Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
| Processo: |
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| Relator: | ANA CRISTINA CARDOSO | ||
| Descritores: | PERÍCIA SOBRE A PERSONALIDADE CREDIBILIDADE DEPOIMENTO LIVRE APRECIAÇÃO | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 01/21/2025 | ||
| Votação: | MAIORIA COM * VOT VENC | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Texto Parcial: | N | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | PARCIALMENTE PROVIDO | ||
| Sumário: | I - A perícia psicológica, feita neste processo referente a um crime contra a liberdade e autodeterminação sexual, realizada à vítima, visou o conhecimento das características psicológicas e da personalidade desta, sendo um indispensável contributo para uma melhor apreciação do testemunho e avaliação sobre a sua credibilidade, por parte do tribunal. II - O juízo técnico, científico e artístico referido no artigo 163º do Código de Processo Penal é o exigido pelo art.º 151º para a prova pericial em sentido próprio ou estrito, não abrangendo, desde logo, a perícia sobre a personalidade. III - O relatório da perícia feita à personalidade da menor está sujeito à livre apreciação do Tribunal. IV - A não se entender assim, o julgamento, com as declarações do arguido e os interrogatórios das testemunhas, seria uma mera formalidade, com pouca ou nenhuma utilidade prática, uma vez que seria o Perito a decidir que o conteúdo das declarações da menor deveria prevalecer sobre os demais meios de prova, sem possibilidade de o Juiz questionar essa apreciação. O relatório da perícia sobre a personalidade é apenas um elemento que permite auxiliar a decisão do Juiz, devendo ser conjugado com os restantes elementos probatórios. | ||
| Decisão Texto Parcial: | |||
| Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes Desembargadores da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa: RELATÓRIO I. No processo comum singular nº 105/23.0JDLSB do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo Local Criminal de Sintra, Juiz 3, foi proferida sentença, retificada em 05.08.2024, com o dispositivo que se transcreve: « III – Decisão: Nestes termos, julgo a acusação improcedente e decido absolver o arguido AA da prática, em autoria material e na forma consumada, do crime de abuso sexual de crianças, previsto e punido pelo artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal, de que vinha acusado». II. Inconformado, recorreu o Ministério Público, formulando as seguintes conclusões: « III. Das Conclusões 1.ª - Nos presentes autos, foi proferida sentença a qual, após submissão a julgamento do arguido AA julgou improcedente por não provada a acusação contra ele deduzida e o absolveu da prática de um crime de abuso sexual de crianças, previsto e punido nos termos do disposto no n.º 1, do artigo 171.º, do Código Penal. 2.ª - Não pode o Ministério Público conformar-se com tal decisão, porquanto considera que o Tribunal a quo incorreu no vício de erro notório na apreciação da prova, fez uma incorrecta apreciação da prova produzida e carreada para os autos que, caso tivesse apreciado correctamente, lhe imporia decisão oposta àquela que tomou. 3.ª - Os vícios elencados no artigo 410.º, do Código de Processo Penal têm de dimanar da complexidade global da própria decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. 4.ª - Ocorre o vício de erro notório na apreciação da prova, entre o mais, quando sejam violadas as regras sobre prova vinculada, como se entende ter sucedido no caso dos autos, já que o Tribunal decidiu contra os critérios legalmente fixados para a valoração dos elementos probatórios carreados para os autos, em particular o relatório pericial realizado. 5.ª – Entende-se, pois, que o Tribunal desconsiderou o teor daquele relatório pericial, que concluiu de forma inequívoca e objectiva pela coerência, credibilidade e veracidade do depoimento da ofendida, referindo na sentença não se ter convencido da sua idoneidade; e, tendo permanecido na dúvida, decidiu em favor do arguido, que negou os factos criminosos imputados, invocando o princípio in dubio pro reo. 7.ª – Ao fazer menção ao relatório de perícia médico-legal de psicologia, elaborado pelo INML, mas afastando-se infundadamente das conclusões ali tecidas, sem qualquer indicação ou argumentação no sentido de eventual divergência das conclusões a que chegou a Exma. Senhora Perita, concluindo o Tribunal que as declarações da ofendida não foram idóneas, decidiu o ao arrepio do parecer técnico científico que tal relatório traduz, violando, além do mais, o disposto no artigo 163.º, do Código de Processo Penal. 8.ª – Acresce que não podia o Tribunal ter ficado na dúvida, se tivesse ponderado devidamente o depoimento da ofendida, em conjugação com o relatório pericial e com as regras da lógica e da experiência comum. 9.ª – Entendemos que o mencionado vicio é susceptível de ser corrigido por este Venerando Tribunal da Relação, nos termos do disposto nos artigos 426.º, nº 1 a contrario, 431.º, alínea a) e 428.º, todos do Código de Processo Penal. 10.ª – Caso não proceda a argumentação acima expendida, sempre se dirá que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, ao incluir na matéria de facto não provada os factos A., B., C., E., F., G. e H., já que os mesmos resultam da prova produzida e carreada para os autos, mormente das declarações para memória futura de BB, conjugadas com o teor do relatório pericial junto aos autos a fls. 148 a 154, com a informação da CPCJ junta aos autos de fls. 9 a 23, com trechos das declarações do arguido e, bem assim, das regras da lógica e da experiência comum. 11.ª – Com efeito, das declarações da ofendida BB, prestadas para memória futura no dia 07.09.2023, documentadas no respectivo registo digital, consignado em acta com início às 16:59:51 horas e termo pelas 17:13:58 horas, em concreto nas passagens entre os minuto 02:40 e 05:10, 07:31 e 08:13, 08:27 e 9:54, 10:09 e 10:41 e 10:42 e 11:30 resulta a factualidade que foi dada como não provada nos mencionados pontos da sentença recorrida, com ligeira correcção na parte final do ponto C., já que, à pergunta do arguido se queria que lhe fizesse uma massagem, a ofendida não respondeu. 12.ª – Na fundamentação da decisão de facto, a sentença recorrida faz breve alusão ao relatório pericial realizado nos autos para aferir da veracidade e credibilidade do relato da ofendida, todavia, consideramos que o trecho transcrito de tal relatório na sentença e o enquadramento que dele foi feito desvirtua o seu teor, as conclusões a que nele chegou a Exma. Senhora Perita e, bem assim, o valor legal e probatório atribuído ao mencionado relatório pericial. 13.ª – Com efeito, não podia o Tribunal a quo, em desrespeito da opinião técnica da Exma. Senhora Perita, que conhece as fragilidades psico-emocionais da ofendida, tanto mais que a elas faz referência expressa no relatório, mas que delas não retira qualquer consequência na credibilidade do relato efectuado, considerar que essas mesmas fragilidades tornavam inidóneas as suas declarações. 14.ª – O princípio da livre apreciação da prova pelo julgador, tal como estipulado no artigo 127.º, do Código de Processo Penal não é absoluto, sofrendo derrogações, mormente as previstas para o valor probatório dos documentos autênticos e autenticados, do caso julgado, da confissão integral e sem reservas no julgamento e, bem assim, da prova pericial. 15.ª – Atento o preceituado no artigo 163.º, do Código de Processo Penal, o valor probatório da perícia é fixado na lei, estando o juízo do perito subtraído ao princípio da livre apreciação da prova, pelo que o resultado da perícia não é livremente valorável pelo julgador e, se é certo que lhe é permitido divergir das conclusões do perito, essa divergência tem de ser justificada no mesmo plano científico em que se produziu o exame e tem de ser devidamente fundamentada na decisão, o que, no caso dos autos, não ocorreu. 16.ª - Como resulta da fundamentação da sentença em crise, socorreu-se o Tribunal do princípio in dubio pro reo para decidir a favor do arguido, referindo que não logrou formar uma convicção segura sobre a verificação dos factos. 17.ª - Sobre o princípio do in dubio pro reo, dir-se-á que o mesmo constitui uma imposição dirigida ao julgador no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa. 18.ª – Todavia, não é toda a dúvida que justifica a absolvição com base neste princípio, mas apenas aquela em que for inultrapassável, séria e razoável a reserva intelectual à afirmação de um facto que constitui elemento de um tipo de crime ou com ele relacionado, deduzido da prova globalmente considerada. 19.ª - No caso dos autos, não podia fazer-se apelo a tal princípio, desde logo porque não poderia o Tribunal a quo ter ficado com qualquer dúvida nem, tão-pouco esta poderia ser insanável ou inultrapassável, não bastando que haja versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes para que o arguido deva ser absolvido em obediência a tal princípio. 20.