Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2809/22.5T8CSC.L1-8
Relator: RUI MANUEL PINHEIRO DE OLIVEIRA
Descritores: PROCEDIMENTO CAUTELAR COMUM
PRESSUPOSTOS
INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
NATUREZA INSTRUMENTAL DA PROVIDÊNCIA
OBTENÇÃO DE DECISÃO DEFINITIVA DO LITÍGIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/13/2023
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - O procedimento cautelar comum visa a tutela provisória de um direito ameaçado, através da adopção de medidas adequadas a evitar o risco do perecimento desse direito, decorrente da demora no processamento da acção principal;
II - Se os comportamentos que se pretendem inibir com as providências requeridas já tiveram lugar e são de execução imediata (e não continuada ou repetida), terá de concluir-se que já ocorreram os danos irreparáveis ou de difícil reparação que justificavam o pedido, estando consumada a lesão;
III - Nesta situação, deixa de existir o fundamento da providência e fica frustrada a utilidade do procedimento cautelar, extinguindo-se a instância por inutilidade superveniente da lide;
IV – Fora dos casos de inversão do contencioso (art.º 369.º do CPC), não é viável nem admissível, por contrariar a finalidade própria das providências cautelares, a instauração de um procedimento cautelar com o qual não se visa, apenas, dar utilidade ou eficácia à decisão a proferir na acção principal, mas antes obter uma decisão definitiva do litígio, alcançando um efeito que é, precisamente, aquele que se pretende na acção principal.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes na 8.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO
1.1. A recorrente J, LDA.. instaurou procedimento cautelar comum contra C e B, formulando os seguintes pedidos:
«I – A condenação das requeridas no reconhecimento da ineficácia da solicitação do pagamento do valor corporizado na garantia bancária reproduzida sob doc. n.º 2;
II - A suspensão do pagamento à requerida B do indicado valor, até trânsito em julgado da ação principal de que o presente procedimento cautelar comum é incidente preliminar e que a requerente vai instaurar oportunamente no qual peticionará a declaração de incumprimento do Contrato-Promessa e correspondente pedido de indemnização por danos causados;
III – A ordem, dirigida à C, primeira requerida, de não pagamento da garantia bancária reproduzida sob doc. n.º 2.
IV – Subsidiariamente, e sem prescindir, que seja decretada a proibição de exercício de direito de regresso por parte da requerida C sobre a requerente por prestação da garantia executada em abuso de direito ou face à ineficácia da prestação da mesma, considerada a ilicitude de tal solicitação».
Para tanto, alegou, em síntese, que:
- no dia 08.07.2019, por sua ordem, a Requerida C emitiu a garantia bancária n.º 2019.1436.036, a favor da Requerida B, visando caucionar o cumprimento das obrigações decorrentes para a Requerente do “contrato-promessa de celebração de contratos de fornecimento de combustível em exclusividade”, outorgado em 31.05.2019 entre a Requerente, uma outra sociedade do seu grupo empresarial, denominada A e a B;
- a referida garantia destinava-se a pagar a quantia de €1.328.725,04, acrescida de IVA, se o pagamento fosse solicitado pela B nas condições constantes da garantia e com referência às cláusulas do referido contrato-promessa;
- a Requerente tomou conhecimento que a Requerida B pretende executar a referida garantia;
- tal accionamento é, contudo, abusivo, doloso e sem direito ou fundamento que o sustente, uma vez que a Requerente não está em mora relativamente a qualquer obrigação que assumiu, nem incumpriu o contrato-promessa, sendo a Requerida B que incumpre esse contrato-promessa;
- o acionamento da garantia implicará que a Requerente, por não ter tesouraria para suportar essa quantia, entre em insolvência e fique impossibilitada de obter crédito, com consequências irreversíveis para os seus sócios e trabalhadores e para o grupo empresarial onde se insere e que afectará o próprio fornecimento de combustível nas autoestradas.
1.2. A Requerida B deduziu oposição, concluindo que «deve ser indeferido, por não provado, o presente procedimento cautelar, com a imediata absolvição do pedido, da ora Oponente», defendendo, em suma, que a Requerente incumpriu o contrato-promessa referido, sendo que a garantia em causa é uma garantia autónoma ou on first demand, que visa o exclusivo interesse da Requerida B à devolução dos montantes entregues no âmbito do contrato-promessa, independentemente de resultarem de incumprimento, de mora ou de denúncia.
1.3. A Requerida C interveio nos autos, constituindo mandatário, mas não deduziu oposição.
1.4. Foi realizada a audiência final, após o que foi proferida decisão, que julgou improcedente o procedimento cautelar e, consequentemente, não decretou as providências requeridas.
1.5. Inconformada, apelou a Requerente, pedindo que tal sentença seja revogada e decretadas as providências requeridas, formulando, para tanto, as seguintes conclusões:
«1) A recorrente interpõe recurso da decisão que julga improcedente o pedido de decretamento de providências cautelares antecipatórias.
2) A recorrente impugna o facto dado não provado na al. j) com base nos docs. n.º 17 e 18 juntos com a oposição à providência cautelar.
3) O Tribunal deveria ter dado como provado que “A J não dispõe de liquidez para acorrer de imediato ao pagamento dos valores das várias garantias bancárias emitidas a favor da B”.
4) Quanto ao Direito, a interpretação que o Tribunal faz do teor da garantia viola a vontade das partes consignada na garantia e, em particular, viola o disposto no art.º 238º CCiv., porquanto não tem um mínimo de correspondência no texto do negócio formal celebrado.
5) A recorrida B não podia solicitar a garantia em questão no caso concreto porquanto esta possibilidade não está prevista nos seus termos.
6) A garantia é clara e especifica no seu intróito: o que se visa caucionar é a devolução do montante em questão na sequência das obrigações assumidas pela Ordenadora J cláusulas 6ª e 7ª do contrato promessa – cfr. doc. n.º 2 junto com o requerimento inicial.
7) A garantia pode ser paga nos seus termos que, todavia, integram por referência expressa o clausulado do Contrato-Promessa.
8) A cláusula 6ª, al. a) prevê que a J se possa desvincular da promessa de celebração dos contratos prometidos antes de início de sua vigência mediante notificação à B, e com indicação expressa que a B, mediante apresentação ao banco de comprovativo das correspondentes faturas (com IVA) por si emitidas à requerente, solicite ao banco emissor das garantias referidas na cláusula 7ª (nas quais se inclui a garantia cerne do presente litígio) o seu pagamento.
9) A cláusula 6ª, al. b) também prevê que a recorrente J possa fazer cessar a vigência de todos ou qualquer dos contratos prometidos mediante notificação escrita dirigida à B com pelo menos 30 dias de antecedência em relação à data de produção de efeitos do resgate, e com indicação expressa que a B, mediante apresentação ao banco de comprovativo das correspondentes faturas (com IVA) por si emitidas à requerente, solicite ao banco emissor das garantias referidas na cláusula 7ª (nas quais se inclui a garantia cerne do presente litígio) o seu pagamento, com dedução pro rata nos termos da cláusula.
10) A cláusula 6ª do Contrato-Promessa consigna uma prerrogativa das primeiras contraentes, ou seja, da J e A.
11) As primeiras contraentes são o sujeito da frase – são estas que podem exercer os direitos que resultam da cláusula.
12) Ora, a J nunca se desvinculou do Contrato-Promessa, nem comunicou desvinculação ou intenção de desvinculação de Contrato-Promessa à B, nem nunca indicou à B que executasse as garantias.
13) A B nunca notificou a J da solicitação da garantia nem emitiu a correspondente fatura (com IVA) ou cumpriu qualquer outro procedimento constante do teor da garantia ou do Contrato-Promessa (cujo clausulado é integrado por expressa remissão na garantia) para possibilitar a execução da garantia – vd. facto provado 16.
14) Razão pela qual não existe fundamento para execução da garantia ao abrigo da cláusula 6ª do Contrato-Promessa e do teor da garantia que prevê a sua execução ao abrigo da mesma.
15) Já a cláusula 7ª do Contrato-Promessa referida supra não dispõe sobre condições de execução de garantia, remetendo a regulamentação da mesma para os termos da garantia e para a cláusula 6ª do Contrato-Promessa, a cujo teor já aqui foi feita referência e que é, para o caso, irrelevante.
16) Subsidiariamente, os termos da garantia demonstram inequivocamente que a garantia apenas se destina a cobrir o pagamento do quantitativo nos termos referidos no Contrato-Promessa.
17) Tal é demonstrado pelo depoimento prestado em audiência de julgamento por M, antigo presidente do Conselho de Administração da requerida B e que negociou a garantia e seu teor afirmou, que a  J “Se não quiser cumprir o contrato, devolve o que foi entregue… E para isso foram prestadas duas garantias”.
