Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | SANDRA OLIVEIRA PINTO | ||
Descritores: | DENÚNCIA CALUNIOSA QUEIXA FALSIDADE | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 03/11/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NÃO PROVIDO | ||
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Sumário: | I- Não pode extrair-se da circunstância (dada como provada) de ter sido arquivado o inquérito instaurado contra o assistente na sequência da queixa apresentada pela arguida, que o facto denunciado não correspondesse à verdade: tal arquivamento apenas mostra que não se considerou existirem indícios suficientes da prática do crime, o que é coisa diversa de se ter por demonstrado que o aí arguido não praticou os factos. II- Não consta da decisão recorrida que se tenha provado, neste processo, a falsidade da imputação – ou, sequer, que a arguida não tivesse razão para crer que reportava factos efetivamente acontecidos. No caso, a demonstração da falsidade da imputação – porque se trata de um facto e não de um juizo de valor – era essencial para se que pudesse concluir pela ofensa da honra do assistente. III- É inquestionável que a arguida, no exercício do seu legítimo direito de acesso à justiça para defesa dos interesses que julgava legalmente protegidos, tinha o direito de apresentar denúncia criminal contra o assistente. Como também o é que tal direito se impõe ao direito à honra do assistente. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam em conferência na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: * I. Relatório 1. Para ser julgada perante tribunal singular, foi acusada a arguida AA, filha de BB e de CC, natural da ..., nascida em ........1955, viúva, residente na ..., pela prática de um crime de denúncia caluniosa do artigo 365.º, n.º 1, do Código Penal, do qual viria a ser absolvida por sentença datada de 15.03.2024. 2. Inconformado com tal decisão final, dela interpôs recurso o assistente DD, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões: “1 – Objeto e delimitação do Recurso O presente recurso tem como objeto a matéria de facto e de direito da sentença proferida. 2 – A arguida foi absolvida da prática de um crime de denúncia caluniosa. 3 – Ressalvado o respeito devido, não pode o Recorrente conformar-se com tal decisão. Vejamos. 4 – Da impugnação da matéria de facto 4.1. Dos factos indevidamente considerados como provados O Tribunal “a quo” deu, indevidamente, como assente a factualidade vertida nos pontos a. da matéria de factos considerada não provada. 4.2. Concretas provas que impunham decisão diversa da proferida A. Declarações da arguida (ficheiro n.º 1 do CD da prova): “Então eu fui apresentar queixa pelo ato em si. Eu até nem queria, pronto, na altura, porque ele fez um pé de vento lá na porta, como é hábito, diante do menino e a minha filha presenciou…quando ela ia tentar fechar a porta, ele lança um pontapé na porta. Vim para dentro, claro, nervosa, e o meu filho diz-me assim: “oh mãe, vais deixar passar isso assim? Tens de apresentar queixa, isso não pode ser assim. Chega aqui, desfere pontapés na porta e fica tudo assim. Para além do estado em que a mãe fica”, como é óbvio. Eu disse, claro, tens razão, e eu fui à polícia depois e apresentei a queixa. Disse exatamente o que acabei de dizer aqui, que ele tinha dado o pontapé na porta e o polícia diz-me assim: “Pronto, então a senhora confirma que há danos?” E eu disse: “sim, há um dano moral porque ele fez exatamente isso e eu não admito que cheguem ali á porta” (…) Arguida: Quando fui chamada depois, o polícia faz-me a mesma pergunta…um bocadinho diferente…pronto, senhora, então perante o dano que houve…qual é o valor que a senhora…diz que… para arranjar a porta? E eu disse, espere lá … mas ele não partiu a porta, ele deu um pontapé na porta, ficou a marca, foi isso, pronto…a porta continua a abrir, continua a fechar, não fez…E ele disse: “Ah, mas a senhora disse que tinha ficado dano.” “Sim, danos …na minha maneira de ver…dano moral…eu nunca…” E o polícia então disse…então não provocou…e eu disse: não senhor ... a verdade é para se dizer não é… Meritíssima Juiz: Sim, a senhora disse que ficou a porta com uma marca, mas que estava operacional. Arguida: …a marca do sapato…eu até disse ao polícia: “se o senhor quiser tirar fotografias, pode ir lá tirar … mas pronto, não ficou partida, foi a marca do sapato dele…lavando sai, pronto” (minutos 03:40 e seguintes das declarações). (…) Digna Magistrada do M.P.: “Eu só queria que a Senhora fosse confrontada com a denúncia que apresentou, se é a sua assinatura e na parte em que aí se diz “provocando danos na mesma”, sendo a mesma a porta, e mais à frente “desconhece de momento o valor dos danos causados”. (…) Meritíssima Juiz: Isto é a sua assinatura no fim da denúncia? Arguida: É! Meritíssima Juiz: A senhora assinou esta denúncia? Arguida: Mas a denúncia de quê? Meritíssima Juiz: A denúncia do pontapé. Arguida: Sim, foi do pontapé, é verdade. Meritíssima Juiz: E nesta denúncia diz-se que o pontapé causou danos na porta e que desconhece o valor dos danos naquele momento. Arguida: Não…Não… Meritíssima Juiz: Está aí escrito… Arguida: Pois, mas…. Meritíssima Juiz: A senhora não leu esta denúncia antes de a assinar? Arguida: Não senhora, eu nunca ia assinar uma coisa assim, que dissesse isso…agora, provavelmente, sei lá, nervosa como eu estou, não reparei, … à partida confiasse … [imperceptível] (…) Meritíssima Juiz: Eu queria é que a senhora me explicasse uma coisa. É a sua assinatura? Isso não tem dúvidas? Arguida: Sim, é a minha assinatura. Meritíssima Juiz: Pronto, assinou isso. Foi á polícia, redigiram o auto, e depois leram-lhe o auto, a senhora leu o auto ou depois imprimiram e deram para a senhora assinar, como é que se processou? Arguida: Eu não me recordo se fui eu que li, se foi o polícia que leu, se calhar foi o polícia é que me leu. Meritíssima Juiz: Não se recorda? Arguida: Eu não me recordo, sinceramente…” (minutos 10:54 e seguintes das referidas declarações) (…) Meritíssima Juiz: “A senhora lembra-se se alguém lhe leu integralmente aquilo que está aqui escrito nesta denúncia…? Arguida: O Polícia leu … penso que o polícia leu (…) Meritíssima Juiz: (…) o auto com o qual a senhora foi confrontada foi a denúncia que apresentou contra este senhor DD quando a senhora foi à polícia no dia ... de ... de 2020, dizer…, dar queixa do pontapé na porta. O que está em causa é isto. E o que se pergunta é se, na altura, a senhora disse ou não disse que o pontapé na porta tinha causado estragos, mas só que não sabia o valor? Arguida: Não, não disse. Meritíssima Juiz: Mas isso ficou aqui escrito. Arguida: Mas eu não disse! Meritíssima Juiz: E o que o sr. doutor está a querer perguntar é se na altura a senhora assinou isto…a senhora disse que leu ou alguém lhe leu, não se lembra… Arguida: O Polícia leu, eu não me recordo é se eu li…é assim, eu desconfio que eu tenha lido, eu não sei, está a perceber. Meritíssima Juiz: A senhora não se lembra? Pronto, se a senhora não se lembra, não se lembra. Arguida: Exatamente. O polícia leu, que ele leu, até leu alto e não sei que (…) Meritíssima Juiz: Não é a queixa contra si, Dona AA. A queixa que a senhora foi apresentar…em 2020, há 3 anos, quando a senhora foi à polícia queixar-se do senhor DD por causa do pontapé na porta, ficou escrito no auto de denúncia, na queixa que a senhora apresentou, ficou escrito que o pontapé tinha causado estragos na porta mas que a senhora não sabia o valor dos estragos. E a senhora assinou. Arguida: Mas a pergunta do polícia foi: mas ele causou danos na porta? E eu disse: danos no sentido de partir a porta, ficar partida, não senhor. Meritíssima Juiz: (…) Mas isso foi quando a sra. Apresentou a queixa ou depois quando foi inquirida mais tarde. Realmente, quando a senhora foi inquirida 2 meses depois, disse que não resultaram danos permanentes. Arguida: No dia da denúncia eu disse a mesma coisa: eu disse que ele tinha apresentado um grande pontapé na porta e que isto não podia acontecer. Então, mas não apresentou danos? Para mim…danos…eu penso que ele está-se a referir aos danos morais…porque essa pergunta eu já lhe tinha respondido e confirmei depois quando fui a segunda vez. Percebe? Eu não sei se me estou a fazer entender. Meritíssima Juiz: Sim, eu já percebi. Mandatário do Assistente: Eu lamento insistir, mas se depois das declarações da senhora, se as mesmas lhe foram comunicadas. Meritíssima Juiz: Mas lembra-se se o polícia leu tudo…aquilo que a senhora assinou…a senhora depois no fim disso tudo, de ter feito a queixa, assinou a queixa. Lembra-se se leu tudo e assinou, se o polícia leu o que a senhora tinha dito, se… Arguida: É como eu já lhe disse. O ler ele deve ter lido, como é óbvio. Agora, se ele leu tudo, se eu percebi tudo o que ele disse? Não devo ter percebido então, para ter assinado isso…” (minutos 13:10 e seguintes das aludidas declarações). B. Declarações do Assistente (ficheiro n.