Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
25559/20.2T8LSB-A.L1-8
Relator: MARIA TERESA LOPES CATROLA
Descritores: ADVOGADO
DEVER DE SIGILO
MEIOS DE PROVA
JUNÇÃO DE DOCUMENTOS
CORRESPONDÊNCIA ENTRE ADVOGADOS
LEVANTAMENTO DO DEVER DE SIGILO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: «1. As comunicações entre mandatários geradas em negociações para resolução extrajudicial do diferendo não podem ser juntas aos autos sem que fosse obtida a prévia autorização junto da Ordem dos Advogados.
2. O nº 3 do artigo 92 do Estatuto da Ordem dos Advogados impede a revelação ou junção de documentos quando, face ao seu conteúdo, daí resulte a revelação de factos sujeitos a sigilo e a consequente violação do dever de segredo».
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

I. Relatório
“A…., SA”, com sede na Avenida ….Lisboa, autora nestes autos em que é ré B….., interpôs o presente recurso de apelação do despacho proferido em 12 de outubro de 2023, (referência 429238241) pelo Tribunal a quo, admitido com subida imediata em separado e efeito suspensivo, que termina com a seguinte decisão: “Entendemos que o que se encontra sujeito a sigilo são factos dos quais o advogado toma conhecimento durante as negociações ou as próprias negociações malogradas. Porém, no presente caso, está em causa o acordo concretamente celebrado entre as partes através dos respectivos mandatários, facto que não se encontra coberto pelo sigilo.
Assim, quer a contestação, quer o documento junto pela ré, quer o depoimento da testemunha, Dr. …., advogado que teve intervenção na celebração do acordo, serão valorados apenas quanto à própria celebração do acordo e não quanto às negociações prévias ou outros factos adjacentes de que houve conhecimento em virtude de tais negociações, sendo apenas estes que, ao abrigo do disposto no artigo 92º, n.º5 do EOA, não podem fazer prova em juízo”.
Alega a autora que os artigos 15, 16, 17, 18, 19, 20 e 21 da contestação da ré estão sujeitos a sigilo profissional, devendo considerar-se não escritos, o documento n.º 1 junto com a contestação  não deverá ser admitido como meio de prova porquanto do mesmo resulta a expressa referência e transcrição, ainda que parcial, de diversa troca de correspondência eletrónica ocorrida entre as mandatárias da autora e o então mandatário da ré, e o depoimento enquanto testemunha do Dr. …., anterior mandatário da ré, também não deverá ser admitido, por também este se encontra sujeito aos deveres de sigilo profissional e confidencialidade nos contactos trocados com as mandatárias da autora.
A recorrente termina as suas alegações, apresentando as seguintes Conclusões:
“1) O presente recurso incide sobre o douto despacho datado de 12.10.2023, com a ref.ª 429238241, por via do qual foi decidido que “no presente caso, está em causa o acordo concretamente celebrado entre as partes através dos respectivos mandatários, facto que não se encontra coberto pelo sigilo” consequentemente admitiu que “quer a contestação, quer o documento junto pela ré, quer o depoimento da testemunha, Dr. ….., advogado que teve intervenção na celebração do acordo, serão valorados apenas quanto à própria celebração do acordo”.
2) Estipula o artigo 92.º, n.º 1 do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado em anexo à Lei n.º 145/2015, de 9 de setembro (doravante apenas EOA), que o Advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços.
3) Nessa medida, o dever de discrição que integra o dever geral de sigilo impõe-se a todos os advogados e exclui a divulgação de factos, informações, documentos ou coisas das quais o advogado tomou conhecimento no exercício ou por ocasião do exercício das suas funções, só podendo cessar nos termos e nas condições previstas nos artigos 92.º, n.º 5 do E.O.A.
4) Dado que, por princípio e por regra, o segredo deve ser preservado, o seu levantamento exige a conclusão de que a dispensa de guardar segredo é inequivocamente necessária, o que implica um juízo de essencialidade e imprescindibilidade acerca da revelação de matéria sujeito a sigilo, cabendo tal ponderação à respectiva Ordem profissional.
5) O mandatário da Ré, subscritor da Contestação não fez prova, como lhe competia quanto aos factos alegados nos artigos 15º, 16º, 17º, 18, 19º, 20º e 21º da Contestação e respectivo Documento n.º 1 ali junto, que obteve prévia dispensa do dever de sigilo seja para relevação de factos, seja do documento que juntou com a Contestação (participação disciplinar feita pela Autora e respectivas mandatárias relativamente ao anterior mandatário da Ré, Dr. ….), nos termos do referido artigo 92º do E.O.A.
