Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4932/20.1T8ALM-A.L1-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL DO TRIBUNAL
CERTIFICADO SUCESSÓRIO EUROPEU
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/09/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I. O Regulamento (UE) n.º 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de julho de 2012, que dispõe sobre a competência, lei aplicável, reconhecimento e execução das decisões, e aceitação e execução dos atos autênticos em matéria de sucessões e sobre a criação de um Certificado Sucessório Europeu, visou harmonizar no espaço europeu as regras de determinação da lei nacional aplicável em matéria de sucessões, as regras de fixação da ordem jurisdicional nacional competente em matéria de sucessões e facilitar a circulação no espaço europeu de decisões e outros atos autênticos lavrados em matéria de sucessões.
II. O conceito de sucessão para o efeito do dito Regulamento tem um significado autónomo, abrangendo todas as questões de direito civil da sucessão por morte, ou seja, todas as formas de transferência de bens, direitos e obrigações por morte, independentemente de se tratar de ato voluntário de transferência ao abrigo de uma disposição por morte, ou de uma transferência por sucessão ab intestato.
III. O referido Regulamento não se aplica a outros domínios do direito civil que não o direito sucessório, tal como é configurado pelo Regulamento: nomeadamente, não se aplica aos direitos e aos bens criados ou transferidos fora do âmbito da sucessão, tais como as liberalidades.
IV. Porém, pese embora a exclusão referida em III, inclui-se no âmbito do Regulamento a resolução de questões atinentes, nomeadamente, à colação e à redução das liberalidades, adiantamentos ou legados aquando da determinação das quotas dos diferentes beneficiários.
V. Assim, numa ação declarativa comum intentada por um herdeiro contra outro herdeiro, que tenha como causa de pedir a alegada apropriação pelo demandado, antes da morte do de cujus, de quantias depositadas em conta bancária solidária de que o demandado era titular conjuntamente com o falecido, está fora do âmbito de aplicação do dito Regulamento o pedido de condenação do demandado na restituição à herança das aludidas quantias e bem assim no pagamento de indemnização à herança das utilidades e faculdades alegadamente propiciadas pelo saldo bancário em falta, mas cabe no âmbito de aplicação do Regulamento o pedido de que seja aplicado ao demandado o regime da sonegação de bens previsto no art.º 2096.º do Código Civil, isto é, que seja declarado que o demandado perdeu o direito aos bens sonegados em benefício dos demais herdeiros.
VI. Os dois primeiros pedidos referidos em V caem no âmbito de aplicação do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012 (Regulamento Bruxelas I-bis), sobre a competência judiciária, o reconhecimento e a execução de decisões em matéria cível e comercial.
VII. Os dois referidos pedidos assentam, à luz do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, em responsabilidade extracontratual, pelo que podem ser apresentados perante tribunal do Estado do domicílio do demandado ou perante tribunal do Estado da localização do facto danoso (sendo certo que se não houver coincidência entre o local do facto danoso e o local onde se produziu o dano, o demandante poderá optar por este último).
VIII. Quanto ao terceiro pedido referido em V (que seja declarado que o demandado perdeu o direito aos bens sonegados em benefício dos demais herdeiros), em princípio será competente para o julgar o tribunal do Estado da última residência habitual do de cujus, conforme estipulado no art.º 4.º do citado Regulamento (UE) n.º 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de julho de 2012, sobre sucessões.
IX. Conforme consta no considerando n.º 23 do Regulamento Europeu sobre sucessões, a fim de determinar a residência habitual “a autoridade que trata da sucessão” deverá proceder a uma avaliação global das circunstâncias da vida do falecido durante os anos anteriores ao óbito e no momento do óbito, tendo em conta todos os elementos factuais pertinentes, em particular a duração e a regularidade da permanência do falecido no Estado em causa, bem como as condições e as razões dessa permanência. A residência habitual assim determinada deverá revelar uma relação estreita e estável com o Estado em causa tendo em conta os objetivos específicos do regulamento.
X. Apurando-se que a de cujus no final da sua vida foi viver para a Alemanha, passando a aí morar em casa de uma sua filha, falecendo nesse país cerca de ano e meio depois, com 90 anos de idade, sendo certo que nesse país trabalhara antes de se reformar e de ir viver com o marido para Portugal, é de concluir que a Alemanha foi o país da última residência habitual da de cujus.
XI. Assim, no caso destes autos o tribunal português é internacionalmente competente para julgar os dois primeiros pedidos referidos em V (pois a conta bancária estava localizada em Portugal) e é internacionalmente incompetente para julgar o pedido referido em terceiro lugar em V, por para tanto serem competentes os tribunais alemães.
(art.º 663.º n.º 7 do CPC)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

I. RELATÓRIO
1. Em 22.9.2020 LL..., divorciada, residente em Almada, instaurou ação declarativa de condenação com processo comum contra AA..., casada, residente em (…), Alemanha.
A A. alegou que a A. e a R. são filhas de GG... . GG... faleceu em __/__/____, no estado de viúva de MM…, pai das aqui A. e R.. Os pais da A. e R. viveram muitos anos emigrados na Alemanha, sendo que após a reforma passaram a residir com carater de permanência em Portugal, na casa de que eram proprietários sita na Rua (…), no Feijó. Após o óbito de MM…, que ocorreu em __/__/____, a viúva, GG..., continuou a residir naquela sua habitação, contando aqui com o apoio da sua filha ora A., passando também curtos períodos de tempo na Alemanha, em casa da sua filha, aqui R.. Atendendo à idade de GG..., a conta bancária com o n.º (…) aberta na Caixa Geral de Depósitos, passou a ser titulada também pela aqui A.. As movimentações da conta eram efetuadas por GG... ou pela A., a solicitação e no exclusivo interesse daquela, para fazer face às necessidades da vida hodierna. Sucede que em data que a aqui A. não consegue precisar, a supramencionada conta bancária foi encerrada. GG... procedeu à abertura de uma nova conta bancária, com o n.º (…) junto da Caixa Geral de Depósitos, tendo como segunda titular sua filha AA..., aqui R.. Através desta nova conta bancária GG... passou a receber mensalmente as suas pensões, de reforma e de viuvez. Através dos valores nela depositados procedia ao pagamento das suas despesas mensais. O saldo da conta bancária supra identificado era única e exclusivamente proveniente de rendimentos de GG..., pese embora a cotitularidade da R.. A R. constava como titular dessas contas de modo a que se GG... viesse a ficar incapacitada de forma definitiva, houvesse possibilidade dessas contas serem movimentadas para custear as despesas que fossem necessárias com a falecida. Acresce que a R. vive na Alemanha, recebe uma pensão de reforma por incapacidade naquele País, não tem quaisquer rendimentos provenientes de trabalho dependente, independente ou outros em Portugal, que lhe permitissem amealhar pecúlio monetário para atestar que metade do saldo da referida conta bancária era sua pertença. Assim sendo os valores constantes das referidas contas bancárias eram bens próprios de GG.... Porém, no período compreendido entre 09.9.2013 e __/__/____ (data do óbito de GG..., a R. efetuou sucessivos levantamentos / transferências para si, no valor total de cerca de € 53.360,00, quer a partir da referida conta à ordem, quer da conta de depósito a prazo, aberta em 09.09.2013, com o n.º (…), cujo saldo foi transferido em 03.10.2016 e na totalidade para conta bancária titulada em nome da R. com o n.º (…), junto do Banco Alemão (…) AG. A mãe da A. sempre teve para com esta um relacionamento um pouco distante, resultado do facto de ser emigrante na Alemanha, situação que se agravou a partir de dezembro de 2016, com a ida daquela para a Alemanha a fim de passar o natal com a R., de onde não mais regressou, tendo vindo aí a falecer, sendo poucas as vezes que se falaram neste período, por impedimento da R.. No entanto quando GG... estava ou viveu em Portugal, a relação entre mãe e filha, ora A., sempre foi saudável e próxima. Sendo a A. quem a auxiliava quer na execução das tarefas domésticas, compras, higiene pessoal, era a sua companhia diária. Pelo que, de modo algum, GG... demonstrou ou pretendeu beneficiar a sua filha AA..., aqui R., em detrimento da sua filha LL..., aqui A.. Até porque em determinado momento que antecedeu a ida de GG... para a Alemanha, em data que não consegue precisar, mas antes de dezembro de 2016, aquando da deslocação ao multibanco a A. verificou que a conta bancária tinha € 10.000,00 e uns dias depois esse valor já não estava lá. Deslocaram-se as duas ao banco e foi-lhes transmitida a informação que os valores foram transferidos para a conta da R.. Confrontada com esse facto, GG... disse desconhecer, não ter autorizado as transferências, nem ser sua intenção dar esse dinheiro à AA..., porque a ela, acrescentou, também não lhe davam nada. De imediato a A. contatou telefonicamente o irmão O e informou-o desse facto. O solicitou a AA… que revertesse a situação, procedendo à devolução dos valores que tinha levantado/ transferido – o que a R. não fez. O é meio-irmão da A. e da R., por parte do pai. GG... tinha-o como um filho e por isso elaborou um testamento em que beneficiou O, de forma a que os três recebessem a herança em partes iguais. No entanto a R. quis beneficiar-se a si própria, à revelia da mãe, em prejuízo dos demais herdeiros. Com as transferências bancárias em causa a R. pretendeu prejudicar a irmã, ora A., retirando da herança um bem que a ela pertencia e pretendeu evitar a partilha desse mesmo bem após a morte da sua mãe. Assim, através de sucessivas transferências bancárias da conta de GG... para a sua, de modo a que quando esta viesse a falecer a mesma não apresentasse qualquer valor, a R. subtraiu um bem à herança e à partilha, com o intuito de prejudicar a A.. Os valores transferidos não o foram por GG..., nem em seu proveito. A conta bancária deveria apresentar saldo positivo à data do óbito, não fosse o comportamento da R., que com as sucessivas e faseadas transferências para a sua conta bancária se apoderou de dinheiro que não lhe pertencia e que, por morte da titular, deveria integrar a sua herança e ser objeto de partilha. A R., embora admita ter feito suas as quantias retiradas da conta bancária da mãe, afirma nada mais haver a partilhar além do imóvel e respetivos móveis.
