Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | MARIA DE FÁTIMA R. MARQUES BESSA | ||
Descritores: | INSTRUÇÃO OMISSÃO DE DILIGÊNCIAS ESSENCIAIS NULIDADE SANÁVEL DECISÃO INSTRUTÓRIA DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO INDÍCIOS SUFICIENTES | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 05/22/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NÃO PROVIDO | ||
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Sumário: | I. A instrução tem natureza facultativa cuja finalidade é a de comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (art.º 286.º do Código de Processo penal (CPP)). II. Por força do disposto no n.º 1 do art.º 289.º do CPP, que se refere ao conteúdo da instrução, esta é formada pelo conjunto dos actos de instrução que o juiz entenda dever levar a cabo e, obrigatoriamente, por um debate instrutório, oral e contraditório, no qual podem participar o Ministério Público, o arguido, o defensor, o assistente e o seu advogado, mas não as partes civis. III. Da interpretação da norma transcrita, é o juiz de instrução que, analisados os elementos probatórios recolhidos, decide quais os meios de prova que necessitam de ser levados a cabo e que o não foram ou que se impõe repetir, como de forma expressa estatui o art.º 291.º, n.º 1, tratando-se de decisão irrecorrível, como igualmente de forma expressa e imperativa estabelece o n.º 2 do art.º 291.º, do CPP, dela cabendo apenas reclamação. IV. A nulidade prevista no art.º 120.º, n.º 2, al. d), do CPP, a qual dispõe que constitui nulidade dependente de arguição a omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade, é uma nulidade dependente de arguição, nos prazos e termos previstos no art.º 120º, n.º 3 do CPP, sob pena de sanação. V. A decisão instrutória é um acto decisório, que assume a forma de despacho prevista no n.º 1, al. b), do artigo 97º do CPP e não de mero expediente, estando, portanto, sujeita ao dever geral de fundamentação previsto no n.º 5 desse preceito, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão, em conformidade com o imposto pelo art.º 205º da CRP. VI. A decisão instrutória tem os seus próprios requisitos, decalcados da acusação, conforme decorre do art.º 283.º, n.ºs 2 a 4, ex vi do art.º 308.º, do CPP, definindo o objeto do processo, em caso de pronúncia, sendo essencial para que o arguido exerça o seu direito à defesa. VII. A doutrina e a jurisprudência salientam a diversidade de grau da fundamentação exigida para os diferentes actos decisórios, desde aquele específico das sentenças e acórdãos estabelecido nos artigos 374º e 375º do CPP, sob pena de nulidade, nos termos do artigo 379º, n.º 1, al. a), do mesmo diploma legal, ao dos meros despachos, como o é, a decisão instrutória, destacando ainda a sua inevitável diferença em função do maior ou menor poder de concisão e clareza discursiva do juiz e do concreto objecto das decisões e dos efeitos da falta ou insuficiência da devida fundamentação. VIII. Decorre dos artigos 307º e 308º do CPP que a fundamentação da decisão instrutória se integra no leque dos actos decisórios de fundamentação mais simplificada, sem dispensar aquele mínimo exigível para garantir o respeito pelos pertinentes princípios constitucionais e as finalidades que a demandam e justificam, como sejam as de transparência e legitimação do poder judicial/jurisdicional e do escrutínio interno e externo do seu exercício, sob pena de irregularidade sujeita ao regime de arguição e sanação previsto no artigo 123º do CPP, salvo no caso das nulidades cominadas no art.º 309º, do CPP. IX. Para alargar o campo factual de investigação a factos ocorridos após a decisão de arquivamento e a factos diferentes daqueles que haviam motivado a queixa inicial apresentada e sobre a qual o inquérito se debruçou teriam os assistentes que ter requerido a reabertura do inquérito e não apenas alegá-la no requerimento de abertura de Instrução (RAI). X. Na instrução pretende-se apurar a existência de indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ou medida de segurança (art.º 308.º, n.º 1, do CPP). XI. Os indícios serão suficientes sempre que, por via deles, o Juiz de instrução chegue a um juízo de prognose em que a condenação do arguido é mais provável (probabilidade dominante/elevada) do que a absolvição, e que em julgamento será ultrapassada a barreira do in dubio pro reo. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores na 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa: I – RELATÓRIO 1. Pelo Juiz de Instrução Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, ...– Juízo de Instrução Criminal - Juiz 1 foi proferido, em 05/11/2024, despacho de não pronúncia, da arguida, AA, devidamente identificada nos autos. 2. Inconformados com esta decisão, vieram os Assistentes BB e CC, em 19/12/2024, interpor recurso, terminando a motivação com as seguintes conclusões (transcrição): I. Em conformidade com o artigo 205.º da CRP e os artigos 97.º, n.º 5, e 283.º, n.º 3, do CPP, o dever de fundamentação é indispensável para a transparência, imparcialidade e acesso efetivo à justiça, mas tal não foi plenamente observado na decisão instrutória recorrida. II. No caso em apreço, não obstante ter o Tribunal a quo tomado posição sobre todos os 33 factos constantes do Requerimento para Abertura de Instrução, carece de fundamentação adequada, especialmente na valoração crítica das provas, comprometendo a análise lógica entre os elementos probatórios apresentados e a decisão tomada. III. Foi omitida a apreciação de indícios importantes relacionados com os fatos descritos no Requerimento para Abertura de Instrução (RAI), afetando negativamente o contraditório dos Recorrentes. IV. A ausência de apreciação explícita de vários factos e provas viola o princípio da imparcialidade, limitando o exercício pleno do direito ao contraditório por parte dos Recorrentes. V. Pelo que, o Douto despacho padece assim de nulidade por omissão de fundamentação e enumeração/especificação clara sobre a existência de indícios ou falta deles quanto à prática pela arguida dos factos descritos no Requerimento para Abertura de Instrução padece de nulidade para os efeitos do disposto nos artigos 283.º, n.º 3, ex vi 308.º, n.º 2, 97.º n.º 5, 118.º n.º 1, 120.º n.º 1 todos do CPP VI. Por outro lado, pela omissão de diligências essenciais durante o inquérito e instrução, como a inquirição de testemunhas cruciais, propostas pelos Assistentes, leva, salvo melhor entendimento, a uma insuficiência do inquérito e da instrução. Entre tais diligências, desacata-se a identificação de pelo menos 3 (três) testemunhas relevantes que, no nosso entender, deveriam ser ouvidas. VII. A testemunha DD foi mencionada no Aditamento n.º 1 como tendo presenciado o dia dos factos, sendo, por conseguinte, uma testemunha direta e relevante e, apesar disso, nunca foi intimado a prestar declarações nos autos. VIII. A testemunha EE foi referida pelo Assistente BB, conforme consta no auto de inquirição (fls. 46 e 47), como coarrendatário da habitação, tendo vivenciado o desaparecimento de vários itens do local, que, ainda assim, não foi intimado a prestar declarações. IX. A testemunha FF foi mencionada pelo Assistente CC, conforme consta no auto de inquirição (fls. 41 e 42), indicando-a como pessoa que presenciou a ... a entrar na habitação dos Assistentes em momentos em que estes se encontravam ausentes. No entanto, também esta testemunha nunca foi intimada a prestar declarações. X. O princípio da investigação e o apuramento da verdade material em face ao facto de não se mostrar o requerimento de prova quanto à prova e respetivo meio legalmente inadmissíveis, nem preenchendo este os fins a que aludem as alíneas do n.º4 do art.º 340.