Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | GABRIELA DE FÁTIMA MARQUES | ||
Descritores: | AUTORIDADE DO CASO JULGADO DESPACHO DE ARQUIVAMENTO MINISTÉRIO PÚBLICO ACIDENTE DE VIAÇÃO CONCURSO RISCO CULPA | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 12/05/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
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Sumário: | I. Para que se encontre consubstanciada a eventual excepção de autoridade de caso julgado não pode a parte pretender trazer à colação o arquivamento ocorrido no inquérito pelo Ministério Público, por nem sequer configurar uma sentença judicial. E ainda que uma decisão instrutória emane de um juiz, face à natureza da mesma, também quanto a esta não se forma caso julgado sobre questões que possam contender com a afirmação da responsabilidade penal do arguido em julgamento. II. Caso estivéssemos perante sentenças proferidas a nível penal, ou seja, na sequência de julgamento ocorrido nesta jurisdição, é a lei adjectiva que dá resposta sobre a possibilidade de tais decisões poderem ser atendidas na apreciação da questão cível, nos seus artigos 623º e 624º ambos do Código de Processo Civil. III. Perante um acidente de viação entre um veículo e um peão, só havendo prova certa e segura do facto da vítima como causa única e exclusiva do acidente é que não haverá lugar a concurso do risco próprio do veículo com o facto do lesado. (Sumário elaborado pela relatora) | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa: I. Relatório: R…, melhor identificado nos autos, aqui representado pelos seus progenitores P… e T… uma vez que à data dos factos era menor de idade, intentou a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra I…(em representação da seguradora francesa A…, S.A., para que se encontrava transferida a responsabilidade civil automóvel do veículo interveniente), solicitando a condenação desta: A Título de Danos Patrimoniais: a quantia de € 70.000,00 pelo dano biológico contabilizado em 91 pontos; a quantia de € 540.000,00 a título de dano futuro; A título de Danos Não Patrimoniais a quantia de € 280.000.00, nestes se incluindo o quantum doloris e o dano estético, e ainda os juros de mora, calculados à taxa máxima, “no seu dobro por força do nº 2 do artº 38º do D.: nº 31/2007, de 21 de Agosto, posto que a ré ao não assumir a responsabilidade quando o deveria ter feito, violou o seu dever de apresentação de uma proposta razoável, a contar desde a citação e até integral pagamento.”. Para tanto alega, em suma e para o que releva, ter sido atropelado no passeio pedonal da Av. Marginal imediatamente a seguir às bombas de gasolina em Sto. Amaro de Oeiras, no sentido Lisboa-Cascais, por veículo conduzido por A...e que este detinha transferida para a Ré a responsabilidade civil por acidente de viação. Alega que, deste evento acidentário, resultaram danos patrimoniais e não patrimoniais que enuncia e descreve pormenorizadamente. Devida e regularmente citada, a Ré enjeitou a responsabilidade do veículo seu segurado no acidente e, bem assim, impugnou, especificadamente, quer o iter acidentário descrito, quer os prejuízos delineados. Realizado o julgamento foi a acção julgada improcedente e absolvida a ré do petitório. Em despacho posterior foi rectificada a sentença quanto ao objecto do litígio e ainda o ponto 9. dos factos provados. Inconformado com a decisão veio o Autor recorrer apresentando as seguintes conclusões: «1. Não concordando com a sentença proferida pelo Tribunal a quo, pretende o Apelante, ora Recorrente, demonstrar que essa decisão incorreu em erro no julgamento da matéria de facto e de direito. 2. Indicando os factos que considerou mal julgados e colocando em causa a valia intrínseca de cada um dos elementos probatórios, a sua consistência e coerência à luz das regras da normalidade e da experiência. 3. Quanto à concreta matéria de facto considerada incorrectamente julgada, o Recorrente concretamente impugnou os pontos 8, 10, 13, 14 e 15 da sentença recorrida. 4. Em sede de reapreciação, o Recorrente invocou ainda a matéria de facto decorrente da prova documental junta aos autos com a p.i., concretamente1 a dos Docs. 1 e 3: Doc.1 - Auto da PSP de Participação de Acidente, no qual expressamente se declara que não foi visível quaisquer vestígios do peão (leia-se do aqui Apelante) no solo betuminoso, apenas parte do retrovisor direito do veículo no passeio a norte da artéria – facto alegado em 8º d) da p.i.; Doc. 3 - Relatório de Peritagem-Averiguação de “T...