A A., passando à análise jurídica do pleito, alegou que, subtraídos os saldos bancários, pretensamente doados, ao acervo hereditário, a A. vem defender um direito próprio à quota hereditária. Por consenso, os herdeiros de GG... irão alienar o imóvel e os bens móveis que se encontram no seu interior. Nenhum saldo de conta bancária foi participado fiscalmente porquanto à data do óbito era inexistente, atenta a conduta dolosa da R.. Cumpre chamar à colação os bens sonegados à herança pela R., para que os mesmos sejam partilhados entre os herdeiros. Há que aplicar o regime da sonegação de bens, com a sanção civil prevista no art.º 2096.º n.º 1 do Código Civil. De todo o modo, haverá ocultação de bens que deverão ser chamados à herança, ainda que porventura sem a consequência civil prevista para a sonegação.
A A. terminou formulando o seguinte petitório:
- Que seja a Ré condenada a restituir à herança todos os bens na sua posse, no caso o saldo das contas bancárias a apurar-se em execução de sentença.
- Que seja a Ré condenada a indemnizar a herança jacente com o valor das utilidades e faculdades que aquele saldo bancário propiciou e de que a mesma usufrui em exclusividade desde a data da abertura da referida herança 02/07/2019 até efetiva restituição do mesmo, a ser liquidada em execução de sentença.
- A provar-se a sonegação de bens, que seja reconhecido que a Ré perdeu o direito aos bens sonegados identificados no artigo 19º supra - depósito bancário em benefício dos demais herdeiros de GG...”.
2. A R. contestou, arguindo a exceção da incompetência internacional dos tribunais portugueses. À data da sua morte, ocorrida em __/__/____ em ..., Alemanha, GG... residia habitualmente em “(…) ..., Alemanha”, local onde se encontrava a viver desde dezembro de 2016, aí tendo o seu centro de vida, onde se encontrava registada no registo de residentes, onde contribuía para as prestações de seguro na doença, onde fazia a sua vida diária e mantinha os seus contactos pessoais e onde foi sepultada. Ora, nos termos do Regulamento (EU) nº 650/2012 relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e execução das decisões, e à aceitação e execução dos atos autênticos em matéria de sucessões e à criação de um Certificado Sucessório Europeu, concretamente do seu art.º 4.º, são competentes para decidir do conjunto da sucessão os órgãos jurisdicionais do Estado-Membro em que o falecido tinha a sua residência habitual no momento do óbito. Desta forma são os tribunais alemães de ... os competentes para decidir dos assuntos relacionados com a sucessão da falecida GG... e não o Tribunal português de Almada. Nos termos do 15.º do citado Regulamento, bem como dos art.ºs 577.º, al. a) e 578.º do C.P.C. a falta de competência internacional é uma exceção dilatória de conhecimento oficioso, levando à absolvição da R. da instância. Subsidiariamente a R. alegou ainda, a título de exceção, a ineptidão da petição inicial por contradição entre a causa de pedir e o pedido: tendo a própria A. admitido que as contas bancárias em causa não tinham saldo à data do óbito da de cujus, as quantias movimentadas antes da morte de GG... não faziam parte da herança, pelo que nada havia a relacionar, não cabendo causa para petição de bens da herança ou invocação de sonegação de bens da herança ou pedido de restituição de bens à herança. Não existindo contradição entre a causa de pedir e o pedido, então haverá improcedência da ação, por a causa de pedir não permitir a procedência do pedido. Por impugnação, a R. imputou à A. algumas transferências efetuadas a partir das contas de GG... e, no mais, alegou que as restantes transferências foram efetuadas ou por GG... ou no interesse e com o consentimento de GG..., nomeadamente quando esta decidiu ir viver para a Alemanha juntamente com a R., sua filha, única que dela cuidava. Concretizando e com relevo para a questão da última residência habitual de GG..., a R. alegou ainda o seguinte: O relacionamento entre a R. e a sua falecida mãe foi sempre muito próximo. A falecida GG... passava, regularmente, o inverno com a R. na Alemanha, onde residia em casa da R. e mantinha os seus contactos sociais com a R. e o seu marido, vizinhos e outras pessoas da área da residência da R.. De igual modo a R. passava todos os anos as suas férias de Verão com a mãe em Portugal. Fora esses períodos, a R. falava diariamente com a sua mãe por telefone, assim como zelava pelo seu bem-estar, contactando com os vizinhos para que lhe prestassem a companhia e a assistência necessária no seu dia a dia, designadamente, ajudando-a nas compras, deslocações a médicos, levando-a a passear e recebendo-a em sua casa. Posteriormente a R. chegou a contratar, em nome e no interesse da sua mãe, os serviços de uma terceira pessoa para apoiar a sua mãe na lida da casa e nos seus cuidados pessoais de higiene. Acontece que em meados de agosto de 2016 a A. afastou os vizinhos que tomavam conta de GG... e despediu a pessoa que lhe prestava os serviços de assistências, por razões que a A. desconhece. Doravante as condições pessoais e sociais da sua mãe pioraram, porquanto se viu privada do apoio na lida da casa e nos seus cuidados de higiene, bem como do relacionamento mais próximo com os vizinhos, sendo certo que a A., por sua vez, apenas visitava a GG... de forma irregular, fechando-a em casa e relacionando-se com ela de forma agressiva, gritando-lhe. A mãe da R. veio para a Alemanha em dezembro de 2016 e decidiu querer viver doravante na Alemanha com a R. e o seu marido, o que fez de livre vontade. Foi ainda a sua vontade ser sepultada perto da R., no cemitério do lugar da sua residência em .... A mãe da R., na altura com quase noventa anos de idade e com plenas capacidades mentais, apenas sofrendo de problemas de locomoção ligeiros e de incontinência, o que a obrigava a usar fraldas, passou, doravante, a viver na Alemanha, em casa da R. aí estabelecendo o seu centro de vida, fazendo a sua vida diária, passeando, indo às compras, recebendo cuidados médicos, privando com a R. e seu marido, os amigos da R. e vizinhos e demais pessoas dos estabelecimentos nas redondezas que ela frequentava. A residência da mãe da R. em ... foi devidamente comunicada à entidade alemã que gere o registo de residentes. A R. ainda providenciou em nome e no interesse da sua mãe a sua inscrição no sistema de segurança alemã AOK para efeitos de proteção na doença. A A. bem sabia que era a vontade de GG... passar a viver na Alemanha com a R., facto que lhe foi comunicado na altura da sua mudança para a Alemanha em 2016 pela própria GG....
A R. terminou concluindo por esta forma:
a) Seja julgada procedente a excepção dilatória de falta de competência internacional do Tribunal português para julgar da presente acção, com a consequente absolvição da R. da instância;
b) Subsidiariamente: Seja julgada procedente, a arguição da nulidade de todo o processo por ineptidão da petição inicial, com a consequente absolvição da R. da instância;
c) E ainda subsidiariamente, caso assim não se entenda, deve ser julgada procedente por provada a excepção deduzida com a consequente absolvição da R. do pedido;
d) E ainda subsidiariamente, caso assim não se entenda, deve a presente ação ser julgada improcedente, por não provada, com a consequente absolvição da R. do pedido e com todos os efeitos legais;
e) Seja a A. condenada como litigante de má-fé em multa e indemnização a fixar pelo douto tribunal, sendo a indemnização nunca em valor inferior a EUR 500.
3. A convite do tribunal a A. respondeu às exceções, pugnando pela sua improcedência. Especificamente quanto à competência internacional dos tribunais portugueses, alegou que a morada de GG... à data do decesso era em Portugal, encontrava-se associada ao Cartão de Cidadão, que automaticamente foi assumida pela Autoridade Tributária e Aduaneira como sendo a morada fiscal da contribuinte em questão. A estadia da decessa em casa da R. foi sempre tida por temporária, acidental. Os bens de GG... encontram-se em Portugal, GG... era nacional de Portugal, em Portugal foi outorgada a sua habilitação de herdeiros.
A A. terminou reiterando o peticionado.
4. Foi dispensada audiência prévia e proferido despacho saneador em que se julgou improcedente a exceção de incompetência internacional do tribunal arguida pela R. e, bem assim, se julgou improcedente a exceção de ineptidão da petição inicial. Fixou-se o objeto do processo e enunciaram-se os temas da prova.
5. A R. apelou do despacho que julgou improcedente a arguição da incompetência internacional do tribunal para julgar o litígio, tendo apresentado alegações em que formulou as seguintes conclusões:
A. No Despacho Saneador, de que ora se recorre, veio o Tribunal a quo considerar improcedente a excepção de incompetência internacional do Tribunal, fundada no artigo 4º do Regulamento.
B. Porquanto o Tribunal a quo entendeu, não estando em causa um processo de inventário ou partilha, está o presente litígio excluído do âmbito de aplicação do Regulamento.