ª - Do depoimento da ofendida conjugado com o teor do relatório médico-legal, com a informação da CPCJ, das próprias declarações do arguido, todos concatenados com as regras da lógica e da experiência comum, não existe qualquer dúvida, muito menos insuperável, sobre a ocorrência dos factos imputados ao arguido, nos termos que vinham descritos na acusação, à excepção do facto que ali vinha imputado em 7 e da correcção que se referiu do que vinha relatado no ponto 6. 21.ª – O relato dos factos que a ofendida foi fazendo ao longo das diversas fases processuais foi sempre idêntico, sem qualquer indício de que a mesma tenha tentado empolar a situação em causa, não tendo relatado outros factos que podiam ser considerados mais graves, afirmando sempre que se tratou de situação única, referiu ter pena do arguido, não demonstrou animosidade para com este, não obstante o relatado, o que abala a teoria trazida aos autos pela defesa de que a menor inventou os mencionados abusos, por não pretender que a mãe mantivesse uma relação amorosa com o arguido. 22.ª – Do que se vem de dizer, é manifesto que a ofendida prestou um depoimento sincero, coerente, objectivo e sentido, que deveria ter merecido credibilidade por parte do Tribunal. 23.ª - Já o arguido limitou-se a negar os factos consubstanciadores da sua responsabilidade criminal, sabido como é que este, atenta a sua processual, não está obrigado a falar com verdade e não se podendo descurar que a mera circunstância de o arguido negar os factos não pode levar à conclusão automática de existência de versões contraditórias e/ou de uma dúvida insanável, capaz de fundamentar a sua absolvição. 24.ª – Donde, no contraponto e ponderação entre as declarações do arguido e as da ofendida, estas reforçadas pelo teor do relatório pericial efectuado, o valor a atribuir a umas e outras pelo Tribunal não pode, manifestamente, ser o mesmo. 25.ª – Pelo que, conjugando o teor das declarações para memória futura prestadas por BB, reforçadas pelo teor do Relatório pericial de fls. 148 a 154, concatenadas também com as informações da CPCJ de fls. 4 e 9 a 23 e com as regras da lógica e da experiência comum, o Tribunal a quo deveria ter considerado provado os factos: A. Aí chegado, aproveitando-se do facto de a mãe da menor se encontrar na cozinha, o arguido sentou-se ao pé da menor BB, à data com 11 anos de idade, e da sua irmã, à data com 8 anos de idade. B. A dado momento, o arguido introduziu a mão por baixo da camisola que a menor trajava e apertou-lhe os seios e os mamilos durante alguns minutos. C. Após, o arguido desceu a sua mão até à zona da barriga da menor, sempre por baixo da camisola e perguntando-lhe se queria uma massagem, não tendo aquela respondido. E. Momentos depois a menor BB levantou-se e foi ter com a mãe à cozinha, tendo o arguido posteriormente saído da residência da ofendida. 26.ª – E, bem assim, das declarações do arguido prestadas na sessão de julgamento do dia 26.06.2024, registadas em acta, onde se consignou que o seu início ocorreu pelas 14:36:38 e o seu termo pelas 14:58:36, concretamente na passagem entre o minuto 06:10 e 06:15, conjugadas com os factos anteriores, que integram os elementos típicos objectivos do ilícito criminal em causa e com as regras da lógica e da experiência comum, devem ser também dados como provados os factos F. O arguido sabia que a menor BB, em razão da sua idade, não possuía a capacidade e o discernimento necessários para se autodeterminar sexualmente, nem para avaliar as condutas levadas a cabo pelo mesmo e não poderia consentir ou anuir nas mesmas. G. Ao atuar como atuou, o arguido bem sabia que, com as suas descritas condutas, perturbavam e prejudicavam, de forma séria, o desenvolvimento da personalidade da menor, que ofendia os seus sentimentos de criança e punha em causa o normal e são desenvolvimento psicológico, afetivo e sexual da mesma, não se demovendo, contudo, de assim agir, não obstante estar ciente da idade desta, tão só para satisfazer os seus desejos sexuais e lascivos. H. O arguido atuou sempre de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que as suas descritas condutas eram censuradas, proibidas e punidas por lei. 27.ª – Dando-se como demonstrados os factos impugnados, como se espera, forçoso é concluir que se encontram preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do crime de abuso sexual de crianças, previsto e punido nos termos do disposto no artigo 171.º, do Código Penal, imputado ao arguido, impondo-se, em consequência, a sua condenação. 28.ª - Acto sexual de relevo é todo o comportamento destinado à libertação e satisfação dos impulsos sexuais do agente, que tenha uma natureza objectiva estritamente relacionada com a actividade sexual, que normalmente apenas seja praticado no domínio da sexualidade entre pessoas, pelo que integram aquele conceito, o coito oral ou bucal (estes expressamente previsto no nº 2 da norma, com punição mais grave), os actos de masturbação, os beijos, toques e apertões nas zonas erógenas do corpo, como a púbis, o sexo e os seios. 29.ª – No caso dos autos, não há dúvidas de que o acto praticado pelo arguido AA sobre a ofendida BB se insere no conceito de acto sexual de relevo, já que a mencionada conduta do arguido (toques e apertões nos seios e mamilos de BB) invadiu, claramente, e de uma forma objectivamente significativa, aquilo que constitui a sua reserva ou o núcleo pessoal que, no âmbito da sexualidade, é apanágio de todo o ser humano. 30.ª - O crime de abuso sexual de criança, previsto e punido nos termos do disposto nos termos do n.º 1, do artigo 171.º, do Código Penal, é punido com pena de prisão de um a oito anos, sendo que, in casu, a pena máxima é de cinco anos de prisão, por via da competência do Tribunal Singular. 31.ª – Para a aplicação de uma pena, como consequência do cometimento de um crime, a punição em concreto terá sempre como limite máximo inultrapassável a culpa do agente e como limite mínimo, irrenunciável, a pena que se manifesta, no caso concreto imprescindível para se poder dizer que o bem jurídico violado foi, a final, efectivamente protegido e que as expectativas da comunidade nas normas de protecção estão, enfim, restauradas. 32.ª – Por outra via, dentro dos mencionados limites mínimos e máximos, o julgador há-de encontrar no caso concreto, a pena ideal, ponderando todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, nomeadamente, as elencadas no n.º 2, do artigo 71.º, do Código Penal. 33.ª – No caso dos autos, importa considerar que as exigências de prevenção geral são muito elevadas, atento o bem jurídico pessoalíssimo que o crime visa proteger, as vítimas em causa, especialmente vulneráveis, sendo igualmente um tipo de criminalidade que causa alarme social e que, por isso, a comunidade espera dos Tribunais uma reacção penal que propenda para a severidade. 34.ª - Já no que concerne às exigências de prevenção especial, admite-se que as mesmas se situam num patamar mediano, já que o arguido não tem quaisquer antecedentes criminais e está devidamente integrado familiar, profissional e socialmente, todavia, não pode ser descurada a postura assumida em audiência de julgamento, não tendo admitido a prática dos factos, tentando imputar à ofendida a invenção dos factos relatados, fazendo questão de, por várias vezes, referir ao Tribunal as fragilidades emocionais e os dramas de vida vivenciados pela mesma, numa tentativa de a descredibilizar e, bem assim, o facto de não ter manifestado qualquer tipo de arrependimento, remorso ou autocrítica perante a conduta em causa nos autos. 35.ª – Ademais, agiu o arguido com grau de culpa elevado, considerando as suas motivações, tendo agido com o intuito único de satisfazer as suas necessidades sexuais, desprezando a integridade física, psíquica e o saudável desenvolvimento da menor, tendo agido com dolo directo para a concretização daqueles intentos. 36.ª - Já a ilicitude considera-se num patamar médio, atenta o concreto acto praticado pelo arguido, a zona do corpo de BB atingida, a sua idade e fragilidade emocional. 37.ª - Há ainda que ponderar as consequências da conduta do arguido no desenvolvimento psíquico e emocional de BB plasmadas no relatório pericial. 38.ª - Assim, tendo em consideração todos as circunstâncias enunciadas, a favor e a desfavor do arguido, condenando este Venerando Tribunal o arguido AA em pena de prisão não inferior a dois anos, fá-lo-á em medida justa e adequada aos factos que supra se elencaram. 39.ª – E, considerando tudo o que ficou dito, entendemos ser de suspender a execução da pena de prisão, nos termos do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, por período não inferior a 4 anos, desde que sujeita a regime de prova, a definir pela DGRSP, e que inclua a frequência de programa especialmente direccionado para agressores sexuais. 40.ª - Deve ainda o arguido AA ser condenado no pagamento de reparação à vítima BB, nos termos do disposto no artigo 82.º-A, do Código de Processo Penal, pois que resulta dos autos que a menor sofreu danos, por via da conduta do arguido, danos esses que não são despiciendos e que merecem a tutela do direito. 41.ª - De tudo o que se vem de dizer, resulta que o Tribunal a quo, violou, entre o mais, o disposto nos artigos 25.º e 32.º, da Constituição da República Portuguesa, 82.º-A, 127.º, 151.º, 163.º, do Código de Processo Penal, 40.º, 71.º e 171.º, do Código Penal. 42.