18) Esta visão da interpretação da garantia é a sustentada nos autos desde o início e coerente com os depoimentos produzidos pela prova de ambas as partes o que reforçamos com a citação do depoimento de JC, que também negociou o teor da garantia, e afirma que JR (o gerente de J) “tinha possibilidade de sair e pagar os dois milhões e meio”.
19) Ou seja, os negociadores da garantia estavam bem cientes que a garantia foi concedida para possibilitar à J desvincular-se do contrato – e não para a assegurar o interesse pecuniário associado ao mesmo.
20) Aliás, qual seria o interesse de outra interpretação? Porque se dariam as partes ao trabalho de especificar um clausulado tão completo e detalhado na garantia se não fosse o seu interesse garantir que a garantia só seria paga naqueles termos?
21) A interpretação que é feita da garantia fere o critério interpretativo do art.º 238º, n.º 1 CCiv. e isso deve ser sinalizado pelo Tribunal ad quem, garantindo a procedência do recurso e dos pedidos realizados em sede de requerimento inicial.
22) Acrescente-se que como resulta do facto dado como provado n.º 16, a solicitação da garantia não foi acompanhada dos elementos documentais cuja exigência consta do seu clausulado.
23) Nestes termos, a solicitação da garantia é abusiva e ilícita – o que resulta da apreensão dos próprios termos de garantia sem qualquer necessidade de ulterior interpretação.
24) E, assim sendo, a sentença a quo não poderia ter julgado que a B estava legitimada a requerer o pagamento da garantia nem que a Co deveria ter pago a garantia porquanto o pedido foi eficaz.
25) Por fim, andou mal a sentença a quo porque julgou que a garantia não deveria ter sido paga, mas que a recorrente não está em posição jurídica para alegar tal excepção.
26) Como resulta do facto dado como provado n.º 16, a solicitação da garantia não foi acompanhada dos elementos documentais cuja exigência consta do seu clausulado.
27) Nestes termos, a solicitação da garantia é abusiva e/ou ilícita – o que resulta da apreensão dos próprios termos de garantia sem qualquer necessidade de ulterior interpretação.
28) E, assim sendo, a sentença a quo não poderia ter julgado que a B estava legitimada a requerer o pagamento da garantia nem que a C deveria ter pago a garantia porquanto o pedido foi eficaz.
29) É que o pedido realizado fora dos termos da garantia e sem apresentação dos documentos exigíveis para o efeito é ineficaz, na medida em que não contido no direito da B – e assim deveria ter decidido o Tribunal a quo.
30) A exigência de prova documental visa tutelar não só a posição do banco, mas da ordenante da garantia porquanto esta é, em última linha, a responsável pelo pagamento da garantia.
31) A recorrente tinha o direito de invocar a excepção de não cumprimento da garantia porquanto tal decorre do seu contrato de mandato com a C.
32) Daí que se tenha peticionado a suspensão do pagamento à requerida B – o que mais não é do que o reconhecimento do dever de recusa de pagamento por parte da C.
33) E a credora desse dever de recusa de pagamento, a que já se aludiu, é a J que exerce, portanto, um direito próprio na presente providência cautelar.
34) E por este motivo, aliás, o terceiro pedido do requerimento inicial consiste em ordenar-se à C o cumprimento do contrato de mandato – que não pague a garantia à B porquanto tem o dever (perante a J) de recusar o pagamento.
35) E o quarto pedido consiste em afirmar que, se a C pagar mal, não deverá ser reembolsada pela requerente.
36) Afirmando a validade da pretensão da recorrente e a legitimidade em deduzir a mesma, nos termos avançados, teria a sentença a quo feito correta interpretação do Direito aplicável aos autos (por interpretação contratual com base no art.º 236º CCiv. e por aplicação do conjunto de princípios de direito subjacentes à teoria geral de direito civil e à fonte da obrigação cujo cumprimento é reclamado).
37) Esta possibilidade mais resulta, em alternativa, da aplicação do art.º 444º, n.º 2 CCiv. ao caso.
38) Ou, ainda e diretamente, do exercício da pretensão conferida pelo art.º 1161º, al. a) CCiv. à recorrente.
39) Assim deveria a sentença a quo ter interpretado e aplicado o Direito aos autos, decretando as providências requeridas com a fundamentação que vem de se expor.
40) A existência do dever de recusa de pagamento da primeira requerida é referida unanimemente pela doutrina e em três arestos do Supremo Tribunal de Justiça citados em corpo de texto das alegações.
41) Acrescenta-se, a título de cautela de patrocínio, imaginemos que a pretensão que a recorrente pretende afirmar não decorre da sua relação com a C.
42) Neste caso, a J pode exigir da C que exerça direitos de conteúdo patrimonial de que é credora – nomeadamente, que não pague a garantia executada – porquanto afetam o seu próprio património – cfr. art.º 606º, n.º 1 CCiv.
43) Por fim, importa notar que a recorrente assenta o seu argumento em dois vectores essenciais:
44) A garantia foi exercida fora dos seus termos e, como tal, a C tinha o dever de recusar o seu pagamento;
45) Não tendo recusado o mesmo, a recorrente tem o direito de recusar o reembolso.
46) A sentença a quo afirma, a p. 46, que “no que concerne à última providência requerida, não só extrapola toda a matéria factual traduzida aos autos como causa de pedir, e que por tal não foi sobejamente debatida”… e por esse motivo, não se encontra verificado fumus boni iuris.
47) Sucede que a requerente arguiu factos suficientes para integrar a causa de pedir subjacente ao quarto pedido em art.ºs 8º a 18º e 22º do requerimento inicial , entre outros.
48) Afirma-se que “nenhum dos pressupostos previstos na garantia bancária para que esta possa ser executada ocorreu” – art.º 22º do requerimento inicial.
49) Este é o fumus boni iuris – se a garantia é autónoma, nada mais é necessário alegar relativamente à mesma do que o teor contratual – e tal foi feito. Nada mais havia a alegar: é isto que há para dizer. A garantia foi executada fora dos seus termos e sem entrega dos documentos necessários (cfr. art.º 10º a 18º do requerimento inicial): é condicionada, não deve ser paga.
50) E, assim dito, retira-se a ilação a art.º 252º - que se determine ordem dirigida à primeira requerida de não pagamento da garantia bem como o pedido contido em IV do petitório.
51) É inerente ao alegado que se a primeira requerida pagar, fá-lo fora da possibilidade do direito de exigir a garantia pela B, o que justifica o pedido IV.
52) Existem elementos suficientes para proferir decisão quanto ao IV pedido formulado nos autos: estão alegados factos, foram apresentadas provas (documentais), há factos instrumentais alegados, ilações a tirar e presunções que podem ser retiradas por regras de experiência – cfr. art.º 607º, n.º 3 CPC.
53) A questão de não exercício de direito de regresso foi submetida à apreciação do Tribunal – cfr. art.º 608º, n.º 2 e art.º 609º, n.º 1 CPC.
54) A primeira requerida está regularmente citada nos autos e resolveu não contestar, após constituição de mandatário.
55) Daqui resultam os efeitos cominatórios constantes de art.º 574º CPC – sibi imputet.
56) Se o assunto não foi debatido, foi porque a C não o veio aos autos debater – sibi imputet.
57) Não pode ser a recorrente prejudicada com a falta de contestação da parte aos argumentos e aos pedidos contra si dirigidos sob pena de se subverter todo o sistema judicial.
58) Pelo que deverá o Tribunal julgar a existência de fumus boni iuris suficiente para decretar o IV pedido do requerimento inicial, assim fazendo correcta interpretação do Direito».
1.6. A Requerida B não contra-alegou, mas veio requerer que se julgue, imediatamente, extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide e, consequentemente, não se admita o recurso interposto pela Requerente, alegando e demonstrando que, na sequência da sentença proferida, a Requerida C veio reconhecer expressamente a sua responsabilidade para com a B, tendo procedido, em 04.04.2023, à transferência bancária da quantia de €1.634.331,80, para pagamento da garantia bancária em causa, por ela prestada a favor da B.
1.7. A Requerente pronunciou-se no sentido de os autos deverem prosseguir os seus termos, defendendo que a declaração de inutilidade superveniente da lide configura decisão substancial que não pode ser proferida pelo tribunal, por se ter esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa, sendo que não se verifica nenhum motivo de rejeição do recurso previsto no art.º 641.º, n.º 2 CPC. Acrescenta que a instância mantém interesse porque o primeiro pedido implica o reconhecimento de ambas as Requeridas da ineficácia da solicitação de pagamento (o que tem efeitos jurídicos imediatos para qualquer uma delas, independentemente de actos de pagamento, e que pode ser decidido em recurso), sendo que a lide mantém, também, interesse pleno quanto ao último pedido, uma vez que a C ainda não exigiu à Requerente o pagamento da quantia paga à B.