C. Ora não se afigura como correcta tal decisão do Tribunal a quo.
D. O âmbito material de aplicação do Regulamento não pode ser reduzido aos processos de inventário e/ou partilha.
E. O âmbito de aplicação do Regulamento é delineado pelo artigo 1º do Regulamento que estatui o seguinte:
O presente regulamento é aplicável às sucessões por morte. Não é aplicável às matérias fiscais, aduaneiras e administrativas.”
F. Por sua vez, o artigo 3º, nº 1, al. a) do Regulamento consagra a seguinte definição do conceito de sucessão:
“«Sucessão», a sucessão por morte, abrangendo qualquer forma de transferência de bens, direitos e obrigações por morte, quer se trate de um ato voluntário de transferência ao abrigo de uma disposição por morte, quer de uma transferência por sucessão sem testamento;”
G. No caso em apreço estamos perante pretensões que se inscrevem no âmbito dos direitos e obrigações por morte, ou seja, que integrem o estatuto sucessório tal como definido pelo Regulamento.
H. A Recorrida peticiona a condenação da Recorrente a restituir à herança os saldos de contas bancárias co-tituladas pela falecida, bem como o reconhecimento da existência de sonegação de bens, com as demais consequências legais em benefício dos co-herdeiros e em detrimento da Recorrente.
I. Fazendo apelo ao artigo 2096º do C.C.
J. Vale isto por dizer que a Recorrida baseia a sua pretensão em normas que se inserem no Livro V do Código Civil português, designado por o “Direito das Sucessões” e do seu Título I “Das sucessões em geral”.
K. Posto que as pretensões da Recorrida não versam sobre matéria excluída do âmbito de aplicação do Regulamento e elencada no artigo 1º, nºs 1, segunda parte e 2 do mesmo (por ex. estado das pessoas, capacidade, ausência, direito de família, societário, registral, real, etc.), matéria a qual não integra o estatuto sucessório, mas versam, isto sim, sobre matéria sucessória.
L. Por outro lado, o artigo 23º, nº 1 do Regulamento consagra, pela positiva, o princípio de que o seu estatuto sucessório engloba toda a sucessão.
M. Prosseguindo no seu número 2 com o elenco, a título exemplificativo que não taxativo, das matérias que se enquadram expressamente no estatuto sucessório, tal como definido pelo Regulamento.
N. Ora, contendo o instituto da sonegação, tal como definido pelo artigo 2096º do Código Civil, com o exercício de um direito sucessório e com repercussão sobre as quotas dos beneficiários da herança, dúvidas não existem estarmos perante matéria expressamente abrangida pelo âmbito material do Regulamento, nos termos do artigo 23º, nº 2, alíneas b), h) e i).
O. Encontrando-se o presente litígio abrangido pelo âmbito material do Regulamento, há que aferir da competência internacional do Tribunal português.
P. O que deve ser analisado exclusivamente ao nível do próprio Regulamento, afastadas que estão as normas processuais nacionais dos Estados Membros em matéria de competência, conforme resulta do próprio Regulamento, designadamente do Considerando 30.
Q. O critério geral adoptado pelo Regulamento para decidir da questão da competência internacional dos órgãos jurisdicionais foi o da residência habitual do falecido no momento do óbito, conforme resulta do artº 4º do mesmo, critério o qual determina igualmente a própria lei a aplicar ao conjunto da sucessão (artº 21º do Regulamento).
R. Dos factos carreados aos autos resulta inequívoco que a falecida tinha a sua residência habitual à data da sua morte na Alemanha, país onde viveu durante largos anos e para onde regressou em finais de 2016, passando a viver com a sua filha, ora Recorrente, até à data da sua morte em 2 de Julho de 2018.
S. Onde constava do registo de residentes e contribuía para as prestações de seguro na doença, onde fazia a sua vida diária e mantinha os seus contactos pessoais e onde foi sepultada.
T. O que não se coaduna, naturalmente, com uma alegada residência “acidental”, como pretende fazer crer a Recorrida.
U. Pelo que forçoso é concluir que o Tribunal português de Almada não é internacionalmente competente para os termos da presente acção, devendo ter julgado procedente a excepção dilatória de falta de competência internacional invocada pela Recorrente.
V. Em todo, o caso verifica-se ainda uma nulidade do despacho que julgou improcedente a excepção de incompetência internacional e declarou o Juízo Central Cível internacionalmente competente, na medida em que omite o fundamento de direito para se declarar competente, ou seja, qual a norma concreta do Código Processo Civil que permite fixar a sua competência, nulidade que se invoca nos termos do artigo 615º, nº 1, al. b) e 4º do C.P.C..
A apelante terminou pedindo que a decisão recorrida fosse revogada e substituída por outra que declarasse procedente a exceção de falta de competência internacional do Tribunal nos termos dos artigos 4º e 15º do Regulamento.
6. Não houve contra-alegações.
7. O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, em separado e efeito meramente devolutivo.
8. Foram colhidos os vistos legais.
II. FUNDAMENTAÇÃO
1. Como se sabe, o objeto do recurso é definido pelas suas conclusões e pelas questões que sejam de conhecimento oficioso (artigos 663.º n.º 2, 608.º n.º 2 e 635.º n.º 4 do CPC).
In casu, as questões suscitadas pela apelante são as seguintes: nulidade da decisão recorrida; incompetência internacional do tribunal a quo para julgar o litígio.
2. Primeira questão (nulidade da decisão recorrida)
2.1. O despacho recorrido tem a seguinte redação:
“Contestando veio a Ré invocar a incompetência internacional deste Tribunal alegando que a falecida (…) viveu desde Dezembro de 2016 na Alemanha, tendo aí a sua residência habitual.
Assim, à presente acção deve aplicar-se o estatuído no Regulamento (UE) nº 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de Julho de 2012, e que segundo os seus artigos 4º e 15º o Tribunal competente para dirimir litígios referentes à sucessão de GG... é o Tribunal Alemão de ... e não este Juízo Central Cível.
Notificada, veio a Autora no exercício do contraditório, pugnar pela improcedência da excepção, invocando que a falecida, ao invés do alegado pela Ré, mantinha domicilio e residência em Portugal, mais precisamente no Feijó, Almada.
Apreciando e decidindo.
Conforme se alcança dos autos (…) faleceu no dia 02 de Julho de 1998 [trata-se de manifesto lapso – o ano do falecimento foi 2018] na Alemanha.
A falecida e seu marido, também falecido, residiram durante anos na Alemanha.
Conforme resulta da petição inicial, a falecida (…) foi para a Alemanha, o que ocorreu antes de Dezembro de 2016 (cfr. artigo 25º da petição inicial), passando a residir com a Ré na Alemanha (o que também é admitido pela Autora em sede de exercício do contraditório quanto à matéria de excepção, até à data do óbito.
As exéquias funerárias foram realizadas na Alemanha, local onde (…) foi sepultada.
De acordo com a Autora a permanência da falecida na Alemanha era temporária/acidental, pois a falecida no cartão de cidadão mantinha como domicilio fiscal a sua morada em Portugal.
Apreciando e decidindo.
Como é sabido, são as normas sobre a competência internacional que repartem o poder de julgar entre os tribunais das várias jurisdições com as quais o litígio tem contacto, determinando os factores de conexão relevantes e, em função deles, determinar se os tribunais de alguma delas são competentes para resolver o conflito.
A competência internacional dos tribunais portugueses é, assim, a fracção do poder jurisdicional atribuída aos tribunais nacionais, no seu conjunto, relativamente à fracção do poder jurisdicional atribuída por leis nacionais estrangeiras ou tratados os convenções internacionais, a tribunais estrangeiros sempre que o litígio seja transfronteiriço, isto é, quando apresente elementos de conexão com ordens jurídicas estrangeiras (vide Remédio Marques, in Acção Declarativa, 3ª ed, pág. 268; Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra Editora, pág. 198.)
Teixeira de Sousa Teixeira de Sousa, in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, págs. 93 a 94., defende quanto às regras relativas à competência internacional, a orientação dominante que vigora na ordem jurídica internacional, ou seja, essa competência se afere pela lex fori, isto é, pela lei do estado onde a acção se encontra pendente, cabendo, por conseguinte, ao direito interno de cada estado regular a competência internacional dos seus próprios tribunais, determinando quais os factores de conexão com o litígio que lhes é submetido que considera relevantes para efeitos de lhes atribuir competência internacional para conhecer do mesmo quando este seja plurilocalizado e sendo, por isso, a essas regras de direito interno que se impõe atender para efeitos de se saber se os tribunais desse estado são ou não internacionalmente competentes para conhecer do litígio que lhes é submetido.
Todavia, a regra geral sofre as excepções decorrentes de instrumentos internacionais a que o estado se auto vinculou, seja, por derivarem de instituições supranacionais cujos actos legislativos considera serem directa e imediatamente aplicáveis na sua ordem jurídica, como é o caso, no que concerne a Portugal, das disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, seja por derivarem de convenções internacionais que o próprio estado ratificou.
Assim, nos termos do nº 4 do artigo 8º da Constituição da República Portuguesa, há que considerar as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de Direito Democrático e que em caso de conflito entre as normas internas e comunitárias deve dar-se primazia às normas comunitárias.
Aqui chegados importa apurar se existem tratados, convenções, regulamentos comunitários ou leis especiais ratificadas ou aprovadas, que vinculem internacionalmente os tribunais portugueses, porque prevalecem sobre os restantes critérios.