ª – Pelo que, e em consequência, deve a douta sentença recorrida ser revogada e substituída por douto Acórdão que altere a matéria de facto, nos termos sobreditos, em consonância com a prova produzida nos autos e que, em consequência, condene o arguido AA, pela prática em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso sexual de crianças, previsto e punido nos termos do disposto no n.º 1, do artigo 171.º, do Código Penal, em pena de prisão não inferior a dois anos, ainda que suspensa na sua execução, por período não inferior a 4 anos, sujeita a regime de prova e à obrigação de frequentar programa especial para agressores sexuais e, bem assim, no pedido de arbitramento de quantia de reparação a favor da vítima BB, nos termos previstos no artigo 82.º-A, do Código de Processo Penal. 43.ª – Com o que só assim, farão Vossas Excelências a habitual e inteira JUSTIÇA!» III. Admitido o recurso, foi determinada a sua subida imediata, nos autos, e com efeito suspensivo. IV. Notificado para tanto, respondeu o arguido, concluindo pela improcedência do recurso. V. Neste Tribunal da Relação de Lisboa foram os autos ao Ministério Público, que emitiu parecer concluindo pela procedência do recurso, admitindo não ter sido violado o art.º 163º do CPP. Mais foi entendido que, “Quanto à condenação do arguido no pagamento de reparação à vítima nos termos do disposto no artigo 82.º-A, do Código de Processo Penal, atendendo à matéria de facto a ter como provada, sugerida pelo Ministério Público, não resulta o efeito da ação do arguido sobre a menor para que, em recurso, se possa decidir sobre o seu arbitramento. Verifica-se insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, que carece de apuramento em produção de prova complementar, com o reenvio do processo para esse efeito – art.º 426.º, n.º 1, do CPP”. VI – No exercício do contraditório, nada foi acrescentado. VII – Feito o exame preliminar, corrigiu-se o efeito do recurso, passando de suspensivo a devolutivo, uma vez que se trata de uma sentença absolutória. Foram colhidos os vistos e teve lugar a conferência. OBJECTO DO RECURSO O âmbito do recurso, que circunscreve os poderes de cognição deste tribunal, delimita-se pelas conclusões da motivação do recorrente (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso quanto a vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410.º/2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995). São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respetiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar. Desta forma, tendo presentes tais conclusões, são as seguintes as questões a decidir: 1. Do vício do erro notório na apreciação da prova. 2. Do erro de julgamento: desconsideração do valor do relatório pericial e inadmissibilidade do uso do princípio in dubio pro reo. 3. Caso se decida pela procedência das antecedentes questões: 3.1. da subsunção da conduta do arguido ao crime de que vinha acusado; 3.2. da medida pena e da suspensão da execução da pena de prisão; 3.3. da reparação da vítima nos termos do art.º 82º-A do CPP (neste caso, aferindo-se se existe, como defendido no parecer do Ministério Público nesta Relação, “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão” a proferir sobre essa questão) DA SENTENÇA RECORRIDA Da sentença recorrida consta a seguinte fundamentação: «II- Fundamentação 1. Factos Provados Com relevância para a decisão a proferir, resultaram provados e não provados os seguintes factos: 1. BB nasceu no dia ... de ... de 2011. 2. O arguido AA foi vizinho da menor BB, residindo na fração em frente àquela, até data não concretamente apurada, mas posterior a ... de ... de 2023, sendo visita habitual da residência da menor. 3. No dia ... de ... de 2023, no período da noite, o arguido dirigiu-se à residência da menor, sita na .... Mais se provou que: 4. O arguido vive agora na localidade do ..., em casa arrendada por € 600,00 mensais, com uma das suas filhas, de 28 anos de idade. 5. Trabalha em … e aufere, por mês, € 1100,00 de salário. 6. A filha com quem reside trabalha num … e recebe por mês € 900,00 de salário. 7. O arguido tem mais quatro filhos – de 14, 16, 24 e 32 anos que não vivem consigo, mas sim com a sua mulher residente em .... 8. O arguido tem a antiga 4.ª classe como habilitações. 9. É estimado por familiares e amigos, que o consideram trabalhador e uma pessoa bem formada. 10. E não regista antecedentes criminais. Factos não provados: A. Ai chegado, aproveitando-se do facto de a mãe da menor se encontrar na cozinha, o arguido sentou-se ao pé da menor BB, à data com 11 anos de idade, e da sua irmã, à data com 8 anos de idade. B. A dado momento, o arguido introduziu a mão por baixo da camisola que a menor trajava e apertou-lhe os seios e os mamilos durante alguns minutos. C. Após o arguido desceu a sua mão até à zona da barriga da menor, sempre por baixo da camisola e perguntando-lhe se queria uma massagem, tendo àquela dito que não. D. De seguida, o arguido colocou novamente a mão nos seios da menor e apertou-os. E. Momentos depois a menor BB levantou-se e foi ter com a mãe à cozinha, tendo o arguido posteriormente saído da residência da ofendida. F. O arguido sabia que a menor BB, em razão da sua idade, não possuía a capacidade e o discernimento necessários para se autodeterminar sexualmente, nem para avaliar as condutas levadas a cabo pelo mesmo e não poderia consentir ou anuir nas mesmas. G. Ao atuar como atuou, o arguido bem sabia que, com as suas descritas condutas, perturbavam e prejudicavam, de forma séria, o desenvolvimento da personalidade da menor, que ofendia os seus sentimentos de criança e punha em causa o normal e são desenvolvimento psicológico, afetivo e sexual da mesma, não se demovendo, contudo, de assim agir, não obstante estar ciente da idade desta, tão só para satisfazer os seus desejos sexuais e lascivos. H. O arguido atuou sempre de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que as suas descritas condutas eram censuradas, proibidas e punidas por lei. 3. Motivação da decisão de facto A convicção do Tribunal, quanto aos factos provados e não provados, formou-se a partir da análise crítica da prova carreada para os autos e produzida em audiência, a qual se valorou livremente nos termos do artigo 127.º, do Código de Processo Penal. A título introdutório, cumpre referir que os factos não provados assim resultaram por força de uma dúvida inultrapassável formada na convicção do Tribunal relativamente às imputações feitas ao arguido e que, em obediência ao princípio in dubio pro reo reverteram, necessariamente, a seu favor. Vejamos. O arguido negou perentoriamente ter assumido o comportamento criminoso descrito na acusação; referiu que frequentava habitualmente a casa de BB, pois mantinha uma relação de proximidade com a respetiva mãe, que evoluiu para um envolvimento amoroso; negou ter estado sozinho com a criança na ocasião descrita na peça acusatória, tendo estado também com a sua irmã mais nova e com a mãe de ambas, com as quais jantou; mais referiu que, num dos dias seguintes, a mãe de BB o contactou reportando-lhe – surpreendida – o que a filha havia verbalizado na escola, o que o arguido reiterou jamais ter acontecido, atribuindo tal imputação ao facto de a menina padecer de problemas psicológicos (relacionados com a perda trágica do irmão) e não aprovar o seu relacionamento com a progenitora. Mais referiu que, em virtude de tais acusações, se afastou da mãe de BB e das crianças – pelas quais referiu ter estima, sendo até frequente, a pedido da mãe, ir busca-las à escola. Por fim, esclareceu ainda o Tribunal sobre as suas condições pessoais e económicas, dadas como assentes em conformidade. Nas declarações de BB para memória futura, a mesma descreveu a factualidade tal como vertida na acusação e, analisado o relatório psicológico elaborado sobre o seu relato (cfr. fls. 148 e seguintes), o mesmo foi considerado coerente e plausível; no entanto, o mesmo relatório pericial descreve também fragilidades da personalidade de BB que suscitaram reservas sobre a idoneidade do seu testemunho, tais como sente-se indesejada e incompreendida, com sentimentos negativos e de inadequação que se relacionam com a necessidade de se compensar afetivamente recorrendo à fantasia – ou seja, descreve momentos em que idealiza e fantasia com uma realidade alternativa, mais positiva e em que consegue, dessa forma, experienciar sentimentos positivos e de valorização. Ouvida, por sua vez, a testemunha CC, mãe de BB, esta descreveu ao Tribunal que o arguido foi seu vizinho e amigo próximo durante cerca de 3 anos – era quase família - mas negou ter tido um envolvimento amoroso com o mesmo; referiu que no dia dos factos, para além do arguido, também o seu cunhado jantou em sua casa – facto que o arguido negou e que BB nunca referiu quando foi ouvida; CC disse ainda que BB não lhe relatou logo o sucedido, o que só fez junto da ... da escola e na terça-feira seguinte (tendo os factos ocorrido no sábado anterior); referiu ter ficado estupefacta e incrédula com as revelações da filha mas que acabou por vir a acreditar no seu relato, em conversa com a mesma que considerou credível; Analisada a informação da CPCJ de ... de fls. 4, 9 a 23, verificou-se que, quando foi confrontada