– Gabinete de Peritagem, Lda.”, a solicitação de I… (representante em Portugal da Apelada), alegadamente a pedido da sua representada e no qual se refere, a pag. 10, que “….. o sinistrado não chegou a pisar a faixa de rodagem, mais precisamente na via de trânsito da direita por onde seguia o VS (leia-se veículo segurado), dado que nenhum dos membros inferiores sofreu lesões” e que a posição do aqui A. aqui Apelante, se encontrava sobre o passeio. – facto alegado em 10º e 11º d) da p.i.; 5. Posto que a Mm. Juiza a quo desconsiderou em absoluto a factualidade integrada nesses documentos e expressamente alegada no articulado inicial (p.i.), apenas a ela se referindo expressando que “relevou-se fundamentalmente o teor dos documentos”, ou seja, nada mais dizendo. Esta omissão de pronúncia é censurável, sobretudo quando desconsidera factos cuja prova decorre e assenta em documentos autênticos, idóneos, irrefutados e como tal de primordial importância para a boa decisão da causa. Essa factualidade deveria ter sido integrada na matéria de facto dada como provada e não apenas genericamente referida como tendo sido apreciada, o que admitindo que o foi equivale a dizer que não elegeu essa factualidade para fundamentar a sua decisão. 6. A livre apreciação da prova pelo tribunal exige uma especificação clara e objectiva sobre as razões que conduziram à decisão sobre os factos apresentados pelas partes, com a exposição dos fundamentos que foram decisivos para a convicção adquirida, de forma a permitir uma sindicância sobre a convicção do julgador relativamente ao julgamento dos factos considerados como provados e bem assim quanto aos factos referidos como não provados. 7. Destarte e com os fundamentos supra expendidos em sede de fundamentação do presente recurso, relativamente aos concretos meios probatórios, designadamente os constantes dos registos da gravação de depoimentos das testemunhas A… e AS…, produzidos em audiência de julgamento e bem assim os factos decorrentes dos supra referidos documentos juntos aos autos com a p.i., devem ser considerados provados os seguintes factos (sublinhando-se na parte que se devem considerar alterados, ou que se deve considerar aditados (mantendo-se a numeração dada na sentença): “8. O veículo ligeiro Audi/A4, conduzido por A... seguia integrado numa fila de, pelo menos, três viaturas, distanciadas entre si em cerca de 10 m, e a uma velocidade constante que não excedia os 50Km/h, sendo que o veículo Audi, conduzido por A... excedia esta velocidade. 10. O condutor do Audi, segurado na R, seguia atento à condução e ao ambiente circundante, mantendo uma distância máxima de 30 cm do passeio. 13. Não foi visível quaisquer vestígios do peão (leia-se o Autor) no solo betuminoso, apenas parte do retrovisor direito do veículo no passeio a norte da artéria”. 13-A O sinistrado não chegou a pisar a faixa de rodagem, mais precisamente na via de trânsito da direita por onde seguia o VS (leia-se veículo segurado), dado que nenhum dos membros inferiores sofreu lesões, encontrando-se a sua posição sobre o passeio”. 14. A parte superior esquinada da lateral direita anterior do Audi embateu na cabeça do Autor, que tombou ficando deitado sobre o passeio. 15. O modo imprevisível e a rapidez com que se desenvolveu o acidente, determinou a insusceptibilidade de o condutor do Audi imobilizar o veículo antes do embate. 8. Desta nova factualidade será forçoso concluir que outra foi (e deveria ter sido considerada pelo tribunal a quo) a dinâmica do acidente. 9. Isto quando na própria sentença a tese de tentativa de suicídio sequer é considerada e a tese da eventual falta de visão do Apelante é expressamente refutada com recurso às regras da experiência a que o julgador está vinculado, levando-o à conclusão de que “tal circunstância não se revela decisiva, considerando que a miopia apenas afecta a visão ao longe”, clarificando-se ainda que “tal facto, a ocorrer, apenas imporia maior cuidado na tomada de decisão uma vez que a miopia e o estigmatismo não o privaram de audição, raciocínio e poder de ajustamento” – in enquadramento jurídico, pág. 21 da sentença). 10. Não tendo ficado provado que o rodado do veículo tenha invadido o passeio pedonal e por outro lado devendo considerar-se provado que “não foi visível quaisquer vestígios do peão (leia-se o Autor) no solo betuminoso, apenas parte do retrovisor direito do veículo no passeio a norte da artéria” (vidé supra 13. da decisão que deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas), ou dito de outro modo, “o sinistrado não chegou a pisar a faixa de rodagem, mais precisamente na via de trânsito da direita por onde seguia o VS (leia-se veículo segurado), dado que nenhum dos membros inferiores sofreu lesões, encontrando-se a sua posição sobre o passeio” (vidé 13-A da decisão que deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas), suscita-se a questão de saber como poderia ter ocorrido o sinistro dos autos. 11. A tese adiantada pela testemunha e condutor do veículo interveniente, de que o Apelante “mandou um salto do passeio para cima da minha carrinha. Tipo de um leão da selva “ (vidé transcrito depoimento de A…), também soçobra quando confrontada com o facto dado como provado (e que se aceita e deve considerar assente) de que os veículos circulavam entre si inter-distantes de 10 metros, leva-nos a concluir que entre o tempo de passagem do veículo conduzido por AS… e o tempo de passagem do veículo interveniente no acidente (conduzido por A…): i) se a velocidade dos veículos fosse na ordem dos 50km/h (sendo 51Km/h a velocidade mínima a que circulava o veículo interveniente no acidente) o peão teria um tempo inferior a 1 s (um segundo!) para voluntariamente fazer qualquer movimento. 