Atenta a integração que o direito comunitário assume no nosso direito, o efectivo alcance dos artigos 62.º e 63.º do Código de Processo Civil (em sede de competência internacional, no domínio dos conflitos de jurisdições) “se apresenta drasticamente reduzido” por força dos vários Regulamentos da união Europeia que visam a compatibilidade das normas aplicáveis nos Estados-Membros em matéria de conflitos de leis e de jurisdição, designadamente, a dos Regulamentos n.º 2201/2003 e n.º 1215/2012 (vide Introdução ao Direito Internacional Privado da União Europeia Rui Manuel Moura , Imprensa da Universidade de Ramos Coimbra, pág. 10). Isto significa que as normas do Código de Processo Civil não afastam, em termos de competência internacional, o que for determinado por Regulamento da União europeia que se aplique ao caso concreto.
Como é sobejamente conhecido, Portugal é um Estado-Membro da União Europeia, e, como tal, vinculado ao Direito da União, cujos Regulamentos, nos termos do paragrafo 2º do artigo 288º do Tratado de Funcionamento (TFUE), gozam de carácter geral – vinculam directamente, quer os Estados da União, quer as pessoas (singulares e colectivas), obrigatoriamente e em todos os seus elementos, sem que os Estados os possam adaptar e sem necessidade de qualquer mecanismo de recepção.
A União Europeia tem elaborado um conjunto de regulamentos que visam facilitar o bom funcionamento do mercado interno suprimindo os entraves à livre circulação de pessoas que se defrontam com dificuldades para exercerem os seus direitos no âmbito de relações privada, mas conexionadas com mais do que um país. Preceitua o artigo 81.º, n.º 2, c), do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE) que “o Parlamento Europeu e o Conselho, deliberando de acordo com o processo legislativo ordinário, adoptam, nomeadamente quando tal seja necessário para o bom funcionamento do mercado interno, medidas destinadas a assegurar […] a compatibilidade das normas aplicáveis nos Estados-Membros em matéria de conflitos de leis e de jurisdição”.
A Autora intentou a presente acção contra a Ré peticionando a condenação desta a restituir à herança o saldo das contas bancárias a apurar-se em sede de execução de sentença, que a Ré seja “condenada a indemnizar a herança jacente” com o valor das utilidades e faculdades que aquele saldo bancário propiciou e de a mesma usufrui em exclusividade desde a data da abertura da referida herança 02/07/2018 até efectiva restituição do mesmo, a ser liquidada em sede de execução de sentença e ainda a, provar-se a sonegação de bens, que seja reconhecido que a Ré perdeu o direito aos bens sonegados, ou seja, sobre o depósito bancário em beneficio dos demais herdeiros de GG....
Tendo em consideração que a diversidade de regras materiais e processuais dos Estados-Membros dificultava a vida dos herdeiros nos casos em que a sucessão tinha factores de conexão com diversos países, bem como daqueles que queriam planear antecipadamente a sua sucessão, se composta por bens em mais do que um Estado ou tencionassem reformar-se e mudar de residência para outro país para aí viverem os últimos anos das suas vidas, sujeitando-os a insegurança jurídica, decidiu-se criar um quadro jurídico conflitual e adjectivo comum para estas matérias: o Regulamento Europeu n.º 650/2012, de 4 de Julho, relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e execução das decisões e à aceitação e execução dos actos autênticos em matéria de sucessões e à criação de um Certificado Sucessório Europeu.
Cumpre então averiguar se a presente acção cai no âmbito deste Regulamento.
Tanto Portugal como a Alemanha encontram-se abrangidos pelo campo territorial do Regulamento: todos os Estados-Membro da União Europeia a adoptaram ou foram por ela abrangidos. Este Regulamento é aplicável às sucessões das pessoas falecidas a partir do dia 17 de Agosto de 2015, inclusive.
GG... faleceu no dia 02 de Julho de 2018, motivo pelo qual, atenta a data do óbito, a situação está dentro do âmbito de aplicação do Regulamento.
Em conformidade com o artigo 1º do citado Regulamento, este é aplicável às sucessões por morte , com exclusão das matérias fiscais, aduaneiras e administrativas, pretendendo regular todos os aspectos da sucessão, tirando algumas excepções (entre as quais, não exaustivamente, as matérias fiscais, aduaneiras e administrativas, o estado das pessoas singulares, relações familiares e comparáveis a estas, capacidade jurídica das pessoas singulares), definindo a sucessão por morte como “abrangendo qualquer forma de transferência de bens, direitos e obrigações por morte, quer se trate de um acto voluntário de transferência ao abrigo de uma disposição por morte, quer de uma transferência por sucessão sem testamento”, mas apenas do caso de terem alguma conexão com outras ordens jurídicas.
O Regulamento abarca as questões de direito internacional privado em matéria sucessória, como a competência internacional das jurisdições para determinar a sucessão e a lei que lhe é aplicável, mas não regula o direito sucessório material, que continua a caber inteiramente aos Estados-Membros.
A questão que aqui se coloca insere-se exactamente no âmbito do direito sucessório material, excluindo a aplicação do Regulamento. Este a aplicar-se (com a discussão prévia sobre o conceito de residência habitual) seria apenas para efeitos de partilha/inventário decorrente do óbito de GG....
Os presentes autos têm como objecto apurar se as quantias movimentadas a débito de contas bancárias tituladas pela inventariada e pela Ré, em regime de solidariedade, antes do óbito, e integradas no património da Ré fazem ou não parte do acervo hereditário da falecida, sendo que, neste último caso, cabe à Autora a alegação e prova de que essas quantias pertenciam à falecida e que a subtracção ao património daquela foi ilícita.
A provarem-se tais factos, então a Ré terá de restituir à herança indivisa o montante correspondente ao saldo bancário e, a provar-se a sonegação de bens, poderá a Ré perder o direito aos bens sonegados, ou seja, sobre o depósito bancário em beneficio dos demais herdeiros de (…).
Trata-se, sem margem de dúvida de matéria de direito sucessório material subtraído ao âmbito de aplicação do Regulamento, motivo pelo qual este Juízo Central Cível é internacionalmente competente para conhecer do mérito da presente acção.
Pelo exposto, julgo improcedente a excepção de incompetência internacional invocada pela Ré e consequentemente declaro este Juízo Central Cível internacionalmente competente para os termos da presente acção.
Notifique.”
2.2. O Direito
A apelante imputa à decisão recorrida a nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC. Segundo a apelante, embora no despacho recorrido o tribunal a quo tenha julgado improcedente a exceção de incompetência internacional e julgado o Juízo Central Cível internacionalmente competente, omitiu o fundamento de direito para se declarar competente, ou seja, não indicou a norma concreta do CPC que permitiria fixar a sua competência internacional.
Vejamos.
As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo deverão ser sempre fundamentadas (n.º 1 do art.º 154.º do CPC). Trata-se, de resto, de um imperativo constitucional (art.º 205.º n.º 1 da CRP).
Consonantemente, as sentenças e os despachos não fundamentados padecem de nulidade (artigos 613.º n.º 3 e 615.º n.º 1 al. b) do CPC).
Nos termos da alínea b) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC a sentença será nula se não especificar os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
O art.º 607.º do CPC estipula que na sentença o tribunal deve, a par da identificação do objeto do litígio e das questões a resolver (n.º 2), indicar os factos que julga provados e não provados e dar a conhecer os fundamentos desse seu juízo, analisando criticamente a prova (n.ºs 3 e 4). Mais deve indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final (n.º 3).
In casu, o tribunal a quo foi confrontado com a arguição de falta de competência internacional do tribunal, por aplicação do Regulamento (UE) n.º 650/2012, de 4 de julho, relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e execução das decisões e à aceitação e execução dos atos autênticos em matéria de sucessões e à criação de um Certificado Sucessório Europeu.
Como resulta da transcrição da decisão recorrida, o tribunal considerou que o litígio sub judice estava excluído do âmbito de aplicação do Regulamento. Daí resulta que a questão da competência internacional do tribunal não é resolvida pelo dito Regulamento. Ora, após isto dizer, o tribunal declarou-se internacionalmente competente para julgar o litígio, mas sem indicar a norma que, afinal, lhe conferia tal competência.
Isto é, o tribunal julgou-se internacionalmente competente para julgar o litígio, mas sem explicar, afinal, de onde lhe advinha essa competência. Tal omissão, a nosso ver, vicia a decisão em termos que assumem a gravidade da nulidade, por falta de fundamentação – o que se declara.
Caberá a esta Relação a tarefa de, se for o caso, sanar a nulidade, ao abrigo da regra da substituição ao tribunal recorrido consignada no art.º 665.º n.º 1 do CPC.
3. Segunda questão (competência internacional do tribunal a quo)
3.1. A apelante/R. entende que o presente litígio se insere no âmbito de aplicação do Regulamento Europeu que abreviadamente identificaremos como o Regulamento (UE) n.º 650/2012, relativo a sucessões. À luz desse Regulamento, a competência para o julgamento do litígio sub judice caberia aos tribunais alemães.
Temos, pois, que resolver os seguintes problemas:
a) Se o litígio sub judice é abrangido pelo dito Regulamento;
b) No caso de resposta positiva, qual a ordem jurisdicional nacional competente à luz do Regulamento;
c) No caso de resposta negativa, qual a norma aplicável e se o tribunal português tem competência internacional, no pressuposto de que se trata de um conflito com caráter transfronteiriço.