com a denúncia de BB, CC efetivamente disse aos técnicos “não acreditar” que tal tivesse acontecido e admitiu mesmo a possibilidade de a criança ter compreendido mal os “abracinhos” do arguido; disse ainda que no dia subsequente àquele em que os factos teriam ocorrido, AA voltou a ir a sua casa, e nada de estranho percecionou nas crianças nesse seu contacto com o mesmo. Tal documentação revelou ainda (cfr. fls. 4) a existência de um processo anterior de promoção e proteção (de ...) a favor de BB, e que teria sido reaberto em 7.04.2022, por “falta de supervisão e acompanhamento familiar”. Tudo anteriormente aos factos em análise. Em defesa do arguido, foram ouvidas as testemunhas DD, técnica de ..., e EE, vigilante e primo do arguido, ambos moradores no imóvel onde residia AA, situado em frente daquele da mãe de BB que também conheciam; destacaram as qualidades pessoais do arguido dadas como assentes e disseram que se aperceberam que o mesmo mantinha uma relação amorosa com CC; mais referiram que a relação do arguido com BB e com a irmã desta, que o tratavam por “tio”, era adequada e fraternal, sendo frequente AA ir busca-las à escola, a pedido da mãe. Aqui chegados, sopesadas as fragilidades de BB acima apontadas, tratando-se, além do mais, de uma criança previamente sinalizada pela CPCJ por negligencia parental e necessidade de apoio psicológico e sendo certo que o testemunho da sua mãe, se mostrou contraditório – negando inicialmente a possibilidade de os factos terem ocorrido (CPCJ) para, em audiência, afirmar o contrário; referindo a presença de um outro adulto (o cunhado) na noite dos factos em sua casa, quando ninguém o fez; e negando a existência de um relacionamento mais íntimo com o arguido que a presença assídua do mesmo em sua casa e os testemunhos referidos fazem crer ter existido, tudo isto levou o Tribunal a não conseguir formar uma convicção segura sobre a verificação dos factos. Em consequência, em obediência ao princípio in dubio pro reo, corolário da presunção de inocência que impera em processo penal, tal dúvida reverteu a favor do arguido e conduziu aos factos não provados sobre a sua conduta criminosa». FUNDAMENTAÇÃO 1. Do vício do erro notório na apreciação da prova É sabido que em face do nosso quadro normativo, a decisão da primeira instância pode ser modificada (artigo 431.º/b) por duas vias diferentes: Ou através da invocação dos vícios referenciados no artigo 410.º/2 do CPP (a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação da prova, onde, consabidamente, se vem inserindo a violação do princípio in dubio pro reo), vícios, aliás, de conhecimento oficioso, no que se vem denominando de “revista alargada”. Ou mediante o que se vem denominando de “impugnação ampla”, procedendo-se à invocação de erros de julgamento, de harmonia com o estatuído no artigo 412.º/3 e 4 do mesmo diploma. No caso dos vícios do artigo 410.º/2 do CPP estamos perante vícios da decisão, sendo que qualquer das situações aí mencionadas se traduz em deficiências na construção e estruturação da decisão e ou dos seus fundamentos, maxime na sua perspetiva interna, não sendo por isso o domínio adequado para discutir os diversos sentidos a conferir à prova. Qualquer um dos vícios previstos no n.º 2 do referido artigo 410.º do CPP, é inerente ao silogismo da decisão e apenas dela pode ser apurado em face da mesma - não sendo possível o recurso a outros elementos que não o texto da decisão, para sua afirmação - ainda que conjugado com as regras da experiência - sendo a consequência lógica e imediata, da sua existência, salvo o caso de ser possível conhecer da causa, o reenvio do processo, nos termos do estatuído no artigo 426.º CPP. Na sequência lógica destes pressupostos, a sua emergência, como resulta expressamente referido no artigo 410.º/2 CPP, terá que ser detetada do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum. Em sede de apreciação dos vícios do artigo 410.º do CPP, não está em causa a possibilidade de se discutir a bondade do que se considerou provado ou não provado, a maior ou menor abundância de prova para sustentar um facto. Qualquer dos vícios do artigo 410.º/2 C P Penal, pressupõe uma outra evidência, não podendo ser confundidos com uma suposta insuficiência dos meios de prova para a decisão tomada em sede de matéria de facto, nem podem emergir da mera divergência entre a sua convicção pessoal sobre a prova produzida em julgamento e a convicção que o tribunal firmou sobre os factos, no respeito pelo princípio da livre apreciação da prova inserto no artigo 127.º do CPP. O recorrente invoca o erro notório na apreciação da prova porquanto, em síntese, foi proferida uma sentença contrária às conclusões do relatório pericial que, no caso que nos ocupa, é uma perícia sobre a personalidade. Verifica-se o “erro notório na apreciação da prova” quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum, o que sucede quando, por exemplo, se dá como provado um facto que notoriamente está errado, que não poderia ter acontecido ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira uma conclusão ilógica, arbitrária ou contraditória de um facto dado como provado (positivo ou negativo) contido no texto da sentença recorrida. Este erro na apreciação da prova tem de ser grosseiro, ostensivo e evidente, não escapando ao homem com uma cultura média (vide Luís Lemos Triunfante, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo V, Coimbra, Almedina, 2024, págs. 199 a 204). Como escreve Sérgio Poças, Processo Penal quando o recurso incide sobre a matéria de facto, in Julgar nº 10, 2010, págs. 29 e 39, «(…) o erro notório é o erro que se vê logo, que ressalta evidente da análise do texto da decisão por si só ou conjugada com as regras da experiência. (…) O recorrente deverá atentar bem na questão que ora nos ocupa, porque, embora muito invocado nos tribunais, verdadeiramente o erro notório na apreciação da prova (tal como é desenhado na lei) raramente se verifica. Naturalmente. Sejamos claros: se o erro notório é logo detectado pelo observador comum, como é que o julgador, necessariamente atento, por força do exercício da função, não haveria de ver um erro que se vê logo? E concluía: o eventual erro na apreciação da prova normalmente nunca emerge como erro notório na apreciação da prova (tal como o instituto está previsto no n.º 2 do artigo 410.º). Assim, quando o recorrente entende que a prova foi mal apreciada deve proceder à impugnação da decisão sobre a matéria de facto conforme o artigo 412.º, n.º 3, e não agarrar-se ao vício do erro notório». Ainda assim, com o desiderato de evitar a consolidação de casos de erro clamoroso, tem-se entendido, numa visão mais abrangente da norma, que poderão ser casos de erro notório na apreciação da prova aquelas situações de erro na apreciação da prova que indubitavelmente resultam do texto da decisão recorrida, analisada criteriosamente na sua globalidade, mesmo que escapem ao crivo do cidadão comum sem conhecimentos jurídicos mas que sejam percecionados por um jurista com uma formação e preparação normais (vide acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21-10-2020, relator Manuel Augusto de Matos, processo n.º 1551/19.9T9PRT.P1.S1, e António Pereira Madeira, in Código de Processo Penal Comentado, Coimbra, Almedina, 2014, pág. 1359). A este respeito, a motivação plasmada na sentença recorrida não revela que a prova ou não prova de qualquer facto, resulta de um clamoroso erro de julgamento, sendo notoriamente ilógico o raciocínio que lhe esteve na base. A circunstância de, de acordo com a alegação do recorrente, a sentença ter desconsiderado o valor do relatório pericial (in casu, uma perícia sobre a personalidade) não se reconduz ao vício ora em análise, podendo antes traduzir-se em eventual erro de julgamento, a apreciar infra. Improcede este argumento recursório. 2. Do erro de julgamento No caso dos autos, alega o recorrente ter havido erro de julgamento, defendendo que deveriam ter sido julgados provados os pontos que constam do elenco dos factos não provados sob as alíneas A, B, C (este com uma sugerida ligeira alteração de redação), E, F, G e H e que são os seguintes: A. Aí chegado, aproveitando-se do facto de a mãe da menor se encontrar na cozinha, o arguido sentou-se ao pé da menor BB, à data com 11 anos de idade, e da sua irmã, à data com 8 anos de idade. B. A dado momento, o arguido introduziu a mão por baixo da camisola que a menor trajava e apertou-lhe os seios e os mamilos durante alguns minutos. C. Após o arguido desceu a sua mão até à zona da barriga da menor, sempre por baixo da camisola e perguntando-lhe se queria uma massagem, não tendo aquela respondido. E. Momentos depois a menor BB levantou-se e foi ter com a mãe à cozinha, tendo o arguido posteriormente saído da residência da ofendida. F. O arguido sabia que a menor BB, em razão da sua idade, não possuía a capacidade e o discernimento necessários para se autodeterminar sexualmente, nem para avaliar as condutas levadas a cabo pelo mesmo e não poderia consentir ou anuir nas mesmas. G. Ao atuar como atuou, o arguido bem sabia que, com as suas descritas condutas, perturbavam e prejudicavam, de forma séria, o desenvolvimento da personalidade da menor, que ofendia os seus sentimentos de criança e punha em causa o normal e são desenvolvimento psicológico, afetivo e sexual da mesma, não se demovendo, contudo, de assim agir, não obstante estar ciente da idade desta, tão só para satisfazer os seus desejos sexuais e lascivos. H. O arguido atuou sempre de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que as suas descritas condutas eram censuradas, proibidas e punidas por lei. Pretende o recorrente impugnar o julgamento sobre a matéria de facto nos termos prescritos nos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do CPP. Nesta situação a apreciação do Tribunal ad quem alarga-se à análise da prova produzida em audiência, mas com os limites impostos pela norma invocada. Nos termos deste preceito, “1 - A motivação enuncia especificadamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. … 3 - Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) As concretas provas que impõe decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas. 4 - Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata nos termos do nº 2 do art.