Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
245/21.0PBOER.L2-9
Relator: PAULA CRISTINA BIZARRO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
CONTRADIÇÃO INSANÁVEL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/06/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: 1. O incumprimento das formalidades exigidas no art.º 412º/ 3 e 4 do Código de Processo Penal inviabiliza o conhecimento do recurso da matéria de facto pela via ampla.
2. No caso concreto, percorrida a motivação e conclusões, constata-se que a assistente, ora recorrente, se limita na sua impugnação a invocar as suas próprias declarações, as declarações prestadas pelo arguido, bem como os depoimentos das testemunhas arroladas, não indicando em momento algum, em concreto, qual ou quais as passagens das gravações respectivas, com menção dos concretos minutos em que tiveram lugar, que impõem uma decisão diversa quanto à matéria de facto impugnada, limitando-se a remeter para a integralidade dessas declarações e depoimentos, os quais, aliás, transcreve na íntegra na motivação.
3. A assistente não observou integralmente os ónus acima referidos, cujo cumprimento é estritamente necessário ao conhecimento do erro de julgamento por este Tribunal da Relação, designadamente, não especificou as concretas passagens da gravação em que fundamenta a sua impugnação, antes remetendo para a generalidade e integralidade das declarações e depoimentos do arguido, assistente e testemunhas.
4. Tal omissão verifica-se, quer nas conclusões, quer na própria motivação, pelo que não se encontram preenchidos os pressupostos de um despacho de aperfeiçoamento, na medida em não se trata de uma situação de deficiente cumprimento daquele ónus, mas sim do seu absoluto e total incumprimento.
5. O vício de contradição insanável da fundamentação, nos termos previstos no art.º 410º/2, alínea b), do Código de Processo Penal verifica-se, designadamente, sempre que do texto da decisão recorrida resulte que um mesmo facto seja julgado como provado e não provado, quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si e que mutuamente se excluem, ou quando, do conteúdo da decisão recorrida, seja de concluir que a fundamentação nela exposta determina inevitavelmente conclusão oposta àquela que aí foi acolhida.
6. A factualidade provada e não provada mostra-se eivada de contradições e estas são insusceptíveis de ser sanadas pelo recurso ao texto da decisão recorrida, pelo que se encontra manifestamente verificado o vício decisório previsto no art.º 410º/2-b) do Código de Processo Penal.
7.  O Tribunal da Relação só deverá reenviar o processo para novo julgamento quando não possa decidir a causa, devendo os vícios previstos no art.º 410º citado serem sanados quando tal resulte possível face aos elementos que constem do processo e ao texto da decisão recorrida.
8. No caso em apreço, o vício apontado, pela sua dimensão, afecta a quase integralidade da decisão da matéria de facto. A intervenção do tribunal de recurso em sede de modificação da matéria de facto não poderá representar um segundo e novo julgamento, com base na gravação da audiência de julgamento, desprovido de imediação e de oralidade, substituindo-se à primeira instância. A intervenção do tribunal de recurso deverá nessa sede circunscrever-se à correcção de pontos de facto pontuais, o que não é manifestamente o caso. Consequentemente, importa determinar o reenvio para novo julgamento, nos termos dos art.ºs 426º/1 e 427º-A do Código de Processo Penal relativamente à totalidade do objeto do processo, a realizar necessariamente por outro Juiz, atento o disposto no art.º 40º/1- c) do mesmo Código.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência os Juízes da 9ª secção criminal deste Tribunal da Relação

I. RELATÓRIO
O Ministério Público e a assistente AA vieram interpor recurso, esta quer quanto à matéria penal, quer quanto à matéria do pedido de indemnização civil, da sentença datada de 25-01-2023 e depositada nessa mesma data, proferida nestes autos de processo comum com intervenção de tribunal singular com o n.º 245/21.0PBOER, em que é arguido
BB, filho de MR e de LR, nascido a 29/06/1988, natural de Beja (Santiago Maio), concelho de Beja, solteiro, produtor musical, residente na Rua ..., Queijas,
na qual se decidiu nos seguintes termos, conforme consta no respectivo dispositivo (transcrição):
i. absolver o arguido BB da acusação da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica agravado, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, alínea b) e n.º 2, ambos do Código Penal;
ii. e, convolando-se tal acusação na imputação de quatro crimes de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º, n.º 1, em conjugação com os artigos 26.º e 30.º, n.ºs 1 e 3, do Código Penal, condenar o arguido BB pela prática de quatro crimes de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º, n.º 1, em conjugação com os artigos 26.º e 30.º, n.ºs 1 e 3, do Código Penal, em quatro penas de 40 (quarenta) dias de multa e, em cúmulo jurídico destas sanções, numa pena única de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de 10 (dez) euros, perfazendo o montante total de 1.000 (mil) euros, a que corresponde eventualmente, em caso de incumprimento, uma pena de 33 (trinta e três) dias de prisão subsidiária;
iii. condenar o arguido BB a pagar à demandante AA a quantia de 2.000 (dois mil) euros, acrescida de juros legais de mora vencidos desde a notificação da demanda até à presente data e vincendos desde esta até integral e efetivo pagamento, a título de indemnização de danos não patrimoniais emergentes da prática dos supracitados crimes, absolvendo-se o arguido demandado do remanescente do pedido de indemnização civil;
(…)
(fim de transcrição)
*
As razões de discordância do Ministério Público encontram-se expressas nas conclusões da sua motivação do recurso, que em seguida se transcrevem:
1- São as conclusões que limitam o objecto do recurso, nos termos do art.º 403º e 412º, n.º 1 in fine do Código de Processo Penal e conforme jurisprudência dominante a pacífica.
2- Nestes autos, foi o arguido BB absolvido da prática do crime de violência doméstica agravado que lhe vinha imputado e condenado pela prática de quatro crimes de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º, n.º 1 do Código Penal, numa pena única de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de 10 (dez) euros, perfazendo o montante total de 1.000,00 (mil) euros.
3- Entende o ora recorrente que a prova produzida em audiência de discussão e julgamento impunha a condenação do arguido pela prática do crime de violência doméstica agravado pelo qual vinha acusado, tendo sido incorrectamente julgados os pontos C. a Q. da matéria de facto considerada como não provada:
C. Durante o relacionamento, o arguido manifestou sempre comportamentos obsessivos e ciúmes excessivos em relação à sua companheira, com alterações repentinas de humor, e iniciava discussões frequentes com esta.
D. Em datas não concretamente apuradas, mas com uma frequência quase diária, o arguido disse a AA que não gostava da roupa que a mesma vestia, reprovando-a e dizendo-lhe: “as porcas é que se vestem assim”.
E. Além disso, o arguido nunca aceitou o facto de AA exercer a profissão de actriz e, por várias vezes, quando a mesma se ausentava para gravações televisivas, disse-lhe: “Porque é que andas a esfregar-te em homens? Eu nem sei como é que ando com uma actriz, toda a gente sabe como é que as actrizes são”.
F. Em meados de Abril ou Maio de 2018, quando AA foi fazer uma ecografia ao bebé que esperavam, envergando um vestido, o arguido disse a esta no final da consulta: “foste uma desavergonhada, tiraste a roupa para o médico e fizeste-o de uma forma fácil”.
G. Após, por várias vezes, o arguido disse a AA: “Se tivermos mais um filho vais a uma ginecologista porque não vais mostrar a cona a mais nenhum homem.”
H. Após o nascimento do filho, e durante o período de amamentação deste, o arguido proibiu AA de amamentar o bebé em zonas públicas, dizendo-lhe “que andava a mostrar as mamas a toda a gente”.
I. Em Agosto de 2019, estando a relação do casal muito deteriorada, o arguido disse a AA que “lhe ia tirar o bebé”, que “ia fazer de tudo para ficar com o miúdo”, apelidando-a de “cadela”.
J. Em 12/12/2019, quando entregou o menor a AA, o arguido disse-lhe: “Ainda não percebeste que perdeste a guerra? Eu quero é que tu morras.”
K. No início de Junho de 2020, por não estar de acordo com as férias de AA, o arguido disse a esta: “Se fores com ele, o CC não vai, eu fodo-te as férias”.
L. Em meados de Agosto de 2020, quando o arguido se encontrava de férias com o menor, e no decurso de uma videochamada para AA, o arguido disse a esta, na presença do filho: “A merda da tua família é para abater. A C… e o P… tudo bem, mas o resto é para abater”.
M. Nestas ocasiões e em todas as outras que AA teve de suportar, agiu o arguido com intuito de molestar psicologicamente a ofendida, condicionar o seu dia-a-dia, atemorizá-la, diminuir a sua honra e consideração, o que conseguiu, bem sabendo que as expressões por si proferidas são adequadas a causar medo e inquietação de que pudesse atentar contra a sua vida ou integridade física, como efectivamente causaram, de lhe limitar a sua liberdade de movimentação e de a humilhar.
N. Sabia o arguido que actuava na presença do seu filho, o que não o impediu de actuar como descrito.
O. Por força da conduta do arguido a Assistente sentiu-se com medo e receio das reacções do arguido.
P. Passou a estar num estado de stress vigilante, mais intranquila e ansiosa com medo de que o arguido lhe aparecesse à porta para atentar contra si, temendo pela sua integridade física e pela sua vida.
Q. Por receio do que o arguido possa fazer, a assistente continua a viver com medo dele e do que este possa fazer contra si e viu-se forçada a recorrer a terapia semanal, o que faz desde Outubro de 2022, uma vez por semana, a fim de tentar reequilibrar-se.
4- Para tanto, deviam ter sido atendidos os seguintes depoimentos:
- Da Assistente AA na sessão de julgamento de 5/09/2022, na sessão de julgamento de 14/02/2022 entre os minutos 8:28 e 8:48; 9:48 e 10:46; 11:50 e 21:08; 21:23 e 22:34; 31.50 e 32:10; 35:10 e 35:51; 37:00 e 38:12; 42.46 e 44:19; 48:20 e 48:33; 49:20 e 51:20; 52:55 e 53:19; 01:03:34 e 01:03:42; 01:05:20 e 01:05:30 e 01:08:53 e 01:09:03, referindo, em suma, que o arguido fumava haxixe diariamente, que iniciava várias discussões motivadas por ciúmes e que o comportamento se agravou após o nascimento do filho de ambos, chamando-a porca e cadela, dizendo-lhe que ia tirar-lhe o bebé, causando-lhe sempre medo e receio de que atentasse contra a sua integridade física ou contra a sua vida.
- Da testemunha AL, na sessão de julgamento que teve lugar no dia 7/03/2022, entre o minuto 03:24 e o minuto 05:25; o minuto 05:55 e o minuto 06:33 e o minuto 10:45 e o minuto 11:20, a qual em suma referiu que mantinha uma relação de amizade com a Assistente, que esta lhe confidenciava as vivências do seu relacionamento amoroso e exteriorizava que tinha medo do arguido.
- Da testemunha DF, cunhado da Assistente, na sessão de julgamento que teve lugar no dia 7/03/2022, entre os minutos 11h28 a 12:27 e 13:09 a 13:52, o qual referiu, em suma, que não frequentava a residência do casal nem mantinha contactos próximos com o arguido, mas que assistiu à mudança de comportamento da Assistente, a qual se tornou uma pessoa mais triste, que vive com medo do arguido.
- Da testemunha EC, irmã da Assistente, na sessão de julgamento de 7/03/2022, entre os minutos 04:01 a 04:10 e 07:25 a 08:30, a qual referiu, em suma, que não frequentava a residência do casal, mas que assistiu à mudança de comportamento da Assistente, a qual se tornou uma pessoa mais triste e que vive com medo do arguido.
- Da testemunha JC, na sessão de julgamento de 7/03/2022, entre os minutos 04:25 e 05:00 e 05:35 e 06:49; a qual referiu, em suma, que mantinha uma relação de amizade com a Assistente mas não convivia com o arguido, apercebendo-se do estado de tensão permanente daquela, durante e após o relacionamento, e do medo que passou a vivenciar.
5- O arguido negou na generalidade a prática dos factos que lhe eram imputados, admitindo apenas como verdadeiros aqueles que, face à prova documental junta, não podia negar, designadamente as mensagens escritas que enviou à Assistente e que se encontram transcritas nos autos.
6- Ao prestar declarações numa sala de audiências de um tribunal, e na presença do arguido, ambiente que em nada se assemelha a um estúdio de gravações, a Assistente, actriz de profissão, não estava a representar qualquer papel ou a interpretar qualquer personagem, antes depondo, com visível angústia sobre a sua vida pessoal durante mais de uma hora e meia, manifestando sentimentos de profunda tristeza, vergonha e humilhação, sendo que, por várias vezes, não conseguiu conter o choro, num estado claro de fragilidade emocional.
7- Por outro lado, não se concorda com a douta sentença quando afirma que a Assistente não fez a catarse emocional que se esperaria de uma vítima de violência psíquica e que, sendo uma mulher experiente, independente e com um círculo familiar e social protector, não terá sido especialmente afectada pelas condutas do arguido, pois que continuou a trabalhar ou a amamentar em público e respondia às mensagens do arguido, sem manifestações de receio ou medo.
8- Contrariamente ao que resulta da sentença, a Assistente demonstrou vulnerabilidade e fragilidade emocional, prestando declarações com segurança, é certo, mas também com enorme sofrimento e vergonha, relatando que as condutas do arguido a diminuíram como mulher e condicionaram de forma traumática a sua vida pessoal, passando a viver com medo, evitando determinadas situações em público, isolando-se de familiares e amigos.
9- É da experiência comum que um acontecimento traumático pode ter diversas manifestações, pelo que a catarse emocional que seria “expectável” para o Tribunal pode não ser aquela que uma determinada vítima experiência. Na verdade, uma vítima poderá vivenciar os acontecimentos com choro, com apatia, com histeria ou até com ausência ou memória selectiva, daí não se invalidando, tout court, o seu depoimento. Tanto mais, e como acima referido, o depoimento da Assistente não revelou incoerências, sendo consistente, detalhado e sincero no modo como referiu sentir medo do arguido e não foi invalidado pelos demais elementos de prova, antes sendo corroborado por todos aqueles que privaram de perto com a mesma.
10- Não vislumbramos como não pode o depoimento da Assistente ser merecedor de inteira credibilidade, tanto mais que a prova produzida não o contradisse ou desvalorizou.
11- Não concordamos com a douta sentença ao considerar que as mensagens que o arguido enviou à Assistente não constituem qualquer tipo de ameaça à vida, integridade física ou património da ofendida, justificando as mesmas com a alegada frustração do arguido por não poder estar com o filho menor, dando como não provado que o mesmo agisse com intenção de atemorizar a ofendida.
12- Ora, a douta sentença deu como boa a versão do arguido de que estava privado pela Assistente de estar com o filho quando foi o próprio a referir que deixou de estar com o menor durante 9 meses por uma decisão que só o próprio tomou, pelo que a sentença não considerou o depoimento da Assistente, a qual garantiu que nunca privou o arguido de estar com o menor e que era aquele que recusava os convívios, dizendo que só os retomaria quando tivesse “liberdade” para estar com o filho, o que não se compreende e revela contradição na fundamentação.
13- Por outro lado, não podemos olvidar que as mensagens foram enviadas ao longo de 9 meses (e não de um curto período temporal), que a Assistente relatou que vivia com medo do arguido e que as testemunhas desta assim o confirmaram de forma segura, coerente e credível. Mais referiu a Assistente que o comportamento presencial do arguido acompanhava a raiva demonstrada nas mensagens.
14- A Assistente referiu, nomeadamente, que sentiu medo quando o arguido escreveu, nas aludidas mensagens, que iria retirar-lhe o filho, que queria mais era que ela morresse, que ia dar as últimas gargalhadas ou que tinha sorte por estar bem-disposto. Tais mensagens, no contexto de separação conflituosa, são susceptíveis de causar temor e receio pela vida e integridade física, como causaram.
15- Face à demais prova produzida, as mensagens escritas não só suportam a versão da Assistente, como revelam uma exteriorização escrita da raiva, do descontrolo e da agressividade psicológica do arguido para com esta.
16- É da experiencia comum que, neste tipo de ocorrências, as vítimas sentem vergonha de relatar o sucedido, acreditando numa eventual mudança do agressor, e tendem a proteger a restante família dos conflitos existentes no interior da residência do casal, tanto mais que a assistente se trata de uma mulher autónoma, instruída e bem-sucedida profissionalmente.
17- Assim, não se compreende, salvo o devido respeito, como a douta sentença tenha desconsiderado o depoimento das testemunhas da Assistente, quando das declarações das mesmas resulta que se aperceberam, de forma bem concreta e real, do medo sentido pela Assistente e das alterações ou afectação no dia-a-dia desta e na sua personalidade.
18- Acresce, ainda, que a douta sentença recorrida devia ter atendido ao teor do Relatório Social, do qual resulta, em síntese, que: “Não obstante BB reconheça algumas dificuldades ao nível da regulação emocional, admitindo um episódio de descontrolo e agressividade, revela diminuta capacidade para se colocar no papel do outro e para avaliar com objetividade as consequências do seu comportamento. Avalia com grande contrariedade os factos do processo judicial e não equaciona a hipótese de poder haver uma reacção penal o que poderá, em caso de condenação, comprometer a frequência de um programa de treino de competências, direcionado para o problema dia violência doméstica. Os indicadores protetores decorrem do facto do arguido estar alegadamente focado no papel parental e no bem-estar do menor e de não registar confrontos com o sistema da justiça, apresentando uma trajectória de vida pró social.” (…) “Os factores de risco avaliados decorrem em nosso entender de deficits na resolução de problemas, da labilidade do arguido, da ausência de empatia pela alegada vitima e da atitude de minimização do problema de violência doméstica e desvalorização de uma eventual reacção penal.”
19- A serem dados como provados os factos elencados no ponto 3 supra, para além dos que já constam da sentença recorrida, entendemos que tal factualidade, no seu conjunto, integra a prática, pelo arguido, de um crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo artigo 152º, n.º 1 b) e n.º 2 a), do Código Penal, mostrando-se preenchidos todos elementos objectivos e subjectivos do referido tipo penal.
20- Com efeito, da prova produzida resultou, para lá de qualquer dúvida, e salvo o devido respeito, que, de forma reiterada, durante o relacionamento do casal e após a separação, o arguido, sabendo que actuava no interior da residência do casal, proferia palavras de teor injurioso e ameaçador contra a sua companheira, assim a molestando psicologicamente; que com a sua conduta, o arguido quis atemorizar a Assistente, humilhá-la, causar-lhe medo e diminuir a sua honra e consideração, o que conseguiu; que o arguido sabia que as expressões por si proferidas são adequadas a causar medo e inquietação de que pudesse atentar contra a sua vida ou integridade física, como efectivamente causaram, e de lhe limitar a sua liberdade de movimentação; que o arguido agiu com dolo directo.