3.2. Da aplicação do Regulamento (UE) n.º 650/2012, de 04 de julho
Sempre que o litígio que é submetido a juízo apresenta elementos de estraneidade relativamente à ordem jurídica portuguesa, isto é, contém algum elemento objetivo ou subjetivo que o põe em contacto com outra ordem jurídica, que não a portuguesa, põe-se uma questão de competência internacional dos tribunais portugueses.
As regras sobre a competência internacional permitem apenas determinar se os tribunais portugueses são, no seu conjunto, competentes para decidir o litígio; mas já não definem qual o tribunal concretamente competente, no interior da jurisdição nacional, para apreciar a questão. Essa é a função das regras da competência interna.
Os tribunais judiciais portugueses aferem a sua competência internacional de acordo com as regras do direito interno e, também, das regras de direito internacional que obriguem o Estado português.
Assim, o art.º 59.º do CPC, sob a epigrafe “Competência internacional”, estipula que “Sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º e 63.º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94.º
Daqui resulta que quando algum destes instrumentos seja aplicável, é pelas regras nele estabelecidas que deve aferir-se a competência dos tribunais portugueses. E resulta também que se for aplicável algum desses instrumentos e dele não resultar a competência dos tribunais portugueses, também não poderá tal competência resultar da aplicação das regras internas.
Em relação a litígios que tenham conexão com estados membros da União Europeia, haverá que atentar nas regras de alguns Regulamentos, que prevalecem sobre o direito interno (cfr. artigos 8.º n.º 4 da CRP e 288.º do TFUE).
Entre eles, com relevo para o presente pleito, cabe mencionar o Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012 (Regulamento Bruxelas I-bis), sobre a competência judiciária, o reconhecimento e a execução de decisões em matéria cível e comercial e o já citado Regulamento (UE) n.º 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de julho de 2012, que dispõe sobre a competência, lei aplicável, reconhecimento e execução das decisões, e aceitação e execução dos atos autênticos em matéria de sucessões e sobre a criação de um Certificado Sucessório Europeu.
É precisamente este último Regulamento, o Regulamento (UE) n.º 650/2012, que incide sobre matéria de sucessões, que foi invocado pela R. para alicerçar a falta de competência internacional do tribunal a quo.
Conforme consta no considerando 7 do Regulamento, este instrumento jurídico da União Europeia visou “facilitar o bom funcionamento do mercado interno suprimindo os entraves à livre circulação de pessoas que atualmente se defrontam com dificuldades para exercerem os seus direitos no âmbito de uma sucessão com incidência transfronteiriça. No espaço europeu de justiça, os cidadãos devem ter a possibilidade de organizar antecipadamente a sua sucessão. É necessário garantir eficazmente os direitos dos herdeiros e dos legatários, das outras pessoas próximas do falecido, bem como dos credores da sucessão”.
Para alcançar esses objetivos o Regulamento não harmoniza o direito das sucessões. Recorre às vertentes clássicas do direito internacional privado: harmoniza as regras de determinação da lei nacional aplicável às sucessões transfronteiriças, as regras de determinação da ordem jurisdicional nacional competente para a apreciação dos litígios respeitantes a sucessões, consagra o sistema de reconhecimento e execução de decisões em matéria de sucessões internacionais (para além de criar o Certificado Sucessório Europeu, cuja análise para este caso não importa).
O âmbito material de aplicação do Regulamento é, conforme o considerando 9, “todas as questões de direito civil da sucessão por morte, ou seja, todas as formas de transferência de bens, direitos e obrigações por morte, independentemente de se tratar de ato voluntário de transferência ao abrigo de uma disposição por morte, ou de uma transferência por sucessão ab intestato.”
É sabido que os conceitos utilizados pelos instrumentos jurídicos da União Europeia carecem de uma interpretação autónoma, própria da União, desvinculada do sentido que alcançam em cada Estado Membro. Só assim se obterá a indispensável harmonização do direito no espaço da União Europeia (com citação da jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, vide, v.g., João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, volume I, AAFDL, 2022, p. 15).
A autonomia do conceito de sucessões para o efeito de aplicação do Regulamento (EU) n.º 650/2012 é, também aqui, consequência dessa necessidade (neste caso em especial, cfr., v.g., Carlos de Melo Marinho, Sucessões Europeias – O novo regime sucessório europeu, Quid Juris, 2015, p. 23 e 24).
Na alínea a) do n.º 1 do art.º 3.º do Regulamento “sucessão” é definida como “a sucessão por morte, abrangendo qualquer forma de transferência de bens, direitos e obrigações por morte, quer se trate de um ato voluntário de transferência ao abrigo de uma disposição por morte, quer de uma transferência por sucessão sem testamento.”
Trata-se, segundo Anabela Susana de Sousa Gonçalves (“As linhas gerais do Regulamento Europeu sobre as Sucessões”, in Cadernos de Direito Privado, n.º 52, Out – Dez. 2015, p. 7), de um conceito amplo de sucessão, que abarca qualquer forma de transmissão por morte, de acordo com um princípio de unidade da sucessão, incluindo a transmissão legal e a transmissão voluntária.
O art.º 23.º do Regulamento auxilia à determinação positiva das matérias que caem no âmbito de aplicação do diploma. Aí se enuncia, de forma não taxativa (neste sentido, Anabela Gonçalves, ob. cit., p. 8), que se inserem na sucessão, para efeitos de aplicação da lei nacional indicada pelo Regulamento, as causas, o momento e o lugar da abertura da sucessão (al. a)); a determinação dos beneficiários, das respetivas quotas-partes e das obrigações que lhes podem ser impostas pelo falecido, bem como a determinação dos outros direitos sucessórios, incluindo os direitos sucessórios do cônjuge ou parceiro sobrevivo (al. b); a capacidade sucessória (al. c); a deserdação e a incapacidade por indignidade (al. d); a transmissão dos bens, direitos e obrigações que compõem a herança aos herdeiros e, consoante o caso, aos legatários, incluindo as condições e os efeitos da aceitação da sucessão ou do legado ou do seu repúdio (al. e); os poderes dos herdeiros, dos executores testamentários e outros administradores da herança, nomeadamente no que respeita à venda dos bens e ao pagamento dos credores, sem prejuízo dos poderes a que se refere o artigo 29.º, n.ºs 2 e 3 (al. f); responsabilidade pelas dívidas da sucessão (al. g); a quota disponível da herança, a legítima e outras restrições à disposição por morte, bem como as pretensões que pessoas próximas do falecido possam deduzir contra a herança ou os herdeiros (al. h); a colação e a redução das liberalidades, adiantamentos ou legados aquando da determinação das quotas dos diferentes beneficiários (al. i); a partilha da herança (al. j).
Por sua vez o Regulamento enuncia expressamente, no n.º 2 do art.º 1.º, matérias que são excluídas do seu âmbito de aplicação:
a) O estado das pessoas singulares, bem como as relações familiares e as relações que a lei aplicável considera produzirem efeitos comparáveis;
b) A capacidade jurídica das pessoas singulares, sem prejuízo do artigo 23.º, n.º 2, alínea c), e do artigo 26.º;
c) As questões relacionadas com o desaparecimento, a ausência ou a morte presumida de uma pessoa singular;
d) As questões relacionadas com regimes matrimoniais e regimes patrimoniais no âmbito de relações que a lei aplicável considera produzirem efeitos comparáveis ao casamento;
e) As obrigações de alimentos com exceção das resultantes do óbito;
f) A validade formal das disposições por morte feitas oralmente;
g) Os direitos e os bens criados ou transferidos fora do âmbito da sucessão, tais como as liberalidades, a propriedade conjunta de várias pessoas com reversibilidade a favor da pessoa sobreviva, os planos de reforma, os contratos de seguros e as disposições análogas, sem prejuízo do artigo 23.º, n.º 2, alínea i);
h) As questões regidas pelo direito das sociedades e pelo direito aplicável a outras entidades, dotadas ou não de personalidade jurídica, como as cláusulas contidas nos atos constitutivos e nos estatutos das sociedades e outras entidades, dotadas ou não de personalidade jurídica, que fixam o destino das quotas aquando da morte dos seus membros;
i) A dissolução, extinção e fusão de sociedades e outras entidades, dotadas ou não de personalidade jurídica;
j) A criação, administração e dissolução de trust;
k) A natureza dos direitos reais; e
l) Qualquer inscrição num registo de direitos sobre um bem imóvel ou móvel, incluindo os requisitos legais para essa inscrição, e os efeitos da inscrição ou não inscrição desses direitos num registo.
Embora pelo menos algumas dessas exclusões fossem manifestas à partida, por não terem relação com a matéria civil e comercial na aceção emergente da União Europeia, o preceito visou não deixar margens para dúvidas interpretativas, concretizando a preocupação espelhada no considerando n.º 11: “O presente regulamento não deverá aplicar-se a outros domínios do direito civil que não o direito sucessório. Por motivos de clareza, deverão ser explicitamente excluídas do âmbito de aplicação do presente regulamento algumas questões suscetíveis de serem entendidas como apresentando uma relação com matérias sucessórias (cfr. Carlos Marinho, ob. cit., pp. 25 e 26).
Algumas destas exclusões têm caráter flexível (expressão utilizada por Carlos Marinho, ob. cit, p. 26). Focando-nos no que tem mais interesse para o nosso caso, na alínea g) do n.º 1 do art.º 1.º do Regulamento exclui-se do âmbito de aplicação do Regulamento “[o]s direitos e os bens criados ou transferidos fora do âmbito da sucessão, tais como as liberalidades, a propriedade conjunta de várias pessoas com reversibilidade a favor da pessoa sobreviva, os planos de reforma, os contratos de seguros e as disposições análogas, sem prejuízo do artigo 23.º, n.º 2, alínea i).