º 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação. … 6 - No caso previsto no n.º 4, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.” Assim, nos termos do normativo acabado de citar, incumbe sobre o recorrente que pretende impugnar amplamente a matéria de facto “o ónus de uma tripla especificação, a saber: a especificação dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; a especificação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; a especificação das provas que devem ser renovadas [esta, nos termos do art.º 430º, nº 1 do C. Processo Penal, apenas quando se verificarem os vícios da sentença e existam razões para crer que a renovação permitirá evitar o reenvio], acrescendo, relativamente às concretas provas, que quando tenham sido gravadas, as duas últimas especificações devem ser feitas por referência ao consignado na ata, com a concreta indicação das passagens em que se funda a impugnação, devendo todas estas especificações constar ou poder ser deduzidas das conclusões formuladas…” - cf. Ac. do TRC de 06-07-2016, proc. n.º 340/08.0PAPBL.C1, www.dgsi.pt. Em síntese, o recorrente tem o ónus de expressamente indicar, de acordo com o disposto no artigo 412.º/3, do CPP: i) Os factos individualizados que constam da sentença recorrida e que considera incorretamente julgados; ii) O conteúdo específico do meio de prova e com a explicitação da razão pela qual essas provas impõem decisão diversa da recorrida; e iii) Se for caso disso, os meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1.ª instância cuja renovação se pretenda, no âmbito dos vícios previstos no artigo 410.º/2, do CPP, e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. o artigo 430.º/1, do CPP). No que tange às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente o ónus de, havendo gravação das provas, as mesmas deverem ser efetuadas com referência ao consignado na ata (caso funde as razões da sua discordância em prova gravada), com a concreta indicação das passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, não bastando a simples remissão para a totalidade de um ou vários depoimentos, pois são essas concretas passagens que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes, nos termos dos nºs 4 e 6 do artigo 412.º, do CPP. Por outro lado, a procedência da impugnação, com a consequente modificação da decisão sobre a matéria de facto, não se satisfaz com a circunstância de as provas produzidas possibilitarem uma decisão diversa da proferida pelo tribunal a quo. Este decide, salvo existência de prova vinculada, de acordo com as regras da experiência e a livre convicção, e por isso, não é suficiente para a pretendida modificação da decisão de facto que as provas especificadas pelo recorrente permitam uma decisão diferente da proferida pelo tribunal, sendo imprescindível, para tal efeito, que as provas especificadas pelo recorrente imponham decisão diversa da recorrida. E a demonstração desta imposição recai igualmente sobre o recorrente, que deve relacionar o “conteúdo específico de cada meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorretamente julgado” (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2007, pág. 1135). Como se refere no ac. do TRC de 12-07-2023 (proc. n.º 982/20.6PBFIG.C1, www.dgsi.pt) a impugnação alargada não se satisfaz com “mera discordância do recorrente quanto à valoração feita pelo tribunal recorrido quanto à prova produzida, contrapondo apenas os seus argumentos, críticas, a negação dos factos, suscitando dúvidas – próprias que não do julgador - e não analisando o teor dos depoimentos das indicados nas respetivas passagens da gravação, indicando por que tal facto ou factos devem ser dados como provados ou não provados.” No caso sub judice o recorrente, para fundamentar a sua pretensão, chama à colação: - o relatório pericial, que diz ter concluído de forma inequívoca e objetiva pela coerência, credibilidade e veracidade do depoimento da ofendida. Neste particular, de acordo com o recorrente, “ao fazer menção ao relatório de perícia médico-legal de psicologia, elaborado pelo INML, mas afastando-se infundadamente das conclusões ali tecidas, sem qualquer indicação ou argumentação no sentido de eventual divergência das conclusões a que chegou a Exma. Senhora Perita, concluindo o Tribunal que as declarações da ofendida não foram idóneas, decidiu o ao arrepio do parecer técnico científico que tal relatório traduz, violando, além do mais, o disposto no artigo 163.º, do Código de Processo Penal”. - as declarações da ofendida BB, prestadas para memória futura no dia 07.09.2023, nas quais refere a ocorrência dos factos que foram pelo tribunal julgados não provados. - as declarações prestadas pelo arguido em audiência, designadamente na parte em que admitiu saber que a menor teria 11 ou 12 anos de idade. Comecemos pela aludida desconsideração do valor do relatório pericial (perícia sobre a personalidade). Compulsados os autos, verifica-se que, por despacho proferido em 26.04.2023, o Ministério Público, na fase de inquérito, ordenou «a realização de perícia à personalidade de BB no sentido de determinar se: a) A menor tem capacidade para conservar memórias, reproduzir acontecimentos vivenciados, e para compreender, avaliar e relatar factos? b) A menor é influenciável, facilmente manipulável ou imaginativa? c) Existem indicadores de perturbação da personalidade ou de qualquer afetação do foro psíquico que possam contender com a credibilidade da menor? d) Indicia-se que o relato da ofendida, no sentido de ter sido sujeita a contactos sexuais por terceiros, possa ter sido produzido por via de influência de fatores externos, designadamente manipulação por terceiros ou implantação de falsas memórias? e) O relato que a mesma produz dos factos sob investigação, ou mais concretamente sobre a existência de contactos sexuais com o arguido, é credível ou aparenta ter origem confabulada?» Essa diligência foi realizada pelo Instituto Nacional de Medicina Legal. O relatório pericial, datado de 28 de julho de 2020, respondeu do seguinte modo aos quesitos: «a) – Sim. b) - Não. Apesar de referir que, por vezes, imagina situações e fantasia com as mesmas, os exemplos dados permitem-nos concluir tratar-se de fantasias positivas e de gratificação afetiva, compatíveis com os sentimentos negativos que vivencia. Falamos, portanto, de fantasias que a ajudam a sentir-se melhor, mais aceite e valorizada, e não de fantasias que suscitam discriminação, rejeição e estigmatização (como a situação relatada, que terá vindo acentuar as dificuldades já anteriormente sentidas). c) - Não. A sintomatologia apresentada, descrita atrás, não compromete a sua capacidade para prestar testemunho e para relatar as situações vivenciadas. d) - Não. e) - Considera-se que o relato efetuado é coerente e plausível e preenche diversos critérios que a literatura correlaciona com um aumento de credibilidade. Não se identificam possíveis ganhos secundários associados a esta revelação, nem para si, nem para terceiros, pelo que se excluem as hipóteses de mentira intencional da sua parte ou de sugestionamento por parte de terceiros. Também se exclui a hipótese de se tratar de uma fantasia, pelo já explanado atrás». A sentença recorrida não acolheu as conclusões do relatório pericial. Diz o recorrente que, ao afastar-se dessas conclusões, o Tribunal recorrido violou a regra do art.º 163º do CPP, sobre valor da prova pericial, que nos diz que o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador (nº 1) e que, sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência (nº 2). Ora, como escreve António Latas no Comentário judiciário do Código de Processo Penal, Tomo II, Coimbra, Almedina, julho de 2024, página 524, em anotação ao art.º 163º do CPP, o juízo técnico, científico e artístico aí referido «é o exigido pelo art.