21- Tal conduta do arguido afecta, de um modo geral a dignidade humana, o bem-estar físico, psíquico e mental, em suma a dignidade pessoal, que, na situação, não se afigura encontrar resposta adequada nos tipos legais que protegem os bens jurídicos de per se considerados. Tais condutas do arguido, pela sua intensidade e reiteração, assumiram suficiente gravidade para serem merecedoras da sua subsunção jurídica no tipo objetivo do crime de violência doméstica.
22- Considerando a amplitude da moldura penal abstracta do crime em causa – pena de prisão de 2 a 5 anos – e sopesando a falta de interiorização do desvalor da sua conduta (negando-a na generalidade, à excepção das mensagens escritas), a forte intensidade do dolo e o elevado grau de ilicitude dos factos, atento o modo de execução destes, e nas exigências de prevenção geral e especial em apreço, crê-se como adequado impor-lhe uma pena de 2 anos de prisão.
23- Nos termos do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, bem como a ausência de antecedentes criminais concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, entendendo-se que a pena de 2 anos de prisão deverá ser suspensa na sua execução, por igual período, devendo a mesma, por se considerar conveniente e adequado, ser condicionada a regime de prova nomeadamente de programa para agressores de violência doméstica (PAVD) visando-se uma mudança comportamental na problemática associada à violência doméstica, atento o disposto nos artigos 50.º, n.º 1 e 2, 52.º, n.º 1, alínea b), 53.º e 54.º, art.º 152º, n.º 5, todos do Código Penal.
Deste modo, entendemos que deverá ser concedido provimento ao presente recurso, determinando-se a condenação do Arguido BB, nos apontados termos ou, assim não se entendendo, deverá revogar-se a sentença recorrida e determinar-se a sua substituição por outra que condene o arguido nesses mesmos termos.
Vossas Excelências não deixarão, porém, de fazer a habitual JUSTIÇA!
 (fim de transcrição)
*
Os motivos da discordância da assistente AA mostram-se expostos nas conclusões da sua motivação de recurso, que são as seguintes (transcrição):
1. O Mº Juiz a quo não deu cumprimento ao douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, pelo que não supriu os vícios de contradição insanável na fundamentação, e na matéria de facto dada como provada e não provada.
2. A contradição insanável continua a ocorrer – factos provados e não provados que encerram em si contradições insanáveis.
3. Novamente no artigo 1º dos factos provados o Mº Juiz a quo refere: O arguido e AA viveram como se de marido e mulher se tratassem desde não concretamente apurada, mas pelo menos desde data não concretamente apurada da gravidez do filho em comum, tendo fixado residência na Rua …, n.º 8, em Queijas, concelho de Oeiras. Quando no douto Acórdão referiu-se que o filho de ambos nasceu em 12.11.2018, sendo por isso evidentemente cognoscível o período de gravidez da assistente…
4. Já no que respeita à fundamentação esta passou a existir; contudo a mesma comporta diversas ambiguidades e obscuridades, encerrando em si graves erros de julgamento, pelo que desrespeitando em absoluto o estipulado no artigo 127º do CPP.
5. Mal andou o Mº Juiz a quo ao desqualificar o crime praticado pelo arguido de violência doméstica, condenando-o em apenas 4 (quatro) crimes de injúria…
6. Efetivamente, o Tribunal não firmou a sua convicção na ponderação, à luz das regras da experiência comum e na livre convicção do julgador, nem na análise crítica e conjugada do conjunto de prova produzida, desrespeitando clamorosamente o disposto no artigo 127º do Código de Processo Penal.
7. Primeiro, em face do que o Mº Juiz a quo considerou como provado, deveria o mesmo ter subsumido e caraterizado como crime de violência doméstica – vide pontos 1 a 18 dos factos provados.
8. É patente na factualidade vertida e dada como provada o tratamento humilhante, vexatório, indigno, e de sobranceria e de domínio do agressor em relação à vítima, procurando-a sempre diminuir nas mensagens que envia, atingindo-a na sua dignidade humana, bem jurídico protegido no crime de violência doméstica.
9. Na parte da motivação da decisão sobre a matéria de facto, no terceiro parágrafo da página 16 e seguintes da sentença do Mº Juiz a quo, o mesmo contém um erro notório da apreciação da prova, nos termos do artigo 410º, nº 2, al. c) do CPP, constituindo violação clamorosa do disposto no artigo 127º do CPP: «As mensagens em apreço não compreendem a ameaça de qualquer mal futuro concreto, seja à vida, à integridade física ou ao património da ofendida. Quando o arguido escreve que a assistente leva com ele a vida toda, quer dizer que terá de lidar com ele pela vida fora por causa do filho em comum, ao passo que a advogada da assistente prosseguiria com a sua vida depois de terminado o caso, i.e. o processo judicial de menor. (…) Outrossim, quando o arguido escreve para esta imaginar que ele começava a bater à porta da assistente, fá- lo por se insurgir contra o facto, que considera abusivo, de esta lhe ter escrito que iria falar com a mãe dele sobre algo e como forma de ela não o faça por empatia. De igual modo, quando o arguido escreve que rebentaria com a carreira da ofendida, não concretiza de que modo o faria, deixando aberta a possibilidade de uma conduta lícita com a virtualidade de prejudicar a carreira profissional da vítima, tanto mais que ambos frequentavam o meio artístico, conforme referiram.»
10. As expressões: «Tás com sorte que tou bem disposto. Vou deixar-te dar as penúltimas gargalhadas»; «Explica à tua Advogada (…) que o caso acaba, ela segue a vida dela mas tu levas comigo a vida toda. Abre o olho»; «Imagina que agora começava a bater à tua porta… lembra-te que tens um filho meu ctg. Eu to a deixar ir, tas a levar na tua putice mas to a deixar ir. Reza para a minha paciência não acabar»; «Não o trato a ele como te tratarei vida toda. Começa a abrir a pestana vadia»; «Eu rebento com a tua carreira»; «E como te vou continuar a ofender até ao fim da minha vida, na próxima sessão tbm conheces o meu advogado novo»; «puta, vai já chorar, vai já (…) quero mesmo é tu te fodas… assim com estas palavras (…)»; à luz das regras de experiência comum, tomando como parâmetro a capacidade de entendimento e volição das mulheres e homens medianos, e no quadro de circunstâncias em que foram proferidas, comportam seriedade e aptidão a causar receio e temor pela integridade física e vida da visada, assim como do seu património, sendo adequadas a coartar a livre determinação da assistente, como efetivamente o foram, causando-lhe temor e receio. Pelo que, de acordo com o que já foi dado como provado, foram cometidas ameaças, tentativas de coação, e difamação em pleno tribunal…, as quais foram descaraterizadas e desconsideradas pelo Mº Juiz a quo, de molde a não ter de subsumir o crime de violência doméstica, efetivamente cometido pelo arguido…
11. O crime de violência doméstica visa proteger muito mais do que a soma dos diversos ilícitos típicos que o podem preencher, como ofensas à integridade física, injúrias ou ameaças, estando em causa a dignidade humana da vítima, a sua saúde física e psíquica, a sua liberdade de determinação, que são brutalmente ofendidas, não apenas através de ofensas, ameaças ou injúrias, mas essencialmente através de um clima de medo, angústia, intranquilidade, insegurança, infelicidade, fragilidade, humilhação, tudo provocado pelo agente, que torna num inferno a vida daquele concreto ser humano». In Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, processo com o número 254/20.6PFAMD.L1-5, de 26.10.2021, www.dgsi.pt.
12. É patente e claro que na matéria de facto dada como provada o arguido tratou a vítima, ao longo de quase um ano, de forma absolutamente desprimorosa e humilhante, diminuindo-a, destratando-a, reduzindo-a. O arguido atuou de uma forma de supremacia e sobranceria em relação à vítima, procurando-a atingir no seu âmago, humilhando-a constantemente ao longo daquele tempo. Sendo que, além das humilhações constantes que atentam contra a honra e saúde psíquica da vítima, com o intuito de a molestar psicologicamente, o arguido ameaçou a vítima com males futuros concretos – de que iria aparecer à sua porta… deixá-la dar as penúltimas gargalhadas… abre o olho… reza para a minha paciência não acabar… eu rebento com a tua carreira… E também procurou coagi-la a tomar comportamentos, caso contrário: Não o trato a ele como te tratarei a vida toda. Começa a abrir a pestana vadia (…) e como te vou continuar a ofender até ao fim da minha vida, na próxima sessão do tribunal tbm conheces o meu advogado novo. E, “cereja no topo do bolo”, o arguido comete crime de difamação aquando das suas declarações em audiência, nos termos do disposto no artigo 361º do CPP, apenas para a atingir: «(…) que a minha mulher fodeu muito com um amigo dele. Fodeu muito com um amigo dele durante aquelas duas semanas (…).»
13. Portanto, subsumidos os factos provados às supracitadas normas jurídicas, conclui-se que a conduta do arguido preenche o tipo objetivo de um crime de violência doméstica, e perpretado desde junho de 2020 até Março de 2021 – dez meses.
14. Tais condutas assumiram assim a gravidade e reiteração mais do que suficiente para serem merecedoras da sua subsunção jurídica no tipo objetivo de violência doméstica em apreço. Tanto assim que, causaram na ofendida medo e receio das reações do arguido. Passando a estar ainda mais intranquila e ansiosa com medo de que o arguido lhe aparecesse à porta para atentar contra si, temendo pela sua integridade física e pela sua vida. Pelo receio e medo do que o arguido possa fazer, a assistente continua a viver com medo dele e do que este possa fazer contra si e viu-se forçada a recorrer a terapia semanal, que faz desde outubro de 2021, uma vez por semana, a fim de tentar reerguer-se e reequilibrar-se. O arguido agiu do modo descrito de forma livre, consciente e deliberada, sabendo que as suas condutas eram crime, pelo que agiu com dolo direto (artigo 14º, nº 1, do Código Penal) e, portanto, as suas condutas preencheram o tipo subjetivo do crime violência doméstica.
15. Termos em que o Mº Juiz a quo mal andou ao proceder à alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação para 4 (quatro) meros crimes de injúria, em face do ora exposto. Na verdade, conforme mencionado supra, ainda que se admitisse a alteração da qualificação jurídica dos factos para crimes de injúria, mal andou o Exmo. Juiz a quo em apenas condenar o arguido pela prática de 4 crimes. Analisando os escritos de ambas as sentenças produzidas pelo julgador, perceciona-se que o mesmo considera ofensivos da honra as comunicações descritas na acusação – vide pág. 15 da nova sentença:
«Nessas comunicações aludidas na acusação, o arguido dirigiu à ofendida palavras que são objetivamente injuriosas, chamando-lhe “burra com palas”, “atrasada mental”, “puta nojenta” e “puta”, “mongoloide”, “vadia” por quatro ocasiões; i.e. por mensagens enviadas em quatro dias ocorridos durante cerca de um ano.» (sublinhado nosso). Acontece que a contagem do número de crimes de injúrias não é feita pelo número de dias em que o arguido ofendeu a vítima, mas pelo número de resoluções criminosas. A enveredar pelo raciocínio do julgador, o arguido poderia ofender a assistente de ‘manhã à noite’ e apenas cometeria um crime de injúria. Cada mensagem enviada pelo arguido corresponde a uma resolução criminosa e consequentemente na prática de um crime de injúria. Se o arguido envia à Assistente diversas mensagens num dia, pratica tantos crimes quantas mensagens injuriosas enviadas. Pelo que, ainda que se considerasse que o arguido apenas injuriou a Assistente, o mesmo teria necessariamente de ser condenado pela prática de 9 crimes de injúria e não apenas quatro.
16. Outro erro notório na apreciação da prova – nos termos do disposto no artigo 410º, nº 2, al c) do CPP e em violação do disposto no artigo 127º do CPP -
«Não se vislumbrando nos escritos do arguido ameaças de mal futuro contra a vida e integridade física da ofendida, não mereceu credibilidade o alegado temor em que esta teria passado a viver, por falta de causalidade existente, pelo que se julgam não provados os factos elencados sob as alíneas O), P) e Q).» vide página 24 da sentença. Portanto, segundo o Mº Juiz a quo, e a sua convicção, não é credível que a assistente sinta medo e receio das reações do arguido, passando a estar intranquila e ansiosa, com medo de que o arguido lhe aparecesse à porta para atentar contra si, e que a mesma continuasse a viver com medo do arguido, em face da factualidade dada como provada: desde junho de 2020 até Março de 2021 – dez meses –, e já depois da separação do casal, que ocorreu em 13.08.2019, ameaçou-a, dizendo-lhe que lhe ia deixar dar as penúltimas gargalhadas; que iria bater à sua porta; que rebentaria com a sua carreira; quero mais é que tu te fodas; que iria tratá-la sempre desta forma humilhante; e que a iria continuar a ofender para o resto da sua vida; tendo-a apelidado de: «burra com palas», «tas a levar na tua putice»; «atrasada mental»; «Mongoloide»; «és deprimente»; «merda de mãe»; «vadia»; «puta nojenta»; «nojenta»; «vadia»; «puta»…
17. Tal fundamentação não tem sentido segundo o critério do homem médio e constitui uma grave violação do art.º 127º do CPP, pelo que a sentença contém um vício, em conformidade com a al. c) do nº 2 do art.º 310 do CPP, devendo ser corrigida e dar-se como provada a factualidade vertida nos pontos O), P) e Q).
18. Muito mal andou o Exmo. Juiz a quo ao credibilizar da mesma forma os depoimentos prestados pela Assistente e pelo arguido. Enquanto que a Assistente prestou declarações de uma forma absolutamente correta e credível (relatando os factos com elevada coerência e emoção), o arguido não tinha um discurso minimamente coerente ou lógico. O próprio julgador apontou aquando da inquirição que a lógica do arguido não tinha qualquer sentido, mas depois coloca na sentença que «Ambos prestaram declarações de modo articulado, sem pudor ou reserva em manifestar os seus sentimentos vivenciados pelos factos que iam relatando.» Não se compreende e há que corrigir o grave erro do Julgador.
19. O depoimento da assistente foi corroborado pelas declarações das testemunhas da acusação, pelo que toda a factualidade descrita na acusação devia ter sido dada como provada. Todavia, numa atitude paternalista, sempre que perante factos prejudiciais para o arguido, o Exmo. juiz: ou (i) desconsiderou a gravidade dos mesmos; ou (ii) interpretou-os ao total arrepio das regras normais da experiência; ou (iii) omitiu-os por completo.
20. Evidente que qualquer prova sujeita a este tipo de abordagem revelar-se-á «demasiado parca e insuficiente». Na verdade, o julgador não quis valorar o depoimento do arguido de forma negativa (como se impõe face às declarações prestadas) e, portanto, teve que descredibilizar e descaracterizar os depoimentos da Assistente e das suas testemunhas de forma a os conseguir ‘nivelar’ e com isso manter a decisão que proferiu anteriormente. Com efeito, vem argumentar que: a Assistente é atriz e que não se pode olvidar tal evidência; depôs desacompanhada de lágrimas, o que não corresponde à verdade; não mostrou emoção quando inquirida pelas Advogadas; o estado de stress vigilante que tinha dado como provado anteriormente, agora vem carecer de comprovação clínica; o arguido também pertence ao meio artístico pelo que não lhe parece verosímil ter ciúmes dos homens com quem a vítima contracena; e muitos outras situações conforme explanado nas alegações supra.
21. A prova não foi apreciada segundo as regras da experiência e da livre convicção – artigo 127º do CPP – mas recorrendo a critérios e valorações gerais, vindas, diga-se abertamente, do preconceito, pelo que não admitidas: i) a assistente é atriz logo esteve a atuar em audiência de julgamento; ii) O arguido também pertencia ao meio artístico, o qual é tendencialmente mais tolerante e liberal, pelo que o mesmo também será tolerante e liberal e não ciumento… iii) encontra-se pendente um processo de regulação das responsabilidades parentais, pelo que é plausível a assistente mentir no âmbito do processo crime para obter um trunfo naquele processo… iv) quando o arguido escreve que rebentaria com a carreira da ofendida, não concretiza de que modo o faria, deixando aberta a possibilidade de uma conduta lícita com a virtualidade de prejudicar a carreira profissional da vítima; v) stress vigilante que é um conceito clínico pelo que carece de comprovação por quem tem especiais conhecimentos científicos ou médicos; entre outros…
22. Por sua vez, o arguido procedeu a confissão parcial dos factos – as mensagens… porque documentadas no processo!! – e tudo o resto negou, o que é de estranhar… Portanto, todas as agressões ocorreram só por mensagem… A raiva sentida só a manifestou por mensagens, e nunca na presença da assistente - O que o homem médio comum estranha… Pelo que ao arguido não deveria ter sido dada nenhuma credibilidade, atendendo às diversas incongruências e falsidades detetadas no seu discurso sendo nomeadamente as seguintes:
a) o próprio arguido admitiu que deixou de ver o filho durante 9 (nove) meses, porque assim o quis… E justamente no período temporal em que enviou aquelas mensagens. Mas nada disto foi plasmado nas duas sentenças, o que se estranha… «… a versão do arguido de que sucumbiu à frustração e à raiva espoletadas por o que entendia ser a privação de convívio com o filho, já depois da separação do casal…» - pág. 10 da sentença.