6) S.m.o., não só a junção pela Ré do documento n.º 1 com a Contestação (ou até a prestação de depoimento pelo anterior mandatário e ali arrolado como testemunha), mesmo que não estivesse abrangida como está pela confidencialidade a que se refere o artigo 113º do E.O.A., sempre violaria o dever de segredo profissional sendo, por isso, prova nula, o que a Autora em tempo, expressamente invocou nos autos e ora reitera,
7) O mesmo se diga quanto à matéria factual constante dos art.ºs 15º a 21º da Contestação - e que se referem a correspondência/contactos entre advogados – que está sujeita a sigilo profissional pelo que, sem que os respectivos mandatários neles intervenientes, e nos quais se inclui a ora signatária, fossem dispensados pelo respectivo organismo profissional do cumprimento desse dever, não poderiam ser revelados, devendo assim ter-se por não escritos e/ou desentranhados.
8) Nos contactos trocados com o anterior mandatário da Ré, as mandatárias da Autora invocaram a confidencialidade, ao abrigo do artigo 113º do E.O.A., como já na pendência dos autos, requereram a dispensa de sigilo profissional, a fim de a Autora se pronunciar-se sobre a matéria alegada nos artigos 15º a 21º da Contestação, e fosse a Dra. …. autorizada a depor como testemunha da Autora e, ainda, eventualmente fosse concedida dispensa para junção aos autos da troca de correspondência electrónica havida com o então mandatário da Ré, porque já parcialmente transcrita no Documento n.º 1 junto com a Contestação.
9) Tal pedido de dispensa de sigilo veio a ser-lhes indeferido, o que a Autora comunicou aos autos por requerimento de 14.12.2022.
10) Ora, a Ré defendeu-se em sede de Contestação alegando que a dívida se encontrava paga, por via de acordo alcançado entre os respectivos mandatários das partes e descreveu, individualizando, cada uma das comunicações electrónicas havidas entre os mesmos e juntou como “prova” de tais contactos que terão alegadamente resultado em acordo – o que não se concede -, a participação disciplinar que a Autora e as suas mandatárias apresentaram junto da respectiva Ordem profissional, donde constam transcritas as comunicações electrónicas trocadas entre mandatários.
11) De forma surpreendente e inusitada e ao arrepio do supra citado regime legal, a Mma. Juiz a quo decidiu que estando em causa “o acordo concretamente celebrado entre as partes através dos respectivos mandatários” “quer a contestação, quer o documento junto pela Ré, quer o depoimento da testemunha Dr. ….”, advogado que teve intervenção na celebração do acordo, serão valorados apenas quanto à própria celebração do acordo e não quanto às negociações prévias (…) sendo estes apenas que, ao abrigo do artigo 92º, n.º 5 do EOA, não podem fazer prova em juízo”.
12) S.m.o., o Tribunal a quo não podia ter considerado apenas o regime geral e autónomo do segredo profissional previsto no artigo 92.º, n.º 1 alíneas d) e e) do E.O.A., mas, também o regime especial da correspondência entre mandatários – artigos 111.º e seguintes do E.O.A., pois a Apelante alegou expressamente, no requerimento com a ref.ª Citius 41531267, de 07/03/2022, estar aquela correspondência e factos sujeitos também ao disposto no artigo 113º do E.O.A.
13) O conceito de “factos” para efeitos do sigilo profissional é um conceito amplo e compreende não só os factos materiais suscetíveis de alegação, como os próprios documentos onde esses mesmos factos materiais estão contidos, como decorre do disposto no artigo 92.º, n.º 3 do E.O.A.
14) O princípio geral é o de que os advogados estão obrigados a guardar segredo profissional em relação a assuntos profissionais versados em correspondência trocada com outros advogados.
15) A própria redação do normativo legal contido no art.º 92.º do E.O.A permite-nos, não atendendo apenas e tão-só à sua letra, interpretar e reconstruir aquele que foi o espírito do legislador quanto aos factos que pretende ver protegidos pelo segredo profissional, pelo que a utilização do advérbio “designadamente” no art.º 92.º, n.º 1, leva-nos a concluir que os factos sujeitos a segredo profissional não se esgotam naqueles que se encontram elencados nas suas diversas alíneas, designadamente, no que ao caso dos autos, às alíneas d) ou e) como entendido pela Mma Juiz a quo.