º do CPP impunha-se pela necessidade de se proceder à produção de prova, e pelas exigências de prossecução da verdade material que enformam o nosso direito processual penal, a proceder sua admissão com vista à boa decisão da causa. Contudo, XI. O indeferimento injustificado pelo Tribunal a quo quanto às diligências probatórias requeridas pelos Assistentes constitui uma manifesta violação da prossecução da verdade material e do exercício pleno do seu direito ao contraditório. Assim, XII. O indeferimento de diligências probatórias relevantes demonstra insuficiência tanto no inquérito quanto na instrução, resultando em nulidade processual nos termos do artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do CPP. A mais, XIII. Não obstante, pelas razões acima elencadas não seja possível aos Recorrentes concretizarem que prova e ou porque fundamento se baseou Tribunal a quo para formar a sua convicção porquanto a mesma reduz-se à afirmação lineares, conclusivas e incorretas. XIV. Afigura-se que o Tribunal a quo incorreu em manifesto erro na apreciação/valoração da prova e bem assim na subsunção da matéria factual indiciada ao tipo legal em causa. Porquanto, XV. A prova testemunhal e documental recolhida no inquérito já indiciava, claramente, que o e a Arguida adotou comportamentos subsumíveis nos crimes que lhe são imputados no RAI. XVI. Considerando os elementos probatórios e os indícios suficientes apresentados, a decisão de não pronúncia da Arguida deve ser reformada para assegurar o devido processo legal e a descoberta da verdade material. XVII. A manutenção da decisão recorrida configurará grave afronta aos princípios constitucionais e legais que regem o processo penal, impondo-se a sua reforma para assegurar a tutela efetiva dos direitos dos Assistentes. XVIII. Sem mencionar que o sucessivo desvalor da conduta da Arguida, o que aliás é perpetuado pelo arquivamento dos presentes autos, e posterior despacho de não pronúncia, tem feito com que esta adquiria um sentimento de impunidade, o que se traduz, em factos objetivos, nomeadamente, na prática de novos crimes por parte da Arguida, os quais foram oportunamente comunicados ao Tribunal. V. DO PEDIDO Nestes termos, e demais de Direito que V. Exas. Venerandos Juízes Desembargadores doutamente suprirão, requer-se que seja dado provimento ao presente recurso, em consequência, sejam declaradas as nulidades arguidas, determinando-se a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por despacho de pronúncia nos termos da antecedente motivação e seja a Arguida pronunciada pela prática de (i) um crime de violação de domicílio ou perturbação da vida privada p.p. pelo artigo 190.º n.º 1; (ii) um crime de perseguição p.p. pelo artigo 154.º-A n.º1; (iii) um crime de injúria, p. e p. pelos arts. 181.º n.º 1; e (iv) um crime de discriminação e 240º, n.º 2, al. b) todos do Código Penal. 3. O recurso foi admitido por despacho proferido em 09/01/2025, com o seguinte teor. Porque tempestivo, interposto por quem para tal tem a necessária legitimidade e ser admissível, admito o recurso interposto pelos assistentes da decisão final de não pronúncia, o qual tem subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo – art.º 407º, nº 2, al. i), do CPP. Notifique para efeitos do disposto no art.º 413º, nº 1, do CPP. 4. O Ministério Público apresentou, em 10/02/2025, resposta ao recurso, pugnando pela manutenção do decidido, apresentando as seguintes contra-alegações: (transcrição de parte relevante) III. a) NULIDADE POR FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO – ARTIGO 97.º, N.º 5 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL Estabelece o artigo 97.º, n.º 5, do Código de Processo Penal que ‘os atos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão’. Sendo que, ‘excetuando determinados atos em que a lei estabelece um “esqueleto” nos demais o n.º 5 apenas impõe que exista a especificação dos motivos da decisão. Relativamente à “forma de especificação” não se fixam regras rígidas, permitindo uma flexibilização e adequação às circunstâncias do caso em concreto. Em termos de estilo muito depende do seu autor, destarte o discurso argumentativo. O essencial é que seja clara, percetível, coerente, compatível, motivada e completa (…). A fundamentação bastante/adequada/necessária mais não é do que um corolário da diferenciação, em virtude de um processo específico, dos atos em causa proferidos nesse processo e dos próprios segmentos decisórios (v.g. onde não existe controvérsia ou situações em que basta uma simples alusão a um documento a especificação das razões deve ser breve e simplista), da gravidade da compressão de direitos que o ato em causa é passível de gerar, mas também da urgência e rapidez com que a decisão tem que ser proferida’ (in ‘Comentário Judiciário do Código de Processo Penal’ – Tomo I, 2.ª Edição). Ora, analisando a decisão ora posta em crise, afere-se que a mesma é clara, coerente e sintética na análise que faz dos elementos probatórios – ainda que proceda à enunciação dos mesmos porremessa para o despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público – esclarecendo que a origem do conflito entre assistentes e arguida tem por base um suposto contrato de arrendamento (junto a fls. 12) e qual o momento em que o mesmo cessou. E continua foram inquiridos os agora assistentes, conforme referidonodespacho de arquivamento, não tendo sido por eles referido quaisquer circunstâncias suscetíveis de integrar os crimes de injúria, discriminação ou perseguição. Todo o discurso encontrava-se centrado em redor do momento da cessação do contrato de arrendamento ou do acesso da senhoria ao imóvel para a realização de obras. Só após o proferimento da decisão de arquivamento vieram os assistentes introduzir uma factualidade completamente diversa daquela que havia motivado a queixa inicial apresentada e sobre a qual o inquérito se debruçou. Contudo, para alargar esse campo factual de investigação aberta, os assistentes não requereram a reabertura do inquérito’. Ora, claramente, a decisão pronunciou-se sobre o objeto visado nos presentes autos, o mesmo que foi visado pelo encerramento do inquérito, uma vez que a fase instrutória visa precisamente a comprovação judicial da decisão proferida, não podendo ir para além dela. E nisso a mesma foi muito clara, posição que já tinha aflorado no despacho proferido a 26 de setembro. de 2024. Assim, afere-se que a decisão ora proferida não padece da nulidade invocada, tendo a mesma se pronunciado quanto aos factos que se continham no objeto do processo, uma vez que apenas esses podiam ser analisados. Deve, consequentemente, improceder a nulidade invocada. b) NULIDADE DO ARTIGO 120.º, N.º 2, ALÍNEA D), DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL No recurso interposto – e apenas nesta sede – vêm os assistentes invocar a nulidade prevista no artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Penal, sem se alcançar se se visa a ‘insuficiência do inquérito’, a ‘insuficiência da instrução’ ou ambas as situações. Em todo o caso, independentemente da insuficiência invocada, entendemos não subsistir qualquer razão aos recorrentes, pelo que deve ser indeferida a nulidade arguida. * Nos termos do artigo 288.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, ‘a direção da instrução compete a um juiz de instrução, assistido pelos órgãos de polícia criminal’, sendo que é o mesmo que ‘pratica todos os atos necessários à realização das finalidades referidas no n.º 1 do artigo 286.º’ (artigo 290.º, n.º 1, do Código de Processo Penal) e ‘indefere os atos requeridos que entenda não interessarem à instrução ou servirem apenas para protelar o andamento do processo e pratica ou ordena oficiosamente aqueles que considerar úteis’ (artigo 291.º, n.º 1, § 2, do Código de Processo Penal). No requerimento de abertura de instrução os assistentes indicaram diversas testemunhas, cuja inquirição veio a ser indeferida. Perante a decisão que indeferiu a audição dos identificados, os assistentes reclamaram, a qual veio também a ser indeferida. Durante o debate instrutório nada foi invocado pelos assistentes. Estabelece o artigo 120.º, n.º 3, do Código de Processo Penal que ‘as nulidades referidas nos números anteriores devem ser arguidas: a) Tratando-se de nulidade de ato a que o interessado assiste, antes que o ato esteja terminado; b) Tratando-se da nulidade referida na alínea b) do número anterior, até cinco dias após a notificação do despacho que designar dia para a audiência; c) Tratando-se de nulidade respeitante ao inquérito ou à instrução, até ao encerramento do debate instrutório ou, não havendo lugar a instrução, até cinco dias após a notificação do despacho que tiver encerrado o inquérito; d) Logo no início da audiência nas formas de processo especiais’. Do que decorre que a nulidade invocada é sanável, quando não arguida em tempo. Ora, como resulta dos autos, os assistentes nada alegaram até ao encerramento do debate instrutório, o que lhes incumbia, como impõe a alínea c) do n.º 3, do artigo 120.