Portanto, o Mº Juiz a quo considerou razoável e plausível o sentimento de raiva e frustração sentidos pelo arguido por estar privado de ver o filho…
Quando foi o mesmo que, por vontade própria, deixou de ver o filho durante nove meses, porque assim o quis!!! O progenitor deixou de cumprir com o regime de visitas provisoriamente fixado desde Dezembro de 2020 até Agosto de 2021, e nos entretantos enviava as mensagens que se encontram documentadas nos autos… Isto tem alguma congruência?? Nenhuma. Tudo isto foi desconsiderado, quase que numa atitude paternalista e protetora do arguido, fazendo da Assistente a “má da fita”, porque provoca uma alienação parental, quando na verdade o próprio Mº Juiz a quo chegou a referir em audiência de julgamento o seguinte, ao arguido: «Auto-inflige sofrimento não cumprindo a regulação provisória que tinha… É uma alienação parental auto-infligida».
b) O que o arguido na verdade queria era chegar ao Tribunal de Família e Menores e dizer que não via o filho por causa da progenitora… Portanto, ia mentir no Tribunal de Família. Mas aqui no Tribunal Criminal dá-se-lhe toda a credibilidade (presumimos…), mesmo com um discurso incoerente e absurdo:
Arguido: A motivação foi: esta guerra chega, eu preciso que isto acabe. E se não é a mãe do meu filho a acabar com ela, que seja o Tribunal. Que seja o Tribunal. Estamos em Dezembro, eu quero passar o Natal com o meu filho. Ela está-me a dizer que não. A Juíza o ano anterior já me tinha dito que seria eu a passar o Natal. Se a mãe faz o que quer, quem sou eu, não preciso de estar aqui a fazer nada! Então espero por ir a Tribunal e lá resolvam! E chego a Tribunal e digo, «eu não vejo o meu filho há um mês». Que isto seria a minha ideia. Isto seria a minha ideia. (…) Eu disse-lhe, não Dra, isto vai-nos ajudar, porque com a garreia toda, com a garreia toda que aqui está, eu preciso de explicar ao Tribunal que eu não consigo estar com o meu filho, por isto, por isto. E ela disse não BB… Independentemente de…
23. A que se juntam as seguintes e graves incoerências, que foram tábua rasa para o Julgador:
c) Arranjou recentemente uma casa que é mais perto ainda da vítima – dois minutos a pé da casa da Rita e dois minutos a pé do infantário. – o arguido já vivia em Queijas, mas sentiu necessidade de ir morar para mais perto da vítima…
d) Aquando da separação com a vítima, em 13.08.2019, saiu de casa e foi para Beja, mas depois afirma que não viu o filho durante aquele período de tempo. Mas o que é certo é que a vítima afirma que tentou acordo e que ele não compareceu. E que foi ela que instaurou o pedido de regulação das responsabilidades parentais.
e) Delírios – acusaram-me de maçonaria com a Juíza de menores, de que o Advogado da Rita era pago por mim e não pela Rita. Além de outras acusações criativas que envolvem inclusivamente a signatária desta peça, assim como a anterior advogada do arguido… Dado que, e conforme é consabido, os agressores não apresentam capacidade de insight (vide relatório social para determinação da sanção junto aos autos a fls…) e justificam todos os seus comportamentos com situações externas. Justificações essas que infelizmente foram acolhidas pelo Mº Juiz a quo, sem o crivo da razoabilidade e do bom senso: Isto tem tudo a ver com o Tribunal de Menores: no ano de 2019 – o primeiro ano a Rita ficaria de 24/25 e eu de 1 para 2, sendo que no ano seguinte trocaria. Ao mesmo tempo que estava nesta luta de guarda partilhada, o meu irmão estava com cancro… ficou revoltado por não ter o meu filho nem o meu irmão. O meu problema não está aqui, está no Tribunal de menores. (…) Foi raiva (…) Foi raiva (…)
f) «Por mais raiva que tenha (…) A mãe pode ir lá a casa… A mãe pode brincar com os brinquedos…»
g) «Quando eu perdi a cabeça foi só por mensagem …» - Não é de todo plausível que o arguido só perca a cabeça por mensagens... (!!)
h) Vide Relatório social para determinação da sanção junto aos autos a fls…: «Os factores de risco avaliados decorrem em nosso entender de deficits na resolução de problemas, da labilidade do arguido, da ausência de empatia pela alegada vítima e da atitude de minimização do problema de violência doméstica e desvalorização de uma eventual reação penal».
i) «Desde que eu saí de casa eu não falo com a Rita sem ser por mensagens.» Que não fala com a vítima sem ser por mensagens e emails, desde que saiu de casa – portanto não existem entregas do menor, nem telefonemas, nem videochamadas… «Eu não falo com a Rita sem ser por mensagem ou email, para que fique registado. Foi para registar a minha raiva, pelo facto de não poder estar com o meu filho» - O homem médio comum não acredita, nem é natural que assim seja, que o arguido e a assistente só falem por mensagens… E o arguido descaiu-se, ao longo do seu depoimento.
j) «Neste momento estou numa luta, e neste momento vou aceitar tudo o que V. Exa achar por bem tomar a sua decisão, mas esta luta de todo que não é minha, porque a minha luta é por uma guarda partilhada…» Mas não aproveitou, durante 9 meses, e de forma absolutamente ininterrupta, a possibilidade de estar com o filho, ainda que só em visitas…
k) «Não foi a pensar em fazer mal à mãe. NUNCA Não foi a pensar em rebaixá-la. NUNCA. Nunca a quis rebaixar. Só queria que a Rita entendesse o meu desgosto.»
l) A certo passo do seu depoimento o arguido refere que a assistente é uma excelente mãe: «Ainda hoje eu faço questão de dizer que o meu filho precisa muito, muito, muito da mãe. Independentemente das nossas discussões, independentemente do que quer que se passe em qualquer um dos Tribunais, o meu filho gosta muito da mãe. O meu filho ama muito a mãe, e precisa dela e eu nunca na vida faria isso ao meu filho.». Como se o envio de mensagens – que estão provadas – em que o mesmo lhe apelida de merda de mãe, duas vezes, nunca tivesse ocorrido: «(…) para que um dia o meu filho veja bem a merda de mãe que tem… mas isso não sou eu que lhe vou dizer… Sou eu que lhe vou provar…»
m) Depois resolveu difamar a Assistente em plena audiência de julgamento, de forma absolutamente gratuita e sem nexo, porque ela se encontrava presente e porque o arguido não gostou das alegações da signatária: «E diz-me literalmente que a minha mulher, e vou pedir mil desculpas a quem está a escrever, que a minha mulher fodeu muito com um amigo dele. Fodeu muito com um amigo dele durante aquelas duas semanas.»
24. Portanto, fez o Mº Juiz a quo uma apreciação totalmente errónea dos depoimentos prestados – do arguido e da assistente – pelo que padece do vício do erro notório na apreciação da prova, nos termos do disposto no artigo 127º do CPP.
25. Tão errónea e sem sentido que foi a sua apreciação e redação da sentença que, na mesma, manteve contradições insanáveis que foram apontadas para correção pelo douto Tribunal da Relação de Lisboa, nomeadamente:
- O julgador deu como provado no ponto 18. Dos factos provados: «Por força da conduta do arguido a assistente sentiu-se triste, humilhada, cabisbaixa e ofendida na sua honra e consideração, diminuída e com fraca autoestima, com vergonha, humilhação, instável e ansiosa, chorando e não dormindo bem no final do ano de 2019.» Porém ao mesmo tempo deu como não provados os factos O), P) e Q).
- Conforme V. Exas. referiram no Acórdão proferido aquando interposição de recurso da 1ª sentença: «Do mesmo modo, foi julgada como provada a referida ansiedade e que a assistente vinha "chorando muito e não dormindo bem no final do ano de 2019", e como não provado que a mesma se viu forçada a recorrer a terapia semanal, a fim de tentar reerguer-se e reequilibrar-se.
Contudo, a sentença recorrida é omissa quanto aos motivos pelos quais se julgou como não provado este último facto (de que a assistente necessitou de recorrer a terapia para se reequilibrar), pelo que nesta parte se verifica uma total ausência de fundamentação. (…)
Assim, o Senhor Juiz de 1ª instância:
Deu como provado e, simultaneamente, como não provado que a assistente,
por força da conduta do arguido, passou a sentir-se ansiosa, pelo que o mesmo facto foi dado como provado e como não provado.
Deu como provado que a assistente se sentiu instável, em stress, e simultaneamente, como não provado que passou a estar intranquila, pelo que considerou como provados e não provados factos inconciliáveis ou incompatíveis entre si. Deu como provado o estado de stress vigilante (que significa estar atenta, estar cautelosa) e, ao mesmo tempo, como não provado que a assistente sentia medo das reacções do arguido e do que este lhe poderia fazer.»
- Sobre estes pontos, o Exmo. Juiz a quo em nada esclareceu ou corrigiu, apenas deu agora como não provado o estado de stress vigilante em que a Assistente passou a viver, porquanto o mesmo carece de comprovação por quem tem conhecimentos científicos ou médicos. Segundo o Mº juiz o estado de stress vigilante apenas foi dado como provado anteriormente por desatenção, o que muito se estranha porque na sentença anterior nada disse acerca desse conceito carecer de comprovação técnica… Não nos parece que tenha sido esse o caso. De facto, houve desatenção por parte do juiz ao redigir a sentença da forma em que o fez, mas apenas por não reparar nas várias contradições ali presentes. Com efeito, parece-nos que o fundamento de que conceito de stress vigilante carece de comprovação técnica apenas surge para ‘tapar buracos’, e assim se sanar os factos contraditórios da sentença. Desde logo pelo stress vigilante não se tratar de um conceito clínico. Efetivamente o conceito de stress é um conceito clínico, mas não está sujeito a comprovação técnica para que se o possa considerar como provado em juízo. Conforme mencionado por V. Exas., stress vigilante significa estar atento, estar cauteloso e isso não está sujeito a comprovação por quem detém conhecimentos especiais. Contudo, ainda considerando como não provado o estado de stress vigilante em que a Assistente passou a viver, na mesma a sentença padece de contradições insanáveis, porquanto deu como provado que «Por força da conduta do arguido a assistente sentiu-se triste, humilhada, cabisbaixa e ofendida na sua honra e consideração, diminuída e com fraca autoestima, com vergonha, humilhação, instável e ansiosa, chorando e não dormindo bem no final do ano de 2019» e ao mesmo tempo deu como não provado que a mesma passou a estar mais intranquila e ansiosa com medo das reações do arguido e que se viu forçada a recorrer a terapia semanal, a fim de tentar reerguer-se e reequilibrar-se, pelo que estamos perante uma sentença nula nos termos do disposto nos art.ºs 374º/2 e 379/1-a) do Código de Processo Penal.
26. Matéria de facto que deveria ter sido dado como provada: as alíneas A) a Q) da matéria de facto não provada deveriam inversamente ter sido consideradas como Provadas, porquanto:
27. CONCRETAS PROVAS QUE IMPUNHAM DECISÃO DIVERSA DA RECORRIDA – al. b) do nº 3 do artigo 412º do CPP:
Depoimento do arguido no dia 14.02.2022 e no dia 08.04.2022:
00:00:00 Início Gravação 14-02-2022 09:56:12
00:00:01 Arguido BB 14-02-2022 09:56:13
01:02:19 Fim Gravação 14-02-2022 10:58:32
00:00:00 Início Gravação 08-04-2022 14:17:02
00:00:01 Magistrado Judicial Miguel Pereira da Rosa 08-04-2022 14:17:03
00:14:34 Fim Gravação 08-04-2022 14:31:37
28. O arguido, que teve um discurso absolutamente contraditório, inverosímil, fantasioso, desconexo, e que só admitiu aquilo que não podia deixar de admitir – as mensagens escritas que enviou, porquanto documentadas no processo… referindo que as injúrias foram só por mensagens, para ficar tudo documentado… E tudo o resto não aconteceu… porquanto não documentado e não visto por terceiros. Que conveniente…
29. E depois deste discurso desconexo, mirabolante, difamatório e inverosímil, da parte do arguido; vêm as declarações da assistente que foram absolutamente incólumes e credíveis; coesas, num relato espontâneo e livre; também sofrido, dado que chorou o tempo todo; mas não deixou de relatar todos os factos ocorridos.
00:00:01 Assistente AA 14-02-2022 10:59:25
01:36:04 Fim Gravação 14-02-2022 12:35:29
00:00:00 Início Gravação 14-02-2022 12:35:32
30. Mais é de referir que as testemunhas da assistente corroboraram o que esta relatou, na medida do possível – factos parcelares mas coadjuvantes – dado que este é um crime que tipicamente se comete entre “quatro paredes”, em que não há testemunhas, e há muita vergonha em expor aos familiares e amigos, e a terceiros.
31. Mas, esquecendo-se desse facto transversal aos crimes de violência doméstica, resolveu também relativizar estes depoimentos – não atendendo à sua credibilidade – mas apenas porque são familiares e amigos da vítima… «As testemunhas de acusação, sendo familiares e amigos da ofendida, não presenciaram qualquer facto ilícito, tendo tão somente descrito as alterações que foram percecionando na personalidade e no modo de viver da vítima».
32. O que é certo é que estas testemunhas relataram episódios concretos que vivenciaram e, que, não obstante não presenciarem a maior parte dos acontecimentos (como é natural e não poderia deixar de ser) deixam vestígios contundentes e corroborantes de que efetivamente o crime de violência doméstica ocorreu.
33. A testemunha DS, prestou depoimento em 07.03.2022, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 09:29:29 horas e o seu termo pelas 09:49:51 horas.
34. AL, 39 anos, prestou o seu depoimento em 07.03.2022, o seu início ocorreu pelas 09:50:37 horas e o seu termo pelas 10:06:01 horas.
35. EC., 50 anos, prestou o seu depoimento em 07.03.2022, o seu início ocorreu pelas 10:06:34 horas e o seu termo pelas 10:16:02 horas.
36. JC, prestou o seu depoimento em 07.03.2022, o seu início ocorreu pelas 10:16:45 horas e o seu termo pelas 10:27:37 horas.
37. Já as testemunhas do arguido nada viram e vieram todas com a “cassete” posta de que o arguido era um bom pai, sem adiantar muito mais, mas são testemunhas abonatórias; e nada mencionaram relativamente ao facto de o progenitor ter estado durante 9 meses sem ver o seu filho… e porque quis. Tendo inclusivamente uma testemunha (SV) referido que a progenitora dificultava as visitas quando foi o próprio arguido a afirmar que ficou, por iniciativa própria, sem ver o filho durante nove 9 meses, e que decorrido esse período retomou as visitas sem qualquer problema, e como se nada fosse…
38. PROVA DOCUMENTAL que impunha decisão diversa da mencionada – as alíneas A) a Q) da sentença constante como matéria de facto não provada, deveria ter sido dada como não provada:
39. Mensagens transcritas e emails – pelo que não os pôde negar – admitindo só este segmento da acusação, como se a vida fosse estanque e compartimentada, e o arguido fosse uma pessoa estável emocionalmente, canalizando a sua suposta raiva apenas por aquele meio… que já vimos que não é… e a normalidade da vida assim não acontece… Até é de estranhar que, estando separado da vítima e sem a ver, durante aqueles meses, e porque não ia buscar o filho por sua vontade, direcionasse tanta raiva… E quando a via e falava com a vítima como seria?? Tem o Julgador a inocência de achar que na presença da vítima seria “um mar de rosas”?... Não nos parece.
40. Relatório pericial psicológico do Gabinete de Assessoria Técnica junto aos autos a fls… - afirma que o progenitor não apresenta competências parentais adequadas em virtude de determinadas práticas que são potenciadoras do condicionamento do descendente – que recomendou a frequência do progenitor em programa que trabalhe as suas competências parentais vs a afirmação das testemunhas abonatórias… Mais referindo que o mesmo necessita de uma avaliação clínica estruturada.
41. Relatório social para a determinação da sanção junto aos autos a fls…: «dificuldades ao nível da regulação emocional, admitindo um episódio de descontrolo e agressividade, revela diminuta capacidade para se colocar no papel do outro e para avaliar com objetividade as consequências do seu comportamento. Avalia com grande contrariedade os factos do processo judicial e não equaciona a hipótese de poder haver uma reação penal o que poderá, em caso de condenação, comprometer a frequência de um programa de treino de competências, direcionado para o problema da violência doméstica.» (…) «Os factores de risco avaliados decorrem em nosso entender de deficits na resolução de problemas, da labilidade do arguido, da ausência de empatia pela alegada vítima e da atitude de minimização do problema de violência doméstica e desvalorização de uma eventual reação penal.» Pelo exposto, considera-se em caso de condenação estão reunidas as condições para a execução de medida probatória, que promova o treino de competências socio emocionais, sujeita à obrigação de frequência de programa para agressores de violência doméstica (PAVD) visando-se uma mudança comportamental na problemática associada à violência doméstica».
42. Nestes termos e nos melhores de Direito deveria ter sido dada como PROVADA toda a factualidade contida nas alíneas A., B., C., D., E., F., G., H., I., J., K., L., M., N., O., P., Q. da sentença, e o arguido condenado no crime de violência doméstica, p. e. p. pelo artigo 152º, nº1, alínea b) e nº 2 alínea a) do Código Penal.
43. Dando-se provada a factualidade identificada, o pedido de indemnização civil terá de ser revisto, e o arguido condenado em virtude dos danos patrimoniais e não patrimoniais no pagamento de 5.000,00€ à assistente, fazendo-se assim a costumada.
JUSTIÇA!!!
(fim de transcrição)
*
O arguido respondeu aos recursos interpostos, apresentando as seguintes conclusões (transcrição):
A. Bem andou este Douto Tribunal ao absolver o Recorrido da acusação de prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica agravado, p.e.p. pelo art.º 152.º n.º 1 alínea b) e n.º 2 ambos do CP, convolando tal acusação na imputação de quatro crimes de injúrias, p.e.p. pelo art.º 181.º n.º 1, em conjugação com os artigos 26.º e 30.º n.ºs 1 e 3 do CP.
B. Com efeito, bem andou o Douto Tribunal a quo ao considerar que a factualidade existente não é subsumível à prática de um crime de violência doméstica, contrariamente ao que os recorrentes insistem em imputar ao ora Recorrido.
C. Não merecem qualquer acolhimento os argumentos dos Recorrentes para a interposição do recurso, pois a sentença não efectuou nenhuma qualificação jurídica dos factos errada e não existem erros notórios na apreciação da prova.
D. Sem apresentarem verdadeiramente alegações que permitissem aquilatar da errada apreciação da prova e errada qualificação jurídica do crime face aos factos considerados provados.
E. a posição dos recorrentes resume-se meramente a divergência das suas opiniões quanto à apreciação da prova efectuada pelo julgador, baseando as alegações de recurso em que a fundamentação da convicção do julgador foi contraditória, ambígua e obscura, “encerrando em si graves erros de julgamento, pelo que desrespeitando em absoluto o estipulado no artigo 127º do CPP.”.
F. O Tribunal julgou correctamente como não provados os factos elencados nas alíneas A) a Q), numa decisão quanto à matéria de facto fundamentada, assente na prova efectivamente produzida e devidamente examinada, sem qualquer violação do princípio in dubio pro reo e sem qualquer vício de erro de apreciação de prova.
G. Foi através de um processo lógico de formação de convicção, através da análise crítica de toda a prova produzida – e não apenas aquela que favorecia a acusação e a assistente – que foi proferida uma decisão, devidamente fundamentada e perfeitamente enquadrada com a realidade dos factos.
H. Como é óbvio, não podia o juiz a quo atribuir valoração a um depoimento em determinado sentido, para depois retirar desse depoimento uma conclusão contrária. Aí sim, verificar-se-ia erro notório na apreciação de prova.