16) Dito isto, forçoso é concluir que não só os factos alegados em 15º a 21º da Contestação, como as comunicações transcritas no documento 1 junto com a Contestação dizem respeito a assuntos profissionais conhecidos no exercício da profissão e por causa desse mesmo exercício. Pelo que, existindo uma relação de causalidade necessária entre o exercício dessas funções e o conhecimento desses mesmos factos, dúvidas não subsistem de que essas comunicações estão abrangidas pelo dever de sigilo por força da cláusula geral contida no artigo 92.º, n.º 1 do E.O.A, em articulação com o disposto no n.º 3 da mesma norma legal.
17) Errou por isso o Tribunal a quo na decisão proferida, pois validou como meio de prova um documento sujeito ao regime do segredo profissional, de acordo com o disposto no artigo 92.º, n.º 1, alínea e) e f) e 113.º, ambos do E.O.A, e permite que os mandatários, em representação da Ré, possam produzir prova indireta, quando a Autora (porque sujeita ao sigilo profissional do qual as respectivas mandatárias não foram dispensadas), está impedida de fazer contraprova de tais factos, documento e depoimento.
18) Os mandatários das partes são meros representantes dos seus clientes e, por isso, não podem, em nome deles, fazer qualquer tipo de prova, pois, caso contrário, mostra-se violado em absoluto o direito do contraditório que assiste à parte contrária, pois, quanto à matéria factual alegada em 15º a 21º da Contestação (alegado acordo para extinção da dívida) e ao documento junto pela Ré, a Autora, e até depoimento do anterior mandatário da Apelada está a Apelante impedida de se pronunciar quanto a ambos, nem poderá fazer a contraprova, por estar vinculada ao segredo profissional das respectivas mandatárias que a representam.
19) A tese do Tribunal a quo é manifestamente insustentável, pois é violadora dos princípios basilares do Processo Civil, nomeadamente o princípio do contraditório, consagrado no artigo 3.º, n.º 3, o princípio da igualdade das partes, previsto no artigo 4.º do mesmo código e, ainda, o princípio da boa-fé processual, estabelecido no artigo 8.º, todos do C.P.C.
20) Quer a matéria alegada nos artigos 15º a 21º da Contestação, como o documento n.º 1 junto com a mesma e o advogado Dr. …, estão abrangidos pelo dever de segredo profissional – artigo 92.º, n.º 1, alínea e) e f) e artigo 113.º, ambos do Estatuto da Ordem dos Advogados – bem como a sua admissão como meio de prova resulta, claramente, numa violação dos princípios basilares do Processo Civil, nomeadamente o princípio do contraditório, da igualdade e da boa- fé.
21) Pugna-se assim, por via do presente recurso, pela revogação do despacho ora em crise e sua substituição por decisão que ordene o desentranhamento dos autos quer da matéria contida nos artigos 15º a 21º da Contestação, quer do documento junto com a Contestação, bem como seja rejeitado, o depoimento como testemunha do Dr. …., atenta a sua admissibilidade legal à luz do regime do sigilo profissional que emerge do E.O.A.
22) Mais se requer, nos termos do n.º 2 do artigo 647º de C.P.C. que ao presente recurso seja atribuído efeito suspensivo, porquanto a execução do despacho ora em crise e por via do qual foi igualmente designada já a data para realização da audiência de discussão e julgamento para o próximo dia 21 de Novembro de 2023, pelas 13h30m, causará prejuízo considerável e irreparável à Autora/Apelante, a qual desde já se oferece para prestar a devida caução.
Termos em que se requer a Vossas Excelências, Venerandos Desembargadores, se dignem admitir o presente recurso, atribuindo-lhe efeito suspensivo, conforma requerido em 22)supra e, consequentemente, decidindo nos termos acima pugnados, com o que uma vez mais se fará a já costumada e devida JUSTIÇA!”.
A recorrida contra-alegou, terminando com as seguintes conclusões:
“1- No seu requerimento de interposição de recurso a recorrente limita-se a invocar que a execução do despacho recorrido lhe causará prejuízo considerável.
2-No seu requerimento de interposição de recurso a recorrente não invoca o concreto prejuízo considerável que lhe causará a execução do despacho recorrido.
3-A execução do despacho recorrido apenas implica o prosseguimento dos autos, designadamente, a efetuação do julgamento, com a admissão da contestação da recorrida, da junção aos autos do documento nº 1 da contestação e do depoimento da testemunha …., o que não constitui prejuízo considerável para a recorrente.
4-Não se verificam os pressupostos da atribuição de efeito suspensivo ao presente recurso de apelação autónoma.