º 2 do CD da prova): Meritíssima Juiz: “Diga-me então o que é que o traz cá relativamente a esta queixa. Assistente: Em 2021 fui chamado á polícia e foi-me lido um auto de denúncia em que constava que eu tinha causado danos na porta da residência desta senhora e depois constatou-se que nunca houve nenhum dano, que nunca tinha acontecido nenhum dano. Meritíssima Juiz: Olhe, mas o senhor deu um pontapé ou não na porta desta senhora? Assistente: Não. Meritíssima Juiz: Nunca deu pontapé nenhum na porta desta senhora? Mas o senhor há bocadinho disse que o problema era que nunca tinha causado nenhum dano. Assistente: Sim, nunca dei nenhum pontapé nem nunca causei nenhum dano, por sequência. Meritíssima Juiz: Na altura os senhores tinham conflitos, o senhor pelo menos com a filha desta senhora, é assim? Assistente: Não, nesse dia específico eu fui lá buscar o meu filho e a mãe recusou que ele fosse comigo, de modo a que como estava regulado judicialmente que ele ia comigo… Meritíssima Juiz: O senhor pode falar à vontade. Assistente: Ok. Meritíssima Juiz: Não precisa de falar para o microfone. Assistente: Como estava regulado judicialmente ele ia comigo nesse dia, e ela (mãe) recusou que assim fosse, eu chamei a P.S.P. ao local de modo a que se atestasse que não havia recusa nenhuma (da criança). Meritíssima Juiz: Mas o senhor lembra-se desse dia em concreto? Assistente: Claro. Meritíssima Juiz: Foi chamado à P. S.P pouco depois desse dia? Assistente: Fui chamado á P.S.P. cinco, seis meses depois acho eu. Acho que foi em... de 2021. Meritíssima Juiz: E o senhor lembra-se da situação em que chamou a Polícia, quando é que ocorreu? Assistente: Sim, não me esqueci, já que depois desta situação teve início uma sequência de um mês e cinco dias em que ele nunca foi para minha casa e que só acabou com a emissão de um mandado judicial pelo Sr. Juiz. Meritíssima Juiz: Mas isso são as coisas lá no Tribunal de Família. Assistente: Exatamente, é devido a isso que eu não me esqueço, porque foi um mês e cinco dias. Começou…aí neste espaço tinha ocorrido uma situação na quinta antes, mas só havia visita na quinta, aí é que começou exatamente a questão das semanas. Meritíssima Juiz: Então o senhor foi chamado á P.S.P. por causa…foi confrontado com essa situação…com a denúncia que a senhora tinha sido feito, foi isso? Assistente: Exatamente. Meritíssima Juiz: E, no seu entender, isto não tinha ocorrido e foi isso que disse á PSP, foi isso? Assistente: Exatamente. Meritíssima Juiz: Então na altura havia processo a decorrer entre vós no Tribunal de Família, entre o senhor e a mãe do seu filho. Assistente: Sim, exatamente, havia. Meritíssima Juiz: Ou só ocorreu depois disso, o senhor lembra-se? Assistente: Já tinha ocorrido…esta situação foi no dia ........2020 Meritíssima Juiz: No dia 29? Assistente: Esta aqui foi no dia ........2020, acho eu… Meritíssima Juiz: Não, segundo o auto de denúncia. Assistente: Não, a … Meritíssima Juiz: Segundo o auto de denúncia, teria sido… Assistente: A denúncia…. Meritíssima Juiz: Sim, no dia 29… Assistente: Exatamente. Meritíssima Juiz: A denúncia é mais tarde. Assistente: Exatamente, portanto nós colocamos o processo relativamente à regulação umas semanas depois, foi no mês seguinte, uma, duas semanas, vinte dias depois acho eu … portanto já corria, corria…correu ao longo de alguns meses e só depois é que eu fui chamado á polícia. Meritíssima Juiz: Mas o processo no tribunal…já havia processo no tribunal de família em ...de 2020? Assistente: Já havia, sim. Relativamente á regulação ou relativamente ás ocorrências suscitadas em específico face a esse espaço de tempo? Meritíssima Juiz: Não, as ocorrências terá sido posteriormente, havia um processo em que estaria regulado o exercício… Assistente: Exatamente, já havia regulação desde ..., que é o dia dos meus, de 2019. Meritíssima Juiz: Sim, estava regulado e depois os incidentes de incumprimento ocorreram posteriormente, foi assim? Assistente: Exatamente. Meritíssima Juiz: Posteriormente a ...de 2020, a ...…a este dia .... Assistente: Sim, já tinham acontecido alguns incidentes. Meritíssima Juiz: Não, no tribunal, não me interessa saber. Assistente: Sim, exato, depois disso. Meritíssima Juiz: O incidente de incumprimento no tribunal oficialmente só depois… Assistente: Nós colocamos em ... ou ... de 2020. Meritíssima Juiz: Sim, senhor. Assistente: Vinte, vinte e dois dias depois (minutos 02:01 e seguintes das declarações). (…) Mandatário do Assistente: Senhor DD, nesse seguimento, o senhor já disse, foi chamado á P.S.P? Assistente: Exato Mandatário do Assistente: Foi constituído arguido? Assistente: Fui. Mandatário do Assistente: Todo este processo, o senhor encarou isto de ânimo leve, como é que o senhor? Assistente: É uma situação complicada, já que eu estava indiciado de um crime de dano, que eu nunca tinha cometido. Mandatário do Assistente: Sentiu-se injustiçado? Assistente: Senti-me injustiçado já que tinha sido uma situação denunciada que eu nunca tinha cometido, obviamente, além de injustiçado, ofendeu a minha reputação, essencialmente no tribunal de família em que foi lá mencionado também que eu tinha causado danos na porta da residência desta senhora e foi junto o documento, inclusive, em que ela assinou… Dr. EE: Sentiu-se envergonhado? Assistente: Sim” (minutos 123:39 e seguintes das declarações). C. Certidões de fls. 42 a 46 e de fls. D. Documentos de fls. 121 a 127 e de fls. 154/155. 4.3. Da leitura do auto de notícia de fls. 105, que deu origem ao processo de inquérito n.º 1817/20.5..., advém que a menção aos danos alegadamente provocados pelo aqui Assistente não decorrem de qualquer lapso ou decalque de minuta anterior, antes porque isso mesmo foi referido pela aqui arguida. 4.4. Na segunda inquirição, a arguida é apenas questionada quanto aos supostos danos causados na porta, não fazendo aí referência a quaisquer danos morais (vide n.ºs 9. a 11 do referido auto), mas somente a danos na porta, sugerindo inclusive ao agente da P.S.P. que fosse captar fotografias da porta (minutos 13:10 das referidas declarações), 4.5. Fotografias que nunca poderiam ser captadas, porquanto, como a mesma acaba por reconhecer, nenhuns danos na porta foram causados. 4.6. Importa ainda evidenciar que a arguida afirmou, em audiência de julgamento, que o agente da P.S.P. lhe lera o auto antes dela o assinar (não recordando, contudo, se também ela o lera), pelo que não podia ignorar o seu concreto teor (minutos 13:10 das referidas declarações). 4.7. No caso concreto, a arguida deslocara-se à esquadra e aí denunciara a agente da P.S.P. factos suscetíveis de criar a suspeita da prática de um ilícito pelo aqui Assistente, o que sabia não corresponder à verdade (atente-se que é a própria quem posteriormente desdiz terem sido perpetrados danos) e fazia com o intuito de que contra este viesse a ser instaurado procedimento criminal, o que lograra conseguir. 4.8. Do exposto resulta que a conduta da arguida integra os elementos objetivos e subjetivos do tipo previsto no art. 365.º do C.P. (assim como os elementos do crime de falsas declarações), pelo que não se verificando quaisquer causas que justifiquem a ilicitude ou que excluam a sua culpa, deveria ser condenada pela prática de um crime de denúncia caluniosa. 4.9. Por tudo o aduzido, incorreu o Tribunal “a quo” em evidente erro de julgamento da matéria de facto ao considerar como não provada a factualidade vertida no ponto a. acima transcrito. 4.10. Em remédio da sentença recorrida e do apontado erro de julgamento da matéria de facto, deve agora aquele ponto a. passar a figurar no elenco dos factos provados (al. b) do n.º 2 do art. 431.º do C.P.P.), e, em consequência, ser a arguida condenada pela prática de um crime de denúncia caluniosa de que vinha acusada. 5 – Ao decidir como decidiu o Tribunal “a quo” fez erradas interpretação e aplicação das normas ínsitas nos arts. 124.º e 127.º, ambos do C.P.P. e dos art. 365.º do C.P. Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, ser a sentença proferida substituída por outra que condene a arguida pela prática de um crime de denúncia caluniosa, por ser de Direito e de JUSTIÇA!” 