º, do Código de Processo Penal, pelo que, qualquer nulidade existente – que entendemos não se verificar -, se sanou, uma vez que os assistentes, no devido tempo, não a arguiram. Deve, por isso, ser indeferida a invocada nulidade. c) IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO Num último aspeto, vêm os assistentes impugnar a decisão proferida, alegando que o tribunal incorreu em manifesto erro na apreciação/valoração da prova e bem assim na subsunção da matéria factual indiciada ao tipo legal em causa. Entendemos que, também quanto a este argumento, não subsiste razão aos assistentes e, como tal, a decisão proferida, por não ser merecedora de qualquer censura, deve ser integralmente mantida. Antes de mais, cumpre afirmar que os assistentes incorrem em erro. Os factos em análise não são os apresentados no requerimento de abertura de instrução, uma vez que esses vão muito para além do que constava nos autos e que foi visado pelo despacho de arquivamento, mas os extraídos da fase de inquérito. Efetivamente, o processo penal contém mecanismos, que não o do requerimento de abertura de instrução, com vista ao alargamento dos factos a apreciar e a investigar. Aliás, como bem refere a decisão instrutória, os factos que são descritos no referido requerimento tiveram lugar após a prolação do despacho de arquivamento. Em que momento é que podiam ter sido analisados? No despacho de arquivamento? Claramente que não, uma vez que ainda não tinham ocorrido. Na decisão instrutória? Também não, porque a mesma visa precisamente aferir da existência ou não de indícios suficientes relativamente aos factos apreciados no despacho de arquivamento. Os assistentes partem precisamente desta incorreta premissa: de que os factos constantes do requerimento de abertura de instrução podem ser totalmente analisados. A verdade é que não, porque muitos deles não integram o objeto dos autos. Assim, não deixará de improceder o argumento dos assistentes. Em face dos argumentos expostos, outra não podia ser a decisão do tribunal que não a de concluir no sentido da inexistência de indícios suficientes para pronunciar a arguida pelos crimes que lhe são imputados pelos assistentes. A decisão proferida não merece qualquer censura, mostrando-se a mesma acertada, devendo, por isso, ser confirmada integralmente. IV. Face ao exposto, consideramos que o Tribunal decidiu em estrita obediência à lei penal, e, consequentemente, deve ser negado provimento ao recurso interposto, mantendo-se a decisão proferida, na íntegra, a qual não oferece qualquer censura, nem se afere violadora de qualquer norma legal, só assim se fazendo a esperada e costumada 5. Uma vez remetido a este Tribunal, o Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta, em 10/03/2025, deu parecer no seguinte sentido: Parecer do Ministério Público Vista – art.º 416º, nº 1 do CPP I. Recurso próprio e tempestivo, sendo correcto o efeito e regime de subida que lhe está atribuído. II. O presente recurso vem interposto da decisão judicial do dia 6 de novembro de 2024, pela qual a arguida AA não foi pronunciada pelo crime de violação de domicílio ou perturbação da vida privada, previsto e punido pelo artigo 190.º, n.º 1, pelo crime de perseguição, previsto e punido pelo artigo 154.º-A, n.º 1, pelo crime de injúria, previsto e punido pelo artigo 181.º, n.º 1 e pelo crime de discriminação, previsto e punido pelo artigo 240.º, n.º 2, alínea b), todos do Código Penal. III. Nesta Instância, o Ministério Público acompanha nos seus precisos termos em que vem formulada, a resposta da Ex.ª Senhora Magistrada do Ministério Público junto da 1ª Instância à motivação do recurso interposto pelos Assistentes. IV. Assim, emite-se parecer no sentido de que seja julgado improcedente o presente recurso e, como consequência, confirmado a decisão proferida pelo Tribunal a quo. Mas a final, não obstante, melhor se dirá. * Cumprido o preceituado no n.º 2 do artigo 417.º do Código de Processo Penal, nada mais foi alegado. Colhidos os vistos legais e realizada a conferência a que alude o artigo 419.º do Código de Processo Penal, cumpre decidir. II. OBJECTO DO RECURSO Constitui jurisprudência e doutrina assente que o objecto do recurso, que circunscreve os poderes de cognição do tribunal de recurso, delimita-se pelas conclusões da motivação do recorrente (artigos 402.º, 403.º, 412.º e 417º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso do tribunal ad quem quanto a vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP1, os quais devem resultar directamente do texto desta, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, a nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito), ou quanto a nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP).2 Na Doutrina, por todos, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, Volume II, 5.ª Edição atualizada, pág. 590, “As conclusões do recorrente delimitam o âmbito do poder de cognição do tribunal de recurso. Nelas o recorrente condensa os motivos da sua discordância com a decisão recorrida e com elas o recorrente fixa o objecto da discussão no tribunal de recurso… A delimitação do âmbito do recurso pelo recorrente não prejudica o dever de o tribunal conhecer oficiosamente das nulidades insanáveis que afetem o recorrente… não prejudica o dever de o tribunal conhecer oficiosamente dos vícios do artigo 410.º, n.º 2 que afetem o recorrente…” Nos termos do 410.º, do CPP (Fundamentos do recurso) “1 - Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida. 2 - Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova. 3 - O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada. Mais dispõe o art.º 412.º, n.ºs 1 e 2 do CPP: (Motivação do recurso e conclusões) 1 - A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. 2 - Versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda: a) As normas jurídicas violadas; b) O sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada; e c) Em caso de erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, deve ser aplicada. Atendendo às conclusões apresentadas, resulta que os assistentes pretendem que sejam apreciadas as seguintes questões: - Nulidade do inquérito/instrução, por não terem sido praticados actos legalmente obrigatórios, nos termos do artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Penal; - Nulidade da decisão instrutória, por falta de fundamentação, nos termos do artigo 97.º, n.º 5, do Código de Processo Penal; - Impugnação da decisão, se dos elementos probatórios, resultam indícios suficientes que permitem a imputação dos crimes à arguida. * III -FUNDAMENTAÇÃO Factos relevantes para apreciação das questões enunciadas: III.1 No dia 18.06.2024 foi admitida a abertura da instrução e declarada aberta a instrução. Mais foi determinada a notificação dos assistentes para esclarecerem qual a razão de ciência e conhecimento directo das testemunhas arroladas por forma a aferir da pertinência da sua inquirição – artigo 291º, n.º 1 do CPP. III.2 No dia 09/09/2024 foi proferido o seguinte despacho pelo Juiz de Instrução Criminal: “datado de 1806//2024, foi declarada aberta a instrução, sendo que nesse mesmo despacho, os requerentes BB e CC, foram, implicitamente, admitidos a intervir nos presente autos na qualidade de assistentes, circunstância que aliás é pressuposto desta fase de instrução.(…) Requerimento de prova do RAI: Convidados a esclarecer sobre a razão de ciência e conhecimento directo dos autos, os assistentes nada informaram. No entanto, resulta dos autos que: FF “habitava na casa de AA e que de momento habita em ...” – fls. 41; GG, acompanhava os assistentes no momento referente ao aditamento de fls. 5, contudo não resulta desse auto que a referida testemunha tenha tido qualquer contacto com AA ou tenha presenciado qualquer dos comportamentos que lhe são imputados no RAI. Quanto a HH, continua a ser desconhecida a sua razão de ciência. EE reside no ..., sem que seja conhecida a sua razão de ciência e conhecimento de factos concretos com interesse par a decisão instrutória. Nenhuma testemunha seria inquirida por “videoconferência” sem que tal ocorresse com a intervenção das autoridade consulares portuguesas no local de residência das mesmas (que os assistentes não indicam). Sobretudo, visto o teor do RAI e as finalidades específicas desta fase processual, não se revela pertinente a inquirição das referidas testemunhas. * Assim, não obstante o exposto no requerimento para abertura de instrução, atenta a finalidade específica desta fase processual, indefiro os actos requeridos, nos termos do disposto no art.º 291º, nº 1 do CPP. Para debate instrutório designo o próximo dia 29/10/2024, pelas 10 horas, neste tribunal. * Notifique os demais intervenientes, do requerimento de abertura de instrução apresentado. Notifique, cumprindo o disposto no art.º 297º, nº 3, do CPP. III-3 na sequência do despacho de indeferimento, vieram os assistentes reclamar, tendo o JIC indeferido a reclamação por despacho que a seguir se transcreve: Reclamação apresentada pelos assistentes: Ficou exposto na decisão reclamada: “…. No entanto, resulta dos autos que: FF “habitava na casa de AA e que de momento habita em ...” – fls. 41; GG, acompanhava os assistentes no momento referente ao aditamento de fls. 5, contudo não resulta desse auto que a referida testemunha tenha tido qualquer contacto com AA ou tenha presenciado qualquer dos comportamentos que lhe são imputados no RAI. Quanto a HH, continua a ser desconhecida a sua razão de ciência. EE reside no ..., sem que seja conhecida a sua razão de ciência e conhecimento de factos concretos com interesse par a decisão instrutória. Nenhuma testemunha seria inquirida por “videoconferência” sem que tal ocorresse com a intervenção das autoridades consulares portuguesas no local de residência das mesmas (que os assistentes não indicam). Sobretudo, visto o teor do RAI e as finalidades específicas desta fase processual, não se revela pertinente a inquirição das referidas testemunhas.” Isto é, a decisão não se baseia unicamente na circunstância de os assistentes não se terem pronunciado, mas também nos demais elementos constantes dos autos. Se os assistentes pretendiam a reabertura do inquérito, prevista também como reacção à decisão de arquivamento, deveriam ter recorrido aos meios próprios para o efeito, o que seria eventualmente mais adequado ao desenvolvimento da investigação nos moldes a que se propõem. No seu requerimento de reclamação manifestam a sua discordância, mas nada exista que determine a alteração dos fundamentos da decisão reclamada. Pelo exposto, indefiro a reclamação apresentada – art.