1.8. Em 30.05.2023, foi proferido despacho que admitiu o recurso e que, relativamente, aos requerimentos supra aluídos nos pontos 1.6 e 1.7, consignou que «Tendo em consideração que com a prolação da decisão se esgotou o poder jurisdicional da signatária, e sem prejuízo de melhor entendimento, o mesmo carecerá de se apreciado no âmbito recursivo».
1.9. Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
Decorre do disposto nos art.ºs 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1 do CPC, que as conclusões delimitam a esfera de actuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial (cfr., neste sentido, Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2017, pág. 105 a 106).
Assim, atendendo às conclusões supra transcritas, mas também à questão suscitada no despacho supra mencionado no ponto 1.10, as questões essenciais a decidir consistem, basicamente, em saber:
a) se ocorreu inutilidade superveniente da lide e da instância recursória;
b) se deve ser alterada a decisão de facto;
c) se se mostram reunidos os pressupostos para o decretamento das providências.
III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
3.1. A sentença sob recurso considerou, indiciariamente, provada a seguinte matéria de facto:
«1. A requerente J, Lda. é uma sociedade comercial que tem como objeto social, nomeadamente, “a exploração em áreas de serviço rodoviárias, lojas de conveniência e estações de serviço, das atividades de comércio de combustíveis, óleos, lubrificantes”.
2. No âmbito da sua atividade, a requerente explora um conjunto de postos de combustíveis nomeadamente, um posto de combustível duplo situado na freguesia de…., conhecido como ………, e um posto de combustível situado na freguesia de…..
3. A requerente, em virtude das relações familiares do seu gerente, é conhecida como estando relacionada com outras sociedades que se dedicam à venda de combustíveis, nomeadamente, a sociedade A. e outras sociedades que tem na sua denominação social a menção “….”.
4. A 1.ª requerida C é uma instituição de crédito, sob a forma cooperativa, que atua na área geográfica de ….
5. A 2.ª requerida B é uma sociedade comercial que se dedica, entre outras, à atividade de venda por grosso de combustíveis.
6. Em 08.07.2019, a C emitiu a garantia bancária n.º ………. por ordem da requerente, nos termos do doc. n.º 1 junto com o requerimento inicial, com o seguinte conteúdo:
«GARANTIA BANCÁRIA
N.° …
A C (…), adiante designada “C…a” vem, por este meio e por ordem de J, (…), adiante designada “Ordenadora”, prestar irrevogável e incondicionalmente à B, (…) adiante designada “B…”, uma garantia bancária autónoma, até ao valor de €1.328.725,04 (…), acrescido de IVA à taxa legal que for devida (valor máximo esse que, na presente data, é portanto de €1.634.331,08 (…), destinada a assegurar o bom e integral cumprimento das obrigações de devolução à B assumidas pela Ordenadora J, nas cláusulas 6ª e 7ª do Contrato-Promessa que a mesma J e a A celebraram com a B a 31 de Maio de 2019 tendo por objeto os seguintes postos de abastecimento: …., Contrato-Promessa esse que a C conhece e do qual tem um exemplar assinado por todas as partes (adiante designado “Contrato-Promessa”).
Pela presente garantia autónoma, a C obriga-se a pagar à B, por transferência bancária:
a) a quantia de €1.328.725,04 (…), acrescida de IVA à taxa legal que for devida, logo  que tal pagamento lhe seja solicitado pela B nos termos e para efeito do disposto na alínea a) da cláusula 6ª e nas subalíneas a. das alíneas a) e b) da cláusula 7ª do referido Contrato-Promessa, solicitação essa a ser feita pela B por carta registada com aviso de receção ou por fax, acompanhada de cópia da notificação escrita da J e da A prevista na alínea a) da cláusula 6ª do referido Contrato-Promessa e da correspondente fatura (com IVA) por si emitida à A, e, ainda, de identificação da conta bancária da B para a qual será feita a transferência, ou;
b) a quantia, acrescida de IVA à taxa legal que for devida, correspondente à importância de €1.328.725,04 (…), com dedução pro rata, calculada com base na seguinte fórmula: “[15.250.000 litros - (menos) volume em litros cumprido durante o tempo de efectiva vigência do ou dos contratos relativos aos postos de abastecimento identificados em 1 e 2 da cláusula 5ª do Contrato-Promessa) X (vezes) €0,076923”, logo que tal ou tais pagamentos lhe seja ou sejam solicitados pela B nos termos e para efeito do disposto na alínea b) da clausula 6ª e na subalínea b. da alínea b) da cláusula 7ª do referido Contrato-Promessa, solicitação ou solicitações essas a ser ou serem feitas pela B por carta registada com aviso de receção ou por fax para a C, acompanhada de cópia da notificação escrita da J prevista na alínea b) da cláusula 5ª do referido Contrato-Promessa e da correspondente fatura (com IVA) por si emitida (…), e, ainda, de identificação da conta bancária da B para a qual será feita a transferência. A C declara renunciar ao benefício da excussão prévia e obriga-se a pagar as referidas quantias sem que possa invocar em seu benefício quaisquer meios de defesa referentes às relações contratuais ou de qualquer outra natureza entre si e as J e a A, ou entre esta e a B, e que de algum modo possam obstar à execução total ou parcial desta garantia e, designadamente, que não se encontra demonstrado o incumprimento total ou parcial da J e da A. perante a B.
A presente garantia poderá ser executada pela B total ou parcialmente e, neste caso, numa ou mais vezes, obrigando-se a C a proceder ao respectivo pagamento até 48 horas após a sua reclamação.
(…)
A presente garantia bancária autónoma tem carácter absolutamente irrevogável e não pode ser denunciada pela C, em qualquer circunstância ou sob qualquer fundamento, constituindo promessa unilateral vinculativa e título executivo, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 703 nº 1 alínea b) do Código de Processo Civil.
A presente garantia é válida até um mês após o termo de todos os contratos de venda exclusiva prometidos, a que se refere o Contrato-promessa celebrado entre as Ordenadoras e a B, em 31 de Maio de 2019, acima já identificado.
Para todas as questões emergentes desta garantia será competente o foro da comarca da sede da B.
…, 08 de julho de 2019».
7. A referida garantia bancária foi emitida tendo em vista assegurar o cumprimento das obrigações de devolução pela requerente J à requerida B constantes das cláusulas 6.ª e 7.ª do Contrato-Promessa que aquela e a sociedade A celebraram com a B em 31.05.2019;
8. Consta do Contrato-Promessa em causa, junto como doc. n.º 3 com o requerimento inicial, designadamente, o seguinte:
(…)
9. Os contratos de compra exclusiva identificados no Considerando A do Contrato-Promessa, no que se refere à relação entre a J e a B, constam dos docs. n.º 4 e 5 juntos com o requerimento inicial, tendo sido celebrados em 25.09.2015, com início em 01.07.2016 e devendo vigorar por um período de 5 anos a contar dessa data ou até à data em que a J tivesse adquirido a quantidade global de produto acordada em cada um desses contratos.
10. Os contratos em causa foram objeto de um Acordo de Prorrogação celebrado entre a A e a J, por um lado, e a B por outro, nos termos do doc. n.º 7 junto com o requerimento inicial.
11. Consta do mencionado Acordo de Prorrogação o seguinte:
Tendo as partes celebrado em 25 de Setembro de 2015, 6 contratos de compra exclusiva, pelo período de 5 anos e cujo início ocorreu no dia 01 de Julho de 2016, acordam a prorrogação dos mesmos por mais 1 ano, isto é, até 30 de Junho de 2022, ou até que seja atingindo o volume global contratualizado de 37.124.931 litros (cf. Cláusula Décima Quarta de cada um dos 6 contratos de compra exclusiva), ou ainda no termo do prazo de trinta dias a contar da notificação que para o efeito for feita à B, nesse caso mediante o pagamento do valor pro-rata por amortizar, calculado de acordo com o que resulta dos referidos contratos (…)
12. Após 30.07.2022 (data de fim do período de prorrogação de vigência dos contratos “de compra exclusiva”), não foram concluídos novos contratos que substituíssem os agora cessados, embora tenha havido negociações nesse sentido.
13. A B enviou então à requerente a carta com o assunto “Cobrança de Créditos/Interpelação” junto como doc. n.º 18 do requerimento inicial, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos e cessou o fornecimento de combustíveis.
14. Dirigiu então à C comunicação solicitando o acionamento da garantia bancária prestada por esta a solicitação da J com referência aos contratos de compra exclusiva celebrados em 2015.