3. O recurso foi admitido, por ser tempestivo e legal. 4. O Ministério Público apresentou resposta, pugnando pela improcedência do recurso interposto pelo assistente, sem formular conclusões. 5. Neste Tribunal, o Exmo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, nos seguintes termos: “Reagindo contra a absolvição da arguida, vem o assistente desafiar a bondade do decidido em primeira instância, pedindo a reversão da decisão e a condenação daquela no crime de denúncia caluniosa pelo qual vinha acusada. Em benefício da sua tese ensaia a chamada impugnação ampla da matéria de facto, de forma deficiente, desde logo, por imprecisa indicação dos momentos dos depoimentos prestados em julgamento, que levariam a diferente solução daquela que viria a ser acolhida. Atribui-se assim à sentença recorrida um erro de julgamento na matéria de facto. O MP junto da primeira instância respondeu ao recurso do assistente. Em sintética resposta, evidencia a ilustre magistrada a razão do, estamos certos, fracasso do recurso: o recorrente limita-se a oferecer uma visão alternativa da matéria da prova produzida em audiência de julgamento, sem que se evidencie vício algum que ofenda a sentença em causa. Sufragamos a resposta oferecida aos autos pelo MP junto da primeira instância, por concordarmos com o seu entendimento. A sentença em causa explica de forma plausível a razão da denúncia feita em tempos pela ora arguida, pela prática de um crime de dano, afastando bem a sua responsabilidade penal nesse evento. Deve assim improceder o recurso em apreço. A final, não obstante, melhor se dirá.” Foi cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal. 6. Colhidos os vistos e realizada a Conferência, cumpre decidir. * II. questões a decidir Como é pacificamente entendido, o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso1. Atentas as conclusões apresentadas pelo recorrente, que traduzem as razões de divergência do recurso com a decisão impugnada – a sentença absolutória proferida nos autos – são as seguintes as questões trazidas à apreciação deste Tribunal: - da existência de erro de julgamento, por ter o Tribunal recorrido avaliado mal a prova, designadamente no que se refere à matéria consignada na alínea a) dos factos não provados; - da existência de erro de direito, por integrarem os factos o crime de denúncia caluniosa imputado à arguida. * III. Da decisão recorrida Com interesse para as questões em apreciação em sede de recurso, consta da decisão recorrida: “II – Fundamentação de Facto 2.1 – Factos provados: Produzida a prova e discutida a causa, resultaram provados, com relevo para a decisão, os seguintes factos: 1 – No dia ... de ... de 2020, pelas 15h35, a ora arguida dirigiu-se à Esquadra da PSP de ... e apresentou uma queixa-crime contra o aqui assistente DD, cuja cópia é fls. 43/44 e 105 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, originando o inquérito n.º 1817/20.5..., que correu termos na 3.ª Secção de Ponta Delgada do DIAP da Comarca dos Açores. 2 – Em tal ocasião, a aqui arguida relatou, além do mais, que no dia ... de ... de 2020, pelas 19h30, na ..., o aqui assistente desferiu um pontapé na porta em madeira da habitação da ora arguida, provocando danos na mesma. 3 – A ora arguida manifestou desejo de procedimento criminal contra o ora assistente pelos factos narrados na queixa cuja cópia é fls. 43/44 e 105 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido. 4 – No dia 19/02/2021, a aqui arguida foi inquirida, na qualidade de testemunha no âmbito desse inquérito n.º 1817/20.5..., tendo concretizado os factos por si denunciados nesses autos, negando, todavia, que do pontapé que o ora assistente havia dado na porta tivesse resultado algum dano permanente na mesma, bem como negando que a porta tivesse ficado inutilizada ou com anomalia e afirmando que, à data dos factos, a pintura da porta havia ficado marcada, mas que, com as lavagens frequentes, tal marca já não se via. 5 – No dia 8 de Abril de 2021, o inquérito n.º 1817/20.5... foi arquivado, nos termos do disposto no artigo 277.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, por ter o Ministério Público entendido inexistir crime. 6 – A ora arguida agiu livre, deliberada e conscientemente, com a intenção de que viesse a ser instaurado o respectivo procedimento criminal contra o aqui assistente, o que efectivamente sucedeu. * 7 – No âmbito do processo de inquérito n.º 1817/20.5PBPDL, o assistente foi constituído arguido e sujeito à medida de coacção de Termo de Identidade e Residência. 8 – O processo de inquérito n.º 1817/20.5PBPDL foi referido em desfavor do assistente pela sua ex-companheira, e filha da arguida/demandada, no incidente de incumprimento das responsabilidades parentais n.º 740/18.8T8PDL – B, que correu termos pelo Juiz 1 do Juízo de Família de .... * 9 – O assistente é estudante, não tem rendimentos e vive com os pais, sendo estes que o sustentam, assim como ao filho dele nas semanas em que reside com o pai (e os avós). 10 – A arguida é viúva, tem dois filhos maiores, que residem consigo, assim como o neto – filho comum do assistente e da filha da arguida -, nas semanas em que reside com a mãe. 11 – A arguida reside, com o seu agregado familiar, em casa própria, está reformada e aufere cerca de 1 100,00 € líquidos de reforma. 12 – Não tem quaisquer despesas fixas além das correntes, sendo que ambos os filhos trabalham e contribuem para as despesas domésticas. 13 – Do CRC da arguida nada consta. * 2.2 – Factos não provados: Produzida a prova e discutida a causa, não resultaram provados, com relevo para a decisão e para além dos que se encontram prejudicados pela factualidade dada como provada, que: a) Ao agir como descrito em 1) a 4) e 6) dos Factos Provados, a arguida sabia que os factos que relatou nos autos 1817/20.5PBPDL não correspondiam à verdade e agiu bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, tendo a liberdade necessária para se determinar segundo essa avaliação. b) A apresentação de queixa por parte da arguida/demandada e as sequentes diligências de investigação denegriram a reputação do assistente/demandante. c) A imputação por parte da arguida/demandada ao assistente/demandante da prática de uma conduta criminosa levou a que a probidade e rectidão deste fossem postas em causa, ofendendo a sua reputação, honra, consideração, bom nome e prestígio de que goza na comunidade. * Deixa-se consignado que não foi considerada, tanto quanto possível, a enunciação de juízos conclusivos ou de valor, bem como de conceitos de direito. * 2.3 – Motivação: O Tribunal fundou a sua convicção na análise crítica e conjugada de toda a prova produzida e examinada em audiência de discussão e julgamento, apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção, aferindo-se, com esses parâmetros, do conhecimento de causa, isenção e credibilidade das declarações e depoimentos prestados. Assim, a prova dos factos elencados resultou das declarações da arguida, das declarações do assistente e dos depoimentos das testemunhas FF (pai do assistente), GG (Agente da PSP), HH (Agente da PSP), II (vizinha da arguida), JJ (filho da arguida) e KK (vizinha da arguida). As referidas declarações e depoimentos foram conjugados com as certidões a fls. 42 a 46 e 104 a 109, com o documento a fls. 121 a 127 e com o documento a fls. 154/155. Foi, ainda, considerado o CRC da arguida a fls. 146, do qual resulta que a arguida não regista quaisquer condenações [cfr. Factos Provados elencados em 13)]. A arguida prestou declarações de um modo espontâneo, tendo-se as mesmas revelado credíveis e perfeitamente compatíveis com as regras da experiência comum. Assim, a arguida relatou que foi apresentar queixa contra o ora assistente porque, de facto, no dia em causa, à semelhança de outros dias, o ora assistente – que é o pai do neto da arguida, filho da filha desta, que consigo reside – no contexto de uma discussão que se gerou pelo facto de a criança não querer ir com o pai – deu um pontapé na porta da habitação da arguida, no momento em que a filha da arguida a estava a fechar. A arguida esclareceu que fez queixa relativamente a toda a situação – o que se comprova pela análise do auto de denúncia a fls. 43/44 e 105 -, não se tendo referido a nenhum dano em concreto na porta, mas sim, em geral, a todo o dano – designadamente moral – causado pelo assistente com a sua conduta. Certo é que igualmente referiu – como também referiu na PSP em 19/02/2021 (fls. 106) – que