12. E tanto mais inverosímil assim será se considerarmos que para além de qualquer dos tempos supra referidos para que houvesse contacto do peão, aqui Apelante, com o veículo Audi segurado pela Apelada, nos termos agora equacionáveis, haveria ainda que considerar os tempos dos alegados impulso ascendente, o do “vôo” e o do mergulho do corpo do Apelado na dita “parte superior esquinada da lateral direita anterior do Audi”. 13. O que torna absolutamente insustentável a manutenção da matéria de facto levada aos transcritos pontos 13 e 14 da matéria dada como provada na sentença recorrida. 14. Tudo conjugado, o peão só poderia ter sido colhido no passeio por uma parte ou elemento da carroceria do veículo que invadisse esse espaço destinado à circulação pedonal, ainda que a não tenha invadido com o rodado circulante. 15. Para tanto contribuiu a excessiva proximidade de circulação do veículo interveniente no acidente ao passeio pedonal, mais concretamente 30 cm (medida máxima de proximidade) cfr. decisão que deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. A testemunha AS utiliza até a expressão “encostado ao passeio”, referindo posteriormente entre “20 a 30 cm” do passeio, quando solicitado a precisar a expressão que utilizou. 16. O tribunal tem obrigação de conhecer os factos notórios e que por isso não carecem de ser alegados ou provados, até porque resultam do saber comum a um homem médio colocado na posição do julgador. São eles: - o corpo humano não é cilíndrico, pois na zona dos braços, mesmo quando em posição de descanso, estes apresentam-se salientes do corpo de tal modo que se pode com segurança estabelecer-se uma medida mínima de afastamento (em descanso) na ordem dos 15 cm (para um adolescente ou jovem adulto). Quem não sabe que, por vezes, a passagem de um corpo por um lugar estreito tem de se fazer de lado, pois de frente é impossível fazê-lo? Donde, circulando o Apelante no passeio pedonal, junto ao lancil que separa esse espaço da faixa de rodagem, o seu braço enquanto elemento corporal será sempre exterior aos limites do passeio, independentemente do sentido em que caminhe (só assim não será quando se encontre virado para a faixa de rodagem, na típica posição de quem pretende, está ou acaba de atravessar); - os espelhos retrovisores dos veículos automóveis, independentemente das medidas exactas, que no caso dos autos por ora em concreto não se podem considerar, estão sobressaídos da restante carroçaria. Quem não sabe que quando se entra numa garagem, ou num local mais apertado esses elementos têm de ser recolhidos? ou quando o veículo fica estacionado numa rua estreita o condutor deve ter o cuidado – e em regra tem – de os recolher (em especial o espelho que se encontra do lado da circulação nessa via)? ou quem não sabe que os veículos mais modernos quando se fecham as portas para serem abandonados no estacionamento, têm um mecanismo automático que recolhe os espelhos? 17. Das fotografias do veículo automóvel interveniente nos autos constantes das pags. 9 e 10 (fotos 5, 6, 7 e 8) do Relatório de Peritagem-Averiguação de “T...– Gabinete de Peritagem, Lda.” – Doc. 3 junto com a p.i. verifica-se que o espelho exterior retrovisor do lado direito (lado do veículo mais próximo do passeio pedonal, atento o sentido de marcha) foi “arrancado”, ali ficando apenas o espigão da sua fixação. 18. Facilmente poderemos concluir que esse espigão terá no mínimo 10cm a que deverá acrescer, no mínimo, um outro tanto do equipamento que está reservado à retrovisão. 19. Se nos socorrermos da imagem de uma folha A4 na horizontal poderemos visualizar uma medida próxima dos 30 cm (concretamente mede 29,7cm), o que nos permite visualizar o quão perto do passeio pedonal o veículo interveniente no acidente circulava. 20. É notório ainda o facto de que os rodados dos veículos se contém sempre (até por impositivo legal) nas cavas da carroçaria, ou seja não são exteriores (salientes) à carroçaria, nem podem conter-se em medida igual pois acabariam por nela roçar com o movimento de rodagem, podendo-se estimar, ainda que à cautela, entre 4 e 6 cm de “recuo” do rodado face ao exterior do guarda-lamas da carroçaria. 21. Donde será pacífico fazer-se a seguinte conta de adição: 15 cm de saliência do braço (em descanso) do peão do respectivo corpo (se em movimento esta medida será sempre maior e in casu estava em movimento) + 15 a 20 cm medida que consensualmente se pode estimar de saliência do espelho retrovisor lateral do veículo automóvel + 5 cm que é a média das medidas estimadas entre 4 e 6 cm de recuo das rodas (inclusão nas respectivas cavas) face ao guarda-lamas da carroçaria do automóvel, facilmente se atingirá uma medida de 35 a 40 cm; 22. Essa medida (35 a 40 cm) é mais que suficiente para que uma parte de um veículo automóvel (v.g. espelho retrovisor exterior), circulando na sua faixa de rodagem a 30cm de distância do passeio pedonal, atinja um peão que circule nesse passeio pedonal, ou seja sem que qualquer deles invada o espaço destinado à circulação do outro, justificando-se assim o acidente em apreço. 