º 151º para a prova pericial em sentido próprio ou estrito, pelo que não abrange a mera atividade de assessoria técnica desenvolvida no processo penal, nomeadamente através de relatórios e informações sociais, ou a perícia sobre a personalidade, que sendo apenas perícia em sentido amplo ou formal, encontra-se amplamente sujeita ao princípio da livre apreciação da prova, sem que relativamente a elas se aplique a presunção do nº 1 e, consequentemente, a especial fundamentação da divergência a que se reporta o nº 2» (itálicos da ora relatora). O princípio da livre apreciação de um relatório de perícia sobre a personalidade tem igualmente vasto acolhimento jurisprudencial. A título de exemplo, no acórdão da Relação de Évora de 13.09.2022, processo n.º698/17.0PBSTR.E1, Relator Fátima Bernardes, escreveu-se que «(…) em relação ao exame de psicologia forense a que a assistente foi submetida, cujo relatório se encontra junto a fls. 143 a 157 dos autos, há que fazer notar que teve por finalidade, como, aliás, decorre dos quesitos formulados e a que a Sr.ª Perita/psicóloga respondeu, avaliar o grau de desenvolvimento e maturidade da ora assistente, designadamente a perceção dos factos, a capacidade de conservar memórias e de recuperação das mesmas e o relato dos factos; avaliar o sofrimento psicológico específico e apurar a suscetibilidade da ora assistente para inventar e fantasiar a ocorrência de factos de natureza sexual. Tal perícia teve por finalidade a avaliação das caraterísticas psicológicas e da personalidade da ora assistente, em ordem a poder determinar em que medida poderiam influenciar o seu testemunho relativamente aos factos, o que não se confunde com a avaliação da veracidade do conteúdo do seu depoimento, no tocante à versão dos factos apresentada, pois que, esta última cabe exclusivamente ao tribunal, que decidirá de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, nos termos do disposto no artigo 127º do CPP. O juízo sobre a credibilidade da prova por declarações ou testemunhal, estando a respetiva produção sujeita aos princípios da imediação e da oralidade, é feito pelo tribunal, de acordo com o principio da livre apreciação da prova, nos termos sobreditos, sendo que a perícia de avaliação psicológica um meio auxiliar de que o juiz se serve ou pode servir para melhor ajuizar sobre a credibilidade da testemunha, considerando as suas características psicológicas e da personalidade, mas já não para aferir da credibilidade do seu depoimento, na versão que apresenta dos factos. Deste modo e em suma, a perícia psicológica em crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, realizada à vítima, visa o conhecimento das características psicológicas e da personalidade desta, sendo um indispensável contributo para uma melhor apreciação do testemunho e avaliação sobre a sua credibilidade, por parte do tribunal. E foi nesse âmbito que o Tribunal a quo valorou o relatório do exame de psicologia forense realizado à assistente». Também no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 29.04.2015, processo 285/14.5TAMTS.P1, Relator Pedro Vaz Pato, pode ler-se que «não podemos equiparar a perícia de avaliação psicológica do menor que incide sobre a credibilidade do depoimento deste a uma qualquer outra perícia. É que o juízo de credibilidade dos depoimentos das testemunhas é tarefa própria e indeclinável do juiz. Esse juízo pericial é um subsídio da maior importância que não pode, porém, substituir ou suplantar o juízo próprio e caraterístico da função judicial. Não pode, em suma, transferir-se para o perito aquilo que é próprio e caraterístico da função judicial. Por esse motivo, não tem, neste aspeto, aplicação o regime do citado artigo 163º do Código de Processo Penal, podendo o julgador divergir das conclusões da perícia no que diz respeito à credibilidade do depoimento de uma testemunha, sem necessariamente recorrer a outro juízo pericial. Isto sem prejuízo do relevo que, mesmo assim, deve ser dado a tais conclusões, que devem sempre auxiliar a decisão do julgador, sem a substituir. No caso em apreço, o juiz diverge dessas conclusões, por um lado, porque confronta as declarações do menor com os depoimentos, a estas contrários, do arguido e da testemunha C…, que considerou minimamente credíveis. Trata-se de um confronto que também é próprio da função judicial e que, como vimos, se baseia em fatores dependentes da imediação de que nesta sede estamos privados (e que, portanto, se nos impõe respeitar). Por outro lado, porque invoca motivos para duvidar da credibilidade do menor: a referência deste a outros factos que não encontram corroboração em qualquer outro meio de prova, e que seria de esperar que encontrassem se fossem verdadeiros. Seria de esperar que a mão do menor desses factos se tivesse apercebido (desde logo, que o menor a ela os relatasse). Trata-se de uma conclusão razoável (não certamente a única possível), que não ofende as regras da lógica e da experiência comum». Acrescentamos que, a não se entender assim, o julgamento, com as declarações do arguido e os interrogatórios das testemunhas, seria uma mera formalidade, com pouca ou nenhuma utilidade prática, uma vez que seria o Perito a decidir que o conteúdo das declarações da menor deveria prevalecer sobre os demais meios de prova, sem possibilidade de o Juiz questionar essa apreciação. O relatório da perícia sobre a personalidade é apenas um elemento que permite auxiliar a decisão do Juiz, devendo ser conjugado com os restantes elementos probatórios. Por isso, em síntese, o relatório da perícia feita à personalidade da menor está sujeito à livre apreciação do Tribunal. * O recorrente pretende que, com as declarações para memória futura prestadas pela menor, se julguem provados os referidos pontos de facto que a primeira instância considerou não provados. A sentença recorrida justificou a sua convicção do seguinte modo: «A título introdutório, cumpre referir que os factos não provados assim resultaram por força de uma dúvida inultrapassável formada na convicção do Tribunal relativamente às imputações feitas ao arguido e que, em obediência ao princípio in dubio pro reo reverteram, necessariamente, a seu favor. Vejamos. O arguido negou perentoriamente ter assumido o comportamento criminoso descrito na acusação; referiu que frequentava habitualmente a casa de BB, pois mantinha uma relação de proximidade com a respetiva mãe, que evoluiu para um envolvimento amoroso; negou ter estado sozinho com a criança na ocasião descrita na peça acusatória, tendo estado também com a sua irmã mais nova e com a mãe de ambas, com as quais jantou; mais referiu que, num dos dias seguintes, a mãe de BB o contactou reportando-lhe – surpreendida – o que a filha havia verbalizado na escola, o que o arguido reiterou jamais ter acontecido, atribuindo tal imputação ao facto de a menina padecer de problemas psicológicos (relacionados com a perda trágica do irmão) e não aprovar o seu relacionamento com a progenitora. Mais referiu que, em virtude de tais acusações, se afastou da mãe de BB e das crianças – pelas quais referiu ter estima, sendo até frequente, a pedido da mãe, ir busca-las à escola. Por fim, esclareceu ainda o Tribunal sobre as suas condições pessoais e económicas, dadas como assentes em conformidade. Nas declarações de BB para memória futura, a mesma descreveu a factualidade tal como vertida na acusação e, analisado o relatório psicológico elaborado sobre o seu relato (cfr. fls. 148 e seguintes), o mesmo foi considerado coerente e plausível; no entanto, o mesmo relatório pericial descreve também fragilidades da personalidade de BB que suscitaram reservas sobre a idoneidade do seu testemunho, tais como sente-se indesejada e incompreendida, com sentimentos negativos e de inadequação que se relacionam com a necessidade de se compensar afetivamente recorrendo à fantasia – ou seja, descreve momentos em que idealiza e fantasia com uma realidade alternativa, mais positiva e em que consegue, dessa forma, experienciar sentimentos positivos e de valorização. Ouvida, por sua vez, a testemunha CC, mãe de BB, esta descreveu ao Tribunal que o arguido foi seu vizinho e amigo próximo durante cerca de 3 anos – era quase família - mas negou ter tido um envolvimento amoroso com o mesmo; referiu que no dia dos factos, para além do arguido, também o seu cunhado jantou em sua casa – facto que o arguido negou e que BB nunca referiu quando foi ouvida; CC disse ainda que BB não lhe relatou logo o sucedido, o que só fez junto da ... da escola e na terça-feira seguinte (tendo os factos ocorrido no sábado anterior); referiu ter ficado estupefacta e incrédula com as revelações da filha mas que acabou por vir a acreditar no seu relato, em conversa com a mesma que considerou credível; Analisada a informação da CPCJ de ... de fls. 4, 9 a 23, verificou-se que, quando foi confrontada com a denúncia de BB, CC efetivamente disse aos técnicos “não acreditar” que tal tivesse acontecido e admitiu mesmo a possibilidade de a criança ter compreendido mal os “abracinhos” do arguido; disse ainda que no dia subsequente àquele em que os factos teriam ocorrido, AA voltou a ir a sua casa, e nada de estranho percecionou nas crianças nesse seu contacto com o mesmo. Tal documentação revelou ainda (cfr. fls. 4) a existência de um processo anterior de promoção e proteção (de ...) a favor de BB, e que teria sido reaberto em 7.04.2022, por “falta de supervisão e acompanhamento familiar”. Tudo anteriormente aos factos em análise. Em defesa do arguido, foram ouvidas as