5-Deve atribuir-se ao presente recurso de apelação autónoma efeito meramente devolutivo.
6- A recorrente instaurou a presente ação com processo comum, em que nos termos e pelos fundamentos constantes da petição inicial, formulou pedido de pagamento pela recorrida da quantia de 6.307,62€.
7-A recorrida apresentou a sua contestação, em que nos termos e pelos fundamentos dela constantes, concluiu pela sua absolvição do pedido, e em que invocou a exceção de cumprimento de contrato de transação extrajudicial.
8-O ónus da prova da exceção de cumprimento de contrato de transação extrajudicial incumbe à recorrida.
9-Os factos invocados nos artigos 15º a 21º da contestação integram a exceção de cumprimento de contrato de transação extrajudicial.
10-Os factos invocados nos artigos 15º a 21º da contestação são factos pessoais da recorrida.
11-Os factos invocados nos artigos 15º a 21º da contestação respeitam ao contrato de transação extrajudicial celebrado entre recorrente e recorrida.
12-Os factos constantes dos artigos 15º a 21º da contestação foram invocados pela recorrida, não tendo sido invocados pelo seu anterior mandatário que a representou na negociação com a recorrente que culminou no contrato de transação extrajudicial.
13-O mandatário forense da recorrida na presente ação não teve qualquer intervenção na negociação da recorrida com a recorrente que culminou no contrato de transação extrajudicial.
14-Os factos invocados nos artigos 15º a 21º da contestação não respeitam a negociações mantidas na pendencia da presente ação.
15-Os factos invocados nos artigos 15º a 21º da contestação respeitam à negociação da recorrida com a recorrente que culminou no contrato de transação extrajudicial, tendo essa negociação e o cumprimento da mesma ocorrido antes da instauração da presente ação.
16-Os factos invocados nos artigos 15º a 21º da contestação não respeitam a negociações malogradas, respeitando, ao invés, à celebração e ao cumprimento do contrato de transação extrajudicial.
17-O documento nº 1 junto com a contestação não constitui correspondência trocada entre advogados.
18-O documento nº 1 junto com a contestação consiste em processo disciplinar instaurado contra o Dr. …., com base em participação apresentada pela Dra. …., pela Dra. …. e pela recorrente.
19-O documento nº 1 junto com a contestação não constitui documento confidencial.
20-O despacho recorrido não viola os princípios do contraditório, da igualdade das partes, da boa-fé processual e da cooperação processual.
21- No despacho recorrido ao decidir-se pela admissão da contestação da recorrida, da junção aos autos do documento nº 1 da contestação e do depoimento da testemunha …., não se violou o disposto nos artigos 92º, nºs 1 e 5, 111º, 113º do Estatuto da Ordem dos Advogados, 3º, nº 3, 4º e 8º do Código de Processo Civil.
22- Nestes termos e nos demais de direito, deve negar-se provimento ao presente recurso de apelação autónoma, e em consequência, manter-se e confirmar-se o despacho recorrido, como é de inteira JUSTIÇA”.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II. Âmbito do recurso
Nos termos do artigo 635 do CPC, o objeto do recurso acha-se delimitado pelas alegações da recorrente, sem prejuízo do disposto no artigo 608 do mesmo Código.
A questão suscitada consiste em  apreciar se:
1. A ré podia  alegar os factos vertidos nos artigos 15 a 21 da contestação;
2. Os meios de prova relativos a esta matéria podiam ser admitidos- o mail junto como documento n.º 1 com a contestação e o depoimento do Dr. …., mandatário que participou nas negociações para obtenção de acordo extrajudicial com a autora- ou se estão abrangidos pelo sigilo profissional do advogado (artigo 92/1 e 3 do Estatuto da Ordem dos Advogados).
III. Fundamentação
A factualidade relevante para efeitos decisórios é a que consta do relatório que antecede.
IV. Fundamentação de Direito
- O dever de sigilo profissional
Como é pacífico, o dever de sigilo profissional que impende sobre o Advogado tem a sua razão de ser na necessidade de preservar o princípio da confiança, sendo que o exercício da advocacia assume reconhecido interesse público, dada a natureza social dessa função.
Como se consagra no n.º 2.3.1. do Código de Deontologia dos Advogados Europeus: “É requisito essencial do livre exercício da advocacia a possibilidade do cliente revelar ao advogado informações que não confiaria a mais ninguém, e que este possa ser o destinatário de informações sigilosas só transmissíveis no pressuposto da confidencialidade. Sem a garantia de confidencialidade não pode haver confiança. O segredo profissional é, pois, reconhecido como direito e dever fundamental e primordial do advogado.