15. Com referência à garantia bancária em causa nos autos, a B, por carta registada com aviso de receção datada 10.08.2022, rececionada em 11.08.2022, solicitou à C o acionamento da garantia bancária n.º …. referida em 7. e o pagamento da quantia de €1.634.331,80, nos termos do doc. n.º 23 junto com a oposição.
16. Não consta da carta remetida pela B à C a referência a ser acompanhada da emissão da correspondente fatura com IVA ou a qualquer notificação prévia da J, apenas constando a indicação da conta bancária para a qual deveria ser feita a transferência e a indicação de ter havido incumprimento contratual por esta.
17. Na ausência de resposta por parte da C, a B por carta registada com aviso de recepção datada de 25.08.2022, veio reiterar o pedido de acionamento, nomeadamente, desta garantia e o pagamento imediato das respetivas quantias, nos termos do doc. n.º 5 junto com a oposição.
18. Por carta registada com aviso de receção datada de 30.08.2022, a C alegando ter sido citada no dia 26.08.2022 no âmbito do presente procedimento cautelar, recusou o acionamento da garantia bancária aqui em causa até ser proferida decisão judicial neste processo, nos termos do doc. n.º 22 junto com a oposição.
19. A J havia intentado o presente procedimento cautelar nestes Juízos Centrais Cíveis de …… em 19.08.2022 com vista à suspensão do acionamento da garantia bancária em causa.
20. A J havia tomado conhecimento da B pretender executar a garantia bancária referida em 7. por a C a ter informado.
21. Os contratos-prometidos objeto do Contrato-Promessa referido em 9. não chegaram a ser celebrados.
22. Nos termos dos contratos de compra exclusiva celebrados entre a J e a B, que constam dos docs. n.º 4 e 5 juntos com o requerimento inicial, celebrados em 25.09.2015, acordaram as partes que a J obrigava-se a adquirir em exclusividade à B os produtos por esta comercializados e que pudesse fornecer, para utilizar e revender em exclusividade nos postos de abastecimento em causa, bem como a, no prazo de vigência do contrato, adquirir uma quantidade mínima de combustível para cada posto.
23. A B, nos termos da cláusula 3.ª desses contratos, “pelo direito que ora adquire em fornecer os seus produtos no âmbito do presente contrato, bem como em contrapartida da exclusividade agora acordada e pelo fomento das vendas” obrigou-se, nomeadamente, a comparticipar em favor da J com diversas quantias, uma parte em prestações mensais e outras em montante único, nos termos previstos nessas cláusulas.
24. Durante o período da pandemia de Covid-19 ocorreu uma diminuição acentuada do consumo de combustíveis.
25. Os contratos de compra exclusiva celebrados entre as partes mantiveram-se em vigor até ao fim do período de prorrogação, ou seja, até 30.06.2022, sem que tenha sido atingido o “volume global contratualizado”.
26. A J e a B, antes do fim do prazo de vigência dos contratos de compra exclusiva celebrados em 2015, mantiveram negociações tendo em vista a renegociação das condições dos contratos definitivos objeto do Contrato-Promessa.
27. Nesse sentido, entre os responsáveis da J e da B foram realizadas diversas reuniões presenciais e por meios telemáticos, conferências telefónicas e trocado várias mensagens de correio eletrónico, em especial, sobre o não cumprimento dos volumes contratualizados dos contratos de compra exclusiva, não tendo sido possível alcançar qualquer acordo, nomeadamente, quanto a alterações a introduzir nos contratos definitivos objeto do contrato-promessa.
28. A B mostrou disponibilidade para alterar essas condições em termos mais favoráveis à J na condição desta proceder ao pagamento dos valores ainda em dívida ao abrigo dos anteriores contratos de compra exclusiva.
29. A J, por sua vez, só mostrou disponibilidade para celebrar os contratos definitivos se houvesse lugar a uma alteração das margens em seu favor e no caso de se proceder a uma renegociação global, não só do clausulado daqueles contratos, mas também de outros acordos, na esfera do grupo de sociedades que gira sob a denominação de “……”.
30. A J, através do seu gerente, afirmou perante responsáveis da B que sem haver lugar à renegociação referida não pretendia avançar com a assinatura dos contratos prometidos, acrescentando em relação aos contratos de compra exclusiva celebrados em 2015 que pagaria os valores debitados pela B referente ao remanescente dos volumes não consumidos até à data, sem que, contudo, o tenha feito.
31. A J e a B, pelas referidas razões e circunstâncias, na data do acionamento da garantia em causa nos autos, não tinham intenção de celebrar os contratos definitivos objeto do Contrato-Promessa nos termos que resultavam do então acordado.
32. As vendas de combustível nos últimos anos pela J não corresponderam às expectativas, em parte devido às consequências da pandemia Covid-19.
33. Caso a C solicite o reembolso da execução da garantia em causa nos autos e da restante garantia prestada no âmbito dos contratos de compra exclusiva, tal poderá determinar a insolvência da J.
34. No caso   de    ficar     registado um  incumprimento na  Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal, a J terá dificuldades na obtenção de crédito.
35. O pagamento antecipado pela B da quantia prevista na cláusula 5.ª do contrato-promessa celebrado pelas partes, na parte relativa à J, teve origem na solicitação pelo seu representante legal de fundos destinados a ter liquidez antecipada.
36. A B fixa preço de venda aos seus revendedores, sendo estes livres de fixarem os seus preços de venda ao público.
37. A B desde 2010 que não explora diretamente qualquer posto de abastecimento em Portugal, assentando o seu modelo de negócio em revendedores e franchisados.
38. Finda a pandemia e por causa do aumento generalizado dos preços, os proprietários/exploradores de postos de abastecimento têm obtido um proveito extraordinário com essa crescente escalada dos preços.
39. Corre termos procedimento cautelar não especificado sob n.º … entre a B, a C e a A, neste Juízo Central Cível, que foi objeto de sentença em 25.11.2022, tendo sido declarados improcedentes os pedidos (análogos) deduzidos pela A».
3.2. A sentença recorrida deu como, indiciariamente, não provados os seguintes factos:
a) A cláusula 13.ª dos contratos de compra exclusiva celebrados entre a A e a B, que constam dos docs. n.º 4 e 5 juntos com o requerimento inicial, celebrados em 25.09.2015, que prevê que a J “(…) é a única responsável pela prática dos preços aos seus clientes” é simulada e não corresponde à vontade real das partes.
b) A B é que fixa o preço de venda ao consumidor.
c) O Contrato-Promessa mais não foi do que um artifício jurídico imposto à requerente pela B para celebrar contratos de fornecimento de combustível por prazos superiores a 5 anos.
d) A B gerou na J uma situação de confiança justificada pela boa fé na execução contratual de uma relação de parceria duradoura, que a levou a investir dinheiro e confiança esperando obter os proveitos da exploração dos seus postos através da compra de combustível à B e posterior revenda.
e) Para, durante a execução dos contratos e após a celebração do Contrato-Promessa, ver a B alterar sucessivamente as condições de fornecimento de forma a colocar a requerente na impossibilidade financeira de cumprir o Contrato-Promessa porquanto simplesmente não é sustentável continuar a operar nos termos dos contratos prometidos com as margens e volumes de venda de litros de combustíveis descritos. 
f) A B tem uma atuação que consiste em alterar os preços de venda em benefício próprio, em desadequação e desalinhamento dos preços praticados pelo mercado, em desviar clientela da requerente, em reduzir o seu volume de vendas e o volume de vendas a preço inteiro.
g) A B sempre se tem escusado a renegociar os contratos prometidos objeto do Contrato Promessa.
h) O pagamento da garantia bancária em causa nos presentes autos terá como consequência a constituição de um direito de regresso da C e a obrigação de pagamento pela J valor da garantia, acrescido de juros e comissões.
i) A J desenvolve um negócio com margens de lucro brutas muito pequenas e encontrando-se totalmente dependente do seu fornecedor exclusivo.
j) Nem a J nem as empresas detidas pelos seus sócios e familiares dispõem de liquidez para acorrer de imediato ao pagamento dos valores das várias garantias bancárias emitidas a favor da B.
k) Se o “grupo empresarial” constituído pela requerente se vir impossibilitado de cumprir as suas obrigações correntes para acorrer ao pagamento das garantias bancárias constituídas a favor da B, não logrará assegurar o fornecimento de combustível nestas autoestradas, impossibilitando o abastecimento em autoestrada de mais de 24.000 veículos diariamente.
l) A B, através dos seus responsáveis, transmitiu formalmente ao gerente da Requerente, desde o início de julho de 2022 que, negando-se ele a assinar os contratos prometidos até ao termo de validade da garantia bancária, seria acionada, também e de imediato, a garantia bancária destes autos, deixando de ter qualquer interesse na execução do contrato promessa.