I. Pelo que bem concluiu o Tribunal a quo que os factos que estão efectivamente provados não integram o crime de violência doméstica, mas sim quatro crimes de injúrias.
J. A Recorrente pretende ver o Recorrido condenado por um crime de violência doméstica, alegando para o efeito que as mensagens enviadas são aptas a configurar a prática de tal crime e que tudo o resto por si alegado como tendo ocorrido durante o seu relacionamento de 3 anos, seria também apto a configurar a prática do mesmo crime e que efectivamente aconteceu, embora não tenha feito prova alguma que o sustente.
K. Olvidando ainda que entre a separação do casal ocorrida em 08/2019 e o envio das mensagens em 06/2020, decorreu praticamente um ano, estranhamente sem que exista registo de qualquer importunação do arguido à assistente.
L. E, portanto, o Recorrido seria, na sua visão, justamente condenado por um crime de violência doméstica, ainda que não preencha nenhum dos tipos do referido crime.
M. E mesmo sem que existam provas da prática de tal crime, estranhando ainda que a conveniência de tal falta de provas aproveite ao mesmo N. Invertendo totalmente aquilo que são os princípios previstos constitucionalmente, respeitantes ao Estado de Direito e de Direito a um julgamento justo e equitativo.
O. Nos factos provados n.ºs 1 a 18, não existe qualquer alusão a uma única agressão física, uma única ameaça contra a vida ou a integridade física da vítima, ou descritos quaisquer actos violentos cometidos durante o período de relacionamento conjugal.
P. Nesses factos n.ºs 1 a 18 apenas se descrevem algumas mensagens, consideradas provadas e transcritas no processo, que se circunscrevem a um período de tempo limitado, muito depois da separação do casal, entre 08-07-2020 e 06-03-2021, sendo que aquelas que revestem algum tipo de injúria foram enviadas em apenas em 4 ocasiões.
Q. E, não obstante, estão em causa um total de 7 mensagens no espaço de 9 meses, no fim de 3 anos de relacionamento e ainda após um ano de separação, o que nem sequer apresenta qualquer tipo de reiteração que possa ser apta a preencher o tipo de crime que os Recorrentes aqui pretendem ver preenchido, de acordo com a fundamentação (nenhuma, na verdade), que apresentam.
R. Assim, bem andou o Tribunal a quo quando, fundamentadamente, entendeu e explicou que as mensagens transcritas nos factos n.ºs 5, 6, 7 e 8 não configuram qualquer ameaça ou injúria à recorrente, já que das mesmas não consta a ameaça com um mal futuro e concreto, susceptível de a fazer temer pela sua segurança.
S. Acresce que, uma vez que as mensagens descritas nos factos n.ºs 5 a 8 não imputam à recorrente qualquer facto ou epíteto lesivo da sua honra, não se podem considerar as mesmas como injuriosas.
T. E, diga-se, não é por se usarem expressões como “putice” que tal implica que quem utiliza tal expressão está a querer imputar ao destinatário de tal expressão que o seu comportamento é semelhante ao de alguém que ganhe a vida por meio de prostituição.
U. Aliás, basta atentar no contexto de tal expressão para que se conclua que não existiu qualquer injúria.
V. Os recorrentes entendem que o tribunal a quo não formulou a sua convicção na ponderação, à luz das regras de experiência comum, nem na análise crítica da prova produzida e ainda que foram omitidos juízos de valoração dos depoimentos.
W. Mas tal não corresponde à verdade, uma vez que resulta da sentença a análise de todos os depoimentos, de testemunhas, assistente e arguido, conjugados entre si, a fundamentação da credibilidade e peso atribuídos a cada um, bem como a análise das mensagens enviadas e respectivo enquadramento – portanto, as mensagens imediatamente anteriores e posteriores àquelas que podem ser consideradas injuriosas.
X. Tendo ainda sido feita a análise crítica de toda a produzida, devidamente enformada na realidade vivida pela assistente e arguido, não só à data do envio das referidas mensagens, mas também durante todo o relacionamento e final do mesmo, à luz da personalidade das partes, também esta devidamente considerada.
Y. O Mmo. Juiz a quo apenas não atribuiu aos alegados factos e depoimentos, nomeadamente e para o que aqui interessa, das testemunhas arroladas pela recorrente assistente, o significado que os recorrentes pretendem ver retirado: o de fazerem prova do alegado pela assistente, sendo que nada ouviram e nada viram que relevasse para a condenação ou absolvição do Recorrido.
Z. Já o Recorrido, não podia fazer prova de não ter cometido os actos ilícitos de que vinha acusado no que respeita à versão incriminatória da ofendida sobre factos alegadamente cometidos durante a vida do casal, já que tal configuraria uma prova de factos negativos e, portanto, impossível.
AA. Como já visto, se das mensagens que o arguido enviou à assistente, elencadas nos factos provados com os n.ºs 5 a 13, não constam quaisquer ameaças concretas, nenhuma expressão susceptível sequer de integrar o crime de ameaça previsto no artigo 153º do Código Penal e se em nenhuma mensagem o arguido diz ou sugere que irá atentar contra a vida ou a integridade física da vítima, não se pode estranhar que o Tribunal tenha considerado como não provado que a ofendida passou a andar com medo que o arguido lhe aparecesse à porta para a atacar, com temor pela sua integridade física ou pela sua vida.
BB. Aqui sim, pode considerar-se conveniente à Assistente alegar este temor para reforçar aquilo que, a final, veio revelar ser a sua pretensão em sede das primeiras alegações finais (gravação do dia 08/04/2022 com a referência 20220408134343_4542134_2871364): se até esse momento nunca havia sido revelada a intenção de ver o Recorrido afastado da vida do filho de ambos, é nessa sede e neste momento, finda a produção de prova, que é requerida uma medida de afastamento.
CC. Os Recorrentes pretendem que o Tribunal extrapole das mensagens os restantes factos alegados pela Assistente e não provados, para que presuma que se o Recorrido enviou tais mensagens em 4 ocasiões no espaço de 2 semanas, então nos 5 anos anteriores praticou outros factos ilícitos e gravosos que se subsumem ao tipo de crime de violência doméstica.
DD. Ora, se o Tribunal fizesse tal juízo ilógico, infundado e inadmissível, tal seria assaz violador do princípio da presunção da inocência.
EE. No que respeita ao enquadramento penal dos factos, o tipo de crime violência doméstica tem como elementos constitutivos do respectivo tipo o objectivo, que configura a inflicção de maus tratos físicos ou psíquicos ao cônjuge ou ao ex-cônjuge; e o subjectivo o dolo, ie, o conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade.
FF. Na verdade, a violência doméstica não é, apenas, o mero somatório das acções, típicas ou não, praticadas pelo agente contra a vítima, mas o que deste conjunto de acções, globalmente considerado, resulta: como sendo a relação de domínio do Agente sobre e a vítima, relação esta apta a afectar de forma significativa a saúde física, psíquica e moral da vítima e, por esta via, a sua dignidade.
GG. In casu e por força de tudo o já exposto, essa relação de domínio não existe nem nunca existiu: a instâncias do Mmo. Juiz, é a própria assistente quem responde que se manteve na relação por ter sentimentos afectivos pelo arguido e não por medo, tendo sido sempre financeiramente independente.
HH. E também do que resultou provado em sede de audiência de julgamento, não se verifica uma situação de maus tratos da qual resultasse ou fosse suscetível de resultar sérios riscos para a integridade física ou psíquica da vítima.
II. Não se encontrando preenchido nem o elemento objectivo nem o subjectivo do crime
JJ. Assim, os Recorrentes pretendem uma condenação do recorrido baseada em factos não provados e criados com o único intuito de simular a existência de um crime de violência doméstica que nunca existiu, não se encontrando sequer preenchidos os tipos objectivo e subjectivo do crime em causa.
KK. Não se verificando os elementos típicos previstos no artigo 152.º do Código Penal, na medida em que não existiram maus tratos reiterados e graves, nem durante nem após o termo do relacionamento, nem existiu qualquer domínio do alegado Agente sobre a alegada Vítima, mas apenas quatro injúrias num período de tempo limitado, esteve bem o Tribunal a quo ao absolver o arguido do crime de violência doméstica, convolando-se alguns factos da acusação (os considerados provados) em quatro crimes de injúrias, pelos quais o arguido foi condenado.
LL. O crime de violência doméstica é um crime considerado muito grave, que apenas se consuma no caso da violência exercida se estender no tempo, de forma reiterada e grave para a saúde da vítima, existindo uma relação de domínio entre o Agente e a Vítima o que, como ficou provado, não é nem nunca foi o caso que se verifica neste processo.
MM. Não se pode considerar que quatro injúrias, levadas a cabo através do envio de mensagens de telemóvel, durante um período temporal muito limitado, no espaço de duas semanas, em 4 ocasiões, como susceptíveis de constituir o exercício suficientemente reiterado de maus tratos psíquicos repetido ao longo de um largo período de tempo da relação, nem suficientemente grave, tratando-se apenas de injúrias, não podendo integrar um crime tão grave como a violência doméstica.
NN. Não é nem foi este o propósito do legislador ao regular este crime, nem é possível interpretar o tipo penal de modo tão extensivo por forma a nele incluir qualquer conduta mais ríspida entre ex-cônjuges, como meras injúrias isoladas, sob pena de se defraudar o propósito da punição desse crime e não se realizar a justiça.
OO. Aqui chegados, óbvio se torna que não se verificam quaisquer erros na decisão proferida quanto à matéria de facto dada como não provada e que o Tribunal a quo apreciou e analisou correctamente todos os meios de prova produzidos.
PP. Face a tudo o supra exposto, contrariamente ao alegado nos recursos interpostos, não existem concretas provas que imponham decisão diversa a respeito da matéria de facto, nos termos do artigo 412.º n.º 3 al. b) do Código de Processo Penal.
QQ. Tendo andado muito bem o Tribunal a quo ao apreciar toda a prova produzida e concluir que o arguido não cometeu o crime de violência doméstica, tendo apenas injuriado a assistente em quatro ocasiões determinadas.
Pelo exposto, deverão ser improceder os recursos interpostos, mantendo-se a sentença recorrida nos termos em que foi exarada em relação à responsabilidade criminal imputada ao Recorrido, desta forma fazendo V. Exas. a acostumada
JUSTIÇA.
(fim de transcrição)
*
Neste Tribunal da Relação, pela Exma Procuradora-Geral Adjunta, foi emitido parecer do seguinte teor (transcrição parcial):
(…)
II – O Ministério Público na 1ª instância, interpôs recurso por considerar que a prova produzida em julgamento impunha a condenação do arguido pela prática do crime de violência doméstica agravado, pelo que impugna a matéria de facto, pugnando pelo seu enquadramento jurídico em conformidade.
Assim, considera que foram incorretamente julgados os pontos C. a Q. da matéria de facto considerada como não provada, por entender que da prova produzida em julgamento e das regras da experiência comum, os mesmos devem ser dados como provados, com a redação que indica, integrando a prática de crime de violência doméstica agravado.
III - O recurso não suscita objeções quanto à sua admissibilidade, tempestividade, legitimidade, espécie, forma, momento de subida e efeito fixado, devendo ser julgado em conferência, atento o disposto no art.º 419. °, n.º 3, alínea c), do Código Processo Penal (C.P.P.).
IV - A motivação de recurso analisa a questão da produção de prova de forma correta e completa, assim como o correspondente enquadramento jurídico, pelo que com ela concordamos integralmente.
V – Pelo exposto, secundando a posição expressa na motivação de recurso, emite-se parecer no sentido de que o recurso merece provimento.
*
Cumprido o disposto no artigo 417.º, nº 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta.
*
Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, teve lugar a conferência.
*
II. FUNDAMENTAÇÃO
1. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
Dispõe o artigo 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal que “a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”.
Daí o entendimento pacífico de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo que apenas as questões aí resumidas deverão ser apreciadas pelo tribunal de recurso, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, designadamente os vícios previstos no n.º 2 do art.º 410º do mesmo Código.
*
Atentas as conclusões formuladas pelos recorrentes, as questões a decidir são as seguintes (sem prejuízo de ficar prejudicada a apreciação de alguma(s) em função do que se venha a decidir sobre outras):
1. Relativamente ao recurso interposto pelo Ministério Público:
a) erro de julgamento quanto aos factos descritos na sentença recorrida como não provados sob os pontos C. a Q.;
b) a serem dados como provados tais factos, a sua subsunção ao tipo legal de crime de violência doméstica;
c) aplicação ao arguido de pena de prisão suspensa na sua execução, condicionada a regime de prova.
2. Relativamente ao recurso interposto pela assistente:
a) nulidade da sentença;
b) contradição insanável entre factos provados e não provados;
c) erro notório na apreciação da prova;
d) erro de julgamento quanto aos factos constantes dos pontos A. a Q. dos Factos não provados;
e) subsunção dos factos provados ao tipo legal de crime de violência doméstica;
f) alteração do montante da indemnização por danos não patrimoniais.
*
2. DA SENTENÇA RECORRIDA
2.1. Na sentença recorrida, foram julgados provados e não provados os seguintes factos (transcrição):
Factos provados.
Apreciada criticamente a prova produzida e examinada em audiência de julgamento, julgam-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão da causa:
1. O arguido e AA viveram como se de marido e mulher se tratassem desde não concretamente apurada, mas pelo menos desde data não concretamente apurada da gravidez do filho em comum, tendo fixado residência na Rua …, n.º 8, em Queijas, concelho de Oeiras.
2. Desse relacionamento nasceu um filho, CC, em 12/11/2018.
3. O arguido é consumidor habitual de bebidas alcoólicas e de produtos estupefacientes, nomeadamente haxixe.
4. A separação do casal ocorreu em 13/08/2019 e o arguido nunca se conformou com o regime de visitas do menor, iniciando várias discussões com AA.
5. Após [o início de junho de 2020], através do número 928054299, o arguido passou a enviar várias mensagens escritas AA, para o número desta (918863479) e, em 29/06/2020, às 15h38, o arguido enviou-lhe a seguinte mensagem: “Tás com sorte que tou bem disposto. Vou deixar-te dar as penúltimas gargalhadas”.
6. No dia 8/07/2020, às 10h12, o arguido enviou a seguinte mensagem escrita a AA: “(…) Explica a tua advogada (...) que o caso acaba, ela segue a vida dela mas tu levas comigo a vida toda. Abre o olho”.
7. No dia 8/07/2020, às 22h56, o arguido enviou a seguinte mensagem escrita a AA: “(...) Para além do mais, estamos em Julho as escolas fecharam e mais uma vez tu, burra com palas, ouves os outros em vez de pensares no teu filho (...)”.
8. No dia 18/02/2021, às 6h19, o arguido enviou a seguinte mensagem escrita a AA: “Imagina que agora começava a bater à tua porta... lembra-te q tens um filho meu ctg. Eu to a deixar ir, tas a levar na tua putice mas to a deixar ir. Reza para a minha paciência não acabar”.
9. No dia 23/02/2021, às 7h34, o arguido enviou a seguinte mensagem escrita a AA: “Bom dia atrasada mental. O meu filho como está?”.
10. No dia 26/02/2021, às 22h20, o arguido enviou a seguinte mensagem escrita a AA: “Mongoloide, tudo bem? O meu filho como está? Gostava de saber dele sim atrasada mental, és deprimente (...) A mim faz-me muita confusão a merda de mãe que o meu filho tem ... Mas não vou lutar ctg nem o vou buscar. Isso só aumentará o ódio para tudo isto vadia”.
11. No dia 01/03/2021, às 07h05, o arguido enviou a seguinte mensagem escrita a AA: “Bom dia puta nojenta. Quero tar com o meu filho. Não o trato a ele como te tratarei a vida toda. Começa a abrir a pestana vadia. (...)”.
12. E, no dia 6/03/2021, às 8h44, o arguido enviou várias mensagens escritas a AA, nomeadamente:
a. eu rebento com a tua carreira (...)
b. nojenta
c. e como te vou continuar a ofender até ao fim da minha vida, não próxima sessão do tribunal tbm conheces o meu advogado novo
d. nojenta
e. e não vou ser um pai mentiroso vadia (...) não tenho nada a esconder de ninguém vadia
f. podes fazer o que quiseres da tua vida que eu quero mais é que tu te fodas (...)
g. não é bem melhor do que toda a putice que estás a fazer?
13. Após, o arguido enviou no mesmo dia as seguintes mensagens a AA: “puta, vai já chorar, vai já (...) quero mesmo é que tu te fodas... assim com estas palavras (...) para que um dia o meu filho veja bem a merda de mãe que tem... mas isso não sou eu que lhe vou dizer... Sou que lhe vou provar”.
14. Nestas ocasiões e em todas as outras que AA teve de suportar, agiu o arguido com intuito de molestar psicologicamente a ofendida, diminuir a sua honra e consideração, o que conseguiu, bem sabendo que as expressões por si proferidas são adequadas a humilhar.
15. Sabia o arguido que atuava contra a mãe do seu filho.
16. O arguido agiu nas circunstâncias acima descritas de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que as suas descritas condutas eram proibidas e punidas por lei.
17. O arguido:
a. reside sozinho em Queijas, num apartamento cuja renda tem o valor mensal de
1.000 euros;
b. tem família composta pela mãe e irmã, que reside em Beja, junto da qual viveu até aos dezoito anos e com que mantém ligação próxima e convive regularmente;
c. cresceu num ambiente familiar caracterizado por uma dinâmica estável, sem dificuldades de ordem económica: o pai era proprietário de uma oficina de mecânica auto e a mãe professora do 1º ciclo;
d. concluiu de forma linear o 12° ano de escolaridade, na área de desporto e esteve desde muito jovem ligado ao desporto, praticando diferentes modalidades, com participações em vários torneios;
e. estabeleceu a sua ligação à música ainda muito jovem, tendo aberto aos 13 anos de idade um pequeno estúdio, em Beja, fazendo parte das suas rotinas cantar em bares e participar em eventos musicais;
f. vivia em Lisboa há cerca de um ano quando o pai faleceu prematuramente;
g. frequentou o curso de técnico de som, na Escola Técnica Imagem e Comunicação, ETIC, que não concluiu, mantendo até ao momento colaboração profissional com aquela escola;
h. frequentou durante um ano o curso de engenharia de som, na Universidade Lusófona;
i. passou a dedicar-se à produção musical, trabalhando como freelancer e como músico, em parceria com outros músicos e produtores, tendo sido neste meio profissional que conheceu, em 2016, a assistente, que à data participava numa banda musical;
j. manteve deste então um relacionamento afectivo com a assistente, atriz profissional, com quem passou a coabitar aquando da gravidez do filho, nascido desse relacionamento e atualmente com três anos de idade;
k. desvaloriza os hábitos de consumo de canabis, contextualizando-os num período de alguma insegurança e imaturidade, referindo que deixou de ter consumos desde há cerca de três meses;
l. tem-se dedicado à produção musical no estúdio onde trabalha, situado em Barcarena, prevendo participar em vários festivais e concertos agendados;
m. aufere um rendimento na ordem dos 1.500/2.000 euros, dispondo do suporte por parte dos familiares que o ajudam em períodos de constrangimentos financeiros;
n. ocupa os tempos livres
o. vive separado da assistente desde 2019, vivenciado com ansiedade a separação do filho, com quem convive um dia por semana e aos fins-de-semana, de quinze em quinze dias, aos fins-de semana;
p. não tem antecedentes criminais.
