícita, o mesmos mostra-se doloso (pelo menos, na forma necessária quanto à não impressão imediata dos bilhetes no acto da compra, mas já na forma directa quanto à tentativa de apropriação de valores monetários desses bilhetes), pelo que também é subjectivamente ilícito, visto que o Autor/Trabalhador agiu com intenção de não emitir/imprimir bilhetes que lhe foram pagos, sabendo que não o podia fazer e sabendo que as funções lhe impunham a impressão imediata e entrega dos respectivos bilhetes, e agiu com a intenção de se apropriar de quantias monetárias desses bilhetes, sabendo que não o podia fazer e sabendo que a responsabilidade das suas funções lhe impunham a entrega de todo o dinheiro recebido da venda de bilhetes fosse entregue à Ré/Empregadora, a quem efectivamente pertencia”. Para além da violação dos mencionados deveres, o autor infringiu também os disposto nas alíneas a) e c), da Clausula 5.ª do AE publicado no BTE 35 de 22-09-2018, aplicável à relação laboral em análise, onde consta como obrigações do trabalhador: “a) Fornecer à empresa o trabalho para que foi contratado e nas condições estabelecidas neste acordo; c) Executar, com a eficiência normalmente requerida, as funções que lhe foram confiadas …”. A apontada conduta do autor integra, pois, a prática de infração disciplinar. Encontrando-se enumeradas na Clausula 50.ª do referido AE as sanções disciplinares susceptíveis de ser aplicadas (1- As infrações nos termos deste acordo, poderão ser objeto das seguintes sanções, de acordo com a gravidade dos factos: a) Advertência; b) Repreensão registada comunicada por escrito ao infrator; c) Suspensão sem vencimento até 10 dias; d) Despedimento com justa causa. 2- As sanções têm carácter educativo, pelo que não poderão ser consideradas em posteriores faltas, a não ser que se trate de casos de reincidência manifesta sobre a mesma matéria ou de acumulação de faltas, embora sobre matérias diferentes. 3- Para a graduação da pena, serão tomados em consideração os próprios factos e todas as circunstâncias atenuantes e agravantes. (…)”. No aludido plano, não pode também olvidar-se os critérios de adequação e proporcionalidade que regem a aplicação das sanções disciplinares nos termos decorrentes do art.º 330.º do Código do Trabalho. Como também se consignou na sentença recorrida, “ No caso vertente, não pode deixar de se entender este incumprimento dos deveres de zelo e diligência, de obediência, de lealdade, e de boa fé reveste um comportamento voluntário e doloso que se revela altamente nocivo, incompatível com a fidúcia que é elemento essencial do contrato de trabalho, ou seja, o comportamento do Autor/Trabalhador é muitíssimo grave, ainda que na forma tentada, especialmente pelas funções que exercia (sendo motorista, tem como uma das suas funções, também a cobrança de bilhetes, ficando obviamente depositário de valores monetários que pertencem à sua entidade empregadora, os quais terá que entregar à mesma, não podendo apropriar-se dos mesmos), e também até por força da actividade desempenhada pela Empregadora (os clientes que fazem transportar-se nos autocarros daquela, e que pagam os respectivos bilhetes, tem direito a receber os respectivos títulos de transporte porque são os mesmos que comprovam o respectivo pagamento e que têm e devem ser apresentados pelos clientes em situações de fiscalização, sendo mesmo a única via dos clientes evitarem o pagamento de multas/coimas – e até eventuais situações de natureza criminal – por falta de título de transporte, pelo que a falta de entrega dos respectivos títulos de transporte por um motorista que foram pagos, para além do mais, ainda pode originar situações de conflito grave entre os clientes e a própria empresa empregadora), constituindo elemento básico da relação laboral entre qualquer trabalhador e uma empresa com esta actividade a certeza absoluta de que todos os bilhetes comprados pelos clientes são efectivamente impressos e entregues pelo motorista e de que este não se apropria (nem se tenta apropriar) dos respectivos valores monetários, pelo que um motorista de serviços públicos não pode, em absoluto, praticar este tipo de acto, quer porque visa prejudicar materialmente a empresa (o prejuízo aqui só não se verificou porque existiu a intervenção de uma equipa de fiscalização que “obrigou” à emissão dos bilhetes), quer porque este tipo de situações afecta gravemente a imagem e confiança da empresa junto dos seus clientes (este pagam os bilhetes, mas ficam sem o respectivo título de transporte que comprova esse pagamento, e que têm exibir perante qualquer acção de fiscalização, sendo que no caso o Autor/Trabalhador actuou relativamente a cidadão