3.3. Factos provados decorrentes dos documentos infra referidos (não impugnados) e do acordo das partes e relevantes para a decisão:
i. No dia 04.04.2023, a Requerida C deu ordem de transferência da quantia de € 1.634.331,80, para a conta da Requerida B, com a seguinte informação complementar “GB 2019.1436.036 – J, Lda”, conforme documento n.º 1 junto com o requerimento de 17.04.2023, que se dá por reproduzido.
IV – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
4.1. Comecemos por analisar se a instância se tornou supervenientemente inútil, uma vez que de tal depende a pertinência da apreciação das demais questões supra enunciadas.
A questão foi tratada, no recente acórdão desta Relação de 25.05.2023, proferido no âmbito do Proc. n.º 2810/22.9T8CSC.L1, em que foi relator o aqui, também, relator, em situação em tudo similar à dos presentes autos, não se vislumbrando razões para que deva merecer entendimento diverso.
Desta forma, limitamo-nos a reproduzir a argumentação já expendia no referido acórdão.
A inutilidade superveniente da lide é uma causa de extinção da instância (art. 277.º, al. e) do CPC), que ocorre quando o efeito pretendido é alcançado por via diversa, sendo o caso mais típico o do pagamento da quantia peticionada na pendência da causa ou, em geral, o cumprimento espontâneo da obrigação.
É este o sentido que a doutrina e a jurisprudência têm dado ao conceito em análise.
Assim, por exemplo, Lebre de Freitas, Rui Pinto e João Rendinha, in Código de Processo Civil Anotado, I, 2.ª ed., Coimbra Editora, 2008, p. 555, referem que «(…) a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide dá-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo, ou encontra satisfação fora do esquema da providência pretendida. Num e noutro caso, a solução do litígio deixa de interessar – além, por impossibilidade de atingir o resultado visado; aqui, por já ter sido atingido por outro meio».
O acórdão do STA, de 30.07.2014, in www.dgsi.pt., considerou que «A inutilidade superveniente da lide (que constitui causa de extinção da instância - al. e) do art.º 277º do CPC) verifica-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a solução do litígio deixe de interessar, por o resultado que a parte visava obter ter sido atingido por outro meio».
O acórdão da RC de 05.12.2012, in www.dgsi.pt, decidiu que «I – A instância extingue-se sempre que se torne supervenientemente inútil, i.e., sempre que por facto ocorrido na pendência da instância, a continuação da lide não tenha qualquer utilidade (artº 287 e) do CPC). II - A instância extingue-se ou finda de forma anormal todas as vezes que, ou por motivo atinente ao sujeito, ou por motivo atinente ao objecto, ou por motivo atinente à causa, a respectiva relação jurídica substancial se torne inútil, i.e., deixe de interessar a sua apreciação».
A inutilidade da lide é, portanto, simples reflexo, no plano processual, da inutilidade da relação jurídica substancial, quer esta inutilidade diga respeito ao sujeito, ao objecto ou à causa.
Sempre que o efeito jurídico que se pretendia obter com a acção se mostre supervenientemente inútil, o processo não deve continuar, mas sim cessar. Neste caso, o tribunal não conhece do mérito da causa, limitando-se a declarar aquela extinção.
Ora, através do presente procedimento cautelar, a Requerente formulou os seguintes pedidos:
«I – A condenação das requeridas no reconhecimento da ineficácia da solicitação do pagamento do valor corporizado na garantia bancária reproduzida sob doc. n.º 2;
II - A suspensão do pagamento à requerida B do indicado valor, até trânsito em julgado da ação principal de que o presente procedimento cautelar comum é incidente preliminar e que a requerente vai instaurar oportunamente no qual peticionará a declaração de incumprimento do Contrato-Promessa e correspondente pedido de indemnização por danos causados;
III – A ordem, dirigida à C, primeira requerida, de não pagamento da garantia bancária reproduzida sob doc. n.º 2.
IV – Subsidiariamente, e sem prescindir, que seja decretada a proibição de exercício de direito de regresso por parte da requerida C sobre a requerente por prestação da garantia executada em abuso de direito ou face à ineficácia da prestação da mesma, considerada a ilicitude de tal solicitação».
Sucede que, após a prolação da decisão recorrida, mas ainda antes do seu trânsito em julgado, a Requerida C pagou à Requerida B a quantia €1.634.331,80, no âmbito da garantia bancária n.º 2019.1436.036.
Tal pagamento tornou, inequivocamente, inútil a lide quanto às providências requeridas nos pontos II e III.
Com efeito, o procedimento cautelar visa, como se sabe, a tutela provisória de um direito ameaçado, através da adopção de medidas adequadas a evitar o risco do perecimento desse direito, decorrente da demora no processamento da acção principal.
A função das providências cautelares é preventiva, pois que visam evitar que se consuma uma lesão grave e dificilmente reparável.
O periculum in mora, pressuposto essencial para o decretamento de providências cautelares não especificadas (cfr. art. 362.º, n.º 1 do CPC), como as requeridas in casu, traduz-se no perigo de ocorrência de lesão ou dano para o Requerente resultante da demora da tutela do seu direito na acção principal e constitui o fundamento que legitima a concessão de uma medida cautelar.
Com as providências requeridas (pontos II e III), pretendia a Requerente garantir que, até à decisão final a proferir na acção principal, não se concretizasse o pagamento da garantia bancária em causa.
Ora, se o comportamento que se pretendia inibir teve lugar e é de execução imediata (e não continuada ou repetida), terá de concluir-se que já ocorreram os danos irreparáveis ou de difícil reparação que justificavam o pedido, estando consumada a lesão.
Estando concretizado esse pagamento e consumada a lesão, as referidas providências não têm razão de ser.
E se é certo que os efeitos do evento danoso já consumado podem prolongar-se no tempo, não menos certo é que não são as providências concretamente requeridas que evitarão que esses efeitos continuem a produzir-se, não sendo adequadas a evitá-lo.
Conforme escreve Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma do Processo Civil, III, Almedina, 1998, p. 89 «estão, pois, de fora da protecção concedida pelo procedimento cautelar comum as lesões de direitos já inteiramente consumadas, ainda que se trate de lesões graves», sendo que, só relativamente a lesões continuadas ou repetidas, é possível uma decisão que previna a continuação ou repetição de actos lesivos.
Enfim, visando a providência cautelar acautelar lesões futuras, não deverá ser decretada nos casos em que, no decurso do procedimento cautelar, venha a ocorrer a lesão que se visava evitar. Nestas situações, deixa de existir o fundamento da providência e fica frustrada a utilidade do procedimento cautelar, extinguindo-se a instância por inutilidade superveniente da lide.
Neste sentido, veja-se o acórdão desta Relação de 16.06.2015, in www.dgsi.pt., onde se decidiu que «a inutilidade superveniente da lide ocorre quando no processo da providência intentada, a finalidade que se preconizava salvaguardar venha a ficar vazia de conteúdo, por se ter perdido o seu efeito útil».
De resto, refira-se, tal entendimento não é negado pela Requerente, que, no requerimento a que se aludiu no ponto 1.7., se limita defender a utilidade da lide quanto às providências requeridas no ponto I e IV.
Vejamos, então, se quanto a estas a instância mantém utilidade.
Sob o ponto I do petitório, pretende a Requerente: «I – A condenação das requeridas no reconhecimento da ineficácia da solicitação do pagamento do valor corporizado na garantia bancária reproduzida sob doc. n.º 2».
A Requerente, considera que, quanto a este primeiro pedido, a instância mantém interesse porque «o primeiro pedido implica o reconhecimento de ambas as requeridas da ineficácia da solicitação de pagamento – o que tem efeitos jurídicos para qualquer uma das requeridas imediato, independentemente de actos de pagamento, e que pode ser decidido em recurso».
Não tem, contudo, razão.
É que o entendimento da Requerente assenta no pressuposto - errado - de que, sob o ponto I, é requerida uma verdadeira providência «conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado», isto é, uma medida provisória destinada a acautelar prejuízos irreparáveis ou de difícil reparação.
Sucede que, na verdade, sob o referido ponto I, a Requerente limita-se a transpor para o petitório o pressuposto ou a causa justificativa das medidas inibitórias que requerer sob os pontos II e III: reconhecer a “ineficácia da solicitação do pagamento” do valor garantido não constitui uma medida cautelar no sentido mencionado, pois que tal reconhecimento não visa, por si só, acautelar  o efeito útil da decisão (este seria alcançado pelas medidas requerida sob os pontos II e III), antes sendo o mero pressuposto da requerida suspensão de pagamento e/ou ordem de não pagamento.