A obrigação do advogado de guardar segredo profissional visa garantir razões de interesse público, nomeadamente a administração da justiça e a defesa dos interesses dos clientes. Consequentemente, esta obrigação deve beneficiar de uma proteção especial por parte do Estado
. “
E como forma de salvaguardar e proteger esse dever de sigilo profissional, acrescenta-se no n.º 2.3.2 que “O advogado deve respeitar a obrigação de guardar segredo relativamente a toda a informação confidencial de que tome conhecimento no âmbito da sua atividade profissional.” (Aprovado por deliberação na sessão do Conselho Geral da Ordem dos Advogados de 13 de Julho de 2007 e tornada pública pela Deliberação n.º 2511/2007 de 7 de Dezembro, publicada no DR, II ª Série, de 27 de Dezembro).
 Neste sentido, como se refere no Acórdão da Relação do Porto de 7 de julho de 2010 (processo n.º 10443/08.6TDPRT-A.P1, relator Eduarda Lobo, disponível in www.dgsi.pt“ Sempre que estejam em causa profissões (como é o caso do exercício da advocacia) de fundamental importância colectiva, designadamente porque grande maioria das pessoas carece de as utilizar, a inviolabilidade dos segredos conhecidos através do seu exercício constitui condição indispensável de confiança nessas imprescindíveis actividades e, nessa medida, reveste-se de elevado interesse público”. E, ainda, refere-se em outro passo do mesmo aresto que “O segredo profissional é um direito e um dever do advogado. Só um segredo profissional com tais contornos é verdadeiramente o garante de um interesse público que, com ele, a lei visa prosseguir e que tem uma dupla vertente: por um lado, que as partes se façam, sem qualquer receio, aconselhar o Advogado e que este possa, sem constrangimento, ser informado de tudo o que entenda ser necessário ao exercício correcto do seu múnus; por outro, que o Advogado possa, sem constrangimento, correr o caminho da livre e responsável conciliação de interesses, como forma de reduzir a conflitualidade judicial.
Em idêntico sentido, refere-se, no que tange ao âmbito do segredo profissional em caso de negociações entre as partes representadas por Mandatário Forense, no Acórdão da Relação do Porto de 28 de outubro de 2015 (processo n.º 3705/11.7TBSTS-B.P1, relator Rodrigues Pires, disponível in www.dgsi.pt) que nas “negociações, tendentes a evitar o recurso aos tribunais, se espera um comportamento de boa fé e se age com uma certa dose de confiança. Aliás, o esforço de fazer sentir à parte contrária as razões próprias obriga a que se abra o jogo e se digam factos que não se devem converter em trunfos para o adversário.
Em suma, sendo provável a existência, nestas negociações, do objectivo de conseguir uma transacção, é natural que se façam cedências ou concessões cuja revelação se não quer”.
Dito isto e tendo, pois, por indiscutível o relevo do sigilo profissional que impende sobre o Advogado e, ainda, que os meios de prova obtidos com violação de tal dever de sigilo não podem ser admitidas e fazer prova em juízo, importa, no entanto, considerar, como se salienta nos dito aresto desta Relação de 28.10.2015, ou, ainda, no Acórdão da Relação do Porto de 10 de novembro de 2015 (processo n.º 964/11.9TBMAI-D.P1, relator Tomé Ramião, disponível no mesmo sítio) que o Estatuto da Ordem dos Advogados não prevê uma qualquer norma de onde “decorra uma proibição genérica de revelação ou de junção a processos de correspondência trocada entre advogados em representação dos seus mandantes, ou entre advogados e a parte contrária ou seu mandante.“
O nº 3 do artigo 92 do Estatuto da Ordem dos Advogados apenas impede a revelação ou junção de documentos quando, face ao seu conteúdo, daí resulte a revelação de factos sujeitos a sigilo e a consequente violação do dever de segredo.
Portanto, nem todos os factos estão abrangidos pelo sigilo profissional, mas apenas aqueles que se reportam a assuntos profissionais que o advogado tomou conhecimento, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste, ou, ainda, no âmbito de negociações que visem pôr termo ao litígio, tenham essas negociações obtido o almejado acordo de interesses (judicial ou extrajudicial) ou não tenham obtido esse acordo (negociações malogradas), pois que o princípio da confiança, essencial e imprescindível ao exercício dessa função, exige confidencialidade relativamente aos factos e informações reveladas pelo seu cliente e que, não fora essa garantia, o mesmo não os revelaria a mais ninguém.