a pintura da porta ficou marcada pelo pontapé, mas que, com as lavagens frequentes, a referida marca não se via. É notório, conjugado o auto de denúncia com o auto de inquirição (fls. 43/44, 105 e 16) que a arguida não quis, em momento algum, imputar falsamente ao assistente a prática de factos falsos, sendo evidente que, caso o tivesse querido fazer, teria declarado, em 19/02/2021, que o pontapé na porta efectivamente tinha causado estragos. O que se extrai das declarações da arguida, conjugadas com os referidos documentos, é que aquela decidiu – até a conselho do filho – denunciar os factos praticados pelo ora assistente naquele dia por já estar saturada de situações semelhantes e de conflitos causados pelo assistente quando ia buscar o neto (filho do assistente), entendendo que, denunciando os factos e sendo o assistente responsabilizado pelos mesmos, este último se coibiria de repetir a conduta. A arguida inclusivamente afirmou que pretendia que o ora assistente fosse repreendido pela PSP, sendo claro que com tal afirmação quis dizer que pretendia que o mesmo fosse confrontado pela PSP quanto aos factos denunciados, o que o inibiria de voltar a praticar factos semelhantes. Quanto à afirmação feita na denúncia de que o assistente causara danos na porta com o pontapé, a arguida afirmou que nunca disse que o pontapé tinha efectivamente causado estragos, verificando-se que, de facto, o que ficou escrito na denúncia foi uma referência vaga a “causando danos na mesma”, que mais não é a fórmula constante da minuta de qualquer queixa em que é denunciado um acto dirigido a causar um dano numa coisa. Ademais, é evidente que o cidadão comum – como a arguida, sem formação jurídica – não extrai de afirmações da linguagem corrente – como a referência a “danos” – quaisquer qualificações jurídicas dos factos, não lhe sendo exigível que, mesmo que se tivesse referido expressamente a danos, o tivesse feito com o sentido em que tal conceito é empregue para qualificar o crime de dano, ou seja, com o sentido de destruição, danificação, desfiguramento ou inutilização de coisa alheia. Confrontada com a assinatura aposta no auto, confirmou que é a sua e afirmou que o agente da PSP que elaborou o auto o terá lido, mas admitiu que possa não ter ficado ciente de tudo quanto foi lá escrito, desde logo porque estava extremamente nervosa quando foi à PSP. Assim, afirmou muito naturalmente “se o Agente leu, acho que sim: se percebi, já percebi que não percebi”. Reiterou, todavia, ser totalmente verdadeiro que o assistente desferiu um pontapé na porta da sua casa nos termos descritos no auto de denúncia e que, de facto, tal pontapé deixou uma marca de sapato na pintura da porta que se foi desvanecendo. O assistente negou que, no dia referido na denúncia, tenha desferido qualquer pontapé na porta da habitação da arguida, o que não nos mereceu qualquer credibilidade, desde logo porque resultou das suas próprias declarações, bem como do documento a fls. 154/155, que no dia em causa houve, efectivamente, um litígio entre o assistente, por um lado, e a filha da arguida, por outro lado, relativamente à entrega do filho menor de ambos, sendo perfeitamente compatível com as regras da experiência que, no contexto de tal litígio, o assistente tenha, de facto, desferido um pontapé na porta da habitação da arguida, quanto mais não seja para impedir que a mãe do filho fechasse a porta, contra a sua vontade. O documento a fls. 154/155 é uma participação dos Agentes da PSP que foram chamados ao local pelo assistente, estando vertida na participação, essencialmente, o dissídio relacionado com a entrega do menor, nada sendo referido quanto ao pontapé. Certo é que, ouvido o Agente da PSP GG (o Agente HH de nada se recordava), este confirmou que, no local, apenas falou com o ora assistente e com a filha da arguida e que por ambos foi dito que a situação que que estivera na base da chamada da PSP ao local nada tivera de pacífico, tendo havido ânimos exaltados, o que mais uma vez credibiliza as declarações da arguida de que o assistente deu um pontapé na sua porta (o que foi, aliás, afirmado pelas testemunhas II e KK, vizinhas da arguida, que disseram ter visto o pontapé desferido pelo assistente na porta da arguida - e JJ, filho da arguida, que, estando dentro de casa, afirmou ter ouvido um estrondo a seguir à discussão que estava a ocorrer entre o assistente e a irmã à porta de casa da mãe). Conjugadas as declarações da arguida com os depoimentos das referidas testemunhas, não temos dúvidas de que o assistente desferiu, de facto, um pontapé na porta da arguida no dia em causa, assim sendo desmentidas as suas declarações de que o não fez. Acrescenta-se que o pai do assistente – que disse que também estava no local (o que foi confirmado pelo GG) – igualmente afirmou que o filho não desferiu qualquer pontapé na porta da arguida, o que sabe porque estava no interior do carro que ficara estacionado perto da porta. Ora, o pai do assistente afirmou que nesse dia não houve qualquer exaltação e que o filho, perante a recusa da mãe da criança em entregar o menor, limitou-se a vir para o interior do veículo em que a testemunha estava e ligar para a PSP. Mais disse que não viu qualquer outra pessoa na rua. Seu depoimento, além de marcadamente parcial, foi desmentido não só pelo GG, que referiu ter sido informado, quando chegou ao local, de que os ânimos se tinham exaltado e de que a situação fora tudo menos pacífica, bem como pelas testemunhas II e KK, as quais, unanimemente e de forma natural e espontânea, afirmaram que o assistente, depois de dar o pontapé na porta da arguida, dirigiu-se para um carro que estava estacionado na rua (no qual a testemunha estaria), assim desmentido a testemunha na afirmação de que não estava mais ninguém na rua. Tanto estavam que ambas percepcionaram que o assistente se dirigiu para o interior do veículo que se encontrava estacionado. Neste contexto, desde já se diga que o apuramento da veracidade sobre o desferimento do pontapé pelo assistente na porta da arguida é essencial no contexto do objecto do processo, porquanto o crime de cuja prática a arguida vem acusada pressupõe a falsidade da denúncia. Assim, caso se tivesse apurado que, de facto, não existiu qualquer pontapé, dúvidas não existiriam de que a denúncia seria falsa no seu essencial, sendo certo que o exacto apuramento das consequências de tal acção é lateral ao núcleo duro da queixa. Aliás, a decisão de arquivamento a fls. 108/109 não é incontestável, desde logo porque, por um lado, a tentativa de dano é punível – artigo 212.º, n.º 2, do Código Penal – sendo perfeitamente equacionável que o ora assistente, ao desferir o pontapé, tenha admitido como possível a danificação da porta, tendo-se conformado com essa possibilidade, e, por outro lado, o crime de dano não se consuma apenas com a destruição, desfiguração ou total inutilização da coisa, mas também com a sua “danificação”, ou seja, com qualquer atentado à substância ou à integridade física da coisa que não atinja o limiar da destruição, podendo concretizar-se pela produção de uma lesão nova ou pelo agravamento de uma lesão preexistente, o que significa que a afirmação da arguida de que ficara uma marca na pintura da porta, ainda que se tenha desvanecido com as lavagens, não é o mesmo que afirmar que não foi causado qualquer dano. Na verdade, o que a arguida disse foi que não foi causado qualquer dano permanente e que a porta não ficou inutilizada ou com anomalia, mas que ficou, de facto, marcada na sua pintura, marca essa que se desvaneceu. Mais referiu que continuava a pretender procedimento criminal contra o ora assistente, assim demonstrando que continuava a entender que os factos que declarou no auto de inquirição corresponderiam à prática de crime, sendo certo que não seria à arguida que competiria qualificá-los juridicamente e concluir se tais factos corresponderiam, ou não, à prática de crime. Diga-se, ainda, que o referido despacho de arquivamento – fls. 109 acaba por dar por assente que o ora assistente, ali arguido, adoptou uma “conduta socialmente incorrecta”, enquadrando-a no conflito descrito pela ora arguida no auto de denúncia, sendo evidente que acaso tivesse concluído pela falsidade dos factos denunciados – ou tivesse reunido indícios suficientes de que tais factos seriam falsos -, certamente teria determinado a instauração de procedimento criminal contra a arguida pela prática d crime de denúncia caluniosa, o qual tem natureza pública. Não foi isso que sucedeu, tendo o presente processo tido origem em auto de denúncia apresentado pelo assistente (fls. 3). Por tudo quanto já se deixou exposto, tendo resultado provados os factos descritos em 1) a 6) dos Factos Provados, não temos qualquer dúvida em afirmar que a arguida, ao agir como agiu, não denunciou quaisquer factos falsos, nem o fez apenas para sujeitar o ora assistente a procedimento criminal, ciente da falsidade dos factos e de que, ao assim proceder, cometeria crime [cfr. Factos Não Provados elencados em a)]. Neste seguimento, tendo-se provado que, no âmbito do processo de inquérito n.