º 291º, nº 2, do CPP. Notifique. III.4 no dia 29/10/2024 decorreu o debate instrutório, o qual foi lavrado em Acta que se transcreve: ATA DE DEBATE INSTRUTÓRIO Data: 29-10.-2024 Hora: 10:00 Juiz de Direito: Dr. II Procuradora da República: Dra. JJ Escrivã Adjunta: KK * Sendo a hora marcada, publicamente e de viva voz, identifiquei os presentes autos de Instrução, em que são: Assistente: BB e outro(s)... Arguida: AA e de imediato procedi à chamada de todas as pessoas que nele devem intervir, após o que comuniquei verbalmente ao Mmº Juiz de Direito o rol dos presentes e dos faltosos, a saber: * PRESENTES: Assistente: BB Assistente: CC Mandatária: Dra. LL, com procuração conjunta Arguida: AA Defensor Oficioso: Dr. MM, que apresentou substabelecimento que o Mmº. Juiz rubricou e mandou juntar aos autos * ************* Quando eram 10 horas e 20 minutos, pelo Mmº. Juiz de Instrução Criminal foi dado início ao debate instrutório. * Seguidamente, pelo Mmº Juiz foi proferido o seguinte: DESPACHO Visto o requerimento agora apresentado pela defesa e considerando que não se mostra útil a inquirição da testemunha arrolada indefiro o requerido – art.º 291º, do CPP. Notifique. * De seguida, o Mmº. Juiz de Instrução Criminal concedeu, sucessivamente, a palavra à Digna Procuradora da República e aos Ilustres Advogados presentes, para que estes requeiram, querendo, a produção de prova suplementar, nada tendo sido requerido. * O Mmº. Juiz de Instrução Criminal declarou aberto o debate instrutório e, nada havendo a requerer, concedeu a palavra à Digna Procuradora da República e aos Ilustres Advogados presentes para, querendo, formularem em síntese as suas conclusões sobre a suficiência ou insuficiência dos indícios recolhidos e sobre questões de direito de que dependa o sentido da decisão instrutória. * Pela Digna Magistrada do Ministério Público, foi dito em síntese que deverá ser mantido o despacho de arquivamento, terminando as suas conclusões a pedir a não pronúncia da arguida. * Pela Ilustre Mandatária dos assistentes, foi dito em síntese pedir a pronúncia da arguida devendo os presentes autos prosseguir para julgamento. * Pelo Ilustre Defensor da arguida, foi dito em síntese remeter para as alegações da Digna Magistrado do Mº.Pº. pedindo a não pronúncia da arguida. * Consigno que dada a palavra pelo Mmº Juiz a todos intervenientes processuais para se pronunciarem sobre a possibilidade de a decisão ser proferida por escrito, pelos mesmos foi dito nada terem a opor. ** Seguidamente, pelo Mmº Juiz foi proferido o seguinte: DESPACHO "A decisão instrutória será proferida a 06 de Novembro de 2024 e devidamente notificada a todos os intervenientes processuais. Notifique. (…)” III.5 No dia 06 de Novembro de 2024 foi proferido despacho de não pronuncia pelo Juiz de Instrução Criminal de ..., que, nas partes que importam para a apreciação do recurso, tem o seguinte teor (transcrição) DECISÃO INSTRUTÓRIA I – Relatório O Ministério Público proferiu decisão de arquivamento do inquérito, instaurado contra: AA, nascida a .../.../1974, em ..., filha de NN e de OO. BB e CC, constituíram-se na qualidade de assistentes e requereram a abertura desta fase facultativa de instrução pretendendo a pronuncia da arguida a quem imputaram a prática dos crimes de violação de domicílio ou perturbação da vida privada, p. e p. pelo art.º 190º, do Código Penal, perseguição, injúria e discriminação, p. e p. pelos artºs 154º-A, nº 1, 181º, nº 1 e 240º, todos do mesmo diploma legal. Realizou-se debate instrutório, antecedido do interrogatório do arguido. Cumpre analisar criticamente os indícios constantes do inquérito e decidir a instrução. Para tanto, destaca-se: II – Indícios e análise crítica No seu despacho de arquivamento o Ministério Público sintetizou o inquérito realizado nos seguintes termos, o que apresenta, efectivamente, o quadro dos acontecimentos até ao momento em que foi proferido o despacho de arquivamento: Os presentes autos tiveram inicio no auto de denúncia, a fls. 3-v, com queixa apresentada por CC contra AA, a quem imputa factos suscetíveis de integrar, em abstrato, a prática de um crime de violação de domicilio, p. e p., nos termos do disposto no art.º 190º, nº 1, do Código Penal, alegando, em síntese, que a denunciada, no período compreendido entre 01-02-2021 e 24-08-2022, acedeu ao domicilio sem autorização, sito na ..., de que o denunciante é inquilino e a denunciada senhoria. Procedendo-se a diligências de inquérito, para além do denunciante, foi inquirido enquanto testemunha BB, sendo que só nessa data manifestou desejo de procedimento criminal. Foi ainda inquirida AA, a qual, desejando prestar declarações, ofereceu a sua versão dos factos, negando perentoriamente as imputações que lhe são dirigidas. Sendo estes os elementos probatórios reunidos, adianta-se que dos mesmos não resultam reunidos os pressupostos para a ação penal, nem indícios suficientes, por si e sem mais, passíveis de sustentar uma acusação. Com efeito, quanto à apresentação de queixa por BB, verifica-se que no dia da elaboração do auto de denúncia, em 24-08.-2022, o mesmo não apresentou qualquer queixa, vindo a apresenta-la só no dia em que foi inquirido, em 11-05-2023, ou seja, após o decurso de seis meses, previsto no art.º 115º, nº 1, do Código Penal. Tendo persente a natureza semi-pública do crime em causa, o procedimento criminal pelo mesmo depende de queixa. Ora, o titular do direito de queixa respetivo não manifestou desejo de procedimento criminal por tais factos em tempo oportuno. Assim sendo e na falta de queixa apresentada pelo titular do direito respetivo, no caso o denunciante BB, considera-se que o Ministério Público não tem legitimidade para promover o procedimento criminal pelos factos objeto da participação referido, pelo que o mesmo é inadmissível. Quanto ao mais, atenta a ausência de elementos probatórios suficientes que admitam e corroborem como boa uma das versões, afastando a outra perentoriamente negada e que lhe é antagónica, impõe-se o arquivamento dos autos. Ademais, os factos descritos inscrevem-se antes numa eventual ilicitude civil uma vez que os intervenientes centram a discussão em factos reportados a uma data de saída acordada da habitação, aspetos que merecem antes a atenção da jurisdição civil. O direito penal constitui a ultima ratio da política social e a sua intervenção é de natureza subsidiária. O que significa que a tutela dos bens jurídicos não pertence exclusivamente ao direito criminal, antes devendo ser levada a cabo por toda a ordem jurídica, sendo o direito criminal a última das medidas protetoras mobilizáveis, pelo que só deve intervir quando falhem outros meios de regulação. Ao carácter subsidiário do direito criminal acresce a fragmentariedade deste ramo de direito, na medida em que apenas protege determinados bens jurídicos e, mesmo estes, frequentemente, apenas face a determinadas e específicas formas de agressão. Volvendo ao caso dos autos, verifica-se que os factos constantes do auto de denúncia são, eventualmente, suscetíveis de violar direitos do denunciante PP, tendo em conta que a factualidade descrita se reveste de natureza meramente civil, será em tal foro que a questão suscitada pelo denunciante terá, ou poderá obter, tutela e solução judicial. * Pelo exposto, determino o arquivamento do presente inquérito, por não se verificar a prática qualquer crime, nos termos do disposto no art.º 277º, n.º 1, do Código de Processo Penal. * Como se verifica, na base do conflito entre assistentes e arguida está um suposto contrato de arrendamento e o desacordo em redor do momento em que o mesmo se deveria considerar cessado, assim como o desacordo relativamente ao modo como a senhoria, aqui arguida, poderia ou deveria proceder a obras no locado. O referido contrato de arrendamento está junto a fls. 12 dos autos. Foram inquiridos os agora assistentes, conforme referido no despacho de arquivamento, não tendo sido por eles referido quaisquer circunstâncias susceptíveis de integrar os crimes de injúria, discriminação ou perseguição. Todo o discurso encontrava-se centrado em redor do momento da cessação do contrato de arrendamento ou do acesso da senhoria ao imóvel para a realização de obras. Só após o proferimento da decisão de arquivamento vieram os assistentes introduzir uma factualidade completamente diversa daquela que havia motivado a queixa inicial apresentada e sobre a qual o inquérito se debruçou. Contudo, para alargar esse campo factual de investigação aberta, os assistentes não requereram a reabertura do inquérito. Limitaram-se a argumentar em sede de requerimento para abertura da instrução, sendo certo que nesta fase de instrução a finalidade específica é a de comprovar, ou não, a decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento – cfr. art.