O art.º 23.º n.º 2 alínea i), já acima mencionado, inclui no âmbito do Regulamento “a colação e a redução das liberalidades, adiantamentos ou legados aquando da determinação das quotas dos diferentes beneficiários”.
A propósito desta matéria de exclusão do âmbito de aplicação do Regulamento, expendeu-se no considerando n.º 14 o seguinte:
Deverão igualmente ser excluídos do âmbito de aplicação do presente regulamento os direitos e os bens criados ou transferidos por outra via que não a via sucessória, por exemplo por via de liberalidades. No entanto, deverá ser a lei designada pelo presente regulamento como lei aplicável à sucessão que determinará se tais liberalidades, ou outra forma de disposição inter vivos que criem um direito real anterior ao óbito, deverão ser reduzidas ou contabilizadas para efeitos de determinação das quotas-partes dos beneficiários segundo a lei aplicável à sucessão.
Assim, por exemplo, numa situação transfronteiriça, isto é, uma sucessão por causa da morte que tenha elementos de conexão com mais de um Estado-Membro, a questão da apreciação da validade de uma doação efetuada em vida pelo de cujus estará excluída do âmbito de aplicação do Regulamento; mas o Regulamento será aplicável para se decidir a questão de saber se a doação é ou não objecto de redução por inoficiosidade (cfr. João Gomes de Almeida, “Apontamentos sobre o novo direito de conflitos sucessório”, in Revista do CEJ, n.º 2, 2014, p. 34).
Nos termos do art.º 83.º n.º 1 do Regulamento, este é aplicável às sucessões das pessoas falecidas em 17.8.2015 ou após essa data.
Assim, uma vez que GG... faleceu em __/__/____, o Regulamento é, quanto ao elemento temporal, aplicável.
Quanto à natureza transfronteiriça da sucessão, suscetível de convocar a aplicação do Regulamento, os elementos de conexão assumem distintas facetas, podendo emergir da nacionalidade estrangeira do de cujus, da sua residência habitual em país distinto, da eleição, por si feita, para regular a sua sucessão, de uma lei estrangeira, da existência de algum dos bens integrantes do acervo hereditário em território situado extramuros, da submissão dos direitos relativos à herança a uma lei distinta da interna ou da nacionalidade estrangeira ou residência habitual, noutro país, dos sucessíveis (cfr. Carlos Marinho, obra citada, p. 22).
In casu, ocorre o facto de a morte da de cujus ter ocorrido na Alemanha e de pelo menos um dos sucessíveis, neste caso a R., residir na Alemanha. Estão em causa depósitos bancários localizados em Portugal. A demandante, também sucessível, reside em Portugal. Mais se discute se a falecida GG... tinha residência habitual na Alemanha aquando do seu óbito.
Assim, o caráter transfronteiriço da sucessão também ocorre para o efeito de aplicação do Regulamento.
Para concluir pela não aplicabilidade ao caso sub judice do aludido Regulamento (UE) n.º 605/2012 sobre sucessões o tribunal a quo exarou o seguinte:
O Regulamento abarca as questões de direito internacional privado em matéria sucessória, como a competência internacional das jurisdições para determinar a sucessão e a lei que lhe é aplicável, mas não regula o direito sucessório material, que continua a caber inteiramente aos Estados-Membros.
A questão que aqui se coloca insere-se exactamente no âmbito do direito sucessório material, excluindo a aplicação do Regulamento. Este a aplicar-se (com a discussão prévia sobre o conceito de residência habitual) seria apenas para efeitos de partilha/inventário decorrente do óbito de GG....
Salvo o devido respeito por opinião contrária, a aludida fundamentação para o assim decidido parece ambígua e/ou contraditória.
O facto de o Regulamento não regular o direito sucessório material dos Estados-Membros, nomeadamente o português, não lhe retira aplicabilidade. O que o Regulamento faz é harmonizar as regras de determinação da lei interna que será aplicável e, bem assim, harmonizar as regras de identificação da ordem jurisdicional nacional que será competente para a regulação dos litígios emergentes da sucessão.
Sem prejuízo da vinculação aos princípios fundamentais de um processo equitativo e aos requisitos de independência das autoridades qualificáveis de tribunais (cfr. artigos 3.º n.º 2, 52.º e 40.º al. b) do Regulamento), o Regulamento não se intromete na determinação das formas processuais que cada Estado-Membro utilizará para a resolução dos litígios cuja competência lhe seja atribuída. Sendo certo que esses litígios não terão necessariamente de ser formalizados em processo de inventário/partilha. Como exemplo de ações declarativas comuns em que os tribunais portugueses aplicaram o Regulamento (UE) n.º 650/2012 vejam-se, v.g., o acórdão da Relação de Lisboa, de 19.11.2019, processo 28325/17.9T8LSB.L1-7 e o acórdão da Relação de Évora, de 11.11.2021, processo 225/20.2T8PTM.E1, consultáveis em www.dgsi.pt.
No caso destes autos, a A. formula as seguintes pretensões:
a) Que a R. seja condenada a restituir à herança da de cujus GG... todos os bens na sua posse, no caso o saldo das contas bancárias supramencionadas, saldo esse a apurar em execução de sentença;
b) Que a Ré seja condenada a indemnizar a herança com o valor das utilidades e faculdades que aquele saldo bancário propiciou e de que a mesma usufrui em exclusividade desde a data da abertura da referida herança (02/07/2019) até efetiva restituição do mesmo, a ser liquidada em execução de sentença;
c) Se se provar a sonegação de bens, que seja reconhecido que a R. perdeu o direito aos bens sonegados em benefício dos demais herdeiros de GG....
Está em causa uma alegada apropriação indevida de quantias depositadas em contas bancárias co-tituladas pela de cujus e pela R., apropriação essa levada a cabo pela R. em vida de GG....
Isto é, o litígio reporta-se a transmissões de bens, alegadamente ilícitas, ocorridas em vida da de cujus – ou seja, antes do desencadeamento do fenómeno sucessório, emergente do óbito de GG....
Saber se esses levantamentos foram lícitos ou não, se foram efetuados por GG... ou a pedido dela, em benefício de GG... ou enquanto liberalidade concedida por GG... à R., ou se as quantias assim levantadas, pertencentes a GG..., foram alvo de apropriação indevida pela R., que as fez suas contra a vontade de GG..., constitui matéria alheia à sucessão, conforme definida no Regulamento (UE) n.º 650/2012. E isto embora possa influir na determinação do acervo hereditário, pelo menos enquanto apuramento de um crédito da herança (qualificando situações destas como dando origem a um crédito da herança, cfr. acórdão da Relação de Guimarães, 06.10.2016, processo n.º 956/13.3TBBCL-A.G1, in www.dgsi.pt). Com efeito, o facto de uma ação judicial poder ter reflexo na determinação do acervo de uma determinada herança (por exemplo, ação de anulação de contrato de compra e venda de um imóvel alegadamente simulada celebrado pelo vendedor de cujus) não determina a aplicabilidade do Regulamento (UE) n.º 650/2012 a esse pleito (cfr. acórdão do STJ, de 30.11.2022, processo 3902/19.7T8FNC-A.L1.S1).
Concorda-se, pois, com o tribunal a quo, embora com diversa fundamentação, quanto à inaplicabilidade do Regulamento (UE) n.º 650/2012 aos dois primeiros pedidos da ação.
Já no que concerne à pretensão formulada em c), isto é, que a R. seja afastada, no que diz respeito às quantias alegadamente ilicitamente apropriadas, dos direitos emergentes da sua qualidade de herdeira, o Regulamento é aplicável, pois aqui está em causa matéria sucessória, com o alcance já acima explanado.
3.3. Tribunal internacionalmente competente para apreciar os pedidos a) e b).
Conforme já exposto, a atribuição de competência internacional aos tribunais de um Estado pressupõe que a causa apresenta um ou vários elementos de conexão com a ordem jurídica desse Estado. Nas palavras dos Professores João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, [e]lementos de conexão comuns são o lugar da situação dos bens, o lugar do cumprimento da obrigação, o lugar da ocorrência do dano, o domicílio do demandado e a vontade das partes. Estes elementos de conexão são escolhidos em função de diversos interesses, como, por exemplo, a boa administração da justiça, a efetividade da tutela processual, a harmonia das decisões sobre um litígio, o interesse das partes, a proteção de partes mais fracas e a proximidade com o litígio” (in Manual de Processo Civil, volume I, ob. cit., p. 173).
A matéria contida nas alíneas a) e b) da pretensão da A. insere-se no âmbito de aplicação do já acima mencionado Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012 (Regulamento Bruxelas I-bis), sobre a competência judiciária, o reconhecimento e a execução de decisões em matéria cível e comercial.
Conforme exarado no considerando n.º 6 do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, considera-se que para “alcançar o objetivo da livre circulação das decisões em matéria civil e comercial”, “é necessário e adequado que as regras relativas à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução das decisões sejam determinadas por um instrumento legal da União vinculativo e diretamente aplicável.
Conforme consta no considerando n.º 10 do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, “[o] âmbito de aplicação material do presente regulamento deverá incluir o essencial da matéria civil e comercial, com exceção de certas matérias bem definidas”, quais serão, em boa medida, matérias abrangidas por outros Regulamentos, como obrigações de alimentos, regimes matrimoniais, responsabilidades parentais, insolvências, sucessões.