23. Caso em que se deverá apreciar o enquadramento legal da responsabilidade: i) a eventual existência de culpa do condutor, logo no âmbito da por facto ilícito, ou ii) inexistindo culpa do condutor, ou do peão, logo no âmbito do risco. 24. No âmbito da responsabilidade por factos ilícitos (artº 483º e ss. Do Cod. Civil), aliás a tese que se enformou o petitório, atendendo à factualidade provada e à que se deve assim considerar por via da impugnação e reapreciação suscitadas neste recurso, encontram-se reunidos os legais pressupostos, a saber: i) o facto: o acidente dos autos, com a factualidade decorrente provada e a que não esteja em contradição com a reapreciada por via da sua impugnação; ii) a ilicitude: violação do disposto no nº 1 do artº 13º do Código da Estrada, que expressamente determina “Artigo 13º - 1 – A posição de marcha dos veículos deve fazer-se pelo lado direito da faixa de rodagem, conservando das bermas ou passeios uma distância suficiente que permita evitar acidentes. A este propósito vide Ac. STJ, 12-01-2010, proc. 435/05.2TCFUN.l1.S1, rel. Hélder Roque, consultável in www.dgsi.pt e cujo sumário seguidamente se transcreve: “I - Não observa a margem de segurança imposta por lei o condutor que circula encostado ao passeio, que invade, independentemente da parte do veículo de que se trate, desde a carroçaria ao rodado, passando pelo espelho retrovisor, ultrapassando, em maior ou menor profundidade, a linha divisória vertical existente entre o passeio e a faixa de rodagem adjacente. II - O condutor que circula pela faixa de rodagem, junto à berma, e embate, com o espelho retrovisor externo do veículo que tripula, no braço do peão que caminha pelo passeio adjacente e muito próximo da faixa de rodagem, viola o dever objectivo de cuidado que o obriga a um maior afastamento do passeio, por nele caminharem pessoas”. iii) Imputação culposa do facto ao lesante: A direcção efectiva do veículo interveniente no acidente era de A... que o conduzia, para tanto encontrando-se habilitado e com a transmissão da responsabilidade desse uso para a Apelada, por seguro válido ao tempo do sinistro e cuja apólice juntou com a contestação. A esse condutor exigia-se em face das circunstâncias concretas (trafego diminuto naquele dia, hora e local, reduzida velocidade de circulação de veículos automóveis, piso molhado ainda que não estando a chover, ocaso do sol) que observasse um especial dever de cuidado de tal modo que fizesse circular o seu veículo a uma distância de maior segurança do passeio pedonal); iv) o dano ou prejuízo: os sofridos pelo peão, aqui Apelante e descritos no auto de perícia médica e constantes da matéria de facto provada constante dos pontos 17 a 39 da sentença recorrida e; por último v) o nexo de causalidade entre o facto e o dano: todos os descritos e provados danos do peão, aqui Apelante, têm directamente como fonte o acidente dos autos. 25. Já no âmbito da responsabilidade pelo risco, há que dizer que nas acções emergentes de acidente de viação, quando o autor formula o pedido de indemnização com base na culpa do lesante, implicitamente está a formulá-lo com base no risco, visto este estar englobado na causa de pedir invocada, por os factos ou razões de facto serem os mesmos com excepção dos referentes à existência de culpa – nesse sentido e por todos, vidé Ac. STJ, 31-03-2011, proc. 8220/09.6T2SNT.L1.S1, rel. Granja da Fonseca, consultável in www.dgsi.pt 26. Donde, não sendo de descartar em absolto estarmos perante responsabilidade pelo risco, enquanto solução jurídica que pode e deve também ser apreciada face aos factos apurados dados como provados e como supra se disse, os decorrentes das alterações factuais que, sm.o. e com o devido respeito, se devem operar em decorrência da impugnação da matéria de facto deduzida pelo aqui Apelante. O tribunal conhece o direito e por isso lhe cabe a responsabilidade última de o aplicar. 27. Ademais, esta responsabilidade objetiva ou pelo risco, por acidentes devidos a veículos de circulação terrestre, está consagrada nos termos, medida e limites do disposto nos artigos 483º, nº. 2, 499º e 503º a 508º, todos do Código Civil. 28. Tratando-se de um tipo, ou modalidade, de responsabilidade civil, de carácter excecional, em que o dano tem que representar a concretização de um risco específico, em atenção ao qual a responsabilidade é imposta e que surge independentemente de culpa, servindo pois para operar a indemnização quando não se prova ou não se presume a culpa. Para o caso de que agora cuidamos, diga-se, ainda, que tal responsabilidade é aplicável a acidentes causados por veículos, ou a colisão de veículos (respectivamente artºs. 