18. Por força da conduta do arguido a assistente sentiu-se triste, humilhada, cabisbaixa e ofendida na sua honra e consideração, diminuída e com fraca autoestima, com vergonha, humilhação, instável e ansiosa, chorando e não dormindo bem no final do ano de 2019.
*
2.2. Factos não provados (…):
A. O arguido e AA viveram como se de marido e mulher se tratassem desde setembro de 2016.
B. O arguido consome diariamente haxixe.
C. Durante o relacionamento, o arguido manifestou sempre comportamentos obsessivos e ciúmes excessivos em relação à sua companheira, com alterações repentinas de humor, iniciando discussões frequentes com esta.
D. Em datas não concretamente apuradas, mas com uma frequência quase diária, o arguido disse a AA que não gostava da roupa que a mesma vestia, reprovando-a e dizendo-lhe: “as porcas é que se vestem assim”.
E. Além disso, o arguido nunca aceitou o facto de AA exercer a profissão de actriz e, por várias vezes, quando a mesma se ausentou para gravações televisivas, disse-lhe: “Porque é que andas a esfregar-te em homens? Eu nem sei como é que ando com uma actriz, toda a gente sabe como é que as actrizes são”.
F. Em meados de abril ou maio de 2018, quando AA foi fazer uma ecografia ao bebé que esperavam, envergando um vestido, o arguido disse a esta no final da consulta: foste uma desavergonhada, tiraste a roupa para o médico e fizeste-o de uma forma fácil.
G. Após, por várias vezes, o arguido disse a AA: “Se tivermos mais um filho vais a uma ginecologista porque não vais mostrar a cona a mais nenhum homem.”
H. Após o nascimento do filho, e durante o período de amamentação deste, o arguido proibiu AA de amamentar o bebé em zonas públicas, dizendo-lhe “que andava a mostrar as mamas a toda a gente”.
I. Em agosto de 2019, estando a relação do casal muito deteriorada, o arguido disse a AA que “lhe ia tirar o bebé”, que “ia fazer de tudo para ficar com o miúdo”, apelidando-a de “cadela”.
J. Em 12/12/2019, quando entregou o menor a AA, o arguido disse-lhe: “Ainda não percebeste que perdeste a guerra? Eu quero é que tu morras”.
K. No início de junho de 2020, por não estar de acordo com as férias de AA, o arguido disse a esta: “Se fores com ele/o gordo, o CC não vai, eu fodo-te as férias”.
L. Em meados de agosto de 2020, quando o arguido se encontrava de férias com o menor, e no decurso de uma videochamada para AA, o arguido disse a esta, na presença do filho: “A merda da tua família é para abater. A C… e o P… tudo bem, mas o resto é para abater”.
M. Nestas ocasiões e em todas as outras que AA teve de suportar, agiu o arguido com intuito de condicionar o seu dia-a-dia, atemorizá-la, o que conseguiu, bem sabendo que as expressões por si proferidas são adequadas a causar medo e inquietação de que pudesse atentar contra a sua vida ou integridade física, como efetivamente causaram, de lhe limitar a sua liberdade de movimentação.
N. Sabia o arguido que atuava na presença deste, o que não o impediu de atuar como descrito.
O. Por força da conduta do arguido a assistente sentiu-se com medo e receio das reações do arguido.
P. Passou a estar ainda num estado de stress vigilante, mais intranquila e ansiosa com medo de que o arguido lhe aparecesse à porta para atentar contra si, temendo pela sua integridade física e pela sua vida.
Q. Pelo receio e medo do que o arguido possa fazer, a assistente continua a viver com medo dele e do que este possa fazer contra si e viu-se forçada a recorrer a terapia semanal, que faz desde outubro de 2022, uma vez por semana, a fim de tentar reerguer-se e reequilibrar-se.
 (fim de transcrição).
*
2.2. Na sentença recorrida, a decisão sobre a matéria de facto foi motivada nos seguintes termos (transcrição):
 Motivação da decisão sobre a matéria de facto.
O Tribunal formou a sua convicção quanto aos factos provados com base na análise crítica e conjugada da prova:
- por declarações do arguido, BB;
- por declarações da assistente, AA;
- documental, a dos autos, designadamente: Auto de Denúncia de fls. 69-74; Documento de fls. 90-101; Auto de Transcrição de mensagens telefónicas de fls. 108-110; Print de mensagens de fls. 111-138; Cópia de fls. 155-180; Cópia de Relatório de ATE de fls. 182-186; Certificado de Registo Criminal e Relatório Social;
- testemunhal:
o testemunhas arroladas pela assistente/demandante:
- DS (cunhado da assistente);
- AL (amiga da assistente há 19 anos);
- EC (irmã da assistente);
- JC (amiga da assistente há 12 anos);
o testemunhas arroladas pelo arguido:
- DR (amigo do arguido);
- AC (amigo do arguido);
- SV (amiga do arguido);
- MP (amiga do arguido);
- JF (amigo do arguido);
- MH (amigo do arguido).
*
O arguido e a ofendida admitiram por acordo a veracidade dos factos supra enumerados em 1, 2, 3 e 4 com exceção do facto descritivo do início da sua união de facto.
As testemunhas ouvidas não dilucidaram o início dessa união de facto, pelo que se carreou para os factos provados o tempo sobre o qual existe consenso entre os sujeitos processuais. O arguido admitiu que discordava da ofendida sobre os termos da regulação das responsabilidades parentais sobre o filho de ambos e que tal suscitava discussões, o que de resto se mostra coerente e corroborado pelo teor das mensagens assumidamente escritas pelo acusado. Daí se julgarem provados os factos supra enumerados em 1, 2, 3 e 4.
Confrontam-se duas versões antagónicas sobre os factos ilícitos da acusação.
O arguido confessou ter escrito e enviado à assistente as mensagens escritas na acusação, cujo teor e fito injurioso admitiu, mas negou a prática dos demais actos aí vertidos. Com efeito, refutou que consumisse diariamente haxixe, fosse obsessivo e ciumento, sofresse alterações repentinas de humor, fosse responsável por iniciar discussões, sentisse preconceito por a assistente ser atriz e ser observada clinicamente por ginecologista/obstetra do sexo masculino e alimentasse ciúmes de atores com quem contracenava e do médico que seguia a gravidez, a censurasse e recriminasse e censurasse por amamentar o filho em público e pela roupa que envergava, a ameaçasse de lhe tirar o filho e vociferasse contra a família e as companhias da assistente, incluindo em férias e fins-de-semana. Em suma, confessou a autoria dos factos supra enumerados em 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15 e 16 a respeito das mensagens que escreveu e enviou telefonicamente com o intuito concretizado de lesar psicologicamente a assistente, diminuindo-lhe a honra e lesando-lhe a consideração que lhe era devida. E negou a autoria dos factos supra elencados sob as alíneas a) a l).
Referiu que foi sua a decisão de sair da casa de morada de família, terminando a união de facto da assistente, por causa da deterioração desse relacionamento em resultado de discussões encetadas por e entre ambos. Mencionou que despois do nascimento do filho, ambos fixaram residência num andar de moradia situado por debaixo do andar em que vivia a mãe da assistente, a qual amiúde cuidava do filho de ambos. Justificou a falta de preconceito e ciúme sentidos pela profissão de atriz da assistente e pelo facto de esta ser seguida por um ginecologista obstetra do sexo masculino com o facto de a ter conhecido no meio artístico a que pertence, por ser músico, e em que convive maioritariamente com atores e atrizes, bem como de só ter gratidão por esse médico pelas consultas de natalidade, que sempre acompanhou, e por ter sido bem-sucedido no nascimento do filho em resultado dum parto muito problemático. Referiu que nunca manteve interesse em reatar o relacionamento com a assistente, com quem, depois da rutura da vida em comum, procurou e comunicou com o único intuito de ver o filho, conviver com este e resolver a regulação das responsabilidades parentais: presencialmente num período inicial e por meio de comunicações escritas subsequentemente e diante o agravamento do diferendo existente entre ambos sobre a guarda do filho. Alegou que enviou as mensagens à assistente perturbado pelo sofrimento de não ter a guarda partilhada e pela raiva de não conviver com o filho nos termos que pretendia, a par da perturbação emocional que adicionalmente sentiu pelo cancro terminal dum amigo que estimava como um irmão pelo tempo em que lhe deu assistência e que se seguiu à sua morte. Justificou a sua falsa incriminação de violência doméstica por parte da assistente como meio de tirar vantagem na regulação das responsabilidades parentais, designadamente em atrasar a sua decisão e em obstar a guarda partilhada que sempre almejou.
Diversamente, a assistente afirmou que o arguido consumia diariamente haxixe, portanto e por questões financeiras discutia consigo, acusando-a de só pensar em dinheiro, e acalentava ciúmes injustificados dos atores com quem trabalhava e do obstetra que a observava, bem como que lhe censurava a indumentária e a amamentação do filho em público.
Declarou ter sido insultada presencial e verbalmente pelo arguido quando este a chamou de “burra” e “parva” em discussão iniciada por ela discordar que ele contraísse um empréstimo de €1.500 para a compra de um carro, de “cadela” por alusão a si mesma durante uma conversação telefónica entabulada com outrem, de “porca” numa ocasião em que lhe censurou por não ter usado calções por dentro dum vestido e durante a gravação de uma telenovela em ocasiões cujo número e cuja frequência não precisou, nem sequer por aproximação e estimativa, bem como de “puta” e “preta” em tempo que não concretizou.
Outrossim, asseverou ter sido insultada à distância e por escrito através das mensagens enviadas que se mostram descritas na acusação e que ocorreram já depois da rutura da vida em comum.
Asseverou ter sido menosprezada, humilhada, vexada e maltratada psicologicamente por o arguido: - não a tratar com bons modos e lhe recusar o beijo e o toque quando regressava a casa das gravações de telenovela, sob pretexto declarado que ela se esfregava nos homens com quem trabalhava (i.e. por contracenar com atores), conforme disse em número impreciso (“algumas”) de vezes; - não gostar que ela cumprimentasse homens com dois beijos a pretexto de ser demasiado “à vonté” (sic) – entenda-se estar ou ter demasiado à vontade -; - se ter chateado com ela por achar que devia envergar calças na consulta de obstetrícia sob o pretexto tácito de não gostar, por achar vulgar, que levantasse o vestido do modo por que o fez a fim de ser sujeita a ecografia obstétrica; - ter dito “estás a olhar para onde, ó caralho” a um transeunte masculino que passara por si numa ocasião em que amamentava o filho no interior do carro.
Afiançou ter sentido medo do arguido, por mal que este pudesse cometer contra a sua vida ou integridade física, por ele ter: - encostado a sua cabeça à cabeça dela e lhe dito “tens a mania que és um homem. Tu, quiseres, eu falo contigo como um homem”, numa ocasião imprecisa no tempo, e agarrado num braço seu e perguntado onde ela ia, noutra ocasião imprecisa no tempo, sem referir ter sentido dor em consequência desses contactos físicos; - lhe ter dito que lhe tirava o filho, que tinha amigos maçons e que o dinheiro comprava tudo; - lhe dito em 12.11.2019, à porta de casa e durante a entrega do filho, que queria mais é que ela morresse; lhe ter dito que a família dela era de merda e era para abater, - lhe dito que sabia onde ela vivia e escrito mensagem que lhe daria cabo da carreira, fora juízos conclusivos de cariz subjectivo e impressivo sobre ele ficar “muito agressivo” (sic) porque “tinha uma coisa no corpo, nos olhos, que era muito duro de ver” (sic) e de falar consigo com um olhar “horrível, péssimo” (sic), um olhar de “eu odeio-te” (sic).
Mencionou que as condutas do arguido a deixaram triste, ansiosa, preocupada, atemorizada de se encontrar com o arguido e do que este pudesse fazer a si e à sua carreira, levando-a a prosseguir com a sua vida com mais cautela e vigilância.
As testemunhas ouvidas, seja de acusação ou de defesa, não presenciaram quaisquer factos ilícitos, tendo revelado ter um conhecimento superficial e, sobretudo, de ouvir dizer da ofendida e do arguido dos assuntos da vida do casal, dos seus integrantes depois da separação e da resolução dos assuntos de vida do filho em comum. Pouco ou quase nada privavam com o casal, o que se verificou mesmo com respeito à irmã e ao cunhado da assistente. As testemunhas de acusação, sendo familiares e amigos da ofendida, não presenciaram qualquer facto ilícito, tendo tão-somente descrito as alterações que foram percepcionando na personalidade e no modo de viver da vítima no período final do relacionamento e já depois do seu termo. Não têm razão de ciência direta dos factos ilícitos-típicos e revelaram ter um superficial conhecimento e contacto com a vida do casal durante o tempo da sua união.
Com efeito,
DS admitiu que não tinha proximidade com o casal, apenas encontrando pontualmente a assistente, sua cunhada, quando ia buscar os seus filhos a casa da avó materna. Referiu não ter presenciado qualquer espécie de violência doméstica entre o casal e centrou o seu testemunho em pressão e tensão exercida pelo arguido sobre a ofendida quanto à regulação das responsabilidades parentais do sobrinho já depois da rutura da vida em comum do casal, segundo ouviu dizer da cunhada e a leitura das mensagens escritas juntas nos autos. Mencionou ter-se deparado com a cunhada e a sogra a chorar depois de uma visita do arguido, que viu já de saída e sem presenciar qualquer palavra ou ato que este proferisse ou realizasse, sendo certo que o arguido não vem acusado da prática de qualquer facto na presença da mãe da assistente. Relatou um encontro presencial que posteriormente combinou e manteve com o arguido, o qual, segundo disse, chorou, exaltou-se bastante e “ofendeu” (sic) a assistente ao dizer que esta estava “desequilibrada” e “era maluca”, palavras estas que não se revestem de tipicidade penal por se mostrarem compreendidas no discurso lícito permitido pelos amplos limites da liberdade de expressão e que, portanto, não corroboram, nem sequer indiciariamente, o relato da assistente.
A testemunha AL admitiu que nunca privou com o casal, cuja casa também não frequentava, e que tinha um relacionamento distante durante o tempo de vida em comum do casal, por então trabalhar muitas vezes no estrangeiro. Referiu que somente depois do final do relacionamento é que se reaproximou da assistente, porquanto então já se encontrava em Portugal. Só sabe o que ouviu dizer da assistente. Durante o tempo de vida em comum do casal apenas ouviu a assistente a confidenciar-lhe o que achou serem aspectos de uma relação “dominante” ou “tóxica”, aspectos esses que precisou factualmente com excepção à confidência de que o arguido teria ameaçado sair de casa por sentir ciúmes de um treinador pessoal (personal trainer) do sexo masculino que estaria ao dispor da assistente. Já depois durante a rutura do casal, ouviu a assistente a confidenciar-lhe que o arguido teria numa ocasião encostado a sua testa à testa dela. O seu testemunho compreendeu juízos conclusivos e impressivos que, com excepção das supracitadas confidências sobre duas presuntivas condutas – i.e. os ciúmes do treinador pessoal e o encostar da testa -, não verteu factos que permitam sindicar a justeza dos mesmos, designadamente de que modo a relação teria sido “dominante”, “tóxica” e pautada por “situações de conflito” e teria “violentado [a assistente] nos princípios da independência e autonomia” (sic) a ponto de ter causado adequadamente a tristeza, a angústia, a ansiedade e o melindre que a testemunha disse ter vislumbrado na ofendida.
EC referiu que não tinha uma relação estreita com o casal e que a assistente, sua irmã, apenas lhe confidenciou factos depois da separação definitiva do casal, tendo-lhe mostrado as mensagens escritas e enviadas pelo arguido. Não conheceu direta e presencialmente, ou por ouvir dizer, quaisquer maus tratos físicos ou psíquicos presuntivamente infligidos pelo arguido à assistente. Apenas relatou ter visto a irmã e a mãe assustadas na sequência de uma visita do arguido a propósito de resolução de questões das responsabilidades parentais do sobrinho, sem ter visto qualquer ato ou ouvido qualquer palavra do arguido, sendo certo que o arguido não vem acusado da prática de qualquer facto na presença da mãe da assistente. Asseverou que a assistente sentia ansiedade, tristeza e medo, dormindo mal e manifestando receio.
JC, amiga da assistente, referiu ter privado pessoalmente com o arguido por três vezes, exclusivamente, não tendo presenciado nada de violento ou ilícito. Referiu somente que meses depois da comemoração do seu aniversário é que a assistente lhe confidenciou que por causa desse evento o arguido fizera uma cena de ciúmes do marido da testemunha que justificara que os dois casais não voltassem a conviver juntos.
De resto, referiu que em agosto de 2019, coincidindo com a fase terminal do relacionamento, a assistente lhe confidenciara ter sido ameaçada de que não podia sair de casa ou ficaria sem o filho, tendo então acordado que ela lhe enviaria um sms caso necessitasse que a testemunha chamasse a Polícia de Segurança Pública. Todavia, não concretizou os factos que ouviu dizer da assistente que serviram de razão para ter celebrado esse pacto de proteção. Com efeito, referindo que a assistente nunca lhe falou em agressões físicas, mas sim em psicológicas, não concretizou quais os atos do arguido que terão concretizado essa violência psicológica que lhe foi confidenciada. Outrossim, também não concretizou que atos do arguido lhe foram confidenciados que justificassem o ter ajuizado que a assistente se apresentava tensa, triste, consciente de que a relação não estava bem, mas disponível a dar o benefício da dúvida e a dar uma oportunidade ao arguido, que desculpabilizava. De igual modo, não concretizou o que o arguido teria feito para que não pudesse conviver com a assistente, juntamente com os respectivos filhos, em férias e fins-de-semana.
Por sua vez, as testemunhas de defesa asseveraram sobretudo a boa índole do arguido, o bom pai que este é e, no caso de ..., de como o seu relacionamento com a ofendida era aparentemente normal, sem ter nada de anómalo que fosse digno de nota.