º 1817/20.5..., o assistente foi constituído arguido e sujeito à medida de coacção de Termo de Identidade e Residência, não se fez qualquer prova de que a reputação do assistente tenha sido posta em causa pela queixa e pelas diligências de investigação, sendo certo que qualquer cidadão, cometa ou não um crime, está sujeito à eventualidade de os seus actos serem objecto de queixa, com a consequente investigação e constituição como arguido, até para lhe serem concedidos direitos que só a quem assume a qualidade de arguido são reconhecidos. O processo de inquérito n.º 1817/20.5... foi efectivamente referido em desfavor do assistente pela sua ex-companheira, e filha da arguida/demandada, no incidente de incumprimento das responsabilidades parentais n.º 740/18.8T8PDL – B, que correu termos pelo Juiz 1 do Juízo de Família de ..., mas não se provou que imputação por parte da arguida/demandada ao assistente/demandante da prática de uma conduta criminosa tenha levado a que a probidade e rectidão deste fossem postas em causa, ofendendo a sua reputação, honra, consideração, bom nome e prestígio de que goza na comunidade. Na verdade, tendo-se concluído que os factos denunciados não eram objectivamente falsos, só à sua conduta poderá o assistente atribuir o facto de ter sido alvo de queixa e da consequente constituição como arguido. Ademais, não se produziu qualquer prova da consideração que o assistente merece na comunidade, nem que, nessa comunidade, goze de prestígio e bom nome. Os factos provados elencados em 9 a 12) resultaram das declarações do assistente [Factos Provados elencados em 9)] e da arguida [Factos Provados elencados em 10) a 12)], respectivamente.” * IV. Fundamentação iv.1. impugnação ampla da matéria de facto – erro de julgamento O recorrente DD invoca a existência de erro de julgamento, por considerar que as provas produzidas não podiam ter conduzido o Tribunal a quo a considerar não provados os factos nos termos consignados na sentença impugnada. Vejamos. Como resulta do disposto no artigo 428º, nº 1, do Código de Processo Penal, os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito, do que decorre que, em regra e quanto a estes Tribunais, a lei não restringe os respetivos poderes de cognição. A matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito dos vícios previstos no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, no que se denomina de «revista alargada», cuja indagação tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se reporta o artigo 412º, nos 3, 4 e 6, do mesmo diploma legal, caso em que a apreciação se alarga à análise da prova produzida em audiência, dentro dos limites fornecidos pelo recorrente, só podendo alterar-se o decidido se as provas indicadas obrigarem a decisão diversa da proferida [assim não podendo fazer-se caso tais provas apenas permitam uma outra decisão, a par da decisão recorrida - neste último caso, havendo duas, ou mais, possíveis soluções de facto, face à prova produzida (o que sucede, com algum grau de frequência, nomeadamente nos casos em que os elementos de prova recolhidos são totalmente opostos ou muito contraditórios entre si), se a decisão de primeira instância se mostrar devidamente fundamentada e couber dentro de uma das possíveis soluções face às regras de experiência comum, é esta que deve prevalecer, mantendo-se intocável e inatacável, pois tal decisão foi proferida de acordo com as imposições previstas na lei (artigos 127º e 374º, nº 2 do Código de Processo Penal), inexistindo assim violação destes preceitos legais] – cf., por todos, o acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 02.11.20212. Assim, quando se visa impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto na modalidade ampla, as conclusões do recurso, por força do estabelecido no artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal, têm de descriminar: a) Os concretos pontos de facto considerados incorretamente julgados; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas. A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados. A especificação das «concretas provas» só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida. Finalmente, a especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cf. artigo 430º do Código de Processo Penal). Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na ata, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação (não basta a simples remissão para a totalidade de um ou vários depoimentos), pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (nos 4 e 6 do artigo 412º do Código de Processo Penal), salientando-se que o Supremo Tribunal de Justiça, no seu acórdão nº 3/2012, publicado no Diário da República, Iª série, Nº 77, de 18 de abril de 2012, fixou jurisprudência no sentido de que: «Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações». As menções feitas nas alíneas a), b) e c) dos nos 3 e 4 do referido artigo 412º estão intimamente relacionadas com a inteligibilidade da própria impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto. É o próprio ónus de impugnação da decisão sobre a matéria de facto que não pode considerar-se minimamente cumprido quando o recorrente se limite a, de forma vaga ou genérica, questionar a bondade da decisão fáctica. Como decorre da disposição legal citada (em conjugação com o disposto no artigo 431º do Código de Processo Penal), a reapreciação só determinará uma alteração à matéria fáctica provada quando, do reexame realizado dentro das balizas legais, se concluir que os elementos probatórios impõem uma decisão diversa, mas já não assim quando esta análise apenas permita uma outra decisão3. No caso, é de considerar que o recorrente DD cumpre, minimamente, os requisitos legais para a impugnação da matéria de facto quanto aos dois primeiros aspetos mencionados, na medida em que indica o ponto da matéria de facto que pretende ver dado como provado [identificando como tal a alínea a) dos factos não provados], e referencia as declarações prestadas pela arguida e o seu próprio depoimento (embora os transcreva longamente, sem concreta referência aos trechos que reputa relevantes), e bem assim a prova documental, que entende suportarem esse seu entendimento. Falha, no entanto, na discussão relativa à relevância das provas enquanto determinantes de uma decisão diversa da que foi tomada pelo Tribunal a quo. Explicitemos. Na argumentação exposta no recurso, o recorrente não indica provas que não tenham sido tidas em conta na decisão recorrida, nem tão pouco lhes atribui conteúdo diverso do que foi reportado nessa mesma decisão, antes sustentando que, no seu modo de entender a prova, tais depoimentos/documentos deveriam ter conduzido o Tribunal a uma solução distinta. Sustenta, porém, que, na sua interpretação, a prova indicada mostra que a arguida se deslocou à esquadra da PSP de ... para denunciar factos que sabia serem falsos (com intenção de que contra o assistente fosse instaurado procedimento criminal), ancorando essa sua convicção na afirmação de que “é a própria quem posteriormente desdiz terem sido perpetrados danos”. No entanto, a sentença recorrida, como resulta do que acima se transcreveu, analisa essa mesma prova em termos globais, relevando que, por um lado, “[o] que se extrai das declarações da arguida, conjugadas com os referidos documentos, é que aquela decidiu – até a conselho do filho – denunciar os factos praticados pelo ora assistente naquele dia por já estar saturada de situações semelhantes e de conflitos causados pelo assistente quando ia buscar o neto (filho do assistente), entendendo que, denunciando os factos e sendo o assistente responsabilizado pelos mesmos, este último se coibiria de repetir a conduta”, e, considerando, por outro lado, que “é evidente que o cidadão comum – como a arguida, sem formação jurídica – não extrai de afirmações da linguagem corrente – como a referência a “danos” – quaisquer qualificações jurídicas dos factos, não lhe sendo