º 286º, do CPP. Diga-se, pois, que no momento em que foi proferido o despacho de arquivamento o Ministério Público pronunciou-se sobre as questões de facto que deveria pronunciar-se pois não conhecia, nem poderia conhecer, toda a nova factualidade introduzida pelos assistentes no RAI. De facto, no momento do arquivamento das declarações prestadas pelos assistentes apenas é possível descortinar o desacordo quanto ao cessamento do arrendamento e o acesso da senhoria ao imóvel, sem que daí se possa estabelecer qualquer ligação segura a comportamentos criminalmente tipificados. São os próprios assistentes quem admitem ter existido conversações para a cessação do arrendamento e de um suposto acordo com vista a compensar uma quantia eventualmente entregue à arguida a título de caução. A partir desses permanentes desencontros de vontades não é mais possível encontrar objectividade suficiente no discurso dos assistentes. A presença de trabalhadores no imóvel apenas reflecte o desacordo entre assistentes e arguida, mas nada mais. Relativamente a factos supostamente ocorridos após o arquivamento não existe qualquer prova indiciária nem este seria o momento próprio para dar início a uma nova investigação, aberta quanto ao seu objecto, como parecem pretender os assistentes, os quais não lançaram mão dos mecanismos adequados a tal desiderato. Assim, deverão considerar-se os seguintes III – Factos indiciados Alíneas a), b), m), n), do RAI. IV – Factos não indiciados Alíneas c), d) a l), o) a gg), do RAI. * Os demais artigos do RAI são conclusivos ou argumentativos. V – Enquadramento jurídico De acordo com o disposto no art.º 286º, do CPP, a instrução tem como finalidade específica a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento. A decisão de deduzir acusação deve ocorrer, conforme disposto no art.º 283º, nº 1, do CPP, se durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente. Os factos essenciais alegados pelos assistentes não se encontram suficientemente indiciados, sendo certo que não são passíveis de indiciação nesta fase de instrução por terem ocorrido após a decisão de encerramento do inquérito. Pelo exposto, impõe-se a não pronúncia da arguida. VI – Decisão instrutória Pelo exposto, não pronuncio a arguida. Em consequência, determinando o imediato arquivamento dos autos. Custas a cargo dos assistentes, com taxa de justiça que fixo em cinco unidades de conta, para cada um deles, sem prejuízo de apoio judiciário ou da respectiva revisão caso se venha a demonstrar que passaram a dispor de meios económicos e financeiros suficientes. Notifique. (fim de transcrição) IV – FUNDAMENTOS DO RECURSO IV.1- Nulidade do inquérito/instrução, por não terem sido praticados actos legalmente obrigatórios, nos termos do artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Penal. Invocam os assistentes que: O indeferimento injustificado pelo Tribunal a quo quanto às diligências probatórias requeridas pelos Assistentes constitui uma manifesta violação da prossecução da verdade material e do exercício pleno do seu direito ao contraditório. O indeferimento de diligências probatórias relevantes demonstra insuficiência tanto no inquérito quanto na instrução, resultando em nulidade processual nos termos do artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do CPP. Em resposta argui o Ministério Público que: No requerimento de abertura de instrução os assistentes indicaram diversas testemunhas, cuja inquirição veio a ser indeferida. Perante a decisão que indeferiu a audição dos identificados, os assistentes reclamaram, a qual veio também a ser indeferida. Durante o debate instrutório nada foi invocado pelos assistentes… Ora, como resulta dos autos, os assistentes nada alegaram até ao encerramento do debate instrutório, o que lhes incumbia, como impõe a alínea c) do n.º 3, do artigo 120.º, do Código de Processo Penal, pelo que, qualquer nulidade existente – que entendemos não se verificar -, se sanou, uma vez que os assistentes, no devido tempo, não a arguiram. Deve, por isso, ser indeferida a invocada nulidade. Vejamos: Estruturalmente o recurso pode ter como fundamento, além do mais, questões processuais, traduzidas em nulidades ou irregularidades da decisão (art.ºs 379.º e 410.º, n.º3, do CPP) ou nulidades ou irregularidades do processado. (neste sentido FERNANDO GAMA LOBO, Código de Processo Penal Anotado, 4.ª Edição, Almedina pág. 947). No caso dos autos está em causa a apreciação de nulidades/irregularidades do processados (vícios do procedimento) consistentes na não realização de diligências que os assistentes reputam de essenciais e por eles requeridas, nos termos do artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Penal; Os art.ºs 118º a 123º do CPP regulam, em geral, as consequências da inobservância das prescrições estabelecidas por lei para a prática dos actos processuais geradoras de invalidade. E classifica-as a lei processual penal, em três espécies: - As nulidades insanáveis – art.º 119º; - As nulidades dependentes de arguição – art.º 120º – E as irregularidades – art.º 123º. O art.º 118º n. os 1 e 2 dispõe que a violação ou inobservância das disposições da lei de processo só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei e que, nos casos em que a lei não comina a nulidade, o acto ilegal é irregular. Decorre da conjugação das normas dos art.ºs 119.º e 120º que para que a nulidade seja considerada insanável importa que a lei explicitamente o preveja, enumerando o art.º 119.º as nulidades insanáveis. As nulidades insanáveis constituem um vício processual, que, pela sua gravidade, torna inválido e sem possibilidade de recuperação, o acto ou omissão ferido por esse vício. Trata-se de vício insanável, por ser insusceptível de aproveitamento, sendo todos os actos que dele dependam directamente afectados pelo mesmo vício (n.º 1 do art.º 122.º, do CPP). As nulidades insanáveis são de conhecimento oficioso e a todo o tempo, em qualquer fase do procedimento. O art.º 120.º relativo às nulidades dependentes de arguição, impõe que qualquer nulidade diversa das previstas no primeiro deve ser arguida, constituindo as dependentes da arguição as previstas no n.º 2 do art.º 120.º, além das que forem cominadas noutras disposições legais. Entre as quais a prevista no art.º 120.º, n.º 2, al. d), do CPP, a qual dispõe que constitui nulidade dependente de arguição a omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade. Por força do disposto no n.º 1 do art.º 289.º do CPP, que se refere ao conteúdo da instrução, a instrução é formada pelo conjunto dos actos de instrução que o juiz entenda dever levar a cabo e, obrigatoriamente, por um debate instrutório, oral e contraditório, no qual podem participar o Ministério Público, o arguido, o defensor, o assistente e o seu advogado, mas não as partes civis. Da interpretação da norma transcrita, tendo em conta a natureza facultativa da instrução e a sua própria finalidade de comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou arquivar o inquérito (art.º 286.º CPP), como é entendimento pacífico na doutrina e na jurisprudência, é o juiz de instrução que, analisados os elementos probatórios recolhidos, decide quais os meios de prova que necessitam de ser levados a cabo e que o não foram ou que se impõe repetir, como aliás de forma expressa estatui o art.º 291.º, n.º 1. E esta decisão é irrecorrível, como igualmente de forma expressa e imperativa estabelece o n.º 2 do art.º 291.º, do CPP. No caso dos autos, tratando-se de nulidade dependente de arguição, como decorre dos factos relevantes supra referidos, os assistentes reclamaram do indeferimento de diligências que requereram em sede de RAI, indeferimento que foi mantido pelo JIC, mostrando-se decidida a questão, ademais, realizado o debate instrutório, como decorre da Acta, não foi requerida qualquer prova suplementar nem alegada uma qualquer nulidade, mostrando-se por isso sanada, caso houvesse. Assim, há que julgar não provida a pretensão dos recorrentes. IV.2- Nulidade da decisão instrutória, por falta de fundamentação, nos termos do artigo 97.º, n.º 5, do Código de Processo Penal; Invocam os assistentes que o despacho de não pronuncia padece de nulidade por omissão de fundamentação e enumeração/especificação clara sobre a existência de indícios ou falta deles quanto à prática pela arguida dos factos descritos no Requerimento para Abertura de Instrução padece de nulidade para os efeitos do disposto nos artigos 283.