DR, amigo do arguido há 5/6 anos, contou que conviveu com o casal em 2/3 jantares sem ter detectado nada de anómalo do ponto de vista relacional. Descreveu o arguido como um excelente pai.
AC, amigo do arguido há 2/3 anos, não conheceu pessoalmente a assistente, pelo que não conviveu com o casal, tendo relatado que o arguido é um pai interessado e empenhado na parentalidade. Afiançou que o arguido não é pessoa agressiva e que, mesmo sob a pressão psicológica a que vem sendo submetido nos últimos anos, nunca lhe presenciou qualquer sentimento ou conduta de natureza agressiva.
SV, amiga do arguido desde 2009, relatou a dor emocional sentida pelo arguido em razão de não acompanhar e conviver o/com o filho conforme pretendia e, segundo ouviu dizer, foi impedido pela assistente, tendo louvado a sua parentalidade, a sua boa índole e conduta, reputando-o como pessoa habitualmente ponderada e calma, que não é violento. Desconheceu a vida em comum do casal.
MP, amiga do arguido há cerca de dois anos, também abonou a personalidade e a conduta do arguido, como homem e pai que é, descrevendo-o como um pai preocupado e cuidadoso.
A testemunha JF classificou a convivência do casal como tendo sido normal, das três ou quatro vezes em que conviveram e trabalharam juntos, não tendo privado com o casal quando o relacionamento deste se deteriorou.
Outrossim, a testemunha MH classificou a convivência do casal como tendo sido normal, tendo apenas presenciado uma pequena discussão em que a ofendida se queixava de o arguido não trabalhar de momento e de ser ela responsável pelo sustento familiar.
Descreveu o arguido como um pai interessado e devotado, bem como as dificuldades que ele disse sentir no acesso ao convívio com o filho.
As mensagens transcritas e impressas a partir do telemóvel da ofendida têm teor idêntico aos factos da acusação que as transcrevem.
O teor de fls. 41 prova documentalmente os factos supra enumerados em 5, 6 e 7.
O teor de fls. 47 prova documentalmente o facto supra enumerado em 8.
O teor de fls. 48 prova documentalmente os factos supra enumerados em 9 e 10.
O teor de fls. 49 prova documentalmente o facto supra enumerado em 11.
O teor de fls. 51-53 prova documentalmente o facto supra enumerado em 9.
O teor de fls. 136 e 137 prova documentalmente o facto supra enumerado em 13.
Diante o consenso reunido entre arguido e ofendida, devidamente corroborado pela documentação das mensagens escritas, julgam-se provados os factos supra enumerados de 5 a 13.
Tais factos, carreados da acusação, descrevem por vezes de forma parcial e descontextualizada essas mensagens, porquanto o seu teor não compreende a transcrição integral dessas comunicações específicas e de outras que as precederam e se lhes seguiram.
Nessas comunicações aludidas na acusação, o arguido dirigiu à ofendida palavras que são objetivamente injuriosas, chamando-lhe “burra com palas”, “atrasada mental”, “puta nojenta” e “puta”, “mongoloide”, “vadia” por quatro ocasiões; i.e. por mensagens enviadas em quatro dias ocorridos durante cerca de um ano.
Noutras das mensagens aludidas na acusação, o arguido ultrapassou os deveres da boa educação, da lisura e urbanidade no discurso escrito, mas a sua narrativa não foi lesiva da honra e da consideração da ofendida, por não compreender a imputação de facto ou a formulação de juízo lesivo desse bem jurídico (v.g. quando lhe disse “eu quero mais é que tu te fodas” e a acusou de fazer “putice” num contexto textual que equivaleu a acusá-la de fazer sacanice, pulhice ou patifaria).
O arguido assumiu ter agido com intenção de ofender a honra e consideração da ofendida, com consciência da ilicitude dessa conduta e dolo direto. Daí se julgarem provados os factos supra enumerados em 14, 15 e 16.
As mensagens em apreço não compreendem um facto ilícito-típico de ameaça1 à vida, à integridade física ou ao património da ofendida, ou a outro bem jurídico criminalmente tutelado. [1]
Quando o arguido escreve que a assistente leva com ele a vida toda, quer dizer que terá de lidar com ele pela vida fora por causa do filho em comum, ao passo que a advogada da assistente prosseguiria com a sua vida depois de terminado o caso, i.e. o processo judicial de menor. Essa foi a explicação do arguido, cujo sentido corresponde ao que se apreende da interpretação objetiva do que ele escreveu, a saber: “já trato disso… Então o que se vai passar é o seguinte. O fim de semana é meu e as 17h bou busca lo onde estiver. Se não o trouxer levas com a polícia que não fará nada, só me dará motivo de um novo requerimento como deve ser. O CC ao passa um fim de semana comigo desde dia 10 e, pela acta o fim de semana passado foi teu. Dia 25 vais de férias e não vou tar 2 meses sem o meu filho. Há e explica a tua advogada, SVD, que o caso acaba, ela segue a vida dela mas tu levas comnigo a vida toda… Abre o olho.” – v fls. 41-verso
Outrossim, quando o arguido escreve para esta imaginar que ele começava a bater à porta da assistente, fá-lo por se insurgir contra o facto, que considera abusivo, de esta lhe ter escrito que iria falar com a mãe dele sobre algo e como forma de ela não o faça por empatia. Basicamente, o arguido apela à assistente que esta não gostaria que ele começasse a bater à sua porta de casa como aquele não gostava que ela telefonasse à sua mãe. Afigura-se-nos que não terá sido estranho a essa associação de ideias que a assistente morasse no mesmo prédio da mãe, conforme facto incontrovertido entre os sujeitos dos autos. Essa foi a explicação do arguido, cujo sentido corresponde ao que se apreende da interpretação objetiva do que ele escreveu, a saber: (arguido) “Ele está contigo?”; (assistente) “Agora o CC está na escola”; (arguido) “Não mandes mensagens a minha mãe. Toma vergonha nessa cara.” (assistente) “Olá. Vou fazer vídeo chamada”, “Hoje não o foste buscar novamente. Não vais mudar a tua posição?”; (arguido) “Imagina q agora começava a bater na tua porta… Lembra ter q tens um filho meu ctg. Eu to a deixar ir, tas a levar na tua putice mas to a deixar ir. Reza para a minha paciência n acabar”; (assistente) “Vou ligar” – vide fls. 47 e verso.
De igual modo, quando o arguido escreve que rebentaria com a carreira da ofendida, não concretiza de que modo o faria, deixando aberta a possibilidade de uma conduta lícita com a virtualidade de prejudicar a carreira profissional da vítima, tanto mais que ambos frequentavam o meio artístico, conforme referiram. Nesse sentido veja-se que o arguido escreveu à assistente: “So tas a prejudicar a vida do nosso filho. Pára com isto. Tens 42 anos, ganha juízo. Eu mais um mês torno isto público. Já tenho o sodueste [festival Sudoeste] marcado e o sumol [Festival Sumol]…mais um tempo e tamos em pé de igualdade na opinião pública. Eu rebento com a tua carreira. Não és exemplo para o país. Nem tu, nem as tuas amigas feministas solteironas desequilibradas. Todo o que tiver a tua volta vai ao barulho. Não me esqueço de nada nem ninguém. Tiraste me um filho. Por uns tempos, mas tiraste.” – v fls. 128 e 129. Resulta desta mensagem que o arguido invoca ter marcações artísticas nos festivais de música “Sudoeste” e “Sumol Summer Fest” e estar a adquirir igual notoriedade à que atribuía à assistente na opinião pública, para junto desta revelar as condutas que, a seu ver eram censuráveis e lhe atribuía, em torno presuntiva alienação parental, com vista a passar desta uma imagem pública que seria prejudicial ao sucesso da sua carreira artística de atriz.
A mensagem de 29.06.2020 destacada na acusação “Tás com sorte que tou bem disposto. Vou deixar-te dar as penúltimas gargalhadas” (ponto 5) é uma de várias mensagens enviadas nesse dia com o seguinte teor: “Bom dia, ele hoje já pode sair?”, “Ok. Tão as 18h to pa jantar comm ele e tar uma bocado até ele dormir… Um dia n são dias”, “Porque moras com a tua mãe? Tbm moras com o meu filho… N tenho covid Coronavirus SARS-Cov-2/Covid-19 referente NºDCO2351: Negativo Dr. Joaquim Chaves, Lab. de Análises Clinicas. Obrigado pela preferência”; “Bom pra ti. Quero jantar com o meu filho. As 18h to aí. Depois vemos para onde descamba”. “Tás com sorte que to bem disposto. Vou deixar te dar as penúltimas gargalhadas” – vide fls. 41. Afigura-se-nos que o arguido escreveu que ele daria as últimas gargalhadas, ou seja, que riria por último, numa versão do provérbio ou adágio popular de que “Quem ri por último, ri melhor!” o que equivale a dizer que levaria a melhor na pendente dissensão sobre a guarda do filho.
A escrita da frase “… quero mesmo é que tu de fodas…”, destacada pela acusação e vertida no ponto 13, insere-se na seguinte mensagem: “Eu só quero o meu filho. Tu tás no meio. A tua vida a mim n me interessa nada. Podes continuar a viver com a tua mãe aos 42 anos… Podes ir pra china e voltar… podes fazer o que quiseres da tua vida que eu quero mais é que te fodas. Mas eu tenho direito a estar com o meu filho. É a ele eu vou querer. E enquanto o tiveres ctg por azia e egoísmo vais ter de levar cmg. Quando eu e tu n tivermos de ter mais conversa sem ser bom dia boa tarde, em frente a ele, vai estar perfeito. Tu tas com ele, eu to com ele e n nos temos de ver nem aturar… N é bem melhor q toda a putice que tas a fazer?» - vide fls. 52 e 53. Tal frase não anuncia qualquer mal, muito menos um futuro e concreto, nem formula qualquer juízo sobre a personalidade ou a conduta da assistente, comunicando-lhe com má educação e grosseria que não se interessava por si e pela sua vida.
Donde, não se provou que o arguido quisesse, por tais factos carreados da acusação e provados, atemorizar a ofendida dum modo que se revestisse de tipicidade criminal; i.e. anunciar mal concreto e futuro de lhe lesar a integridade física ou moral, a autodeterminação, a propriedade, como bens jurídicos criminalmente tutelados pelos crime de violência doméstica, de ameaça ou de coação.
Da leitura integral e completa dessas e outras comunicações, resulta evidente que tais escritos constituíram diatribes do arguido motivadas por sentimentos de frustração, descontentamento e raiva por divergências latentes sobre a regulação das responsabilidades parentais do filho. O arguido fez questão de transmitir à ofendida nesses escritos que não tinha qualquer interesse nesta e que apenas os ligava a resolução dos assuntos de vida do filho comum [2]. O teor desses escritos corroborou, portanto, a versão do arguido de que sucumbiu à
frustração e à raiva espoletadas por o que entendia ser a privação de convívio com o filho, já depois da separação do casal e do termo do relacionamento outrora mantido.
Mais referiu o arguido que nesse período de temporal também se encontrava transtornado emocionalmente pelo falecimento dum amigo que estimava como um “irmão”, o qual assistiu e apoiou na fase terminal da vida. Em suma, referiu que sucumbiu a sentimentos de raiva, tristeza e frustração e que foi somente por estes, e já depois do termo do relacionamento em apreço, que escreveu as mensagens em apreço.
A acusação sustenta-se numa lógica de prova por contaminação cuja premissa única é a de que se a assistente falou verdade quanto a ter recebido as aludidas mensagens escritas do arguido, dado estas se mostrarem provadas por documento, terá igualmente falado verdade no mais que disse, ainda que a este respeito não haja corroboração por qualquer meio de prova direta, nem haja relevante corroboração por prova indireta.
Sobre a falta de relevante corroboração da versão da assistente por testemunhos indirectos ou de ouvir dizer, note-se que tirando ao testemunho de AL quanto a ta assistente lhe ter confidenciado ter sofrido um encosto de testa, uma vez depurados os depoimentos das testemunhas de acusação e da assistente em busca de factos, sobra apenas a confidência de que o arguido sentira ciúmes do treinador pessoal da assistente e do marido de JC e de que a assistente teria sido ameaçada de que não podia sair de casa ou ficaria sem o filho. Daí os testemunhos de acusação e da assistente (o da sua irmã, do seu cunhado e das duas amigas, todos supracitados), mesmo sendo indiretos, terem sido demasiado parcos em substância factual. Sendo plausível entender-se que apenas retiveram na sua memória o que acharam ser importante do ponto de vista da moral e do direito, conforme é normal suceder, afigura-se-nos insólito que muito pouco tivessem contado, para mais considerando que foram escolhidas pela assistente para serem confidentes num momento em que esta era livre de confidenciar irrestritamente, pois não tinha interesse em proteger um relacionamento que já terminara definitivamente e estava livre de qualquer domínio que o arguido pudesse exercer sobre ela.
Mais insólita se torna a vacuidade ou insuficiência factual desses testemunhos de ouvir dizer, considerando que, a fim de justificar a falta de confidências durante o tempo de coabitação do casal, EC referiu que a sua irmã, ora assistente, sempre teve o hábito de contar ou confidenciar aspectos dos seus relacionamentos somente depois do seu término. Coerentemente com esse relato avulta o teor da perícia psicológica efectuada à assistente no processo judicial de menor, aí se assinalando “Suporte social e recursos: Questionada a quem recorre, habitualmente, caso necessite, a avaliada faz referência ao núcleo familiar, nomeadamente, à sua irmã “ela… é minha confidente, minha amiga, somos mesmo muito próximas, muito amigas” (sic) – vide fls. 169-verso. Nesse conspecto, afigura-se-nos especialmente insólita a vacuidade factual do testemunho de ouvir dizer da irmã da assistente.
Ressonando e ecoando o relato da assistente, era normal que tais testemunhos de ouvir dizer reproduzissem substancialmente a versão dela, tanto mais que esta as escolheu para servirem de suas confidentes, não se vislumbrando haver qualquer razão lógica e plausível para não lhes ter confidenciado o muito mais que relatou em juízo.
Quanto às mensagens escritas, as mesmas, pelo seu tempo e contexto e pela sua duração, frequência, motivação, não permitem extrapolar que se o arguido escreveu o que se transcreveu é porque decerto infligiu a violência em causa sobre a ofendida durante a vida em comum. É que tais mensagens escritas fundaram-se numa realidade de facto e numa motivação que não existia durante a vida em comum: a necessidade de regular as responsabilidades parentais do filho em comum e o antagonismo das posições e dos desejos dos progenitores a esse respeito, a par das percepções que formaram sobre essa matéria.
Assim resulta provado da conjugação das declarações do arguido, da assistente e do teor das mensagens escritas pelo primeiro, sendo incontrovertido que foi ele quem decidiu terminar definitiva e irremediavelmente a união de facto e, bem assim, sair da casa de morada de família, conforme fez, com intenção de não mais reatar esse relacionamento e de voltar a essa habitação. Assim também escreveu o arguido à assistente nas mensagens que lhe enviou.
Daí a motivação para o envio dessas mensagens escritas não se reconduzir a qualquer ideia, sentimento ou peculiaridade que o arguido acalentasse do tempo em que se relacionou e viveu com a assistente, sendo antes atribuível aos mencionados factos específicos da vida desse sujeito que ocorreram depois da rutura da vida em comum.
De resto, o modo pelo qual os sujeitos processuais em causa prestaram declarações não nos permite descortinar qual deles falou verdade, credibilizando um em detrimento do outro.
Tais sujeitos processuais denotaram ser as pessoas clinicamente caracterizadas nas perícias psicológicas a que foram submetidas no processo judicial de menor e juntas de folhas 166- 187-202. Ouvidos pelo Tribunal, também se nos afigurou que os mesmos não apresentam sintomatologia ativa, designadamente somatização, obsessões-compulsões, sensibilidade interpessoal, depressão, ansiedade, hostilidade, ansiedade fóbica, ideação paranoide e psicotismo. De igual modo, se nos afigurou das declarações do arguido que este sujeito apresentou-se proeminentemente tenso e ansioso, assim como por vezes se apresentou imaturo e pouco assertivo face à adversidade da sua situação, mas não denotou qualquer traço de agressividade. Tais características mostram-se, de resto, relatadas a folhas 117-verso e 118, e no que, tange à falta de agressividade na sua personalidade e conduta quotidiana, foram, conforme acima explanado, descritas por todas as testemunhas de defesa, que privaram com o arguido nos mais variados contextos, mesmos os mais desafiantes para este último, designadamente quando vivia sob a tensão e a ansiedade que exteriorizou perante esses seus amigos a pretexto de alegadamente não ter acesso ao filho.
Ambos prestaram declarações de modo articulado, sem pudor ou reserva em manifestar os seus sentimentos vivenciados pelos factos que iam relatando.
Das declarações do arguido, da assistente e das perícias psicológicas, resulta incontrovertido que a assistente é atriz, formada pelo Conservatório, com suficiente sucesso que lhe granjeou papeis de relevo em novela de produção nacional difundida em canal televisivo português privado generalista. A sua profissão requer normalmente o conhecimento, o domínio e o uso metódico das emoções humanas para representá-las do modo mais convincente, sob a forma de narrativa, perante outrem e sempre num ambiente de formalidade e avaliação exterior, seja os pares num casting, os espectadores de uma plateia ou de uma audiência televisiva. Não se podendo olvidar tal evidência, o modo pelo qual a assistente prestou declarações não se nos suscitou, ainda assim, um juízo de credibilidade sem margem de dúvida ou de reserva.
As suas declarações duraram pouco mais de uma hora e meia e pouco depois do início, a menos de dez minutos, já a assistente se apresentava aparentemente nervosa, de voz ligeiramente tremula, chorosa e fungosa, ainda que desacompanhadas de lágrimas. O mais notável no modo com que prestou depoimento foi a sua variação comportamental segundo o seu interlocutor. A instâncias do Tribunal adoptou a voz assinalada durante cerca de uma hora, quase indiferentemente face à variedade dos factos por si relatados e à gravidade e repercussão dos mesmos. Depois disso, a instâncias dos demais profissionais forenses, ao longo da remanescente meia hora, aproximadamente, cessou essa voz, respondendo com rapidez, segurança, fluência e limpidez, quer no tom quer na cadência do discurso, sem exteriorizar qualquer sinal de aparente emoção ou comoção. Só voltou a exteriorizar emoção quando a final, respondendo ao Tribunal a pergunta sobre a hierarquia das razões pelas quais teria tolerado a coabitação, disse que gostava muito do arguido. O normal da catarse emocional das vítimas de violência doméstica é que esta varie não em consonância com o seu interlocutor, mas sim com a variável gravidade dos factos que rememoram, bem como que sucumbam a fazê-la apenas quando respondem aos factos que mais as traumatizaram.