503º e 506º do Cod. Civil), porém no caso de acidentes causados por veículos e em que seja lesado um peão, como é o caso dos autos, não há lugar à responsabilidade repartida prevista no artº 506º do Cod. Civil.aliás como bem já se decidiu in Ac. TRL 08-02-2024, procº 1334/18.3TBALM.L1-8, rel. Maria Carlos Duarte do Vale Calheiros, consultável em www.dgsi.pt de cujo sumário se pode retirar que “no caso de atropelamento de peão por veículo automóvel sem que tenha sido apurada culpa de qualquer deles não há lugar à repartição entre o risco do veículo e o risco do peão, não integrando essa hipótese a previsão do artigo 506º, nº 1 , do C. Civil , sendo-lhe em contrapartida aplicável o regime preconizado pelo artigo 503º , nº 1 , do C. Civil.”. 29. Última questão a apreciar é a de saber até que ponto o “arquivamento” decidido em processo penal, é relevante para a decisão recorrida, posto que a Mma. Juiza a quo socorreu-se desse facto para “fortalecer” a fundamentação da sua sentença. 30. Nesses autos visou-se, tão só, apurar a eventual prática de um ilícito de natureza criminal por parte de A...enquanto condutor do veículo interveniente no acidente, sendo que os pressupostos de apuramento da responsabilidade (criminal) são distintos dos pressupostos de apuramento da responsabilidade civil, assuma esta a natureza objectiva, subjectiva ou do risco, ainda que nalguns aspectos possam ser confinantes. 31. Assim, o simples facto de não ter havido lugar a pronúncia, em sede daquele inquérito, não permite retirar a conclusão “urbi et orbi” que em sede de qualquer das modalidades da responsabilidade civil, máxime pelo risco, não haja responsabilidade da entidade para quem esteja transferida essa responsabilidade, que no caso dos presentes autos é uma empresa seguradora. 32. A sentença de que se recorre é, pois, injusta por resultar de uma inapropriada valoração das provas, fixação imprecisa dos factos relevantes e de referência inexacta dos factos ao Direito. 33. A reapreciação da matéria de facto carreada para a sentença recorrida, nos precisos termos que se invocam, é determinante para a reapreciação da dinâmica do acidente dos autos e para outra solução de Direito, que não a levada à sentença recorrida. Termos em que deve ser julgada procedente a Apelação e em consequência alterar-se a sentença recorrida.». A ré além de apresentar Contra-alegações, veio ainda afirmar que pretende que se considere a ampliação do âmbito do recurso, dizendo que o faz ao abrigo do disposto no artº 636, n.º 1 do Código de Processo Civil, apresentando as conclusões A) e B) sobre o mesmo, o que será apreciado infra, sendo as relativas à oposição ao recurso as seguintes: «(…) C- O que é excludente de qualquer responsabilidade, nomeadamente objectiva ou a título de risco como decorre do art. 505 do Código Civil. D- Consequentemente, deve manter-se, ainda que com este fundamento, a decisão do Tribunal de 1ª Instância. Sem prescindir E- Na fase do julgamento e nas alegações de recurso o apelante altera a causa de pedir: na Petição Inicial alegou que o condutor do veículo perdeu o controlo do mesmo e foi atropelá-lo no passeio; nas alegações de recurso, alega – ainda que como mera possibilidade – que o peão foi embatido pelo retrovisor lateral direito do veículo que circulava perto do passeio. Estamos perante duas versões do mesmo acidente, sendo que a segunda é nova. F- Tal alteração não pode ser aceite pela ré-recorrida, pois a apanha de surpresa. Se o autor, ora apelante, tivesse alegado na Petição Inicial o que alegou na fase do julgamento e no presente recurso, a ré, ora recorrida, poderia ter confirmado, em tempo útil e processualmente admissível, um certo número de factos (medidas e não só) e teria produzido diferentes meios de prova (designadamente prova pericial). G- Atento o disposto no art. 265, n.º 1 do Código de Processo Civil, a alteração da causa de pedir é inadmissível, como inadmissível é a aceitação dos novos factos que a integram. H- De qualquer forma, se a viatura circulava pelo menos a 20 cm. do passeio pedonal e tendo o espelho retrovisor lateral direito do veículo, alegadamente, 17,30 cm. não teria este a virtualidade de “invadir o passeio”. I- Não é exacto que a Meritíssima Juíza a quo tenha desconsiderado os documentos “Participação do Acidente” e “Relatório de Averiguação e T...Lda”. Considerou-as na medida do seu valor probatório e no confronto com a prova testemunhal produzida. J- Não deve ser alterada a redacção dos Factos Provados 8, 10, 13, 14 e 15, pois que tal redacção é a que corresponde à prova testemunhal produzida em audiência. K- Não deve ser aceite o novo Facto Provado 13-A, por ser irrelevante ou instrumental para apurar a causa do acidente e por ser parcialmente conclusivo. L- São especulativas as Conclusões 11 e 12, por isso devem ser rejeitadas. M- São inaceitáveis as Conclusões 13 a 22 por: - se basearem em factos não provados; - serem em grande medida especulativas; - serem frontalmente contrariadas pelos depoimentos testemunhais produzidos. N- Por todo o exposto, deve o recurso ser julgado improcedente, como é de JUSTIÇA.» Admitido o recurso do recorrente neste tribunal e colhidos os vistos, cumpre decidir. * Questão prévia – da ampliação do recurso pela ré: A recorrida no âmbito das suas contra alegações veio requerer a ampliação do âmbito do recurso, dizendo que pretende que seja apreciada por este Tribunal da Relação “a questão da verificação, no presente caso, da excepção dilatória inominada de violação de autoridade de caso julgado relativa à causa do acidente, excepção que não foi considerada pelo Tribunal a quo.”