testemunhas DD, técnica de ..., e EE, vigilante e primo do arguido, ambos moradores no imóvel onde residia AA, situado em frente daquele da mãe de BB que também conheciam; destacaram as qualidades pessoais do arguido dadas como assentes e disseram que se aperceberam que o mesmo mantinha uma relação amorosa com CC; mais referiram que a relação do arguido com BB e com a irmã desta, que o tratavam por “tio”, era adequada e fraternal, sendo frequente AA ir busca-las à escola, a pedido da mãe. Aqui chegados, sopesadas as fragilidades de BB acima apontadas, tratando-se, além do mais, de uma criança previamente sinalizada pela CPCJ por negligencia parental e necessidade de apoio psicológico e sendo certo que o testemunho da sua mãe, se mostrou contraditório – negando inicialmente a possibilidade de os factos terem ocorrido (CPCJ) para, em audiência, afirmar o contrário; referindo a presença de um outro adulto (o cunhado) na noite dos factos em sua casa, quando ninguém o fez; e negando a existência de um relacionamento mais íntimo com o arguido que a presença assídua do mesmo em sua casa e os testemunhos referidos fazem crer ter existido, tudo isto levou o Tribunal a não conseguir formar uma convicção segura sobre a verificação dos factos. Em consequência, em obediência ao princípio in dubio pro reo, corolário da presunção de inocência que impera em processo penal, tal dúvida reverteu a favor do arguido e conduziu aos factos não provados sobre a sua conduta criminosa». Ora, na verdade, o recorrente não invoca em seu apoio meios de prova que não tivessem sido considerados na sentença recorrida, mas apenas questiona a avaliação que o tribunal fez daqueles, procurando impor a sua visão dos factos, de modo a que se conclua em sentido contrário ao julgado provado, dando afinal prevalência às declarações da menor quando o Tribunal a quo se deparou com uma dúvida inultrapassável. Simplesmente, os elementos probatórios indicados pelo recorrente não impõem decisão diversa da recorrida. Seguindo de perto o acórdão da Relação do Porto de 05.06.2024, Relator Pedro Afonso Lucas, processo 466/21.5PAVNG.P1, «Notar–se–á que a remissão para o verbo impor, especificamente estipulada no art.º 412º/3/b) do Cód. de Processo Penal, consubstancia a exigência de verificação de uma obrigação impreterível, de um imperativo, de um dever mandatório inquebrável e sem alternativas. Assim, não basta estar demonstrada a possibilidade de existir uma solução em termos de matéria de facto alternativa à fixada pelo tribunal a quo. Na verdade, é raro o julgamento onde não estão em confronto duas, ou mais, versões dos factos (arguida/assistente ou arguido/Ministério Público ou mesma arguida/arguida), qualquer delas sustentada, em abstracto, em prova produzida, seja com base em declarações dos arguidos, seja com fundamento em prova testemunhal, seja alicerçada em outros elementos probatórios. Por isso, haver prova produzida em sentido contrário, ou diverso, ao acolhido e considerado relevante pelo Tribunal a quo, não só é vulgar, como é insuficiente para, só por si, alterar a decisão em sede de matéria de facto. O que aqui se mostra necessário é que o recorrente demonstre que a prova produzida no julgamento só poderia ter conduzido, em sede de elenco de matéria de facto provada e não provada, à solução por si (recorrente) defendida, e não àquela consignada pelo Tribunal». No mesmo sentido, vide o acórdão desta 5ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa de 23.7.2023, Relatora Alda Casimiro, processo 1074/21.6JAPDL.L1-5, que refere: «A ausência de imediação determina que o Tribunal superior, no recurso da matéria de facto, só possa alterar o decidido pela primeira instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida, nos termos previstos pelo art.º 412º, n.º 3, al. b) do Cód. Proc. Penal, mas já não quando permitirem outra decisão. Ou seja, a convicção da primeira instância, só pode ser posta em causa quando se demonstrar ser a mesma inadmissível em face das regras da lógica e da experiência comum. Significa isto que o recorrente não pode pretender substituir a convicção alcançada pelo Tribunal recorrido por via de argumentos que permitam concluir que uma outra convicção era possível, sendo imperioso demonstrar que as provas indicadas impõem uma outra convicção». Também no acórdão desta 5ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa de 05.12.2024, Relatora Sandra Oliveira Pinto, processo 628/23.0POLSB.L1-5, pode ler-se que «a reapreciação só determinará uma alteração à matéria fáctica provada quando, do reexame realizado dentro das balizas legais, se concluir que os elementos probatórios impõem uma decisão diversa, mas já não assim quando esta análise apenas permita uma outra decisão. (…) Como expressamente resulta do disposto no artigo 412º, nº 3, alíneas a) e b), e nº 4 do Código de Processo Penal, quanto à impugnação da matéria de facto, para além da especificação dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, deve o recorrente indicar ainda as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida. Esse desiderato não se alcança com a mera formulação de opiniões quanto à clareza ou precisão do que foi dito, na medida em que tais elementos possam permitir diferentes conclusões – só se atinge com a indicação das provas que impõem, que obrigam a decisão diversa. De acordo com o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 01.04.2008, citado neste último aresto de 05.12.2024 na nota de rodapé nº 6, «Impor decisão diversa da recorrida não significa admitir uma decisão diversa da recorrida. Tem um alcance muito mais exigente, muito mais impositivo, no sentido de que não basta contrapor à convicção do julgador uma outra convicção diferente, ainda que também possível, para provocar uma modificação na decisão de facto. É necessário que o recorrente desenvolva um quadro argumentativo que demonstre, através da análise das provas por si especificadas, que a convicção formada pelo julgador, relativamente aos pontos de facto impugnados, é impossível ou desprovida de razoabilidade. É inequivocamente este o sentido da referida expressão, que consubstancia um ónus imposto ao recorrente. As provas que impõem decisão diversa são as provas relevantes e decisivas que não foram analisadas e apreciadas, ou, as que, tendo-o sido, ponham em causa ou contradigam o entendimento plasmado na decisão recorrida». No caso em apreço, a questão do recorrente é apenas de discordância quanto à convicção do Tribunal, quanto à apreciação que o tribunal a quo fez da prova produzida em audiência. Com efeito, quer na motivação, quer nas conclusões, limita-se a comentar e criticar a sentença, cuja motivação probatória entendeu, mas que não aceita, fazendo prevalecer a sua convicção. O que é manifestamente insuficiente face à livre apreciação do julgador. De acordo com o disposto no art.º 127º, do CPP, a prova é apreciada segundo as regras de experiência comum e a livre convicção do julgador. Há uma apreciação da prova inteiramente objetiva, nos casos em que é imposta pelas regras da experiência. E há uma apreciação da prova subjetiva que resulta da livre convicção do julgador. A apreciação subjetiva da prova resulta da imediação e da oralidade, mas só pode ser afastada se o recorrente demonstrar que a apreciação do Tribunal a quo não teve o mínimo de consistência, situação que não ocorre no caso dos autos. Na verdade, o Tribunal recorrido fundamentou de modo razoável e suficiente a sua convicção, com enquadramento no art.º 127º, do CPP. Fê-lo ao encontro das regras da experiência comum, da normalidade das coisas e da lógica do denominado homem médio. Justificou as contradições e hesitações que conduziram à dúvida razoável e inultrapassável. Foram ouvidas as gravações. Atentas as contradições e perplexidades com que o tribunal recorrido se deparou, são razoáveis as suas dúvidas, que também nos assolam: havia ou não um relacionamento amoroso entre o arguido e a mãe da menor? O cunhado estaria ou não no local dos factos? A tudo acresce as fragilidades da personalidade da menor e a estranheza das declarações da mãe da menor quando referiu que, no dia seguinte à ocorrência dos supostos factos, o arguido voltou lá a casa sem que a sua filha revelasse então alguma alteração de comportamento aquando da interação entre ambos. Ou seja, o Tribunal recorrido explicitou as razões da sua convicção, o que fez de forma lógica e global, com o mínimo de consciência para a formulação do juízo sobre a credibilidade dos depoimentos apreciados e, com base no seu teor, alicerçou uma convicção sobre a verdade dos factos, ficando com dúvidas, que não conseguiu superar, sobre a ocorrência dos factos que julgou não provados. Além disso, tal juízo sobrepõe-se sempre às convicções pessoais dos restantes sujeitos processuais, na decorrência do princípio da livre apreciação da prova. Argumenta o recorrente no sentido da inadmissibilidade do uso do princípio in dubio pro reo, uma vez que: «não é toda a dúvida que justifica a absolvição com base neste princípio, mas apenas aquela em que for inultrapassável, séria e razoável a reserva intelectual à afirmação de um facto que constitui elemento de um tipo de crime ou com ele relacionado, deduzido da