exigível que, mesmo que se tivesse referido expressamente a danos, o tivesse feito com o sentido em que tal conceito é empregue para qualificar o crime de dano, ou seja, com o sentido de destruição, danificação, desfiguramento ou inutilização de coisa alheia”. E, além disto, expôs também o Tribunal recorrido as razões pelas quais se convenceu de que o assistente, efetivamente, desferiu um pontapé na porta da casa da arguida – analisando de forma conjugada toda a prova produzida acerca de tal ocorrência (designadamente, referenciando as declarações de todas as pessoas ouvidas sobre essa circunstância – as que da mesma possuíam conhecimento direto – e explicando, em termos lógicos e coerentes, por que razão a negação do assistente não convenceu o Tribunal). Em conformidade, concluiu que “a arguida, ao agir como agiu, não denunciou quaisquer factos falsos, nem o fez apenas para sujeitar o ora assistente a procedimento criminal, ciente da falsidade dos factos e de que, ao assim proceder, cometeria crime”. Deve acentuar-se, a este respeito, que a queixa apresentada pela arguida tem um âmbito mais vasto do que apenas imputar ao assistente a danificação (permanente ou não) da porta da sua casa – do que a arguida se queixou foi dos desacatos provocados pelo assistente, culminando no pontapé desferido da porta (que, segundo disse, deixou uma marca na pintura da porta, que se foi desvanecendo com as sucessivas lavagens). Neste quadro, não vemos qualquer fundamento para afastar a convicção do Tribunal a quo em favor da convicção do recorrente. Os elementos de prova referenciados no recurso – que foram tidos em conta na decisão recorrida – estão muito longe de impor decisão diversa da que foi tomada, não existindo fundamento para alterar a decisão de facto nos termos pretendidos pelo recorrente. Na verdade, o que resulta das conclusões do recurso, é a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e aquela que o Tribunal firmou sobre os factos, o que se prende com a apreciação da prova em conexão com o princípio da livre apreciação da mesma consagrado no artigo 127º do Código de Processo Penal, cumprindo não olvidar, como é jurisprudência corrente dos nossos Tribunais Superiores, que o tribunal de recurso só poderá censurar a decisão do julgador, fundamentada na sua livre convicção e assente na imediação e na oralidade, se se evidenciar que a solução por que optou, de entre as várias possíveis, é ilógica e inadmissível face às regras da experiência comum. Ora, o juízo sobre a valoração da prova tem diferentes níveis. Num primeiro aspeto trata-se da credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova, que depende substancialmente da imediação, e aqui intervêm elementos não racionalmente explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a determinado meio de prova). Num segundo nível referente à valoração da prova intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios e agora já as inferências não dependem substancialmente da imediação, mas hão-de basear-se na correção do raciocínio que há de assentar nas regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência. Dos ensinamentos da doutrina e da jurisprudência, podemos concluir que a valoração das provas, reportada à credibilidade dos depoimentos que é eminentemente subjetiva, depende, essencial e substancialmente, da imediação, princípio que, pressupondo a oralidade, domina a recolha das provas de índole testemunhal, permite, num quadro de emissão e receção de sinais de comunicação - que não apenas de palavras, mas também de gestos ou outras formas de ação/reação, como o próprio silêncio - potenciar a adequada apreciação dos depoimentos4. Tal não significa que a apreciação, eminentemente subjetiva, conducente a conferir maior ou menor credibilidade de um depoimento, seja insindicável, pois ao julgador é imposto o dever de explicitar as razões da sua convicção pessoal, na fundamentação da decisão, isto é, que revele não só os motivos por que certo depoimento mereceu maior credibilidade do que outro, mas também que explicite o raciocínio lógico que utilizou na apreciação global e lógica de toda a prova no cumprimento do que dispõe o nº 2 do artigo 374º, do Código de Processo Penal. E se os critérios subjetivos expressos pelo julgador se apresentarem com o mínimo de consistência para a formulação do juízo sobre a credibilidade dos depoimentos apreciados e, com base no seu teor, alicerçar uma convicção sobre a verdade dos factos, para além da dúvida razoável, tal juízo há de sempre sobrepor-se às convicções pessoais dos restantes sujeitos processuais, como corolário do princípio da livre apreciação da prova ou da liberdade do julgamento. A lei não considera relevante a pessoal convicção de cada um dos intervenientes processuais, no sentido de a mesma se sobrepor à convicção do Tribunal – até porque se assim fosse, não haveria, como é óbvio, qualquer decisão final. No caso, o Tribunal recorrido cumpriu, com distinção, a obrigação de expor o modo como foi adquirida a sua convicção, analisando de forma detalhada todos os contributos probatórios e interpretando-os à luz da normalidade dos acontecimentos da vida social, expondo, de forma lógica e coerente, em que termos a prova produzida lhe permitiu convencer-se quanto aos factos dados como provados, e também por que razão assim não foi quanto aos factos dados como não provados. O percurso conviccional a este respeito exposto pelo Tribunal a quo não se mostra inverosímil ou contrário às regras de experiência comum, inexistindo qualquer fundamento para que seja substituído pela convicção do recorrente. Como expõe o Tribunal Constitucional, nomeadamente, no Acórdão nº 521/20185, de 17.10.2018: “[A] solidez do raciocínio probatório não é uma função da tipologia da prova, senão da verosimilhança dos factos e da validade das inferências deles extraídas. Nesta medida, só perante os contornos do caso concreto e os elementos probatórios disponíveis no processo se poderá aferir da maior ou menor força dos meios de prova diretos e indiretos que se tenham produzido, nada obstando à prevalência de uns sobre os outros e mesmo à possibilidade de uma prova indireta constituir fundamento suficiente para a demonstração judicial da verdade.” No âmbito da apreciação da prova, interessa não tanto excluir qualquer possibilidade abstrata, matemática, de os factos terem decorrido de forma diversa da narrativa acusatória, mas antes ponderar as várias hipóteses factuais plausíveis, alternativas à hipótese probanda, à luz da experiência comum e do normal acontecer das coisas, de forma a ajuizar se alguma delas fica em aberto. Não está aqui em causa a questão do estalão (standard) da prova em processo penal, o mesmo é dizer, o limiar mínimo de certeza quanto ao facto probando para que este deva ser dado como provado − e, assim, tomado por verdadeiro − pelo tribunal de julgamento. É pacífico que esse estalão corresponde a uma convicção para além de toda a dúvida razoável, sendo por isso incompatível com a afirmação de meros indícios ou com a subsistência de qualquer dúvida para a qual pudessem ser dadas razões válidas. Assim é, por imposição do princípio da presunção de inocência, senão também como decorrência do princípio da culpa – nullum crimen sine culpa –, enquanto fundamento axiológico e limite absoluto da punição criminal (cf. Acórdão TC nº 521/2018, já citado). Como se ponderou no acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 10.01.20186, “a certeza judicial não se confunde com a certeza absoluta, física ou matemática, sendo antes uma certeza empírica, moral, histórica. O princípio in dubio pro reo constitui um princípio de direito relativo à apreciação da prova/decisão da matéria de facto, estando umbilicalmente ligado, limitando-o, ao princípio da livre apreciação – a livre apreciação exige a convicção para lá da dúvida razoável; e o princípio in dubio pro reo impede (limita) a formação da convicção em caso de dúvida razoável. A dúvida razoável, que determina a impossibilidade de convicção do tribunal sobre a realidade de um facto, distingue-se da dúvida ligeira, meramente possível, hipotética. Só a dúvida séria se impõe à íntima convicção. Esta deve ser, pois, argumentada, coerente, razoável. De onde que o tribunal de recurso “só poderá censurar o uso feito desse princípio (in dubio) se da decisão recorrida resultar que o tribunal a quo chegou a um estado de dúvida e que, face a esse estado escolheu a tese desfavorável ao arguido – cfr. acórdão do STJ de 2/5/1996, CJ/STJ, tomo II/96, pp. 