. Mais dizendo que “Tal pretensão da recorrida é sustentada não apenas no art. 636, n.º 1 do Código de Processo Civil, mas também na circunstância de os poderes do Tribunal, seja de 1ª instância seja de recurso, se estenderem a questões de conhecimento oficioso (cfr. art. 608, n.º 3 do Código de Processo Civil).”. Transpõe para as suas conclusões A. e B. tal questão nos seguintes termos: «A- Deve ser admitida a ampliação do âmbito do recurso, ao abrigo do art. 636, n.º 1 do Código de Processo Civil e tendo por objecto a questão da verificação, no presente caso, da excepção dilatória inominada de violação de autoridade de caso julgado relativa à causa do acidente. B- Deve julgar-se verificada tal excepção, pois que na jurisdição penal a questão da causa do acidente já foi julgada no sentido de a mesma caber exclusivamente ao lesado, ora apelante.». No corpo das alegações discorre sobre tal excepção dizendo que constitui uma excepção dilatória inominada e de conhecimento oficioso (art. 578, do Código de Processo Civil). Elenca decisões relativas à mesma (Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 13/12/2007 (processo com o n.º 07A3739), de 06/03/2008 (processo com o n.º 08B402) e de 23/11/2011 (processo com o n.º 644/08.2TBVFR.P1.S1), Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 06/09/2021 (processo n.º 816/09.2TBAGD.C1 (in www.dgsi.pt), e ainda a citação do que consta do Acórdão da autoria do Prof. Castro Mendes, na sua obra “Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil”, páginas 178 e segs., dizendo o que o referido autor afirma: “a paz e a ordem na sociedade civil não permitem que os processos se eternizem e os direitos das partes reconhecidos pelo Juiz após uma investigação conduzida pelo Juiz de acordo com as normas legais voltem a ser contestados sob qualquer pretexto”. Na sustentação de tal excepção limita-se a afirmar que: “Sem contar com a sentença ora em recurso, o acidente dos autos já foi objecto de 4 decisões. Todas elas se pronunciaram sobre a causa do acidente, após instrução e investigação, incluindo a inquirição das testemunhas presenciais do acidente, que são as que foram arroladas pelas partes na presente acção judicial. Todas as decisões são unânimes em que foi a própria vítima (o autor/apelante) a causadora do acidente, atravessando a via em local proibido e sem se certificar de que o poderia fazer em condições de segurança. Vejam-se os Factos Provados 40, 41 e 42. Os autores das decisões supra referidas foram não só o Magistrado do Ministério Público, mas também, Juízes da 1ª Instância e da Relação. Não se vê qualquer razão – legal ou doutrinal – para que a decisão dessa questão (causa do acidente de viação) proferida na jurisdição penal não seja atendida em posterior acção cível. E neste sentido poderá invocar-se, crê-se, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/07/2011 (processo n.º 129/07.4TBPST.S1 – Relator Moreira Camilo) (in www.dgsi.pt). E nem se argumente que na posterior acção cível se visa apurar a responsabilidade civil, enquanto que na jurisdição penal se visa determinar a responsabilidade penal, sendo que a primeira, ao contrário da segunda, pode basear-se na culpa ou na responsabilidade objectiva/responsabilidade pelo risco inerente à circulação de veículos. É que apurado que a causa do acidente é de imputar exclusivamente à vítima, tal facto (ou decisão) exclui qualquer tipo de responsabilidade, nomeadamente a responsabilidade objectiva ou pelo risco (art.505 do Código Civil). Face ao exposto deverá julgar-se verificada a excepção dilatória inominada de violação de autoridade de caso julgado quanto à questão da causa do acidente, a qual, como resulta das decisões proferidas na jurisdição penal, é de atribuir exclusivamente ao lesado (ora apelante).” Principiemos por analisar a possibilidade de ampliação do recurso nos termos pretendidos pelo recorrido. Como bem se alude no Acórdão do STJ de 22/06/2022 (proc. nº 4280/17.4T8MTS.P3.S1, in www.dgsi.pt/jstj) A ampliação do objecto do recurso não constitui alternativa à necessidade de interposição de recurso (principal ou subordinado) por parte daquele que fique prejudicado com uma decisão judicial, mas, diferentemente, permite ao recorrido a reabertura da discussão sobre determinado fundamento por si invocado no processo e que tenha sido julgado improcedente: a ampliação do