Sobre traumas ou recalcamentos e a catarse que usualmente os acompanha, note-se que, segundo resultou incontrovertido das declarações do arguido e da assistente (incluindo vertidas nos relatórios de perícia psiquiátrica), e residualmente das mencionadas testemunhas que conviveram com o casal, a assistente estava na segunda metade dos seus trinta anos, era independente e experiente e mantinha um circulo familiar e social de protecção. Vivia conjuntamente com o arguido no andar por cima do andar da sua mãe, com quem privava e de quem dispunha para ajuda familiar, a qual era visitada pela sua irmã e pelo seu cunhado, que deixavam os filhos em casa da avó materna. Segundo disse, a despeito das presuntivas censuras do arguido, continuou sempre a trabalhar, a ser vista em consultas de obstetrícia e respectivas ecografias por médico homem, bem como a amamentar em público, sem ter descrito qualquer proibição imposta coercivamente pelo acusado. As respostas escritas que deu às mensagens do arguido não compreendem a manifestação de receio ou medo. Revelou alguma dificuldade em justificar factualmente as razões desses sentimentos.
Termos em que se julgam não provados os factos supra elencados sob as alíneas A) a N).
Note-se que muitos dos sentimentos que a assistente disse ter vivenciado negativamente, a par da sua irmã e das supracitadas amigas, não são insólitos num assumido processo de degradação do relacionamento e da união de facto do casal que culminou na rutura da vida em comum e na separação do arguido e da ofendida.
Assim como não são insólitos num incontrovertido processo de litigiosidade pré e contenciosa judicial sobre a disputa da guarda do filho do casal, para mais tendo de premeio as mensagens criminalmente relevantes que o arguido lhe enviou. Daí não serem, em si mesmos e conjugadamente com as reservas apontadas às declarações da assistente e aos testemunhos indirectos da acusação, uma verosímil e credível demonstração de veracidade da parte da assistente.
Nesse conspecto as declarações da assistente foram credíveis quanto ao ponto 18, com excepção da menção ao estado de “stress vigilante”, que aí ficou por desatenção, tanto mais que é conceito de cariz clínico que carece de comprovação por quem tem especiais conhecimentos científicos ou médicos, e de o choro ter sido muito, o que é conclusivo e portanto de uso indevido. Mas, de resto, tais sentimentos são um resultado normalmente decorrente de escritos do tipo dos enviados pelo arguido e nessa medida foram contemplados.
Se portanto deveriam as declarações da assistente deveriam merecer credibilidade na sua totalidade, para mais quando se sustentam em parca e incongruente prova testemunhal indireta, cumpre dizer que também sobre certos factos respondeu o arguido com verdade e dum modo que se mostra corroborado pelas mencionadas mensagens, não só sobre factos relativamente aos quais lhe restava render-se à evidência da prova documental, designadamente quanto às explicações dos seus escritos para desmontar a tese de violência, bem como dum modo verosímil segundo a normalidade de vida.
Afigura-se-nos inverosímil que o arguido tivesse preconceito de raça e género contra, respectivamente, a mulher que escolheu para ser mãe do filho mestiço e o médico que se manteve em funções ao longo de uma gestação completa, a cujas consultas ele sempre compareceu. Outrossim, afigura-se-nos inverosímil que o arguido, sendo músico e privando e convivendo com artistas, conforme resultou incontrovertido das declarações dos sujeitos processuais, tivesse preconceito contra a assistente por ser atriz e ter que contracenar com homens. O arguido também pertencia ao meio artístico, o qual é tendencialmente mais tolerante e liberal. Afigura-se-nos inverosímil que o arguido vivesse descontente por consequências de decisões que voluntariamente tomou e executou na vida.
De resto, encontra-se pendente um processo judicial sobre a guarda e as responsabilidades parentais do filho menor, em que se discutem posições e interesses antagónicos e conflituantes e em cujo desfecho se repercutirá a decisão final dos presentes autos. E resultou incontrovertido que a união terminou por decisão e ato do arguido, que saiu de casa, sem o que teria continuado. Nesse conspecto, à plausível motivação do arguido mentir para se desculpabilizar também se poderá contrapor a motivação da assistente em fazê-lo por forma a obter trunfo no processo de menores.
Se a existência das mensagens escritas pelo arguido e os vácuos testemunhos indiretos de acusação bastam para credibilizar in totum a versão da assistente, afigura-se-nos que não por tudo quanto acima explanámos, de acordo com os factos vistos à luz das idiossincrasias dos sujeitos, das suas vidas e das suas reacções.
Os factos descritivos dos efeitos nefastos das condutas do arguido na personalidade e na vida da ofendida julgam-se provados, porquanto correspondem às consequências usualmente vivenciadas pelas suas vítimas, de acordo com as regras de experiência comum, pelo que, a par das declarações da vítima e das testemunhas que arrolou, julga-se provado o facto supra enumerado em 18.
Não se vislumbrando nos escritos do arguido ameaças de mal futuro contra a vida e integridade física da ofendida, não mereceu credibilidade o alegado temor em que esta teria passado a viver, por falta de causalidade existente, pelo que se julgam não provados os factos supra elencados sob as alíneas O), P) e Q).
Atendeu-se ao relatório social e ao certificado de registo criminal para prova dos factos descritivos da vida, passada e presente do arguido (vertidos no ponto 17).
(fim de transcrição)
*
III. APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO
Questões prévias:
3.1. Da admissibilidade do recurso interposto pela assistente quanto ao pedido de indemnização civil
Nas suas conclusões de recurso, requer a assistente, a final, que: Dando-se provada a factualidade identificada, o pedido de indemnização civil terá de ser revisto, e o arguido condenado em virtude dos danos patrimoniais e não patrimoniais no pagamento de 5.000,00€ à assistente.
Apesar de ausente da sua motivação de recurso qualquer fundamento relativamente ao montante arbitrado na sentença recorrida a título de indemnização, resulta daquela conclusão que a assistente pretende recorrer da sentença proferida em primeira instância na parte em que condenou o aqui arguido e demandado parcialmente no pedido deduzido a esse título.
Contudo, o recurso interposto pela assistente afigura-se legalmente inadmissível nessa parte.
Na verdade, dispõe o nº 2 do art.º 400º do Código de Processo Penal que: Sem prejuízo do disposto nos artigos 427.º e 432.º, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada.
Por outro lado, dispõe o art.º 44º da lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário):
Alçadas
1 - Em matéria cível, a alçada dos tribunais da Relação é de (euro) 30.000,00 e a dos tribunais de primeira instância é de (euro) 5.000,00.
2 - Em matéria criminal não há alçada, sem prejuízo das disposições processuais relativas à admissibilidade de recurso.
3 - A admissibilidade dos recursos por efeito das alçadas é regulada pela lei em vigor ao tempo em que foi instaurada a ação.
Ora, como resulta da acusação particular e pedido de indemnização civil formulados pela assistente (através do requerimento de 30-11-2021, com a ref.ª citius19984236), a mesma formulou pedido de condenação do arguido no pagamento de uma indemnização no montante de 5.000,00€.
Assim, quer considerando o valor do pedido, quer considerando o valor do decaimento para a recorrente, face ao montante indemnizatório arbitrado na sentença recorrida, não se verificam os pressupostos formais de que depende a admissibilidade do recurso no que respeita à matéria do pedido de indemnização civil enunciados no citado art.º 400º/2 do Código de Processo Penal (v. neste sentido o Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 9-11-2020, proferido no processo nº 349/17.3GCVNF.G1, disponível em www.dgsi.pt, assim como os demais infra citados).
Prescreve o art.º 420º/1, al. b) do mesmo Código, que o recurso será rejeitado quando se verifique causa que deveria ter determinado a sua não admissão nos termos do n.º 2 do art.º 414º.
Em conformidade, por irrecorribilidade da decisão, cumpre rejeitar o recurso interposto pela assistente/demandante na parte relativa à matéria do pedido de indemnização civil.
Pelo exposto, decide-se rejeitar o recurso interposto pela assistente/demandante, na parte em que o mesmo respeita à matéria do pedido de indemnização civil por ela formulado.
*
3.2. Da rejeição do recurso interposto pela assistente quanto ao erro de julgamento invocado
Como resulta das conclusões apresentadas pela assistente, a mesma invoca o erro de julgamento da decisão da matéria de facto, concluindo, em síntese, que as alíneas A) a Q) da matéria de facto não provada deveriam inversamente ter sido consideradas como Provadas.
Porém, a recorrente não observou os ónus processuais legalmente estatuídos quando se pretenda impugnar a matéria de facto.
Com efeito, preceitua o art.º 412º, nºs 1 a 3, do Código de Processo Penal que:
Motivação do recurso e conclusões
1 - A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
2 - Versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda:
a) As normas jurídicas violadas;
b) O sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada; e
c) Em caso de erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, deve ser aplicada.
3 - Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
4 - Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação. (…)
A impugnação da decisão da matéria de facto poderá processar-se, ou mediante a arguição de um dos vícios previstos no art.º 410º, n.º 2, do Código de Processo Penal, ou por via do recurso efectivo da matéria de facto nos termos previstos no art.º 412º, n.ºs 3, 4 e 6 do mesmo Código.
No primeiro caso, a impugnação funda-se em um vício da decisão, sendo este recurso considerado como sendo ainda recurso da matéria de direito; no segundo caso, o recorrente recorre às provas produzidas em audiência de julgamento, as quais deverá especificar com observância do estabelecido naquele último normativo legal.
Ora, conforme decorre do n.º 3 do citado art.º 412º, quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto o recorrente terá de especificar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da proferida na decisão recorrida e/ou as que deviam ser renovadas.
Além disso, de acordo com o disposto no n.º 4 do mesmo dispositivo legal, essa especificação deve fazer-se por referência ao consignado na acta, indicando-se concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
 Na hipótese de ausência de consignação na acta do início e termo das declarações, de acordo com a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça em 08/03/2012 (Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 3/2012 publicado no D.R. n.º 77/2012, Série I, de 2012-04-18), visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas.
Assim, a sindicância da matéria de facto por parte do tribunal de recurso pressupõe que o recorrente observe estritamente o estatuído naquele normativo, devendo indicar as concretas provas e referência ao conteúdo concreto dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorrectamente e que impõem decisão diversa da recorrida, tudo com referência ao consignado na acta, com o que se opera a delimitação do âmbito do recursonecessário sendo que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam, não bastando remeter na íntegra para as declarações e depoimentos de algumas testemunhas.(in Ac. STJ de 25.03.2010, proferido no processo nº 427/08.OTBSTB.E1.S1).
É que, como tem sido jurisprudência uniforme, o recurso da matéria de facto perante a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1.ª instância, como se o julgamento não existisse, tratando-se antes de um remédio jurídico, destinado a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros e não indiscriminadamente, de forma genérica, quaisquer eventuais erros (v. o Acórdão por último citado).
Como resulta incontroverso do conteúdo do art.º 412º/3 e 4 do Código de Processo Penal, deve o recorrente individualizar as passagens da gravação em que baseia a impugnação, ou seja, estando em causa declarações/depoimentos prestados em audiência de julgamento, sobre o recorrente impende o ónus de identificar as concretas provas que, em sua interpretação, e relativamente ao(s) ponto(s) de facto expressamente impugnados, impõem decisão diversa, e bem assim de concretizar as passagens das declarações (do arguido, do assistente, do demandante/demandado civil) e dos depoimentos (caso das testemunhas) em que se ancora a impugnação (in Ac. Relação de Coimbra de 5-01-2011, proferido no processo nº 888/04.6TAVIS.C1).
É inequívoco que o cumprimento dos ónus processuais legalmente impostos quando se pretenda impugnar a matéria de facto, não se basta com a simples remissão para a totalidade de um ou vários depoimentos, conforme igualmente decidido no Ac. desta Relação de Lisboa de 16-11-2021, proferido no processo nº 1229/17.8PAALM.L1-5.
O incumprimento das formalidades exigidas no citado art.º 412º/ 3 e 4, inviabiliza o conhecimento do recurso da matéria de facto pela via ampla.
Ora, no caso concreto, percorrida a motivação e conclusões, constata-se que a assistente, ora recorrente, se limita na sua impugnação a invocar as suas próprias declarações, as declarações prestadas pelo arguido, bem como os depoimentos das testemunhas arroladas, não indicando em momento algum, em concreto, qual ou quais as passagens das gravações respectivas, com menção dos concretos minutos em que tiveram lugar, que impõem uma decisão diversa quanto à matéria de facto impugnada, limitando-se a remeter para a integralidade dessas declarações e depoimentos, os quais, aliás, transcreve na íntegra na motivação.
Assim, é manifesto que a assistente não observou integralmente os ónus acima referidos, cujo cumprimento é estritamente necessário ao conhecimento do erro de julgamento por este Tribunal da Relação, designadamente, não especificou as concretas passagens da gravação em que fundamenta a sua impugnação, antes remetendo para a generalidade e integralidade das declarações e depoimentos do arguido, assistente e testemunhas.
 Tal omissão verifica-se, quer nas conclusões, quer na própria motivação, pelo que não se encontram preenchidos os pressupostos de um despacho de aperfeiçoamento, na medida em não se trata de uma situação de deficiente cumprimento daquele ónus, mas sim do seu absoluto e total incumprimento.
Nestes termos, rejeita-se o recurso interposto pela assistente quanto à questão do erro de julgamento por ela invocado.
*
3.3. Cumpre agora apreciar no mais os recursos interpostos.
3.3.1. Da nulidade da sentença invocada pela assistente
Como decorre da conclusão 25ª da sua motivação, a assistente argumenta que estamos perante uma sentença nula nos termos do disposto nos art.ºs 374º/2 e 379º/1-a) do Código de Processo Penal.
Porém, a nulidade invocada pela assistente funda-se na circunstância de, no seu entender, se manterem contradições insanáveis que foram apontadas para correção pelo douto Tribunal da Relação de Lisboa anteriormente proferido nos autos.
Ora, qualquer dos vícios a que se reporta o art.º 410º/2 do Código de Processo Penal não determina a nulidade da decisão que deles enferme, mas apenas o reenvio do processo nos termos do art.º 426º do mesmo Código, caso não seja possível decidir a causa no tribunal de recurso.
Por outro lado, analisada a decisão recorrida, não se vislumbra que a mesma padeça de qualquer nulidade, designadamente nos termos previstos no art.º 379º/1 do Código de Processo Penal por falta de fundamentação.
Improcede, assim, manifestamente o recurso interposto pela assistente neste segmento.
*
3.3.2. Da contradição insanável entre factos provados e não provados
Os vícios previstos no art.º 410º/2, do Código Penal, como vícios da decisão, mostram-se directamente conexionados com os requisitos da sentença previstos no art.º 374º/2 do mesmo Código, designadamente com a fundamentação que consta da enumeração dos factos provados e não provados, e a exposição dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação das provas que serviram para fundamentar a convicção do Tribunal (v. Ac. STJ de 9-02-2012, proferido no processo nº 233/08.1PBGDM.P3.S1, disponível em www.dgsi.pt, assim como os demais acórdãos que se citarão infra).
Como resulta expressamente daquele normativo legal, os vícios da matéria de facto fixada na sentença a que se refere o citado art.º 410º/2, têm de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, ou seja, sem possibilidade de recurso a quaisquer elementos externos à sentença, ainda que constem do processo.
O vício de contradição insanável da fundamentação, nos termos previstos no art.º 410º/2, alínea b), do Código de Processo Penal verifica-se, designadamente, sempre que do texto da decisão recorrida resulte que um mesmo facto seja julgado como provado e não provado, quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si e que mutuamente se excluem, ou quando, do conteúdo da decisão recorrida, seja de concluir que a fundamentação nela exposta determina inevitavelmente conclusão oposta àquela que aí foi acolhida.
Como explicitado no Ac. do STJ de 24-02-2016, proferido no processo nº 502/08.0GEALR.E1.S1 (relator João Silva Miguel): verifica-se contradição insanável – a que não possa ser ultrapassada ainda que com recurso ao contexto da decisão no seu todo ou às regras da experiência comum – da fundamentação - quando se dá como provado e não provado determinado facto, quando ao mesmo tempo se afirma ou nega a mesma coisa, quando simultaneamente se dão como assentes factos contraditórios, e ainda quando se estabelece confronto insuperável e contraditório entre a fundamentação probatória da matéria de facto, ou contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, quando a fundamentação justifica decisão oposta, ou não justifica a decisão. (…) pode afirmar-se que há contradição insanável da fundamentação quando, através de um raciocínio lógico, se conclua pela existência de oposição insanável entre os factos provados, entre estes e os não provados, ou até entre a fundamentação probatória da matéria de facto. A contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, por sua vez, ocorrerá quando, também através de um raciocínio lógico, se conclua pela existência de oposição insanável entre os meios de prova invocados na fundamentação como base dos factos provados ou entre a fundamentação e o dispositivo da decisão.
Este vício pode ocorrer por contradição entre factos provados, contradição entre factos provados e não provados, contradição entre factos provados e motivos de facto, contradição entre a indicação das provas e os factos provados e contradição entre a indicação das provas e os factos não provados. (cfr. Ac. do STJ de 12-02-1997, proferido no processo nº 047001, em que foi relator Joaquim Dias).
Sobre esta questão, invoca a assistente, ora recorrente, em resumo, o seguinte:
- o Mº Juiz a quo não deu cumprimento ao douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, pelo que não supriu os vícios de contradição insanável na fundamentação, e na matéria de facto dada como provada e não provada;
- a contradição insanável continua a ocorrer – factos provados e não provados que encerram em si contradições insanáveis.
Reporta-se a recorrente ao artigo 1º dos factos provados, bem como à contradição entre o facto provado no ponto 18. e os factos não provados sob os pontos O), P) e Q).
No anterior acórdão proferido por esta Relação nos autos, em 13-10-2022, para o que aqui releva, exarou-se o seguinte:
(…) não obstante não tenha sido invocado pela recorrente nas suas conclusões de recurso, mas sendo de conhecimento oficioso, não poderá este tribunal deixar de apontar desde já que a sentença recorrida padece igualmente do vício de contradição insanável da fundamentação, nos termos previstos no art.º 410º/2, alínea b), do Código de Processo Penal. (…)
Ora, analisada a sentença recorrida, designadamente a factualidade julgada provada e a julgada não provada, constata-se que:
No ponto 1 da enumeração dos factos provados da sentença, foi dado como provado que:
1. O arguido e AA viveram como se de marido e mulher se tratassem desde data não anterior a setembro de 2016 (data esta em que segundo o arguido começaram a namorar) que não se logrou apurar até 13/08/2019, pelo mais, tendo fixado residência na Rua …, n.º 8, em Queijas, concelho de Oeiras.