estrangeiros que, naturalmente, são um “alvo” mais fácil deste tipo de actuação maliciosa)”. Nestas circunstâncias, temos necessariamente que concluir que a aplicação da sanção de despedimento se revela como a única sanção ajustada e proporcionada, mesmo perante a inexistência de anteriores antecedentes disciplinares possam, ser considerados (embora o Autor/Trabalhador tenha sido alvo da aplicação de uma sanção disciplinar anterior - cfr. facto provado nº18 -, uma vez que não estamos perante uma situação de reincidência nem de faltas, tal sanção anterior não pode ser considerada atento o disposto na cláusula 50ª do AE), já que o incumprimento dos deveres de zelo e diligência, obediência, lealdade, e boa fé no caso em apreço reveste um comportamento voluntário e doloso que se revela altamente nocivo, incompatível com a fidúcia que é elemento essencial do contrato de trabalho, ou seja, não podemos deixar de concluir que a confiança da Ré/Empregadora no desempenho do Autor/Trabalhador ficou definitiva e irremediavelmente anulada, sendo-lhe consequentemente inexigível que mantenha a questionada relação laboral em face deste comportamento da trabalhadora; com efeito, como é que se pode exigir, em termos de razoabilidade e de normalidade, no quadro de gestão da empresa, que o Empregador continue a confiar num trabalhador após estes comportamentos grosseiramente graves, para mais quando tal confiança tem que ser absoluta, para mais quando a sua actuação profissional, tinha que ser integralmente honesta, leal, rigorosa e cumpridora? Como é que se pode exigir, em termos de razoabilidade e de normalidade, no quadro de gestão da empresa, que o Empregador continue a confiar num trabalhador que, por um valor de € 6,00 coloca em causa a sua dignidade e honestidade pessoal? Como como é que se pode exigir, em termos de razoabilidade e de normalidade, no quadro de gestão da empresa, que o Empregador continue a confiar num trabalhador para executar as funções de motorista, no âmbito das quais também faz cobrança de bilhetes, quando anteriormente tentou apropriar-se do dinheiro resultante dessas cobranças? Portanto, afigura-se-nos ser impossível formular um prognóstico minimamente favorável quanto à viabilidade futura desta relação laboral, quer porque não se vislumbra como pode existir uma relação de confiança no dia a dia entre a administração da Ré/Empregadora e o trabalhador em tudo o que respeitar às funções por este desempenhadas, quer porque existe o efectivo perigo da repercussão das condutas em causa na disciplina geral da organização em termos de exemplo para a generalidade dos restantes trabalhadores da Ré/Empregadora, nomeadamente, aqueles que exercem funções idênticas (não despedir um trabalhador que tem este tipo de comportamento, seria um “convite” a que todos os restantes motoristas também procurassem apropriar-se do dinheiro dos bilhetes), quer porque o próprio comportamento só cessou porque o Autor/Trabalhador foi alvo de uma fiscalização (isto é, não cessou voluntariamente o seu comportamento, e nem o confessou, pelo menos, atenta a posição processual que assumiu nesta acção, que é aquela que efectivamente vale juridicamente, sendo que sem o reconhecimento expresso do seu acto mostra impossível fazer qualquer juízo de prognose favorável à existência de um mínimo de condições para a continuação da relação laboral). Aquilo que é efectivamente permitido prognosticar é que a manutenção do vínculo irá constituir fonte de total e absoluta perturbação no funcionamento dos serviços da Empregadora, não sendo, portanto, exigível que este mantenha ao seu serviço o Trabalhador (aquele não pode manter ao seu serviço, no exercício da sua actividade, uma pessoa que tem a intenção de se apropriar de quantias monetários que são da propriedade da empresa, sendo que a tal intenção é realizada através de actos que são próprios das funções que exerce no dia a dia)”. Desta feita, tendo em conta a factualidade apurada, à luz dos ensinamentos e considerandos supra expostos, não pode deixar de concluir-se que a conduta do autor é muito grave e fez quebrar irremediavelmente a base da confiança em que assenta a relação laboral em questão, criando no espírito da ré empregadora a fundada dúvida sobre a idoneidade futura do trabalhador, constituindo justa causa de despedimento. Termos em que se conclui pela improcedência da presente questão. 5. Decisão Em face do exposto, nega-se provimento ao recurso do autor na sua vertente de facto e direito e confirma-se a decisão recorrida. Custas pelo autor. Lisboa, 2021-01-27 Albertina Pereira Leopoldo Soares Eduardo Sapateiro | ||
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