º, n.º 3, ex vi 308.º, n.º 2, 97.º n.º 5, 118.º n.º 1, 120.º n.º1 todos do CPP. Pelo contrário, o Ministério Público em sede de resposta considera que analisando a decisão ora posta em crise, afere-se que a mesma é clara, coerente e sintética na análise que faz dos elementos probatórios – ainda que proceda à enunciação dos mesmos por remessa para o despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público – esclarecendo que a origem do conflito entre assistentes e arguida tem por base um suposto contrato de arrendamento (junto a fls. 12) e qual o momento em que o mesmo cessou. Ora, o artigo 205º, n.º 1, da CRP estabelece que “as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”. Por seu turno, o artigo 97º, n.º 5, do CPP, dando execução àquele comando constitucional para os actos decisórios nele definidos, dispõe que os mesmos “(…) são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão”. A decisão instrutória, de pronúncia ou não pronúncia, é indubitavelmente um acto decisório, que assume a forma de despacho prevista no n.º 1, al. b), do citado artigo 97º e não é de mero expediente, estando, portanto, sujeita ao supramencionado dever geral de fundamentação. A doutrina e a jurisprudência, no entanto, salientam a diversidade de grau da fundamentação exigida para os diferentes actos decisórios, desde o específico das sentenças e acórdãos estabelecido nos artigos 374º e 375º do CPP, sob pena de nulidade, nos termos do artigo 379º, n.º 1, al. a), do mesmo diploma legal, ao dos despachos, mesmo os relevantes, como o é, sem dúvida, a decisão instrutória, assinalando ainda a sua inevitável diferença em função do maior ou menor poder de concisão e clareza discursiva do juiz e do concreto objeto das decisões e dos efeitos da falta ou insuficiência da devida fundamentação.(veja-se, entre outros Paulo Pinto de Albuquerque em anotação aos artigos 97º e 119º a 123º do CPP no “Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, Lisboa, UCP Editora, 2023, 2º Vol.) Decorre dos artigos 307º e 308º do CPP que a fundamentação da decisão instrutória se integra no leque dos atos decisórios de fundamentação mais simplificada, sem dispensar, obviamente, aquele mínimo exigível para garantir o respeito pelos princípios constitucionais pertinentes, pela transparência e legitimação do poder judicial/jurisdicional e o escrutínio interno e externo do seu exercício, sob pena de irregularidade sujeita ao regime de arguição e sanação previsto no artigo 123º do CPP, salvo no caso das nulidades cominadas no 309º, mas que não estão em causa nestes autos. A decisão instrutória tem os seus próprios requisitos, decalcados da acusação, conforme decorre do art.º 283.º, n.ºs 2 a 4, ex vi do art.º 308.º, do CPP, definindo o objeto do processo, em caso de pronúncia, sendo essencial para que o arguido exerça o seu direito à defesa. Em caso de não pronúncia deve analisar os indícios que eventualmente o assistente traga ao seu conhecimento e que imponham análise e avaliação, sem descurar a finalidade da instrução de comprovação da decisão proferida pelo Ministério Público, no final do inquérito, nos termos do n.º 1, do art.º 286.º, do CP. Sintetiza esta posição e que seguimos de perto, parte do sumário do Acórdão do STJ proferido em 09-05-2024 no processo 8/20.0TRLSB.S1 da 5.ª Seccção: I - A decisão instrutória é um ato decisório, que assume a forma de despacho prevista no n.º 1, al. b), do artigo 97º e não é de mero expediente, estando, portanto, sujeita ao dever geral de fundamentação previsto no n.º 5 desse preceito, em conformidade com o imposto pelo artigo 205º da CRP. II - A doutrina e a jurisprudência, no entanto, salientam a diversidade de grau da fundamentação exigida para os diferentes atos decisórios, desde aquele específico das sentenças e acórdãos estabelecido nos artigos 374º e 375º do CPP, sob pena de nulidade, nos termos do artigo 379º, n.º 1, al. a), do mesmo diploma legal, ao dos meros despachos, por muito relevantes que sejam, como o é, sem dúvida, a decisão instrutória, assinalando ainda a sua inevitável diferença em função do maior ou menor poder de concisão e clareza discursiva do juiz e do concreto objeto das decisões e dos efeitos da falta ou insuficiência da devida fundamentação. III - Pese embora a persistência de alguma divergência doutrinal e jurisprudencial, decorre dos artigos 307º e 308º do CPP que a fundamentação da decisão instrutória se integra no leque dos atos decisórios de fundamentação mais simplificada, sem dispensar, naturalmente, aquele mínimo exigível para garantir o respeito pelos pertinentes princípios constitucionais e as finalidades que a demandam e justificam, como sejam as de transparência e legitimação do poder judicial/jurisdicional e do escrutínio interno e externo do seu exercício, sob pena de irregularidade sujeita ao regime de arguição e sanação previsto no artigo 123º do CPP, salvo no caso das nulidades cominadas no 309º, aqui inaplicável. IV – Cumpre o dever de fundamentação exigível, a decisão de não pronúncia que, após ter cumprido o disposto no n.º 3 do artigo 308º do CPP, se pronunciou sobre a natureza âmbito e finalidades da instrução, discorreu sobre o conceito de indícios suficientes, situou o objeto do processo, descrevendo, concisa, mas cabalmente, as principais incidências processuais ocorridas na fase do inquérito e da instrução, com indicação das provas produzidas numa e noutra, consignando uma síntese das declarações e depoimentos nelas recolhidos, fixou os factos considerados indiciados com relevo para a decisão a proferir, discriminando-os por alíneas, e, não obstante afirmar que nenhuns outros se tinham indiciado, exemplificou, por reporte ao requerimento de abertura de instrução, alguns relacionados com concretas circunstâncias da dinâmica, intencionalidade e consequências da atuação da arguida sobre ou em interação com a do assistente. Retornando ao caso dos autos, diferentemente da posição sustentada pelo recorrente, o despacho de não pronúncia sub judice, pronunciou-se sobre a natureza âmbito e finalidades da instrução, discorreu os indícios, situou o objecto do processo, descrevendo, concisa, mas cabalmente, a principal diligência probatória, com indicação das provas produzidas, fazendo o exame crítico, fixou os factos considerados indiciados e não indiciados, com relevo para a decisão a proferir, discriminando-os por alíneas, terminando pela discussão e subsunção jurídico-criminal dos factos assim fixados, que considerou insuficientes para a pronúncia. O despacho de não pronúncia ora sindicado cumpriu cabalmente o dever de fundamentação dos actos jurisdicionais decisórios, permitindo aos seus destinatários e às instâncias de recurso apreender e compreender o iter racional da formação da convicção do juiz e ser realizado o seu escrutínio. Nenhuma invalidade, portanto, se descortina na decisão sob recurso. Ademais, tal como referido pelo despacho de não pronuncia, “Só após o proferimento da decisão de arquivamento vieram os assistentes introduzir uma factualidade completamente diversa daquela que havia motivado a queixa inicial apresentada e sobre a qual o inquérito se debruçou. Contudo, para alargar esse campo factual de investigação aberta, os assistentes não requereram a reabertura do inquérito’.” Assim, a decisão pronunciou-se cabalmente sobre o objecto visado nos presentes autos, o mesmo que foi visado pelo encerramento do inquérito, considerando que a fase instrutória visa precisamente a comprovação judicial da decisão proferida, não podendo ir para além dela. A decisão ora proferida não padece, pois, da nulidade invocada. Destarte, ainda que se admitisse que ela incorreu em nulidade, nos termos sufragados pelo recorrente, quer se tratasse de mera irregularidade, quer de nulidade sanável, a sua arguição teria de ocorrer nos prazos e termos previstos nos artigos 120º e 123º do CPP, sob pena de sanação, em conformidade com o disposto nesses preceitos e no artigo 121º do mesmo Código. Não tendo sido arguidas em tais termos e prazos, não poderia, neste momento, delas conhecer-se, salvo na situação prevista no n.