O âmbito de aplicação deste Regulamento é assim determinado, no art.º 1.º:
1. O presente regulamento aplica-se em matéria civil e comercial, independentemente da natureza da jurisdição. Não abrange, nomeadamente, as matérias fiscais, aduaneiras ou administrativas, nem a responsabilidade do Estado por atos ou omissões no exercício da autoridade do Estado («acta jure imperii»).
2. O presente regulamento não se aplica:
a) Ao estado e à capacidade jurídica das pessoas singulares ou aos regimes de bens do casamento ou de relações que, de acordo com a lei que lhes é aplicável, produzem efeitos comparáveis ao casamento;
b) Às falências, concordatas e processos análogos;
c) À segurança social;
d) À arbitragem;
e) Às obrigações de alimentos decorrentes de uma relação familiar, parentesco, casamento ou afinidade;
f) Aos testamentos e sucessões, incluindo as obrigações de alimentos resultantes do óbito”.
A pretensão da A., nas vertentes concretizadas nas alíneas a) e b), não se mostra excluída do âmbito de aplicação do Regulamento (EU) n.º 1215/2012 – o qual é aplicável às ações judiciais intentadas a partir de 10.01.2015 (art.º 66.º n.º 1 do Regulamento).
Em regra as ações abrangidas por este Regulamento devem ser intentadas perante os tribunais do Estado-Membro onde o demandado tenha o seu domicílio (art.º 4.º do Regulamento).
Porém, o Regulamento admite exceções.
Em matéria contratual também é competente o tribunal do lugar onde a obrigação foi ou devia ser cumprida (art.º 7.º n.º 1 al. a)). A matéria contratual refere-se apenas a obrigações assumidas de forma voluntária, pelo que, por exemplo, não cabe no âmbito de aplicação do art.º 7.º, n.º 1, alínea a), a responsabilidade por culpa in contrahendo (TJ 17/9/2022, C-334/00, citado por João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, ob. cit., p. 186, nota 56).
Em matéria extracontratual, o réu também pode ser demandado perante o tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso (art.º 7.º n.º 2).
Conforme expendem João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa (ob. cit., p. 190), a matéria extracontratual constitui um conceito que deve ser interpretado autonomamente, cabendo nele tudo o que não se inclui no conceito de matéria contratual do art.º 7.º n.º 1. O disposto no art.º 4.º n.º 1 do Regulamento (CE) n.º 864/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho de 11.7.2007, relativo à lei aplicável às obrigações extracontratuais (“Roma II”), pode servir de ponto de referência (João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, ob. cit., p. 190). Aí se englobam as responsabilidades extracontratuais decorrentes da responsabilidade fundada em facto lícito, ilícito ou no risco. E também se abrangem obrigações emergentes do enriquecimento sem causa, gestão de negócios e culpa in contrahendo (respetivamente artigos 10.º, 11.º e 12.º do “Roma II”). Nos termos do Regulamento (CE) n.º 864/2007, a lei aplicável às obrigações extracontratuais referidas no Regulamento rege, designadamente, “[a] transmissibilidade do direito de exigir indemnização ou reparação, incluindo por via sucessória” (art.º 15.º alínea e)).
À luz do acima exposto, os factos imputados pela A. à R. inserem-se na responsabilidade extracontratual. A alegada apropriação indevida de quantias depositadas pertencentes a outrem constituirá fonte de obrigações emergentes de responsabilidade delitual ou, pelo menos, de enriquecimento sem causa (admitindo estas qualificações, à luz do direito português, cfr. STJ, 06.12.2022, processo 2547/15.5.T8PNF.P1.S1; STJ, 22.01.2011, processo 1561/07.9TBLRA.C1.S1; STJ, 19.5.2009, processo 2434/04.2TBVCD.S1; STJ, 09.5.2002, processo 02B4011, todos consultáveis em www.dgsi.pt).
Assim sendo, além da jurisdição correspondente ao Estado-Membro onde o demandado está domiciliado, o demandante poderá instaurar a ação no Estado-Membro onde o demandado praticou o facto danoso. E se não houver coincidência entre o local do facto danoso e o local onde se produziu o dano, o demandante poderá optar por este último (João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, ob. cit., p. 191, citando a jurisprudência contida no acórdão do TJ de 30.11.1976, processo 21/76).
Ignora-se, pois não foi alegado, onde se encontrava a R. quando procedeu aos levantamentos ou transferências bancárias em causa, ou emitiu as ordens respetivas. Poderia estar em Portugal, país onde se localizam as contas bancárias em apreço, na Alemanha, país onde reside, ou em qualquer outro lugar, atendendo às atuais possibilidades de movimentações bancárias on-line. Seja como for, localizando-se em Portugal as contas bancárias associadas aos depósitos (como é incontroverso nos autos) Portugal é o país onde se concretizou, do ponto de vista do lesado, o efeito do alegado facto danoso, isto é, foi em Portugal que se produziu a saída da esfera jurídica de GG... dos valores que alegadamente eram seus.
Assim, o tribunal a quo tem competência internacional, à luz do art.º 7.º n.º 2 do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 de 12 de dezembro, para conhecer os dois primeiros pedidos formulados pela A. (acima identificados por alíneas a) e b)).
3.4. Competência internacional para apreciar o pedido formulado pela A. em terceiro lugar – alínea c)
3.4.1. Já acima concluímos que o terceiro pedido formulado pela A. (que a R. perca o direito aos bens sonegados em benefício dos demais herdeiros), o Regulamento (EU) n.º 650/2012 de 04 de julho é aplicável, pois aqui está em causa matéria sucessória, com o alcance já acima explanado.
Quanto à competência, a regra geral aplicável está enunciada no art.º 4.º do Regulamento: “São competentes para decidir do conjunto da sucessão os órgãos jurisdicionais do Estado-Membro em que o falecido tinha a sua residência habitual no momento do óbito”.
Este critério coincide tendencialmente com o da lei substantiva a aplicar à sucessão.
Com efeito, nos termos do art.º 21.º n.º 1, [s]alvo disposição em contrário do presente regulamento, a lei aplicável ao conjunto da sucessão é a lei do Estado onde o falecido tinha residência habitual no momento do óbito”.
A opção por este critério, em detrimento do da nacionalidade do de cujus, que prevalece no direito interno de muitos países, é justificada no considerando n.º 23 pela tomada de consciência da mobilidade crescente dos cidadãos e a ideia de que assim melhor se assegurará a boa administração da justiça, assegurando-se uma conexão real entre a sucessão e o Estado-Membro em que a competência é exercida.
Também o conceito de (última) residência habitual deverá ter um tratamento autónomo, próprio do ordenamento jurídico europeu (cfr., v.g., Afonso Patrão, “Problemas práticos na aplicação do Regulamento Europeu das sucessões”, in BFDUC, vol. XCIV, tomo II, 2018, p. 1175).
Embora o legislador europeu tenha fugido à enunciação de uma definição de residência habitual, alongou-se, nos considerandos, em explanações sobre o respetivo conteúdo, nomeadamente para o efeito da determinação da jurisdição competente.
Assim, no considerando n.º 23 exarou-se o seguinte:
A fim de determinar a residência habitual, a autoridade que trata da sucessão deverá proceder a uma avaliação global das circunstâncias da vida do falecido durante os anos anteriores ao óbito e no momento do óbito, tendo em conta todos os elementos factuais pertinentes, em particular a duração e a regularidade da permanência do falecido no Estado em causa, bem como as condições e as razões dessa permanência. A residência habitual assim determinada deverá revelar uma relação estreita e estável com o Estado em causa tendo em conta os objetivos específicos do presente regulamento.”
E no considerando n.º 24 tem-se o cuidado de acrescentar ainda o seguinte:
Em certos casos, poderá ser complexo determinar a residência habitual do falecido. Poderá ser esse o caso, em particular, quando o falecido, por razões profissionais ou económicas, tenha ido viver para o estrangeiro a fim de aí trabalhar, por vezes por um longo período, mas tenha mantido uma relação estreita e estável com o seu Estado de origem. Nesse caso, o falecido poderá, em função das circunstâncias, ser considerado como tendo ainda a sua residência habitual no Estado de origem, no qual se situavam o centro de interesses da sua família e a sua vida social. Outros casos complexos poderão igualmente ocorrer quando o falecido tenha vivido de forma alternada em vários Estados ou tenha viajado entre Estados sem se ter instalado de forma permanente em nenhum deles. Caso o falecido fosse um nacional de um desses Estados ou tivesse todos os seus principais bens num desses Estados, a sua nacionalidade ou o local onde se situam esses bens poderia ser um fator especial na apreciação global de todas as circunstâncias factuais.”
Como escreve Carlos Marinho, “estamos perante uma figura aberta, de aferição fáctica, natureza dúctil e operacional e conteúdo não fixo – logo melhor adaptável à realidade e mais abrangente” (Sucessões europeias, ob. cit., p. 44). Para Carlos Marinho, na avaliação global das circunstâncias da vida do falecido durante os anos anteriores ao óbito e no momento do óbito, tendo em conta todos os elementos factuais pertinentes, em particular a duração e a regularidade da permanência do falecido no Estado em causa, bem como as condições e as razões dessa permanência, a configuração das relações familiares e sociais constitui elemento-índice de relevo (obra citada, p. 44). Mais acrescentando que porque o conceito “possui radical essencialmente de facto, constituindo conclusão fáctica e não de Direito, o mesmo independe, manifestamente, da configuração jurídica da ligação territorial, pelo que é irrelevante saber se a residência é qualificável como legal ou ilegal sendo que, por outro lado, a legalidade da residência, da autorização de permanência ou de ou do visto de trabalho não a apontam, por si só, sem concurso dos necessários factos-índice. Na mesma linha e pelas mesmas razões, a titularidade de um cartão de eleitor ou de um número fiscal de contribuinte não possuem peso decisivo e não relevam mais do que celebração de um contrato de prestação de serviços por reporte a uma determinada casa e morada – v.g. contrato de fornecimento de água, gás ou eletricidade” (obra citada, p. 44).