 “Nem todas as diligências efectuadas pelo Advogado, no exercício da sua profissão, estão obrigadas ao sigilo. (…)A correspondência dirigida por Advogado, em representação, do cliente, à contraparte ou ao Advogado desta, como seu representante, para a produção de determinado efeito jurídico, como a interpelação ou notificação para preferência ou para caducidade de contrato a termo, ou a prática de um acto jurídico, designadamente a emissão de uma declaração negocial perante eles ou de outra declaração durante a fase preliminar da formação da vontade negocial não estão, porém, abrangidas pelo segredo profissional e terão valor probatório.
Não está sujeito a segredo profissional, o Advogado que escreve uma carta à contraparte ou ao seu Advogado a reclamar direitos, valores, documentos ou objectos do seu cliente ou para a produção de um determinado efeito jurídico (impedir a prescrição ou a caducidade de um direito disponível, a participar um acontecimento; a reclamar um direito ou uma indemnização por perdas e danos; a solicitar um aumento de renda; a comunicar o depósito de renda; a apresentar as custas de parte; a interpelar para a constituição em mora. “Somente a correspondência trocada após a primeira comunicação/interpelação/reclamação é que consubstancia uma negociação, a qual pode ser cumprida ou malograda”. www.docdatabase.net/more-deontologia-profissional verbo juridico- carlos mateus
“A regra é a defesa e a manutenção do segredo profissional, o qual deve ser aferido :
i) pela forma como o conhecimento do facto chegou ao Advogado, quem o revelou e em que quadro fáctico;
ii) pelo teor do facto, que ajuda a perceber se tem ou não a natureza de segredo, pois nem tudo o que é revelado ao Advogado é, em si, um segredo;
iii) pelas próprias circunstâncias do conhecimento e da revelação”. (idem)
Estão excluídos do sigilo, por exemplo, os actos e serviços publicos praticados pelo advogado em nome ou para o seu constituinte, tais como os articulados ou documentos em processos não sujeitos a segredo de justiça, ou factos articulados nestes diligências, e seu resultado, tornadas publicas.
A prévia dispensa, incidirá, apenas, por exemplo, sobre documentos que o advogado tenha na sua posse (não publicitados ainda), nomeadamente troca de correspondência com a contraparte, protegidos pelo art. 87.º, n.º 1 e 87.º, n.º 1, als. a), e) e f) e n.º 3 do EOA. (Acórdão da Relação de Lisboa de 6 de junho de 2019 (Isoleta Costa)
Por conseguinte é este, em nosso ver, o preciso e específico sentido do artigo 92º do EOA e é, logicamente, com tal interpretação que o mesmo deve, pois, ser aplicado o caso dos autos.
1.  Os artigos 15, 16, 17, 18, 19, 20 e 21 da contestação
Alega a recorrente que os factos alegados nos artigos referidos são factos que estão sujeitos a sigilo profissional e confidencialidade e deverão ter-se por não escritos e  desentranhados dos autos.
Em primeiro lugar, cumpre fazer uma precisão: como é óbvio, a não aceitação de algum facto alegado num articulado não dá lugar ao seu desentranhamento, pois não existe desentranhamento de factos, mas sim de articulados ou requerimentos.
Em segundo lugar, e estando nós na era do processo informatizado, em que o articulado é, regra geral apresentado num único bloco, que inclui os documentos, também já não é possível ordenar o desentranhamento de parte daquele articulado pois o mesmo é incidível.
O que se pode fazer é considerar não escrito e sem qualquer valor processual qualquer facto alegado que se considere não ser admissível no articulado em questão.
Feito esta observação, prossigamos.
E a este respeito, parece-nos que a autora faz alguma confusão entre os factos que podem ser alegados e a prova que sobre os mesmos pode incidir.
Ora, salientamos que os factos alegados o são por mandatário que representa a ré, que não teve qualquer participação nas negociações havidas e por isso não lhe é aplicável o disposto no artigo 92 do EOA.
Ou seja, sobre este ilustre mandatário não impende qualquer dever de segredo profissional (a não ser o que se estabelece na relação entre si e a aqui ré) que o impeça de alegar o que bem entender para defesa da sua cliente.
Por isso, podia a ré alegar a matéria vertida nos artigos 15 a 21 do articulado da contestação.
Diferente da alegação são os meios de prova admitidos para  prova dos factos alegados e sobre estes iremos pronunciarmo-nos-emos abaixo.