º 2 do artigo 123º, que no caso nem sequer se se verifica. Improcede, pois, também a questão da invalidade da decisão recorrida. IV.3- Impugnação da decisão, por dos elementos probatórios resultarem indícios suficientes que permitem a imputação dos crimes à arguida. Refere o arguido que o Tribunal a quo incorreu em manifesto erro na apreciação/valoração da prova e bem assim na subsunção da matéria factual indiciada ao tipo legal em causa. Porquanto, XV. A prova testemunhal e documental recolhida no inquérito já indiciava, claramente, que o e a Arguida adotou comportamentos subsumíveis nos crimes que lhe são imputados no RAI. XVI. Considerando os elementos probatórios e os indícios suficientes apresentados, a decisão de não pronúncia da Arguida deve ser reformada para assegurar o devido processo legal e a descoberta da verdade material. Entendimento diverso tem o Ministério Público, que considera que: os assistentes incorrem em erro, referindo que os factos em análise não são os apresentados no requerimento de abertura de instrução, uma vez que esses vão muito para além do que constava nos autos e que foi visado pelo despacho de arquivamento, mas os extraídos da fase de inquérito; que o processo penal contém mecanismos, que não o do requerimento de abertura de instrução, com vista ao alargamento dos factos a apreciar e a investigar e que os factos que são descritos no referido requerimento tiveram lugar após a prolação do despacho de arquivamento. Apreciemos: Referem os assistentes no requerimento de abertura de instrução (RAI) que a aqui arguida incorreu, em autoria material, na prática de um crime de perseguição p.º e p.º pelo art.º 154.º, -A, do CP, de um crime de violação de domicílio e devassa da vida privada, p. e p. pelo art.º 190.º, n.º 2, do CP, de um crime de injúria, p. e p. pelos art.ºs 181.º, n.º1, do CP e de um crime de discriminação previsto no art.º 240.º, n.º 2, al. b) do CP. O crime de perseguição como crime contra a liberdade pessoal, é de execução livre, isto é, que pode ser cometido por qualquer meio, sendo os correspondentes elementos objetivos, conforme afirmado na decisão recorrida, os seguintes: a ação do agente, consubstanciada na perseguição ou assédio da vítima, por qualquer meio, directa ou indirectamente; de modo reiterado, sendo a acção adequada a provocar naquela medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação e a reiteração da ação. Por seu turno, no que respeita ao elemento subjetivo, preenche-se com o dolo, em qualquer das suas modalidades (directo, necessário ou eventual) referidas no artigo 14.º do Código Penal, constituído pelo conhecimento dos elementos objetivos do tipo e pela vontade de agir por forma a preenchê-los, não sendo possível a sua prática pela forma negligente. Trata-se de crime relativamente novo na nossa ordem jurídica, sendo as condutas susceptíveis de o preencher, vulgarmente conhecidas - já antes de tal criminalização específica - como stalking. A expressão “stalking” deriva do verbo inglês “to stalk” que, numa tradução aproximada, significa perseguir algo ou alguém. Vai no mesmo sentido igualmente o Acórdão da Relação de Lisboa de 09/07/2019, processo 742/16.9PGLRS.L1-5, relator RICARDO CARDOSO: “- O crime de perseguição ou “stalking” pode definir-se como uma forma de violência relacional e pode caracterizar-se por uma série de comportamentos padronizados que consistem num assédio permanente, nomeadamente através de tentativas de comunicação com a vítima, vigilância, perseguição, etc. - Embora estes comportamentos possam ser aparentemente corriqueiros se não forem percebidos no seu contexto do “stalking”, as condutas que integram o seu tipo objectivo podem ser bastante intimidatórios pela persistência e intensidade com que são praticadas, causando um enorme desconforto na vítima e atentando claramente à reserva da vida privada. - Este novo tipo de crime, agora previsto no art.154º-A, nº.1 C.P. tem como seus elementos constitutivos objectivos, a acção do agente, consubstanciada na perseguição ou assédio da vítima, por qualquer meio, directo ou indirecto; a adequação da acção a provocar naquela medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação; e a reiteração da acção (…).”in www.dgsi.pt O crime de violação de domicílio e devassa da vida privada, p. e p. pelo art.º 190.º, n.º2, do CP tem como elementos objectivos e subjectivos do tipo a entrada, dolosa, na habitação de outra pessoa, sem consentimento ou nela permanecer depois de intimado a retirar-se, bem como a realização de telefonemas para a sua habitação ou para o seu telemóvel, com intenção de perturbar a vida privada, a paz e o sossego de outra pessoas, o qual depende de queixa nos termos do art.º 198.º, do CP. O crime de injúria, p. e p. pelos art.ºs 181.º, n.º1, do CP tem como elementos objectivos e subjectivos do tipo de ilícito criminal a imputação, dolosa, a outra pessoa de factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigir-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração. E o crime de discriminação previsto no art.º 240.º, n.º 2, al. b) do CP pune quem publicamente, por qualquer meio destinado a divulgação, nomeadamente através da apologia, negação ou banalização grosseira de crimes de genocídio, guerra ou contra a paz e a humanidade, difamar ou injuriar pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de género ou deficiência física ou psíquica. Ora, como decorre do despacho de não pronuncia os autos tiveram inicio no auto de denúncia apresentado contra AA, a quem são imputados factos susceptíveis de integrar, em abstrato, a prática de um crime de violação de domicilio, p. e p., nos termos do disposto no art.º 190º, nº 1, do Código Penal, alegando, em síntese, que a denunciada, no período compreendido entre 01-02-2021 e 24-08-2022, acedeu ao domicilio sem autorização, sito na Rua ..., em …. Só após o proferimento da decisão de arquivamento vieram os assistentes introduzir uma factualidade diversa daquela que havia motivado a queixa inicial apresentada e sobre a qual o inquérito se debruçou, integrando-a nos referidos tipos de ilícito penais. Contudo, como decorre da análise dos autos, para alargar esse campo factual de investigação aberta, os assistentes não requereram a reabertura do inquérito, limitando-se a argumentar em sede de requerimento para abertura da instrução, sendo certo que nesta fase de instrução a finalidade específica é, como já dito, a de comprovar, ou não, a decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento – cfr. art.º 286º, do CPP. Diga-se, pois, em concordância com o referido pelo Ex.mo Juiz de Instrução que, no momento em que foi proferido o despacho de arquivamento o Ministério Público pronunciou-se sobre as questões de facto que deveria pronunciar-se, pois não lhe era conhecida, toda a nova factualidade introduzida pelos assistentes no RAI. nem é o momento próprio para dar início a uma nova investigação, aberta quanto ao seu objecto. Ainda assim, de acordo com o artigo 308.º, n.º 1 do mesmo diploma, «se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia». Por sua vez, o artigo 283.º, n.º 2 refere que «consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança». Assim, sendo este o entendimento legal em que deve assentar a prolação de despacho de pronúncia ou de não pronuncia, do mesmo resulta que o despacho de pronúncia só deve ser proferido se se puder formular um juízo de probabilidade de aplicação à arguida de uma pena ou medida de segurança. Não se exigindo um juízo de certeza quanto à condenação, no entanto é pressuposto que a prova existente em inquérito ou na instrução apontem, se mantida e contraditoriamente comprovada em audiência, para uma probabilidade quase certa de condenação. A definição legal do que são indícios suficientes integra-se na orientação perfilhada pela doutrina e jurisprudência que era seguida no domínio de vigência do Código de Processo Penal de 1929, onde se realça, entre outras fórmulas, a de LUÍS OSÓRIO que referia: “devem considerar-se indícios suficientes aqueles que fazem nascer em quem os aprecia a convicção de que o réu poderá vir a ser condenado”. Cfr. Comentário ao Código de Processo Penal Português, vol. IV, pág. 441. O Dr. JORGE NORONHA E SILVEIRA observa que, na resposta, à questão do que seja a possibilidade razoável de condenação podem distinguir-se, na doutrina e jurisprudência, três correntes fundamentais: - uma primeira solução afirma que basta uma mera possibilidade, ainda que mínima, de futura condenação em julgamento; - numa segunda resposta possível, é necessária uma maior probabilidade de condenação do que de absolvição; - e uma terceira via defende ser necessária uma possibilidade particularmente forte de futura condenação. Depois de esclarecer que certos autores advogam esta terceira interpretação da suficiência de indícios como forte possibilidade de condenação, sem verdadeiramente a autonomizar da segunda interpretação referida, adopta a terceira posição, mas com o sentido de que para a acusação, como para a pronúncia, se exige a mesma exigência de prova e de convicção probatória requerida pelo julgamento final, atendendo, designadamente, ao facto de naquelas primeiras fases processuais já se encontrarem recolhidas todas as provas da acusação e de o princípio da presunção da inocência vigorar para todo o processo penal (Cfr. Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, pág. 161). No dizer do Prof. GERMANO MARQUES DA SILVA, nesta fase processual a lei «… não impõe a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final.» Ou seja, «Na pronúncia o juiz não julga a causa; verifica se se justifica que com as provas recolhidas no inquérito e na instrução o arguido seja submetido a julgamento para ser julgado pelos factos da acusação.». Cfr. “Curso de Processo Penal”, Editorial Verbo, 1994, vol. III, páginas 179 a 182. Conforme ensinava Prof. FIGUEIREDO DIAS, ainda na vigência do Código de Processo Penal de 1929, na interpretação do conceito normativo indícios suficientes, considerar que «… os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição.». Cfr. “Direito Processual Penal”, 1.º Vol. Coimbra Editora, 1974, pág. 133. O Tribunal Constitucional, no seu acórdão n.º 439/02, após considerar que o princípio in dubio pro reo não deve ser excluído da valoração da prova que subjaz à decisão de pronúncia, decidiu «julgar inconstitucionais os artigos 286.º, n.º 1, 298.º, e 308.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, por violação do artigo 32º, nº 2, da Constituição, interpretados no sentido de que a valoração da prova indiciária que subjaz ao despacho de pronúncia se bastar com a formulação de um juízo segundo o qual não deve haver pronúncia se da submissão do arguido a julgamento resultar um ato manifestamente inútil.». In, www.tribunalconstitucional.pt. No Acórdão da Relação do Porto de 19/12/2023 proc. 133/21.0PAVCD.P1 relatora PAULA NAERCIA ROCHA foi sumariado que: “I - Na instrução pretende-se apurar a existência de indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ou medida de segurança”. II - São indícios suficientes os vestígios, sinais, suspeitas, presunções, indicações que, logicamente relacionados e conjugados, criam a convicção que, mantendo-se em julgamento, o arguido virá a ser condenado. É o que exige o art.º 283.º, n.º 2, aplicável por força do disposto no art.º 308.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, quando estipula que “Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”. III - Portanto, os indícios são suficientes quando permitem a formação de um juízo de probabilidade sobre a culpabilidade do arguido, com a produção da convicção de que ele poderá vir a ser condenado.” in www.dgsi.pt Pelo Tribunal da Relação de Coimbra de Coimbra, no Acórdão de 23 de maio de 2018, processo 80/16.7GBFVN.C1 relator ORLANDO GONÇALVES foi colhido o entendimento de que: I - As provas recolhidas nas fases preliminares do processo penal não constituem pressuposto da decisão jurisdicional de mérito, mas, tão só, da decisão processual no que respeita à prossecução do processo até à fase de julgamento. II - O juízo de probabilidade razoável de condenação enunciado no n.º 2 do art.º 283.º do CPP, aplicável à pronúncia ou não pronúncia, não equivale ao juízo de certeza exigido ao Juiz na condenação. III - Os indícios são suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição. IV - O Juiz de Instrução, aquando da prolação do despacho de pronúncia ou não pronúncia, deve ter presente na valoração da prova o princípio in dubio pro reo.” in www.dgsi.pt No Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 07/01/2025 processo 1490/21.39LRS.L1-5 relatora Ana Cristina Cardoso: I - A instrução consubstancia uma fase de controlo da fase anterior do processo (o inquérito), onde foi proferida a decisão de acusar ou de arquivar, com o objetivo de apurar se tal decisão deve ser mantida ou não, se se comprova ou não. II - No despacho de pronúncia ou de não pronúncia o juiz não julga a causa: apenas verifica se se justifica que, com as provas recolhidas no inquérito e na instrução, o arguido seja submetido a julgamento pelos factos da acusação ou do requerimento de abertura da instrução. A lei só admite a submissão a julgamento desde que a prova dos autos resulte uma probabilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força dela, uma pena ou uma medida de segurança. in www.dgsi.pt Também no Acórdão da Relação de Lisboa de 22/10/2024 processo 105/20.1T9PTS.L2-5 relatora ALDA TOMÉ CASIMIRO foi exarado o seguinte entendimento “Já se defendeu que para que os indícios fossem considerados suficientes bastaria a mera possibilidade de futura condenação em julgamento e também já se defendeu que os indícios só são suficientes se deles resultar uma forte ou séria possibilidade de condenação em julgamento, exigindo-se uma “possibilidade particularmente qualificada” ou uma “probabilidade elevada” de condenação. Todavia, hoje a jurisprudência é unânime em afirmar que a posição mais acertada é uma posição intermédia entre aquelas duas, denominada “teoria da probabilidade dominante”, e que é a que tem mais apoio na letra da lei. De acordo com esta tese, os indícios são suficientes para acusar ou pronunciar alguém sempre que, num juízo de prognose, se conclua que é mais provável a sua futura condenação do que a sua absolvição. (…)”. Pelo que os indícios serão suficientes sempre que, por via deles, o Juiz de instrução chegue a um juízo de prognose em que a condenação do arguido é mais provável do que a absolvição, caso em que deve proferir despacho de pronúncia.” Assim, na posição maioritária acolhida na jurisprudência, o juízo sobre a suficiência dos indícios deverá passar pela probabilidade dominante/elevada, a qual se traduz num juízo de prognose não só da condenação ser mais provável que a absolvição, mas ainda que em julgamento será ultrapassada a barreira do in dubio pro reo. Revisitando o caso sub judice analisemos então se os elementos probatórios constantes dos autos são de molde a fundar a suficiência de indícios e neles assentar juízo de prognose de probabilidade dominante de a condenação ser mais provável que a absolvição, e em julgamento ser ultrapassada a barreira do in dubio pro reo. Foram inquiridos os agora assistentes, conforme referido no despacho de arquivamento, não tendo sido por eles referido quaisquer circunstâncias susceptíveis de integrar os crimes de injúria, discriminação ou perseguição. Quanto ao crime de no art.º 190.º, do CP, embora os assistentes refiram a entrada no domicílio pela arguida sem sua autorização, a arguida, ouvida em 19/10/2023, nega os factos, embora confirme a realização de obras no locado, habitação dos assistentes, refere que a entrada foi autorizada pelos assistentes de forma verbal. Decorre quer das declarações dos assistentes quer da arguida que existe um litígio entre ambos que se relaciona com o contrato de arrendamento para habitação junto aos autos a fls. 12 e ss celebrado pela arguida enquanto proprietária e os arguidos enquanto inquilinos, datado de 01/12/2021, relativamente quer a questões relacionadas com obras quer com a cessação do contrato de natureza civil a dirimir nas instâncias próprias. Qualquer que seja a tese mais ou menos exigente acerca do conceito de indícios suficientes plasmado no artigo 283º, n.º 2, do CPP, forçoso é concluir que, no caso, não há indícios suficientes que suportem a pronúncia da arguida pela prática de qualquer dos crimes equacionáveis do RAI, por não estar indiciado quer o elemento objectivo quer o elemento subjetivo de qualquer destas tipologias criminais, assim se afastando a possibilidade de à arguida vir a ser aplicada, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança, e, em especial, no que respeita ao crime previsto no art.º 190.º, do CP, perante as declarações da arguida, porquanto, no juízo de prognose que fazemos, é o de ser mais provável a absolvição da arguida do que a sua condenação, e não seria em julgamento ultrapassada a barreira do in dubio pro reo. Destarte, os factos em análise nem sequer seriam todos os apresentados no requerimento de abertura de instrução, uma vez que vão muito para além do que constava nos autos e que foram visados pelo despacho de arquivamento, não tendo, ademais, sido usado pelos assistentes o mecanismo legal da reabertura do inquérito. Logo, bem andou, o Exmo. Juiz de Instrução Criminal ao não pronunciar a arguida face à inexistência de indícios suficientes que permitam submete-la a julgamento. Assim, o recurso improcede na totalidade. V – DECISÃO Face ao exposto, acordam os Juízes desta 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa, em negar provimento ao recurso interposto pelos Assistentes BB e CC, confirmando a decisão recorrida de não pronúncia da arguida AA. Vai o recorrente/assistente condenado nas custas do recurso, fixando-se em 3 UCs a taxa de justiça devida – artigo 515º, n.º 1, al. b) do Código de Processo Penal, e Tabela III do Regulamento das Custas Processuais (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro). Notifique. * Lisboa, 22 de Maio de 2025 (Texto elaborado pela relatora e revisto, integralmente, pelos seus signatários) Maria de Fátima R. Marques Bessa Ana Paula Guedes Eduardo de Sousa Paiva _______________________________________________________ 1. Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995 2. Acórdão do STJ de 29.01.2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB. S1, 5ª Secção. |