âmbito do recurso destina-se (apenas) a permitir que o tribunal de recurso possa conhecer de fundamento da ação ou da defesa não considerado ou julgado desfavoravelmente na decisão recorrida que, apesar disso, com base em diverso fundamento, tenha julgado procedente a pretensão do recorrido (assim se prevenindo a possibilidade de, por força do recurso, vir a ser considerado improcedente o fundamento com base no qual este obteve ganho de causa no tribunal a quo). Logo, não tendo ficado vencida poderia a ré, em tese, ampliar o recurso nos termos do artº 636º do Código de Processo Civil, pois a ampliação do objecto do recurso da parte contrária só é admissível nos casos em que à parte não é facultada, por falta de legitimidade ad recursum – decorrente da circunstância de ser parte vencedora - a interposição de recurso independente ou subordinado. No entanto, não é perante a falta de tal possibilidade, conferida pelo preceito em causa e na qualidade da recorrida (mantendo apenas e só tal estatuto) que ocorre a ausência de possibilidade de ampliação neste caso, face à alegada excepção neste recurso. Com efeito, seguindo de perto o exposto no Acórdão desta Relação e secção no proc. nº 25435/19.1T8LSB.L1-6, de 21/10/2021 (publicado in www.dgsi.pt):«(...) a lei não prevê a autoridade do caso julgado como excepção dilatória. Como pode ler-se em Lebre de Freitas ( in Código de Processo Civil, Anotado, 2ª ed., pág.354) “A excepção de caso julgado não se confunde com a autoridade de caso julgado; pela excepção, visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda ação, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito; a autoridade de caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito (…). Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda ação, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida”. Esta doutrina encontra eco em vária jurisprudência, do que é exemplo o que se refere no Acórdão da Relação do Porto de 11/10/2018, Proc. n.º 23201/17.8T8PRT.P1:“I - A autoridade de caso julgado importa a aceitação de uma decisão proferida em acção anterior, que se insere, quanto ao seu objecto, no objecto da segunda, visando obstar a que a relação ou situação jurídica material definida por uma sentença possa ser validamente definida de modo diverso por outra sentença, não sendo exigível a coexistência da tríplice identidade prevista no art.º 581º do CPC. II - Por força da autoridade de caso julgado, impõe-se aceitar a decisão proferida no primeiro processo, na medida em que o núcleo fulcral das questões de direito e de facto ali apreciadas e decididas são exactamente as mesmas que as autoras aqui pretendem ver apreciadas e discutidas. Há, pois a necessária relação de prejudicialidade. De outro modo, a decisão proferida no primeiro processo, abrangendo os fundamentos de facto e de direito, que lhe dão sustento, seria posta em causa, de novo apreciada e decidida de modo diverso neste processo” (ver ainda Acórdão da Relação do Porto de 8/10/2018, Proc. n.º 174/16.9T8VLG-B.P1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt). Como pode ler-se neste último, citando ainda diversa doutrina pertinente: “Importa, porém, sopesar que o caso julgado tem uma dupla função: vale como excepção, actualmente dilatória, através da qual se alcança o efeito negativo da inadmissibilidade de uma segunda acção e ainda, como autoridade, pela qual se alcança o seu efeito positivo, que é o de impor uma decisão como pressuposto indiscutível de uma segunda decisão, assentando por isso numa relação de prejudicialidade. O objecto da primeira decisão de mérito constitui pressuposto necessário da decisão de mérito a proferir na segunda acção, não podendo a decisão de determinada questão voltar a ser discutida, tal como decorre do disposto no artigo 621.º do CPC. A excepção do caso julgado não se confunde, pois, com a autoridade do caso julgado. Como refere Teixeira de Sousa (In “O Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material”, BMJ 325, pág. 171.) “a autoridade do caso julgado visa evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objecto processual, contrarie na decisão posterior, o conteúdo da decisão anterior: a excepção do caso julgado garante não só a impossibilidade de o Tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira diferente, mas também a inviabilidade do Tribunal decidir sobre o mesmo objecto de maneira idêntica. Já quando vigora a autoridade do caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspecto positivo de proibição de contradição da decisão transitada”. A jurisprudência tem reiterado que são abrangidas pelo caso julgado as questões apreciadas que constituem antecedente lógico da parte dispositiva da sentença. Com a autoridade do caso julgado, os tribunais ficam vinculados às decisões uns dos outros, quanto a questões essenciais. Se a decisão da questão em causa foi decisiva para a procedência ou improcedência da acção, impõe-se aquela autoridade, não podendo o tribunal da segunda acção