177. Ou quando, após a análise crítica, motivada e exaustiva de todos os meios de prova validamente produzidos e a sua valoração em conformidade com os critérios legais, é de concluir que subsistem duas ou mais perspetivas probatórias igualmente verosímeis e razoáveis, havendo então que decidir por aquela que favorece o réu.” Assim, em processo penal, mercê da respetiva estrutura acusatória, é necessário que a prova dos factos desfavoráveis ao arguido se faça para além da dúvida razoável, pois só esse patamar probatório é suscetível de suportar a condenação do acusado. Ora, no caso dos autos, o Tribunal recorrido manifestou “não te[r] qualquer dúvida em afirmar que a arguida, ao agir como agiu, não denunciou quaisquer factos falsos, nem o fez apenas para sujeitar o ora assistente a procedimento criminal, ciente da falsidade dos factos e de que, ao assim proceder, cometeria crime [cfr. Factos Não Provados elencados em a)].” O Tribunal a quo não se limitou, porém, a tal afirmação, antes expondo, de forma clara, a conjugação de elementos probatórios que obstam a que se tenha como demonstrada a falsidade da imputação atribuída à arguida – e, por consequência, a consciência de tal falsidade (nos termos supra transcritos, para os quais remetemos). O assistente DD não aportou no seu recurso nenhum elemento de prova que não tenha sido tomado em conta na decisão recorrida, o que fez foi discordar da avaliação da prova feita pelo Tribunal. Não trouxe, no entanto, argumentos que permitam considerar inaceitável o percurso conviccional exposto naquela decisão. Limita-se, na verdade, a interpretar as declarações da arguida num sentido que lhe parece confirmar a sua versão dos factos – mas a sua leitura de tais declarações não é a única possível, como se vê da cuidadosa exposição constante da sentença aqui em recurso. Vista a decisão recorrida, e analisados todos os elementos de prova disponíveis nos autos, sem perder de vista que a Julgadora de 1ª instância teve as pessoas na sua presença, pode questioná-las e observá-las, no modo como se expressaram, nas pausas que fizeram, nos olhares que dirigiram aos diversos intervenientes, no modo como reagiram às questões, ou seja, dispondo de todos os dados que só a imediação pode fornecer, não está este Tribunal ad quem em condições de concluir que a avaliação a que se procedeu na decisão recorrida seja manifestamente errada ou desconforme, quer com a prova produzida, quer com as regras de experiência comum. Por assim ser, inexiste fundamento para que se proceda à alteração da matéria de facto pretendida pelo assistente. Como expressamente resulta do disposto no artigo 412º, nº 3, alíneas a) e b), e nº 4 do Código de Processo Penal, quanto à impugnação da matéria de facto, para além da especificação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, deve o recorrente indicar ainda as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida. Esse desiderato não se alcança com a mera formulação de opiniões quanto à clareza ou precisão do que foi dito, na medida em que tais elementos possam permitir diferentes conclusões – só se atinge com a indicação das provas que impõem, que obrigam a decisão diversa. Em suma, não se vê que a decisão recorrida, no que se refere ao ponto da matéria de facto questionado pelo recorrente, tenha de algum modo desrespeitado os princípios que regem a livre apreciação da prova, não merecendo, por isso, qualquer censura por parte deste Tribunal de recurso. Improcede, pois, o recurso no que toca à impugnação da matéria de facto, que deve manter-se nos precisos termos em que foi fixada pelo Tribunal a quo. * iv.2. do enquadramento jurídico-penal Pretende o recorrente que se reconheça que “a conduta da arguida integra os elementos objetivos e subjetivos do tipo previsto no art. 365.º do C.P. (assim como os elementos do crime de falsas declarações), pelo que não se verificando quaisquer causas que justifiquem a ilicitude ou que excluam a sua culpa, deveria ser condenada pela prática de um crime de denúncia caluniosa” (conclusão 4.8). Comecemos pelos conceitos. Comete o crime de denúncia caluniosa, previsto no artigo 365º, nº 1, do Código Penal, Quem, por qualquer meio, perante autoridade ou publicamente, com a consciência da falsidade da imputação, denunciar ou lançar sobre determinada pessoa a suspeita da prática de crime, com intenção de que contra ela se instaure procedimento. Como já acima se disse, o que está em causa nos autos é a circunstância de a arguida, em ........2020, ter declarado, em queixa apresentada na PSP de ... que “no dia ... de ... de 2020, pelas 19h30, na ..., o aqui assistente desferiu um pontapé na porta em madeira da habitação da ora arguida, provocando danos na mesma.” Trata-se, pois, da imputação de um ato concreto, sem a formulação de quaisquer juízos ou opiniões (nomeadamente, sobre a pessoa do assistente). Puramente factual, portanto. Também decorre do que acima ficou exposto que não está demonstrada a falsidade de tal imputação (designadamente, que o assistente não tenha desferido o mencionado pontapé na porta da casa da arguida), nem que a arguida tivesse conhecimento de que reportava factos não verdadeiros. Neste contexto, da descrita atuação apenas resulta que a arguida apresentou queixa criminal contra o assistente, o que é um direito que lhe assiste. Concedemos que, tal como se considerou no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.04.20107, “toda a participação ou queixa criminal contém, em regra, objectivamente, uma ofensa à honra, por comunicar a prática de factos configuradores de um comportamento criminoso. A denúncia de um crime, quando identificado o seu autor ou o suspeito de o ter cometido, obviamente que, objectivamente, atinge a honra do denunciado. Apesar disso, é evidente que ninguém pode ser impedido de participar um facto delituoso - 8.. Ao direito à honra do denunciado contrapõe-se o direito à denúncia como via necessária de acesso à justiça e aos tribunais para defesa dos interesses legalmente protegidos do denunciante, direito constitucionalmente consagrado – artigo 20º, da Constituição da República. Num Estado de direito é impensável, pois, impedir quem quer que seja de participar um facto delituoso, com a justificação de que em consequência da participação ir-se-á lesar a honra do participado. A lei substantiva penal prevê expressamente, aliás, situações em que a lesão de um determinado bem ou interesse penalmente tutelado é considerada, em concreto, lícita. São os casos previstos pelas normas que regulam as causas de justificação. A saber: o exercício de um direito, o cumprimento de um dever, a execução, pelo subordinado hierárquico, duma ordem legítima ou ilegítima do seu superior, a legítima defesa, o uso legítimo de arma, o estado de necessidade, o consentimento do ofendido.” E, como também se considerou no aresto citado, referenciando jurisprudência constante do Supremo Tribunal de Justiça: “- (7)9., o direito de denúncia prevalece sobre o direito à honra, visto que como garantia de estabilidade, da segurança e da paz social no Estado de direito deve assegurar-se ao cidadão a possibilidade quase irrestrita de denunciar factos que entende criminosos - (8)10. “Quase irrestrita”, como se refere numa daquelas decisões, por a limitação maior consistir em a denúncia não ser feita dolosamente (com consciência da sua falsidade) e do teor dos seus termos, os quais devem limitar-se à narração dos factos, sem emissão de quaisquer juízos de valor ou lançamento de epítetos sobre o denunciado. Como se refere na outra das mencionadas decisões, se emitidos juízos de valor ou epítetos integrantes de uma ofensa à honra, então a denúncia pode, mas só por essa razão, ser ilícita cedendo o respectivo direito perante a honra (desnecessária e gratuitamente lesada) do denunciado.” Expandindo sobre a questão, sustentou-se no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12.03.201411, “A questão não se coloca tanto em saber se o Ministério Público, quando recebe uma queixa-crime, não funciona como um terceiro a quem se dirige a imputação de factos ou juízos desonrosos assacados a outra pessoa. Coloca-se, sim, na análise do conteúdo concreto da queixa-crime apresentada, de forma a perceber se ela denuncia factos suscetíveis de configurar um crime, se os apresenta de forma dolosa com a consciência da sua falsidade ou se, além da denúncia, emite juízos de valor vexatórios sobre o denunciado. 9. No primeiro caso, temos o puro exercício de um direito – o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva, consagrado pelo artigo 20.