Ora, como se viu supra, o evento que se traduzia na invocada lesão grave e dificilmente reparável do direito acabou por se verificar (pagamento da garantia), o que esvazia de conteúdo a finalidade preconizada pela Requerente com o pedido deduzido no ponto I.
De que serve condenar as requeridas no reconhecimento da ineficácia da solicitação do pagamento (como peticiona a Requerente), se esse pagamento já ocorreu e se era este pagamento que constituía o dano que a Requerente pretendia prevenir? Tal “condenação” não teria qualquer efeito prático, em face do “periculum in mora” invocado e que constitui o fundamento da providencia, pelo que qualquer decisão nesse sentido (ainda que provisória) seria meramente “platónica”.
O alegado interesse da Recorrente na apreciação da “ineficácia da solicitação do pagamento” não se alcança através da presente providência cautelar, que visa evitar uma lesão grave do direito, mas, quanto muito, através da acção definitiva a instaurar, onde se discutirá se o accionamento da garantia  e o seu pagamento foram fundados, válidos ou eficazes.
Enfim, a necessidade da tutela através da suposta providência requerida no ponto I do petitório já não se justifica, em face do pagamento concretizado, pelo que a decisão a proferir no procedimento cautelar, necessariamente provisória, não teria qualquer efeito útil.
Por outras palavras, tendo a garantia sido satisfeita, deixou, pois, de interessar a apreciação da ineficácia da solicitação e, por conseguinte, a continuação da lide nessa parte.
Não podemos olvidar que a inutilidade superveniente da lide, como causa de extinção da instância, constitui uma emanação da proibição da prática de actos inúteis que, por sua vez, está relacionada com o princípio da economia processual. É proibida a prática de actos que, não tendo utilidade para a realização da função processual, o único efeito que teriam seria o de complicar o processo, impedindo-o de rapidamente atingir o seu termo.
Veja-se, neste sentido, por exemplo, o acórdão da RG de 16.11.2017, in ww.dgsi.pt, onde se escreveu que «II- Emanação da proibição da prática de actos inúteis que, por sua vez, está relacionada com o princípio da economia processual, a inutilidade superveniente visa obstar a prática de actos absolutamente inúteis, ou seja, sem qualquer utilidade processual».
Ora, resulta com linear evidência que, a partir do momento em que a garantia foi satisfeita, tornou-se inútil apreciar se o pedido de pagamento era ou não eficaz e se devia ou não ser paralisado.
A instância tornou-se, pois, inútil, também no que concerne ao ponto I do petitório, em virtude do pagamento, o que se impõe declarar.
Já quanto à providência requerida sob o ponto IV, cremos não poder extrair-se idêntica conclusão.
É que, aqui a Requerente pretende, subsidiariamente, que «seja decretada a proibição de exercício de direito de regresso por parte da requerida C sobre a requerente por prestação da garantia executada em abuso de direito ou face à ineficácia da prestação da mesma, considerada a ilicitude de tal solicitação».
Defende a Requerente que a Requerida C não lhe exigiu, ainda, o pagamento da quantia que pagou à B, pelo que a lide mantém interesse nesta parte, porquanto ainda poderá a Requerente não sofrer o prejuízo que ainda não sofreu e que é o de pagar à C a garantia indevidamente paga à B.
Sendo o pedido formulado, precisamente, para o caso de se verificar o evento danoso (o pagamento da garantia), não se pode entender que a ocorrência dele tornou, supervenientemente, inútil a lide.
A improcedência deste pedido decorrerá de outros factores, como se verá infra, mas não por o efeito jurídico que com ele se pretendia obter se ter tornado inútil.
E, assim sendo, importará, apenas, prosseguir na apreciação do mérito do recurso quanto a este pedido (ponto IV).
Aqui chegados, concluímos que a instância se tornou, supervenientemente, inútil no que concerne às providências requeridas sob os pontos I, II e II do petitório, o que determina a sua extinção (art.º 277.º al. e) do CPC), ficando, por decorrência, prejudicado o conhecimento do mérito do recurso interposto pela Recorrente.
Como é consabido, a instância de recurso ou a lide recursória pode extinguir-se por inutilidade quando, por facto ocorrido na sua pendência, desapareceu o objecto do recurso, delimitado pelas respectivas conclusões, caso em que não existe qualquer efeito útil na decisão a proferir por já não ser possível o fim visado ou este ter sido atingido por outro meio.
É o que ocorre no caso dos autos, quanto aos pontos I, II e III, conclusão que retira fundamento à imputada litigância de má-fé da Requerida B (cfr. art. 9.º do requerimento apresentado pela Requerente em 03.05.2023).
4.2. Passemos, agora, à impugnação da matéria de facto.
Como é consabido, o regime processual vigente restringe a possibilidade de revisão da matéria de facto a questões de facto controvertidas, relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente, admitindo-se, apenas, a reapreciação de concretos meios probatórios relativos a determinados pontos de facto impugnados.
Rejeitaram-se, desta forma, quer soluções maximalistas que determinam a repetição de julgamentos ou a reapreciação de todos os meios de prova anteriormente produzidos, quer a possibilidade de recursos genéricos contra a decisão de facto (cfr. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Almedina, Coimbra, 7.ª ed., 2022, p. 194 e segs.).
Com efeito, de acordo com o disposto no art.º 640.º do CPC, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões) e, fundando-se a impugnação em meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados, especificar, na motivação, aqueles que, em seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos, devendo, ainda, consignar, na motivação do recurso, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos (cfr. Ob. Cit., p. 197 e 198).
No caso dos autos, o recorrente cumpriu, suficientemente, o ónus de impugnação previsto no art.º 640.º do CPC, nada obstando à reapreciação da matéria de facto impugnada.
Sucede que a apreciação da impugnação da matéria de facto não subsiste por si, assumindo um carácter instrumental face à decisão de mérito do pleito. Por isso, só se justifica nos casos em que da modificação da decisão possa resultar algum efeito útil relativamente à resolução do litígio no sentido propugnado pelo recorrente. Quando a modificação pretendida não interfere no resultado declarado pela 1.ª instância é dispensável essa reapreciação (cfr., neste sentido, os acórdãos do STJ de 23.01.2020 e 28.01.2020, in www.dgsi.pt).
Deste modo, por força dos princípios da utilidade, economia e celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto quando o(s) facto(s) concreto(s) objecto da impugnação for(em) insusceptível(veis) de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente (cfr., neste sentido, o acórdão da RC de 27.05.2014, in www.dgsi.pt, onde e escreveu que “se, por qualquer motivo, o facto a que se dirige aquela impugnação for irrelevante para a solução da questão de direito e para a decisão a proferir, então torna-se inútil a actividade de reapreciar o julgamento da matéria de facto, pois, nesse caso, mesmo que, em conformidade com a pretensão do recorrente, se modifique o juízo anteriormente formulado, sempre o facto que agora se considerou provado ou não provado continua a ser juridicamente destituído de qualquer eficácia, por não interferir com a solução de direito encontrada e com a decisão tomada”).
No caso dos autos, como se demonstrará de seguida, mostra-se inútil a reapreciação de facto, por os factos que a Recorrente pretende ver provados serem insusceptíveis de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, conduzirem ao decretamento da última “providência” requerida.
4.3. Analisemos, então, se no caso dos autos estão ou não reunidos os pressupostos para o decretamento da providência requerida em termos subsidiários, ainda que fosse concedido integral provimento ao recurso relativo à decisão de facto.
Tal questão colocou-se, de igual forma, no âmbito do já mencionado Proc. n.º 2810/22.9T8CSC.L1, tendo sido decidida em sentido negativo pelo acórdão desta Relação de 25.05.2023, relatado pelo ora relator.
Aqui, também, não se descortinam razões para adoptar entendimento diverso.
Vejamos.
Peticiona a Requerente que «seja decretada a proibição de exercício de direito de regresso por parte da requerida C sobre a requerente por prestação da garantia executada em abuso de direito ou face à ineficácia da prestação da mesma, considerada a ilicitude de tal solicitação».
Trata-se de uma “providência” requerida ao abrigo do disposto nos art.ºs 362.º e segs. do CPC, sendo que constituem pressupostos essenciais ao decretamento de providências cautelares não especificadas:
a) a titularidade de um direito ou de um interesse legalmente protegido, bastando, para tanto, que, sumariamente, se conclua pela séria probabilidade da existência desse direito ou interesse invocados ("fumus bonis iuris");
b) o fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável do direito próprio, que é manifestação de um pressuposto comum a qualquer providência cautelar e que consiste no justificado receio de que a natural demora na resolução definitiva do litígio cause prejuízo irreparável ou de difícil reparação ("periculum in mora").