Contudo, no ponto 17-j. da sentença considerou-se igualmente como provado que:
j. O arguido manteve deste então um relacionamento afectivo com a assistente, atriz profissional, com quem passou a coabitar aquando da gravidez do filho, nascido desse relacionamento e atualmente com três anos de idade.
Face ao provado sob o nº 17-j), e encontrando-se igualmente provado que o filho de ambos nasceu em 12/11/2018, como vertido no ponto 2, sendo por isso evidentemente cognoscível o período da gravidez da assistente, não se compreende o exarado na sentença a esse respeito na respectiva fundamentação: O arguido e a ofendida admitiram por acordo a veracidade dos factos supra enumerados em 1, 2, 3 e 4 com exceção do facto descritivo do início da sua união de facto. As testemunhas ouvidas não dilucidaram o início dessa união de facto, pelo que se carreou para os factos provados ambas as versões relatadas por forma a balizar no mínimo e no máximo a antiguidade desse relacionamento.
Tal fundamentação encontra-se em manifesta contradição com o facto provado descrito em 17-j), pelo que se verifica evidente oposição entre a descrita fundamentação e os factos ali julgados provados.
Por outro lado, no ponto 18. dos factos provados da sentença, foi julgado como provado que:
18. Por força da conduta do arguido a assistente sentiu-se triste, humilhada, cabisbaixa e ofendida na sua honra e consideração, diminuída e com fraca autoestima, com vergonha, humilhação, instável e ansiosa, num estado de stress vigilante, chorando muito e não dormindo bem no final do ano de 2019.
Contudo, foi julgado como não provado sob os pontos O., P. e Q., que:
O. Por força da conduta do arguido a assistente sentiu-se com medo e receio das reações do arguido.
P. Passou a estar ainda mais intranquila e ansiosa com medo de que o arguido lhe aparecesse à porta para atentar contra si, temendo pela sua integridade física e pela sua vida.
Q. Pelo receio e medo do que o arguido possa fazer, a assistente continua a viver com medo dele e do que este possa fazer contra si e viu-se forçada a recorrer a terapia semanal, que faz desde outubro de 2022, uma vez por semana, a fim de tentar reerguer-se e reequilibrar-se.
Assim, o Senhor Juiz de 1ª instância:
Deu como provado e, simultaneamente, como não provado que a assistente, por força da conduta do arguido, passou a sentir-se ansiosa, pelo que o mesmo facto foi dado como provado e como não provado.
Deu como provado que a assistente se sentiu instável, em stress, e simultaneamente, como não provado que passou a estar intranquila, pelo que considerou como provados e não provados factos inconciliáveis ou incompatíveis entre si.
Deu como provado o estado de stress vigilante (que significa estar atenta, estar cautelosa) e, ao mesmo tempo, como não provado que a assistente sentia medo das reacções do arguido e do que este lhe poderia fazer.
Relativamente a este último ponto, exarou-se na fundamentação da sentença recorrida: Os factos descritivos dos efeitos nefastos das condutas do arguido na personalidade e na vida da ofendida julgam-se provados, porquanto correspondem às consequências usualmente vivenciadas pelas suas vítimas, de acordo com as regras de experiência comum, pelo que, a par das declarações da vítima e das testemunhas que arrolou, julga-se provado o facto supra enumerado em 18.
Não se vislumbrando nos escritos do arguido ameaças de mal futuro contra a vida e integridade física da ofendida, não mereceu credibilidade o alegado temor em que esta teria passado a viver, por falta de causalidade existente, pelo que se julgam não provados os factos supra elencados sob as alíneas O), P) e Q).
Tal fundamentação aponta a falta de causalidade entre a conduta do arguido e o temor da assistente para julgar como não provado o medo das reacções do arguido, o que é inconciliável com o facto provado de que, por força dessa mesma conduta, a assistente se sentiu num estado de stress vigilante, porquanto, sem que outra causalidade alternativa seja apontada na sentença recorrida, este estado só poderá encontrar como fundamento, de acordo com as regras da experiência e a normalidade do acontecer na vida, o receio de que algo lhe pudesse acontecer.
Nestes termos, do texto da decisão recorrida, resulta manifesto que esta enferma do vício de contradição insanável da fundamentação nos termos previstos no art.º 410º/2-b) do Código de Processo Penal.
Em conformidade com todo o exposto, sendo nula a sentença proferida nos termos do art.º 379º/1-a) do mesmo Código, cumpre determinar que os autos voltem à primeira instância para que seja proferida nova sentença, para suprimento da nulidade e do apontado vício.

No que respeita ao facto provado descrito sob o ponto 1. na sentença recorrida, do mesmo consta o seguinte:
1. O arguido e AA viveram como se de marido e mulher se tratassem desde não concretamente apurada, mas pelo menos desde data não concretamente apurada da gravidez do filho em comum, tendo fixado residência na Rua ..., n.º 8, em Queijas, concelho de Oeiras.
Ora, entre o que consta provado em tal ponto 1 e o que demais consta da factualidade provada na sentença recorrida, designadamente o que consta sob o ponto 17.j) (que o arguido manteve deste então um relacionamento afectivo com a assistente, atriz profissional, com quem passou a coabitar aquando da gravidez do filho, nascido desse relacionamento e atualmente com três anos de idade), inexiste qualquer contradição.
Já no que ao demais invocado pela recorrente, desde já se adianta que não poderá este tribunal deixar de concluir que lhe assiste razão.
Assim, foi julgado como provado sob o ponto 18. que:
18. Por força da conduta do arguido a assistente sentiu-se triste, humilhada, cabisbaixa e ofendida na sua honra e consideração, diminuída e com fraca autoestima, com vergonha, humilhação, instável e ansiosa, chorando e não dormindo bem no final do ano de 2019. (destacados nossos)

Contudo, julgou-se como não provado que:
O. Por força da conduta do arguido a assistente sentiu-se com medo e receio das reações do arguido.
P. Passou a estar ainda num estado de stress vigilante, mais intranquila e ansiosa com medo de que o arguido lhe aparecesse à porta para atentar contra si, temendo pela sua integridade física e pela sua vida.
Q. Pelo receio e medo do que o arguido possa fazer, a assistente continua a viver com medo dele e do que este possa fazer contra si e viu-se forçada a recorrer a terapia semanal, que faz desde outubro de 2022, uma vez por semana, a fim de tentar reerguer-se e reequilibrar-se. (destacados nossos)

É indubitável que foi simultaneamente julgado como provado e como não provado precisamente o mesmo facto, pois que se considerou como provado e não provado que por força da conduta do arguido a assistente se sentiu ansiosa.
Indubitável igualmente que se julgaram como provados e como não provados factos inconciliáveis entre si, pois que se julgou como provado que a assistente se sentiu instável e, ao mesmo tempo, como não provado que passou a estar intranquila.
Por outro lado, não obstante se tenha deixado de considerar como provado, como na anterior sentença proferida e anulada pelo acórdão desta Relação acima mencionado, que a assistente, por força da conduta do arguido, se sentiu  num estado de stress vigilante, facto esse anteriormente provado sob aquele mesmo ponto 18., a contradição anteriormente apontada persiste.
É que o estado de ansiedade da assistente como consequência da conduta do arguido que foi julgado como provado na decisão recorrida é indissociável do medo.
A ansiedade é, por definição, de acordo com as regras da experiência comum, o resultado do sentimento de medo de que algo possa acontecer, algo esse necessariamente percepcionado como negativo, traduzindo um receio de uma ameaça ou de situação de perigo iminente, de que algo possa correr mal.
A propósito da fundamentação da prova dos factos descritos sob o ponto 18., escreveu-se na motivação da sentença recorrida: as declarações da assistente foram credíveis quanto ao ponto 18, com excepção da menção ao estado de “stress vigilante”, que aí ficou por desatenção, tanto mais que é conceito de cariz clínico que carece de comprovação por quem tem especiais conhecimentos científicos ou médicos, e de o choro ter sido muito, o que é conclusivo e portanto de uso indevido. Mas, de resto, tais sentimentos são um resultado normalmente decorrente de escritos do tipo dos enviados pelo arguido e nessa medida foram contemplados.
E quanto aos factos não provados acima elencados consta o seguinte: Não se vislumbrando nos escritos do arguido ameaças de mal futuro contra a vida e integridade física da ofendida, não mereceu credibilidade o alegado temor em que esta teria passado a viver, por falta de causalidade existente, pelo que se julgam não provados os factos supra elencados sob as alíneas O), P) e Q).
Ou seja, tais excertos da motivação da decisão de facto expressam a credibilidade conferida pelo julgador às declarações da assistente quanto aos factos descritos naquele ponto 18, e a falta de credibilidade das mesmas no que respeita ao medo com que esta teria passado a viver.
Contudo, aquele provado estado de ansiedade, de acordo com as regras da experiência comum, apenas será compatível com o sentimento de medo que foi julgado não provado.
Por outro lado, o que consta como provado sob aquele ponto 18 (Por força da conduta do arguido a assistente sentiu-se triste, humilhada, cabisbaixa e ofendida na sua honra e consideração, diminuída e com fraca autoestima, com vergonha, humilhação, instável e ansiosa, chorando e não dormindo bem no final do ano de 2019), não se afigura compreensível face ao conteúdo dos demais factos provados sob os pontos 5 a 12, que, recorde-se, são os seguintes:
5. Após [o início de junho de 2020], através do número 928054299, o arguido passou a enviar várias mensagens escritas AA, para o número desta (918863479) e, em 29/06/2020, às 15h38, o arguido enviou-lhe a seguinte mensagem: “Tás com sorte que tou bem disposto. Vou deixar-te dar as penúltimas gargalhadas”.
6. No dia 8/07/2020, às 10h12, o arguido enviou a seguinte mensagem escrita a AA: “(…) Explica a tua advogada (...) que o caso acaba, ela segue a vida dela mas tu levas comigo a vida toda. Abre o olho”.
7. No dia 8/07/2020, às 22h56, o arguido enviou a seguinte mensagem escrita a AA: “(...) Para além do mais, estamos em Julho as escolas fecharam e mais uma vez tu, burra com palas, ouves os outros em vez de pensares no teu filho (...)”.
8. No dia 18/02/2021, às 6h19, o arguido enviou a seguinte mensagem escrita a AA: “Imagina que agora começava a bater à tua porta... lembra-te q tens um filho meu ctg. Eu to a deixar ir, tas a levar na tua putice mas to a deixar ir. Reza para a minha paciência não acabar”.
9. No dia 23/02/2021, às 7h34, o arguido enviou a seguinte mensagem escrita a AA: “Bom dia atrasada mental. O meu filho como está?”.
10. No dia 26/02/2021, às 22h20, o arguido enviou a seguinte mensagem escrita a AA: “Mongoloide, tudo bem? O meu filho como está? Gostava de saber dele sim atrasada mental, és deprimente (...) A mim faz-me muita confusão a merda de mãe que o meu filho tem ... Mas não vou lutar ctg nem o vou buscar. Isso só aumentará o ódio para tudo isto vadia”.
11. No dia 01/03/2021, às 07h05, o arguido enviou a seguinte mensagem escrita a AA: “Bom dia puta nojenta. Quero tar com o meu filho. Não o trato a ele como te tratarei a vida toda. Começa a abrir a pestana vadia. (...)”.
12. E, no dia 6/03/2021, às 8h44, o arguido enviou várias mensagens escritas a AA, nomeadamente:
a. eu rebento com a tua carreira (...)
b. nojenta
c. e como te vou continuar a ofender até ao fim da minha vida, não próxima sessão do tribunal tbm conheces o meu advogado novo
d. nojenta
e. e não vou ser um pai mentiroso vadia (...) não tenho nada a esconder de ninguém vadia
f. podes fazer o que quiseres da tua vida que eu quero mais é que tu te fodas (...)
g. não é bem melhor do que toda a putice que estás a fazer?
13. Após, o arguido enviou no mesmo dia as seguintes mensagens a AA: “puta, vai já chorar, vai já (...) quero mesmo é que tu te fodas... assim com estas palavras (...) para que um dia o meu filho veja bem a merda de mãe que tem... mas isso não sou eu que lhe vou dizer... Sou que lhe vou provar”.
14. Nestas ocasiões e em todas as outras que AA teve de suportar, agiu o arguido com intuito de molestar psicologicamente a ofendida, diminuir a sua honra e consideração, o que conseguiu, bem sabendo que as expressões por si proferidas são adequadas a humilhar.
Como resulta dos factos provados atrás transcritos, as mensagens escritas enviadas pelo arguido à assistente são todas posteriores a Junho de 2020, pelo que não se descortina qual seja a “conduta do arguido” que tenha determinado a que a assistente se sentisse “triste, humilhada, cabisbaixa e ofendida na sua honra e consideração, diminuída e com fraca autoestima, com vergonha, humilhação, instável e ansiosa, chorando e não dormindo bem no final do ano de 2019”, como consta do facto provado sob o ponto 18.
Nenhuma conduta do arguido anterior ao final do ano de 2019 susceptível de causar os sentimentos, o choro e a dificuldade em dormir descritos no ponto 18, foi julgada como provada.
Do mesmo modo, da factualidade julgada provada acima transcrita, impossível se afigura descortinar quais sejam as “todas as outras” (ocasiões) “que AA teve de suportar” a que se reporta o ponto 14. dos factos provados acima transcrito.
Se o excerto “Nestas ocasiões” mencionado no ponto 14 se reporta inequivocamente às mensagens enviadas e descritas nos pontos anteriores, questiona-se quais serão as outras situações que a assistente terá tido de suportar.
No entanto, a conduta do arguido anterior ao final do ano de 2019 não poderá ser senão alguma, algumas, ou todas aquelas que foram julgadas como não provadas, designadamente sob as alíneas C. a J. dos Factos não provados, porque situadas no período do relacionamento e até 12 de Dezembro de 2019.
Já aquelas outras ocasiões que a assistente teve de suportar, poderão ser aquelas ou ainda as demais descritas nas alíneas k. e L. dos Factos não provados.
A factualidade provada e não provada mostra-se assim eivada de contradições e estas são insusceptíveis de ser sanadas pelo recurso ao texto da decisão recorrida, pelo que se encontra manifestamente verificado o vício decisório previsto no art.º 410º/2-b) do Código de Processo Penal.

Dispõe o art.º 431º do Código de Processo Penal que:
Modificabilidade da decisão recorrida
Sem prejuízo do disposto no artigo 410.º, a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada:
a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base;
b) Se a prova tiver sido impugnada nos termos do n.º 3 do artigo 412.º; ou
c) Se tiver havido renovação da prova.
Por outro lado, preceitua o art.º 426º/1 do mesmo Código que:  Sempre que, por existirem os vícios referidos nas alíneas do n.º 2 do artigo 410.º, não for possível decidir da causa, o tribunal de recurso determina o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do objecto do processo ou a questões concretamente identificadas na decisão de reenvio.
Da conjugação de tais normativos resulta que o Tribunal da Relação só deverá reenviar o processo para novo julgamento quando não possa decidir a causa, devendo os vícios previstos no art.º 410º citado serem sanados quando tal resulte possível face aos elementos que constem do processo e ao texto da decisão recorrida.
No caso em apreço, como resulta do exposto, o vício apontado, pela sua dimensão, afecta a quase integralidade da decisão da matéria de facto.
Como atrás se disse, a intervenção do tribunal de recurso em sede de modificação da matéria de facto não poderá representar um segundo e novo julgamento, com base na gravação da audiência de julgamento, desprovido de imediação e de oralidade, substituindo-se à primeira instância.
A intervenção do tribunal de recurso deverá nessa sede circunscrever-se à correcção de pontos de facto pontuais, o que não é manifestamente o caso.
Consequentemente, importa determinar o reenvio para novo julgamento, nos termos dos art.ºs 426º/1 e 427º-A do Código de Processo Penal relativamente à totalidade do objeto do processo, a realizar necessariamente por outro Juiz, atento o disposto no art.º 40º/1- c) do mesmo Código.
*
Fica assim naturalmente prejudicado, por inútil, o conhecimento das demais questões suscitadas nas conclusões dos recursos interpostos.
*
IV. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes da 9ª secção criminal do Tribunal desta Relação em conceder parcial provimento ao recurso interposto pela assistente e, em consequência, anula-se o julgamento, determinando-se o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do seu objecto, a realizar por Juiz diferente daquele que proferiu a sentença recorrida.
Notifique.

Lisboa, 6 de Julho de 2023
(anterior ortografia, salvo as transcrições ou citações, em que é respeitado o original)
Elaborado e integralmente revisto pela relatora (art.º 94.º n.º 2 do C.P. Penal)
Paula Cristina Bizarro
Antero Luís
João Abrunhosa

_______________________________________________________
[1] Na sentença revogada escrevêramos ameaça no contexto da
[2]Isto não são ameaças./Não confundas factos. E no fim de semana passado não era suporto estar com ele pois estavas a esconder o resultado do covid e a privar me de estar com ele…Não me avisas no dia para ficar com ele… Tenho vida e trabalho…Não é como tu” (13.ª mensagem, fls. 41). (…)
Bom dia tudo bem? Ás 17h vou apanha lo onde? Vou busca-lo ao infantário, amanhã entrego te a ti. No meio disto tudo a merda que tínhamos a fazer já ta feita. Erramos os dois. Não vale a pena esta guerra até porque as advogadas nuuuuunnnnca a irão resolver por muito papel que o tribunal passe… Que vais resolver isto somos nós R…. O tempo ta a passar e o nosso filho n é um objecto… Pára para pensar… Eu to a falar a bem… Esta mensagem nem reencaminho para a minha advogada…To a falar do coração. Ação gera reação e ambos tamos prontos para ir até ao fim. Tanto eu como tu no fundo sabemos como isto vai acabar… Mas no meio já deixamos o nosso filho por tar a pensar numa guerra… Vais fazer 41… ta na altura de pararres para pensar…”(14.ª mensagem, fls. 41).
Tas me a fazer aleanação de parentalidade. Isso é crime. Tu és louca. Quero Ver o melho filho. Seu que n ta correcta a forma como falo ctg mas já não sou capaz de falar ou olhar para ti de outra forma. Tiraste me um filho. Mas nós temos de falar, n temos de nos der, n temos de nada… Só temos de saber q ele tem de ter pai e mãe. Tem de estar com o pai e com a mãe. N podes ser tu a decidir isso pq a vida vai te cobrar… Eu faço questão… “(fls. 49).
E como te vou continuar a ofender até ao fim da vida, na próxima sessão de tribunal tbm conheces o meu advogado novo” (fls. 52).