Cabe ainda fazer notar que a determinação da última residência habitual para o efeito de fixação do foro internacionalmente competente pode, em casos específicos, não coincidir com a identificação da lei aplicável à sucessão.
Assim sucederá se o de cujus tiver escolhido como lei aplicável à sua sucessão a lei da sua nacionalidade (art.º 22.º n.º 1 do Regulamento), escolha essa que deve ser feita expressamente numa declaração que revista a forma de uma disposição por morte ou pode resultar tacitamente dos termos dessa disposição (art.º 22.º n.º 2 do Regulamento; cfr. Carlos Marinho, ob. cit., pág. 76).
Assim sucederá também, a título excecional, se o tribunal do Estado-Membro onde se localizar a última residência habitual considerar que resulta “claramente do conjunto das circunstâncias do caso que, no momento do óbito, o falecido tinha uma relação manifestamente mais estreita com um Estado diferente do Estado cuja lei seria aplicável nos termos do n.º 1” – nesse caso, é aplicável à sucessão a lei desse outro Estado” (n.º 2 do art.º 21.º do Regulamento). Esta situação excecional encontra eco no considerando n.º 25 do Regulamento, assim redigido:
“No que diz respeito à determinação da lei aplicável à sucessão, a autoridade que trata da sucessão pode, em casos excecionais – quando, por exemplo, o falecido se tenha mudado para o Estado da sua residência habitual muito pouco tempo antes da sua morte e todas as circunstâncias do caso indiquem que tinha uma relação manifestamente mais estreita com outro Estado – chegar à conclusão de que a lei aplicável à sucessão não deverá ser a do Estado da residência habitual do falecido, mas sim a lei do Estado com o qual o falecido tinha uma relação manifestamente mais estreita. No entanto, a relação manifestamente mais estreita não deverá tornar-se em fator de conexão subsidiário caso se revele complexa a determinação da residência habitual do falecido no momento do óbito.”
Essa aplicabilidade à sucessão do direito de um outro Estado não determina a incompetência do tribunal da última residência habitual do de cujus (cfr., v.g., Joel Timóteo Pereira, “Competência em matéria sucessória – novas regras de sucessão internacional por morte”, in Revista do CEJ, n.º 2, 2014, pág. 20; idem, Dan Andrei Popescu, Guide on international private law in successions matters, 2014, edição do Ministério da Justiça da Roménia com o apoio da União Europeia, páginas 80 e 83, acessível on-line em Guide_on_intern_private_law__succ_matters_EN.pdf (uniuneanotarilor.ro) ), sem prejuízo do previsto nos artigos 5.º, 6.º e 7.º do Regulamento, que para o caso vertente não interessa agora analisar.
3.4.2. Se a incompetência absoluta for arguida antes do despacho saneador, pode conhecer-se dela imediatamente ou reservar-se a sua apreciação para o despacho saneador (art.º 98.º do CPC).
O tribunal a quo conheceu da exceção no despacho saneador. Foi desse despacho que foi interposto recurso, como o permite o art.º 644.º n.º 2 al. b) do CPC.
Aquando do despacho saneador os elementos relevantes constantes nos autos (documentos juntos e alegações das partes nos respetivos articulados) permitiam (e permitem) dar como demonstrados, para a apreciação da questão da determinação da última residência habitual da de cujus, o seguinte factualismo:
a. A A. e a R. são filhas de GG... e MM….
b. GG... e seu marido MM… trabalharam durante anos na Alemanha.
c. Após a reforma GG... e seu marido passaram a residir em Portugal, na casa de que eram proprietários sita na Rua (…) no Feijó.
d. Após o óbito de MM…, que ocorreu em __/__/____, a viúva, GG..., continuou a residir naquela sua habitação, embora passasse também curtos períodos de tempo na Alemanha, em casa da sua filha, aqui R..
e. GG... era co-titular de contas bancárias em Portugal, primeiro apenas juntamente com a ora A. e, mais tarde, a partir de 12.12.2012, apenas juntamente com a ora R..
f. GG... tinha um enteado, O, residente na Alemanha, de quem gostava como um filho.
g. Em 22.7.2014 GG... outorgou num cartório notarial em (…), Almada, testamento no qual declarou instituir herdeiro da quota disponível dos seus bens o seu enteado O.
h. Em inícios de dezembro de 2016 GG... foi morar na casa da ora R., na Alemanha.
i. Aquando da ida de GG... para a Alemanha, referida em h, a ora R. inscreveu a sua mãe no registo de residentes junto das autoridades alemãs e inscreveu-a no sistema alemão de proteção na doença.
j. GG... continuou inscrita junto das autoridades fiscais portuguesas como tendo domicílio fiscal em Portugal.
k. No assento de óbito emitido pelo Consulado Geral de Portugal em Estugarda, ficou consignado que GG... teve como “última residência habitual” “(…) ..., República Federal da Alemanha”.
l. GG... foi sepultada no cemitério de ..., Alemanha.
m. Em 28.8.2020 a ora A. fez lavrar, no cartório notarial referido em g., na qualidade de cabeça-de-casal das heranças dos seus pais MM… e GG..., escritura de habilitação de herdeiros, na qual declarou, nomeadamente, que à data do seu falecimento GG... tinha residência habitual no supra identificado endereço na Alemanha, mas que tal residência era acidental e a falecida tinha uma relação manifestamente mais estreita com Portugal, sendo por isso aplicável à sucessão a lei portuguesa, nos termos do n.º 2 do art.º 21.º do Regulamento (UE) n.º 650/2012.
3.4.3. Do factualismo apurado resulta que após uma vida de trabalho na Alemanha os pais da A. e da R. fixaram residência habitual em Portugal, país onde adquiriram a sua habitação e onde também residia uma das suas filhas, a ora A. Após enviuvar, GG... manteve-se a residir em Portugal, na sua casa, apenas se deslocando à Alemanha para visitar a sua outra filha, com quem então residia. Era em Portugal que se localizavam as contas bancárias de GG..., que co-titulava com as filhas, primeiro a A. e depois a R.. Foi em Portugal que GG... fez lavrar o testamento em que beneficiava o seu enteado, de quem gostava como um filho e que residia na Alemanha. Fê-lo atribuindo-lhe a “quota disponível” dos seus bens, isto é, aplicando um instituto do direito sucessório português (artigos 2156.º e seguintes do Código Civil). No final da sua vida GG... foi para junto da sua outra filha, que vivia na Alemanha, passando a viver na casa desta. Nesse país GG... veio a falecer e aí foi sepultada.
Tudo ponderado, cremos que será de considerar que na fase final da sua vida GG... decidiu ir viver com a ora R., sua filha, passando a residir na Alemanha com carater de permanência. A Alemanha é o país onde GG... fixou a sua última residência habitual, para efeitos de aplicação do Regulamento (EU) n.º 650/2012. Daí resulta a incompetência dos tribunais portugueses para julgarem o terceiro pedido formulado pela A. nesta ação. Questão diversa será a aplicabilidade à sucessão da lei substantiva portuguesa em vez da lei alemã, conforme decorre do acima exposto em relação ao disposto nos artigos 21.º n.º 2 e 22.º do Regulamento. Mas sobre isso não cabe aqui ajuizar.
Em suma: reconhece-se competência internacional ao tribunal a quo para conhecer dos dois primeiros pedidos formulados pela A. - ao abrigo do disposto no art.º 7.º n.º 2 do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 de 12.12.2012. Julga-se o tribunal a quo internacionalmente incompetente para julgar o terceiro pedido formulado pela A., por para tal serem competentes os tribunais alemães, ao abrigo do art.º 4.º do Regulamento (UE) n.º 650/2012 de 04.7.2012. Tal determina a absolvição da instância da R. quanto a esse pedido (artigos 99.º n.º 1, 278.º n.º 1 al. a), 576.º n.º 2 e 577.º al. a) do CPC; artigos 555.º n.º 1 e 37.º n.º 1 do CPC).

III. DECISÃO
Pelo exposto, julga-se a apelação parcialmente procedente e, consequentemente, altera-se a decisão recorrida, nos seguintes termos:
a) Julga-se o tribunal a quo internacionalmente competente para apreciar o primeiro e o segundo pedido formulados pela A. na ação, nessa parte se confirmando a decisão recorrida, embora com diferente fundamentação;
b) Julga-se o tribunal a quo internacionalmente incompetente para apreciar o terceiro pedido formulado pela A. na ação e consequentemente absolve-se a R. da instância quanto a esse pedido, nessa parte se revogando a decisão recorrida.
As custas da apelação, na vertente das custas de parte, são a cargo da apelante e da R., na proporção do respetivo decaimento, que se fixa em 2/3 a cargo da apelante e 1/3 a cargo da apelada (artigos 527.º n.ºs 1 e 2 e 533.º do CPC).

Lisboa, 09.02.2023
Jorge Leal
Nelson Borges Carneiro
Paulo Fernandes da Silva