Improcede, nesta parte, o recurso interposto.
- Os meios de prova
1.  O Documento n.º 1 junto com a contestação:
A questão que se suscita no presente recurso e que este Tribunal Superior é chamado a dirimir consiste em saber se o documento n.º 1,  se encontra coberto pelo sigilo profissional que decorre do Estatuto Profissional dos Advogados, caso em que tal documento não deveria ser admitido como meio de prova, ou, ao invés, se, como se mostra decidido pelo Tribunal de 1ª instância, o mesmo documento não se mostra coberto por aquele sigilo profissional e, assim, logicamente, é o mesmo de admitir como meio de prova.
Neste conspecto, o dissenso entre o entendimento perfilhado na decisão recorrida (secundado pela ré nas suas contra-alegações) e o entendimento perfilhado pela autora/recorrente reconduz-se, em primeiro lugar, à interpretação dos artigos 92º, n.º 1, alínea e) e f) e 113º do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei n.º 145/2015 de 9 de setembro.
Com efeito, se bem se alcança das conclusões do recurso, segundo a recorrente a interpretação do Tribunal de 1ª instância quanto aos citados normativos deveria ter, ao contrário do decidido, em razão do preceituado no n.º 5 do mesmo artigo 92º, conduzido à inadmissibilidade de tal documento n.º 1, pois que o mesmo documento se integra nas hipóteses contempladas nos ditos normativos.
Vejamos.
O aludido artigo 92º do Estatuto da Ordem dos Advogados preceitua o seguinte:
“1 - O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:
(…)
e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;
f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.
2 - A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indiretamente, tenham qualquer intervenção no serviço.
3 - O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo.
4 - O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respetivo regulamento.
5 - Os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo.
Por seu turno, prevê o artigo 113º do mesmo Estatuto da Ordem dos Advogados [doravante designado por EOA] o seguinte:
“ 1 - Sempre que um advogado pretenda que a sua comunicação, dirigida a outro advogado ou solicitador, tenha caráter confidencial, deve exprimir claramente tal intenção.
2 - As comunicações confidenciais não podem, em qualquer caso, constituir meio de prova, não lhes sendo aplicável o disposto no n.º 4 do artigo 92.º “
Dito isto, salientemos o enquadramento em que é junto o documento n.º 1 com a contestação.
Refere a ré neste articulado que o documento n.º 1 se destina a provar a matéria alegada nos artigos 15, 19 e 21 da contestação.
Contudo, o início deste documento n.º 1 é a notificação do ilustre participado, Dr. …. (página 1) para prestar os esclarecimentos que considerar necessários, no prazo de 10 dias, face à participação apresentada e na sequência de despacho proferido pela Srª Presidente do Conselho de Deontologia da Ordem dos Advogados de Lisboa, também junto (página 2), seguido da participação apresentada (páginas 3 a 14) e na qual constam os mails trocados entre os mandatários.
Sejamos coerentes: a junção da participação disciplinar não tem qualquer interesse nos autos e não é matéria alegada. Esta conclusão faz com que outra surja: de forma encapotada, sob a capa da participação disciplinar, a ré procede à junção dos mails que refere nos artigos 15, 19 e 21 da contestação.
Por isso, e para o que releva nestes autos, o documento n.º 1 é indicado para prova da matéria vertida nos referidos artigos da contestação (que em nada têm a ver com a participação disciplinar), pretendendo a recorrida que o tribunal aprecie os mails juntos e não o teor da participação disciplinar.
Por isso não corresponde inteiramente à verdade as conclusões da recorrida nos pontos 17 e 18 quando afirma que o documento n.º 1 junto com a contestação não constitui correspondência trocada entre advogados, consistindo em processo disciplinar instaurado contra o Dr. …., com base em  participação apresentada pela Drª ….. , pela Drª …. e pela recorrente. Para o que releva nos autos, o documento n.º 1 constitui correspondência trocada entre mandatários.
Expliquemos:
Os mails juntos respeitam a negociações havidas entre a mandatária da autora e o ex-mandatário de …. para regularização de uma dívida do cartão de crédito ….
Ora, tendo em conta o teor dos mails juntos pela ré verifica-se que as comunicações decorreram entre a mandatária da apelante e o anterior mandatário de …. para pagamento do valor em dívida por este, com apresentação de proposta e contra-proposta, sendo que, e no que respeita a …., as negociações havidas culminaram na resolução do litígio.