prova globalmente considerada. - No caso dos autos, não podia fazer-se apelo a tal princípio, desde logo porque não poderia o Tribunal a quo ter ficado com qualquer dúvida nem, tão-pouco esta poderia ser insanável ou inultrapassável, não bastando que haja versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes para que o arguido deva ser absolvido em obediência a tal princípio. - Do depoimento da ofendida conjugado com o teor do relatório médico-legal, com a informação da CPCJ, das próprias declarações do arguido, todos concatenados com as regras da lógica e da experiência comum, não existe qualquer dúvida, muito menos insuperável, sobre a ocorrência dos factos imputados ao arguido, nos termos que vinham descritos na acusação, à excepção do facto que ali vinha imputado em 7 e da correcção que se referiu do que vinha relatado no ponto 6». Mais uma vez, o que está aqui em causa é apenas e tão-só a divergência do recorrente face à convicção que alicerçou a sentença recorrida, a qual, como acima se mencionou, não merece censura. O referido princípio assenta numa situação em que, mesmo depois de compulsada toda a prova, o Tribunal permanece com dúvidas, que não consegue ultrapassar. Ora, perante uma dúvida objetiva e razoável que não foi ultrapassada em audiência, o non liquet sobre os factos constitutivos da infração criminal (ou sobre factos que afastem a ilicitude ou a culpa) deve transformar-se numa decisão favorável ao arguido em homenagem ao princípio da presunção de inocência consagrado no artigo 32º nº 1 da Constituição da República Portuguesa, o qual abarca o princípio in dubio pro reo e decorre igualmente do primado da culpa. Como consideram Gomes Canotilho e Vital Moreira, a propósito do princípio in dubio pro reo, «além de ser uma garantia subjetiva, o princípio é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa» (Cfr, Gomes Canotilho e Vital Moreira, in "Constituição da República Portuguesa Anotada", Coimbra Editora, 1993, p. 203 e seguintes). Também se lê no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 08.02.2022, disponível no site da dgsi, Relator João Amaro, «quando o tribunal não forma convicção, a dúvida determina inelutavelmente a absolvição, de harmonia com o princípio in dubio pro reo, o qual consubstancia principio de direito probatório decorrente daqueloutro princípio, mais amplo, da presunção da inocência (constitucionalmente consagrado no artigo 32º da Constituição da República Portuguesa». A crítica que o recorrente faz do uso deste princípio, fundamentalmente como corolário da apreciação que o recorrente faz da prova, não colhe no caso em apreço, porquanto demonstrou-se que o tribunal de primeira instância se defrontou com as apontadas dúvida na formação da convicção, resolvidas a favor do arguido como a lei impõe. O recurso ao princípio in dubio pro reo foi devidamente justificado em face das dúvidas emergentes das contradições e hesitações dos depoimentos referidos na sentença. Não se trata do uso indevido de tal princípio, mas sim da sua aplicação que ao caso se impunha. O recurso também improcede neste segmento. * Aqui chegados, a improcedência das questões acima decididas prejudica a apreciação das demais elencadas sob o ponto 3. Daqui resulta a improcedência do recurso interposto pelo Ministério Público. DECISÃO Nestes termos, e face ao exposto, acordam os juízes desembargadores deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar não provido o recurso interposto pelo Ministério Público, confirmando assim a sentença recorrida. Sem custas, atenta a isenção do recorrente (cfr. art.º 4º, nº 1, al. a), do Regulamento das Custas Processuais). Notifique. Lisboa, 21 de janeiro de 2025 Ana Cristina Cardoso Rui Poças Paulo Barreto (apresenta voto de vencido) Voto de vencido do 2º Adjunto Paulo Barreto: "Importa referir, que, durante muito tempo não interessava no recurso da matéria de facto como decidiriam os juízes do Tribunal da Relação se tivessem efectuado o julgamento em primeira instância, pois tal recurso tinha apenas a finalidade de proceder à apreciação da decisão proferida na 1ª instância, apreciação essa limitada ao exame (controlo) dos elementos probatórios valorados pelo Tribunal recorrido e feita à luz das regras da lógica e da experiência, mas sempre sem colidir com os fundamentos da decisão que só a imediação e a oralidade permitiam atingir - imediação e oralidade que não estão presentes no julgamento do recurso, porque aos juízes do Tribunal superior apenas são facultados registos (em suporte magnético). Por isso, ao Tribunal superior cumpria verificar a existência da prova e controlar a legalidade da respectiva produção, nomeadamente, no que respeita à observância dos princípios da igualdade, oralidade, imediação, contraditório e publicidade, verificando, outrossim, a adequação lógica da decisão relativamente às provas existentes. E só em caso de inexistência de provas, para se decidir num determinado sentido, ou de violação das normas de direito probatório (nelas se incluindo as regras da experiência e/ou da lógica) cometida na respectiva valoração feita na decisão da primeira instância, esta podia ser modificada, nos termos do artigo 431º do Código de Processo Penal. Felizmente, na busca de um efectivo recurso da matéria de facto, hoje já não é assim. O Tribunal da Relação tem que criar a sua própria convicção e não se limitar a apreciar se a convicção do Tribunal a quo respeitou as regras probatórias. Claro que limitado aos pontos indicados pelo recorrente. Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 26.06.2019, disponível em dgsi.pt., “obviamente que o legislador ao estabelecer o recurso sobre matéria de facto sabe que o Tribunal de recurso não se encontra presente no julgamento e por isso o estabelece nas condições em que o fez permitindo, ainda assim, uma apreciação global da prova com base no registo da mesma; a falta de imediação por parte do Tribunal de recurso, e nos termos em que esses recursos se mostram concedidos, não assume qualquer relevância; (...); o relevante é que do processo constavam todas as provas e elementos necessário a que o Tribunal de recurso pudesse apreciar toda a prova existente e formar a sua convicção”. E ainda Ana Maria Barata de Brito, “Os poderes de cognição das Relações em matéria de facto em processo penal”, Estudo de 2012, disponível em http://www.tre.mj.pt/docs/ESTUDOS%20%20MAT%20CRIMINAL/O%20conhec_Relacoes_materia%20de%20facto.pdf:“ Se a capacidade de reapreciação da matéria de facto pelo Tribunal da Relação sofre limitações decorrentes da falta de imediação – cumpre, então, questionar: a que falta (de imediação) nos referimos? A uma privação total, como genericamente se parece afirmar? E quais as consequências dessa privação, ou em reverso, qual o plus concretamente acrescido por via da imediação? Mesmo para além dos casos de renovação da prova (art.º 430º CPP), as Relações não estão totalmente desprovidas de imediação. Têm-na desde logo, e aqui na exacta medida do juiz de julgamento, relativamente a todas as provas reais (no sentido de todas as outras provas, não pessoais: documentos, exames, perícias, apreensões, vigilâncias…). Têm-na relativamente à prova gravada/escutada – por via do acesso directo à documentação da prova, potenciado com o fim das transcrições que até 2007 mediatizavam o acesso. Ou seja, mesmo relativamente à prova pessoal existe uma imediação parcial. A prova pessoal ou oral revela-se, ao que aqui interessa, em duas componentes: de voz e de imagem. O Tribunal ad quem fica privado da relação de proximidade com a imagem da pessoa que intervém no julgamento, na qualidade de arguido, testemunha ou declarante. Mas dispõe do acesso directo à voz do autor dos relatos, e pode apreender tudo o que, no processo comunicacional, é transmissível através da voz (gravada). Não deve falar-se por isso de uma total ausência de imediação, mesmo na parte referente à prova pessoal”. Sabendo-se que os poderes do Tribunal da Relação em matéria processual penal são muito limitados relativamente aos do processo civil - falta uma norma equivalente ao art.º 662.º, do Código de Processo Civil -, e até a renovação da prova está restringida aos vícios do art.º 410.º n.º 2, como determina o art.º 430.º, n.º 1, do CPP, a documentação da prova é o elemento fundamental para a apreciação do recurso da matéria de facto. Tudo visto e aqui chegados, pelo actual estado da arte em matéria de impugnação da matéria de facto em processo penal, muito por força da jurisprudência do Tribunal de Estrasburgo na consagração de um processo equitativo, em que se exige que o Tribunal da Relação crie a sua própria convicção, cave a fundo na prova, embora ainda limitado pelo quadro legal, a documentação da prova é a peça fundamental. E, se estivermos a pensar em prova pessoal, é de gravação da prova que se trata. Do exposto decorre que este Tribunal ad quem deve, ouvindo a prova gravada, formar a sua própria convicção. Ora, no caso concreto, e tendo em conta a prova produzida, designadamente a perícia, que é muito concreta a confirmar a credibilidade do depoimento da vítima, afastando que as fantasias afectem a veracidade do relato, dava razão, ao MP e revogava o acórdão, condenando o arguido". |