A tais requisitos acresce, obviamente, o pressuposto da instrumentalidade ou dependência da providência cautelar relativamente a uma acção já instaurada ou a instaurar, na medida em que a mesma visa acautelar ou antecipar provisoriamente o efeito útil da providência definitiva, na pressuposição de a composição definitiva do litígio (a proferir na acção principal) vir a ser favorável ao A.

Estando em causa requisitos essenciais ao decretamento da providência peticionada, conclui-se que os mesmos integram a respectiva causa de pedir, devendo o Requerente alegar matéria de facto susceptível de demonstrar o invocado direito e o fundado receio, sob pena de improcedência.
Ora, no caso que nos ocupa, não é, desde logo, perceptível o direito que a Requerente pretende acautelar com a providência requerida sob o ponto IV.
A este propósito, escreveu-se na decisão recorrida que a «(…) última providência requerida, não só extrapola toda a matéria factual traduzida aos autos como causa de pedir, e que por tal não foi sobejamente debatida, em termos amplos e profícuos (porquanto factos bastantes não ajuizados em moldes que pudessem substanciar a pretensão) como o âmbito, termos e efeitos dos pedidos (que sublinhe-se, improcederam) na relação de cobertura e toda a prova carreada não permite que se ajuíze pela verificação do primeiro dos pressupostos de decretamento de providência como a solicitada, já que fummus boni juris não foi ajuizado reportando-se ao primeiro dos pedidos que, com este último, se correlaciona indissociavelmente».
Com efeito, pretende a Requerente que se proíba o exercício do direito de regresso de que é titular a Recorrida C, decorrente do facto de ter pago à Requerida B a quantia reclamada no âmbito da garantia bancária prestada.
O direito de regresso é um direito de crédito (direito de exigir de outrem a realização de uma prestação), de que é titular o devedor que, no cumprimento de uma obrigação solidária, satisfez, total ou parcialmente, o direito do credor, mas, em qualquer caso, para além da parte que lhe competia e que lhe confere o poder de exigir de cada um dos respetivos condevedores a parte da dívida que lhes compete pagar.
A Requerente quer, precisamente, impedir o exercício desse direito (o que, diga-se, parece pressupor o reconhecimento, por parte da Requerente, de que a Requerida C é, efectivamente, titular do mesmo).
Sucede que, salvo melhor opinião, a Requerente não possui qualquer direito que lhe permita paralisar o direito de acção constitucionalmente consagrado de qualquer pessoa (singular ou colectiva) – art.º 20.º da CRP.
É certo que, ao lado desse direito de acção, existe o direito de defesa da Requerente, mas este pode e deve ser exercido em face do exercício efectivo do referido direito de acção da Requerida e pelas formas legalmente tipificadas.
No limite, a Requerente pretende que se impeça a Requerida de instaurar uma acção tendente a efectivar um pretenso direito de regresso, por considerar que esse direito não lhe assiste. Mas, a Requerente não pode impedir que a Requerida lhe instaure uma qualquer acção judicial; pode é, na acção que vier a ser instaurada, demonstrar que a Requerida não tem o direito de que se arroga.
Seja como for, ainda que se entendesse (quer em face da factualidade provada pelo tribunal a quo, quer da que viesse a provar-se neste recurso) que a Recorrente é titular do direito que invoca (fumus bonis iuris), numa perspectiva de instrumentalidade hipotética, isto é, de a composição final e definitiva do litígio vir a ser-lhe favorável e se concluir que nada deve à 1.ª Requerida, sempre estaria por demonstrar o segundo pressuposto enunciado: periculum in mora.
Como se sabe, o receio que legitima o recurso ao procedimento cautelar comum tem que ser fundado, isto é, apoiado em factos que permitam, com objectividade e distanciamento, afirmar a seriedade e actualidade da ameaça e a necessidade de serem adoptar medidas tendentes a evitar os prejuízos.
Desta forma, o conteúdo de uma providência cautelar é determinado pela natureza do periculum in mora, ou seja, é a natureza do perigo em causa, em cada situação concreta, que irá determinar qual a providência adequada a afastá-lo.
No caso vertente, resulta à evidência que não será o mero exercício do direito de regresso por parte da Requerida C (que, de resto, a Requerente desconhece se e quando ocorrerá, baseando esse receio em meras hipóteses e conjecturas abstractas, decorrentes da faculdade legal de exercício desse direito, mas sem concretização de que o mesmo esteja iminente ou seja sério e firme) que colocará a Requerente na alegada situação de insolvência e impossibilidade de obtenção de crédito (com as consequências que refere para os seus sócios e trabalhadores e para o grupo empresarial onde se insere e com prejuízos para o próprio fornecimento de combustível nas autoestrada). Tais consequências só se verificariam, quanto muito, se a Requerente, uma vez exercido o direito de regresso, decidisse pagar à C o montante por esta reclamado, o que a mesma só fará se quiser, já que considera que nada lhe é devido, por a solicitação a pagamento ser ineficaz e a Requerida C nada devesse ter pago.
E, sendo assim, não é a pretendida a proibição de exercício do direito de regresso que constitui a providência adequada a evitar a alegada lesão grave e dificilmente reparável do direito da Requerente, posto que essa lesão se evita desde que a Requerente não satisfaça a exigência daquela Requerida, pelo menos, até a convencer de que nada lhe deve na acção/execução que esta lhe venha a instaurar com aquela finalidade ou na acção de simples apreciação negativa que, por sua iniciativa, decida intentar-lhe.
Na verdade, sob o ponto IV do petitório a Requerente não deduz uma providência «conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado», isto é, uma medida provisória destinada a acautelar prejuízos irreparáveis ou de difícil reparação. O que a Requerente, verdadeiramente, pretende é que se reconheça, já em sede de procedimento cautelar, que a Requerida C procedeu ao pagamento da garantia bancária em causa fora das condições acordadas com a Requerente (e é por isso que considera tal pagamento ineficaz perante si, por se traduzir na execução de mandato sem poderes para o efeito em violação do acordado – cfr. art.º 1161, al. a) CC) e que, por isso, não tem sobre si qualquer direito de regresso.
Sucede que tal questão deve ser discutida na acção definitiva, de que o presente procedimento cautelar é preliminar.
Com efeito, o procedimento cautelar visa a tutela provisória de um direito ameaçado, através da adopção de medidas adequadas a evitar o risco do perecimento desse direito, decorrente da demora no processamento da acção principal.
           
Tal como escreve Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, I, 3.ª ed., p. 623 e segs. «a providência cautelar não se propõe dar realização directa e imediata ao direito substantivo, mas tomar medidas que assegurem a eficácia duma providência subsequente, esta destinada à actuação do direito material», sendo que «a providência cautelar é posta ao serviço de uma outra providência, sendo que esta é que há-de definir, em termos definitivos, a relação jurídica litigiosa».
Também Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma do Processo Civil, III, considera que «dada a natureza instrumental do procedimento cautelar e a sua dependência do resultado a alcançar através da acção principal, é óbvio que o efeito definitivo derivado do exercício do direito potestativo não pode ser obtido imediatamente através do procedimento cautelar» (p. 77), defendendo que as providências cautelares «(…) não podem ter o mesmo objecto que a providência definitiva, ou seja, não pode alcançar-se, por via de um procedimento cautelar, um efeito constitutivo, modificativo ou extintivo que esteja precisamente dependente da sentença a proferir na acção principal. Nos procedimentos cautelares cabem apenas as medidas que visem dar utilidade ou eficácia ao conteúdo da sentença» (p. 124).
Marco Carvalho Gonçalves, in Providências Cautelares, 2.ª edição, Almedina, 2016, a propósito da instrumentalidade das providências cautelares, aponta dois limites de fundo que lhes são impostos: por um lado, o facto de não se poder obter através do procedimento cautelar mais do que aquilo que se poderia obter através da acção principal; e, por outro lado, o facto de o tribunal não poder decretar providências cautelares cujos efeitos se tornem irreversíveis, esvaziando o conteúdo da acção principal.
Como se vê, a tutela concedida pela providência cautelar é, necessariamente, diversa da que é obtida na acção principal (ainda que a medida concreta requerida possa, nalguns casos, coincidir com a peticionada na acção definitiva), procurando-se na primeira, através de uma composição provisória de interesses, acautelar a sobrevivência de um direito até à decisão final, a obter na acção definitiva, da situação controvertida.