Sucede que a agora ré pretende estender as negociações havidas a si própria, e à dívida do seu cartão de crédito perante a aqui apelante, argumentando que tais negociações incluíam não só o valor em dívida de …. mas também a sua própria dívida, o que não é aceite pela autora, que restringe o acordo extra-judicial obtido apenas à dívida de …..
Ora, tais factos resultam das negociações havidas entre os mandatários para acordo que visava pôr fim ao diferendo existente, e por isso, encontra-se vedada a consideração desses factos e da respectiva documentação gerada em tais negociações, sem que fosse obtida a prévia autorização da sua utilização junto da Ordem dos Advogados.
Sucede que, as comunicações referidas  foram juntas aos autos sem que tenha sido obtida a necessária autorização junto da Ordem dos Advogados. Logo, o documento n.º 1 junto com a contestação não pode servir como meio probatório para a demonstração da realidade dos factos alegados sob os n.ºs 15, 19 e 21 do articulado da contestação.
Procede, nesta parte o recurso apresentado.
Por fim, um breve apontamento à alegação e conclusão da recorrente de que o documento n.º 1 junto com a contestação está abrangido pela confidencialidade a que alude o artigo 113 do Estatuto da Ordem dos Advogados.
È evidente que o documento n.º 1 ora em causa não se mostra compreendido na previsão normativa do citado artigo 113º.
Com efeito, o que o dito normativo consagra é a estrita proibição de o Advogado revelar o conteúdo de comunicações que lhe sejam dirigidas por outro seu colega de profissão, quando este último (o declarante) lhe exija, de forma expressa, a respectiva confidencialidade.
Nesta hipótese, e como resulta de forma clara do n.º 2 do citado artigo 113º ao afastar a aplicação do n.º 4 do artigo 92 (que se refere à autorização do Conselho Regional respetivo para o levantamento do sigilo profissional), não é admissível ao receptor de tal comunicação (declaratário/advogado) revelar o conteúdo da mesma, não sendo sequer possível obter autorização para tanto junto do respetivo Conselho Regional da Ordem.
Porém, no caso dos autos e do documento ora em apreço, não existe qualquer menção de confidencialidade, seja ela expressa ou tácita.
Ou seja, para os presentes efeitos tanto é confidencial o documento confidencial stricto sensu  ( que contém a menção da sua confidencialidade) como aquele documento que, não o sendo, contém elementos confidenciais (porque sujeitos a sigilo profissional) que se pretende usar no decurso de um processo judicial. Ora, é precisamente esta situação que está retratada nestes autos.
Por conseguinte, a hipótese a que alude o artigo 113º do EOA não é aplicável ao caso dos autos, sendo o motivo da sua não admissão o acima referido.
- O depoimento da testemunha Dr. ….
Na presente acção discute-se se o acordo de pagamento alcançado entre a autora e …. incluiu o valor em dívida  da ré para com a autora.
Ora o Dr…… foi o advogado que representou ….. nas negociações havidas com a autora para liquidação do valor em dívida.
Admitir o seu depoimento, como refere o despacho recorrido, restringindo-o à celebração do acordo é manifestamente impossível, uma vez que a obtenção do mesmo resulta de negociações prévias entre os mandatários. Estamos no âmbito de factos de que o Il. Mandatário teve conhecimento no âmbito das negociações em que teve intervenção, com vista a pôr termo ao litígio.
As partes não põem em causa a celebração do acordo: o diferendo reside na amplitude subjetiva do mesmo e na apreciação desta facilmente se “resvala” para as negociações havidas e como, por via destas, tomou conhecimento se era ou não relevante para o acordo a celebrar, englobar no acordo a dívida da aqui ré.
Tal prova não pode deixar de se considerar como integrando o disposto no artigo 92º nº1 e nº3, como sendo segredo profissional.
Deste modo, não tendo havido dispensa da Ordem dos Advogados ao abrigo do nº4 do artigo 92º, nem tido sido suscitado o incidente de levantamento de sigilo previsto no artigo 417/3 e 4 do CPC, não pode ser admitido o depoimento do Dr. …..
Procede, nesta parte, o recurso apresentado.

V. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar parcialmente procedente a apelação e em consequência, revogar o despacho recorrido na parte em que admitiu a junção aos autos do documento n.º 1 junto com a contestação e o depoimento da testemunha …., decidindo pela não admissão de tais meios de prova.
Custas pela recorrida.

Lisboa,  21 de novembro de 2024
Maria Teresa Lopes Catrola
Cristina Lourenço
Octávio Diogo