º, da CRP: “1. A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos. (…)”. A denúncia, que em alguns casos chega mesmo a ser obrigatória [artigos 244.º e 242.º, do Cód. Proc. Penal], passa, necessariamente, pela atribuição a outrem de um juízo desonroso na medida em que se lhe imputa a prática de factos que podem constituir crime. Mas essa condição natural da denúncia não pode constituir um impedimento ou uma restrição ao exercício do direito: desde logo porque, na colisão entre o direito à honra do denunciado e o direito à denúncia como meio de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, deve prevalecer este último; e depois porque o regular exercício do direito é causa de justificação que exclui a ilicitude. Por isso se diz que num Estado de Direito deve assegurar-se ao cidadão a possibilidade quase irrestrita de denunciar factos que entende criminosos. 10. No segundo caso – em que a denúncia é feita de forma dolosa com a consciência da sua falsidade –, estamos perante a prática do crime de Denúncia caluniosa, do artigo 365.º, do Cód. Penal. Este é o mecanismo através do qual a Lei assegura o respeito pelos direitos dos visados em denúncias infundadas, feitas com consciência da falsidade e com a intenção clara de instauração de procedimento. Em comentário a este artigo, o Professor Costa Andrade realça a predominância dos interesses individuais face aos valores da realização da justiça no quadro do bem jurídico protegido: “(…) no direito português vigente tudo concorre a favor da interpretação que erige os interesses individuais em bem jurídico típico, reservando aos valores da realização da justiça (eficácia, autoridade, legitimação) uma tutela reflexa ou complementar” [Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, pág. 519]. […] 11. Por fim, no terceiro caso – em que a denúncia não se limita à narração dos factos e, numa linguagem ofensiva, emite juízos de valor vexatórios sobre o denunciado – a situação pode, efetivamente, constituir um crime de Difamação, do artigo 180.º, n.º 1, do Cód. Penal, na medida em que o denunciante se serve da queixa para atingir, especificamente, a honra e consideração do denunciado.” Como acima se referiu, a denúncia apresentada pela arguida ficou-se pelo primeiro patamar: limitou-se a relatar um facto, suscetível de constituir a prática de crime. E, como também se considerou, em lugar paralelo, no acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 29.06.202112: a arguida não fez estas afirmações em público, fê-las perante as autoridades judiciárias no exercício de um direito de denúncia, inexistindo prova de que o tivesse feito de forma dolosa, com consciência da falsidade de tal imputação. Ora, por um lado, não pode extrair-se da circunstância (dada como provada) de ter sido arquivado o inquérito instaurado contra o assistente na sequência da queixa apresentada pela arguida, que o facto denunciado não correspondesse à verdade: tal arquivamento apenas mostra que não se considerou existirem indícios suficientes da prática do crime, o que é coisa diversa de se ter por demonstrado que o aí arguido não praticou os factos. E, por outro lado, não consta da decisão recorrida que se tenha provado, neste processo, a falsidade da imputação – ou, sequer, que a arguida não tivesse razão para crer que reportava factos efetivamente acontecidos. No caso, a demonstração da falsidade da imputação – porque se trata de um facto e não de um juízo de valor – era essencial para se que pudesse concluir pela ofensa da honra do assistente13. Como já se disse, a afirmação atribuída à arguida é puramente factual, não contendo as declarações pela mesma prestadas asserções ou juízos de valor desnecessários ou desproporcionados. É inquestionável que a arguida, no exercício do seu legítimo direito de acesso à justiça para defesa dos interesses que julgava legalmente protegidos, tinha o direito de apresentar denúncia criminal contra o aqui assistente. Como também o é que tal direito se impõe ao direito à honra do aqui assistente, nos termos que acima se deixaram expostos. Assim, face à ausência de matéria de facto provada suscetível de preencher a respetiva descrição típica, designadamente, no que se refere à falsidade da imputação e, por consequência, no que se reporta à consciência de tal falsidade, não é possível concluir pela verificação da prática do crime em questão, pelo que a arguida não podia deixar de ser, como foi, absolvida. O recurso improcede, pois. * V. Decisão Pelo exposto acordam os Juízes desta 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso interposto pelo assistente DD, confirmando a sentença recorrida nos seus precisos termos. Custas a cargo do assistente, que decaiu totalmente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC (cf. artigo 515º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Penal). D.N. * Lisboa, 11 de março de 2025 (texto processado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94º, nº 2 do Código de Processo Penal) Sandra Oliveira Pinto Ana Lúcia Gordinho Rui Coelho _______________________________________________________ 1. Cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª ed., pág. 335, Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 9ª ed., 2020, págs. 89 e 113-114, e, entre muitos outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007, Procº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt, no qual se lê: «O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação - art. 412.°, n.° 1, do CPP -, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, (...), a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes.» 2. No processo nº 477/20.8PDAMD.L1-5, relatado pelo, então, Desembargador Jorge Gonçalves, disponível em www.dgsi.pt. 3. Note-se que, como se escreveu no acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 01 de abril de 2008 (no processo nº 360/08-01, Relator: Desembargador Ribeiro Cardoso, acessível em www.dgsi.pt): “Impor decisão diversa da recorrida não significa admitir uma decisão diversa da recorrida. Tem um alcance muito mais exigente, muito mais impositivo, no sentido de que não basta contrapor à convicção do julgador uma outra convicção diferente, ainda que também possível, para provocar uma modificação na decisão de facto. É necessário que o recorrente desenvolva um quadro argumentativo que demonstre, através da análise das provas por si especificadas, que a convicção formada pelo julgador, relativamente aos pontos de facto impugnados, é impossível ou desprovida de razoabilidade. É inequivocamente este o sentido da referida expressão, que consubstancia um ónus imposto ao recorrente. As provas que impõem decisão diversa são as provas relevantes e decisivas que não foram analisadas e apreciadas, ou, as que, tendo-o sido, ponham em causa ou contradigam o entendimento plasmado na decisão recorrida.” 4. Cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.02.2008, no processo nº 07P4729, Relator: Conselheiro Pires da Graça, acessível em www.dgsi.pt. 5. No processo nº 321/2018, Relator: Conselheiro Gonçalo de Almeida Ribeiro, acessível em www.tribunalconstitucional.pt. 6. No processo nº 63/07.8TELSB-3, Relator: Desembargador Nuno Coelho, acessível em www.dgsi.pt. 7. No processo nº 1/09.3YGLSB.S2, Relator: Conselheiro Oliveira Mendes, em ECLI:PT:STJ:2010:1.09.3YGLSB.S2.44/ 8. Em certas situações a lei impõe até o dever de participar o crime. 9. Entre outros, os acórdãos de 08.11.18 e 08.12.18, proferidos nos Processos n.ºs 08B3227 e 08A2680. 10. Pelas razões atrás invocadas, ou seja, por analogia legis ou analogia juris, também prevalecerá sobre o direito à honra o direito/dever de o denunciante prestar declarações no âmbito do respectivo inquérito criminal, esclarecendo a denúncia feita e comunicando os factos que julgar convenientes à investigação. 11. No processo nº 12/12.1TAAFE-A.P1, já citado. 12. No processo nº 5876/17.0T9LSB.L1-5, Relator: Desembargador Paulo Barreto, acessível em ECLI:PT:TRL:2021:5876.17.0T9LSB.L1.5.2F/ 13. Neste sentido, vd. os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 09.11.2016, no processo nº 952/14.3TAMAI.P1, Relator: Desembargador Manuel Soares, em www.dgsi.pt; e do Tribunal da Relação de Évora de 08.01.2019, no processo nº 1/14.1T9RDD.E1, Relatora: Desembargadora Maria de Fátima Bernardes, em ECLI:PT:TRE:2019:1.14.1T9RDD.E1.7B/ e de 02.02.2016, no processo nº 167/14.0TAPTG.E1, Relator: Desembargador João Gomes de Sousa, em ECLI:PT:TRE:2016:167.14.0TAPTG.E1.A8/ |