Desta forma, não é viável nem admissível, por contrariar a finalidade própria das providências cautelares, a instauração de um procedimento cautelar com o qual se pretende obter uma decisão definitiva do litígio própria de uma acção comum e não só uma medida instrumental, provisória e reversível (vide neste sentido, acórdãos da RC de 28.06.2005 e da RL, de 19.04.2007, ambos in www.dgsi.pt).
No caso vertente, o pedido não visa, apenas, dar utilidade ou eficácia à decisão a proferir na acção principal, antes alcançando um efeito que é, precisamente, aquele que se pretende na acção principal e que satisfaz, completa e definitivamente, o alegado direito da Requerente, pretendendo esta dirimir, em sede de procedimento cautelar, o litígio que a opõe à 1.ª Requerida, regulando definitivamente as respectivas relações jurídico-substantivas.
Saliente-se que nenhuma das partes requereu a antecipação do conhecimento do pedido principal, ao abrigo do n.º 1 do art.º 369.º do CPC (veja-se, por exemplo, o acórdão da RG de 17.12.2020, onde se decidiu que «I - Exceto se for decretada a inversão do contencioso (art.º 369º do CPC), os procedimentos cautelares estão na dependência de uma ação (declarativa ou executiva), em que o autor pretende fazer valer o seu direito ou interesse tutelado (art.º 364º do CPC). II- O carácter instrumental do procedimento cautelar (face à ação principal de que depende) significa que este é um instrumento ao serviço da ação judicial a que se encontra associado, com o propósito de garantir a utilidade da respetiva decisão»).
E nem se diga que a concreta providência requerida é, meramente, antecipatória dos efeitos da decisão definitiva a obter na acção própria, pois que a mesma não se limita a antecipar ou assegurar os efeitos da decisão a proferir na acção principal e evitar a ocorrência de prejuízos e lesões que afectem o direito, mas sim a obter esses efeitos imediatamente.
Joana castanheira, in As Providência Cautelares e os Requisitos para o seu Decretamento, dissertação de mestrado, Coimbra, 2018, p. 65 e segs., disponível em https://estudogeral.uc.pt, relembra que «apesar de actualmente as providências cautelares antecipatórias estarem expressamente previstas, tanto na legislação civil, como na administrativa, a sua admissibilidade foi objecto de alguma controvérsia, desde logo pelo facto de as medidas antecipatórias proporcionarem a imediata satisfação do direito alegado pelo requerente, através de uma decisão de conteúdo idêntico à decisão de um processo principal, quando o conhecimento se baseia, como já referimos, numa summaria cognitio e se trata de um processo urgente e célere, não apresentando garantias de segurança jurídica como os processos principais. Controvérsia esta que também teve fundamento no risco de causarem efeitos irreversíveis na esfera do requerido e, consequentemente, da existência de decisões injustas. Não raras vezes o decretamento de providências antecipatórias dá origem a efeitos que são insusceptíveis de remoção mediante a repristinação da situação, de forma a colocar o requerido na posição em que se encontrava antes de ter sido decretada a providência. Outras vezes, apesar de serem susceptíveis de reversão mediante a fixação de uma indemnização, o sistema jurídico, devido aos exigentes requisitos de que faz depender o dever de o requerente indemnizar, acaba por afastar essa possibilidade. Não obstante existir uma forma de extinção dos efeitos da providência, nomeadamente através da sua caducidade, acontece que a situação de facto por ela criada se torna irreversível e definitiva, equivalendo à decisão final no plano dos factos. Todos estes factores levaram a que a doutrina e jurisprudência não tenham admitido a sua existência sem mais, exigindo do juiz cautelar acrescida prudência e cuidado no seu decretamento, devendo ponderar a necessidade efectiva de decretamento de uma providência antecipatória, atribuindo às providências antecipatórias um carácter excepcional. Desta forma, as providências cautelares antecipatórias deverão ser medidas de ultima ratio, devendo o juiz cautelar dar preferência às medidas de carácter conservatório, sempre que tais medidas tutelem adequadamente o direito invocado pelo requerente e acautelem o perigo ao qual o direito se encontra sujeito. Tudo isto tendo em consideração o princípio de mínima ingerência na esfera jurídica do requerido. António Abrantes Geraldes conclui que as medidas deste tipo excedem a natureza simplesmente cautelar ou de garantia que caracterizam a generalidade das providências, ficando a um passo das que são inseridas em processo de execução para pagamento de quantia certa, entrega de coisa certa ou prestação de facto positivo ou negativo».
Importa relembrar que não é qualquer consequência que previsivelmente ocorra (antes da decisão definitiva), que pode justificar o decretamento de uma medida provisória, com reflexos imediatos na esfera jurídica de; só lesões graves e dificilmente reparáveis têm essa virtualidade.
Conforme salienta Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, III, p.84, «o interesse em agir, que constitui na generalidade das acções judiciais um pressuposto processual autónomo, atinge aqui uma específica relevância, de modo a evitar abusos na utilização desta forma de composição provisória de conflitos de interesses (...) O Juiz deve convencer-se da seriedade da situação invocada pelo requerente e da carência de uma forma de tutela que permita pô-lo a salvo de lesões graves e dificilmente reparáveis». Por isso, continua o autor citado, «determina a lei que o receio deve ser fundado, ou seja, apoiado em factos que permitam afirmar, com objectividade e distanciamento, a seriedade e actualidade da ameaça e a necessidade de serem adoptadas as medidas tendentes a evitar o prejuízo».
Finalmente, a recorrente carece de razão quando defende, sob as conclusões 54.º a 57.º do CPC), que, do facto de a Requerida C não ter contestado e não ter debatido a questão do exercício do direito de regresso, resultam os efeitos cominatórios do art.º 574.º do CPC. É que a recorrente parece esquecer-se que a defesa apresentada pela Requerida B, nomeadamente, a impugnação fáctica deduzida por esta, aproveita à Requerida C (art.º 568.º al. a) do CPC), são se operando os efeitos cominatórios pela mesma propugnados.
Em face do que vai de ser dito, impõe-se, pois, concluir que a Requerente não demonstrou (nem demonstraria caso a impugnação da decisão de facto que deduziu obtivesse provimento) os requisitos supra apontados, essenciais ao decretamento da providência.
Destarte, improcedem todas as conclusões da recorrente quanto ao ponto IV do petitório, não merecendo a decisão recorrida qualquer censura nesta parte.
4.4. As custas da acção e do recurso serão suportadas pela Requerente e pela 1.ª Requerida C em parte iguais, na medida em que, não obstante a cumulação de providências peticionadas, foi atribuído um valor único ao procedimento cautelar (determinado, naturalmente, pela coincidente utilidade económica dos quatro pedidos), sendo que:
- quanto aos pedidos I, II e III, a extinção da instância por inutilidade da lide decorreu de acto da 1.ª Requerida, que optou por dar pagamento à garantia em causa, sem aguardar pelo trânsito em julgado da decisão da primeira instância (art.º 536.º, n.ºs 3 e 4 do CPC, ex vi dos art.ºs 607.º, n.º 6, e 663.º, n.º 2, todos do CPC);
- quanto ao pedido IV, a Requerente ficou vencida na acção e no recurso (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC)».
V – DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, os juízes deste Relação acordam:
a) quanto aos pontos I, II e III do petitório, em declarar extinta a instância e, por conseguinte, prejudicada a apreciação do mérito do recurso interposto pela Requerente, por inutilidade superveniente da lide, em virtude do pagamento da garantia bancária n.º …, ocorrido em 04.04.2023;
b) no mais (ponto IV do petitório), em julgar a apelação totalmente improcedente, mantendo-se, em consequência, a decisão da 1.ª instância recorrida.
Custas pela apelante e pela apelada 1.ª Requerida em partes iguais.
Notifique.
 *
Lisboa, 13.07.2023
Rui Manuel Pinheiro de Oliveira
Cristina da Conceição Pires Lourenço
Luís Correia de Mendonça (vencido)

Voto de Vencido:
Fiquei vencido por duas razões.
Em primeiro lugar, não declararia extinta a instância, ou seja, a relação processual constituída, figura hoje dogmaticamente ultrapassada, sendo que o processo, no caso sujeito, irá prosseguir. Porém, estou de acordo que a inutilidade existe tal como foi considerada.
Por outro lado, apreciaria o pedido de alteração da decisão de facto, sendo que, a tese seguida neste acórdão, se traduz na aplicação do princípio da razão mais líquida, muito utilizado na Itália, mas que o artigo 668.º CPC ainda não contempla. Digo ainda, porquanto o legislador o terá querido concretizar na Proposta de Lei n.º 92/IV/2.ª ((cfr. redacção dada ao novo n.º 3 daquele artigo), proposta essa que, como é consabido, caducou com a queda do XXII Governo Constitucional.
Luís Correia de Mendonça