julgá-la em contrário, mesmo que a causa de pedir seja diferente. (Cfr. Silva Carvalho, in “O Caso Julgado na Jurisdição Contenciosa (como excepção e como autoridade-limites objectivos) e na Jurisdição Voluntária (haverá caso julgado)”.) As questões essenciais são as que respeitam aos factos judiciais, os factos concretos que são determinados e separados de todos os outros pela norma aplicável, e foram tornados certos através da decisão que sobre eles recaiu após transitar em julgado e perante as mesmas partes, nela cabendo, entre outras as relações de prejudicialidade entre os objectos quando o fundamento da decisão transitada condiciona a apreciação do objecto numa acção posterior bem como nas relações sinalagmáticas entre prestações. É claro que, nesta perspectiva, só as questões essenciais poderão ter a autoridade de caso julgado, o que significa que só a terão as decisões sobre questões relativas à causa de pedir da acção transitada. Mas, mesmo que a sua causa de pedir seja diferente, aquela autoridade deve impor-se na segunda acção. Em resumo, a autoridade de caso julgado tem a ver com a existência de relações entre acções, já não de identidade jurídica (própria da excepção de caso julgado), mas de prejudicialidade entre acções, de tal ordem que julgada, em termos definitivos, uma certa questão em acção que correu termos entre determinadas partes, a decisão sobre essa questão ou objecto da primeira causa, se impõe necessariamente em todas as acções que venham a correr termos, ainda que incidindo sobre objecto diverso, mas cuja apreciação dependa decisivamente do objecto previamente julgado, perspectivado como relação condicionante ou prejudicial da relação material controvertida na acção posterior.”. Assim, verificada a excepção de autoridade de caso julgado a consequência é a absolvição do réu do pedido, mas sempre que a excepção seja de caso julgado (na verificação da tríplice identidade exigida) já a consequência será a absolvição da instância. Ora, no caso concreto parece a recorrida defender que tal excepção de autoridade de caso julgado ocorre relativamente a decisões, que identifica com sendo quatro, uma no âmbito do inquérito e sob a égide do Ministério Público, outra já judicial, mas no âmbito da instrução da causa, e as duas seguintes reportadas às decisões superiores que incidiram sobre esta última. Da análise dos autos, não resulta que alguma das partes tenha suscitado ou arguido tal excepção, nem resulta que o Tribunal a quo, em qualquer momento, mormente no saneador, ou na sentença, tenha apreciado tal questão. Manifestamente olvida a recorrida que o Tribunal superior apenas é chamado, mesmo no caso da ampliação do recurso, sobre questões que tenham sido fundamento da ação ou da defesa, questões não consideradas (mas arguidas, podendo ter ficado prejudicadas) ou julgadas desfavoravelmente na decisão recorrida que, apesar disso, com base em diverso fundamento, tenha julgado procedente a pretensão do recorrido, como é o caso, dado ter ficado totalmente vencedora na acção. Com efeito, os recursos são meios a usar para obter a reapreciação de uma decisão, mas não para obter decisões sobre questões novas, isto é, de questões que não tenham sido suscitadas pelas partes perante o tribunal recorrido. É certo que podem existir casos de excepções ou questões de conhecimento oficioso, porém, para que o Tribunal superior possa ser chamado nessas questões ab initio, a sua génese tem de ocorrer nessa fase, ou seja, terem por base factos posteriores à interposição da acção e ocorridos já em fase de recurso (cf. artº 611º do Código de Processo Civil). Aqui chegados, e do que resulta do corpo das alegações as “decisões” que sustentam a alegada excepção de autoridade de caso julgado nem sequer, pela sua natureza, podem constituir sentenças que encerrem em si o conceito de caso julgado. Na verdade, o recorrido em momento algum indica a que decisões se reporta, dos autos resulta que: -No âmbito dos autos de inquérito n.º 1310/15.8PBOER, que correram termos Departamento de Investigação e Ação Penal – 1ª Secção de Oeiras, foi proferido pelo Ministério Público despacho de arquivamento, em 05.04.2017, relativamente ao crime de ofensa à integridade física por negligência de que vinha acusado o condutor A...(então arguido). De tal despacho consta, para além do mais, que: Com exceção da testemunha T…, os restantes depoimentos vão no sentido de que foi a própria vítima a causadora do acidente, atravessando a via em local proibido e sem se certificar de que o podia fazer em condições de segurança. - Requerida a abertura de instrução, em 04.04.2018, foi proferida decisão de não pronúncia pelo Juízo de Instrução Criminal de Cascais. - Desta decisão instrutória foi interposto recurso pelo Autor (então assistente) para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por decisão sumária de 24.10.2018, rejeitou o recurso e, posteriormente, por Acórdão, indeferiu a reclamação que o Autor apresentou da referida decisão sumária. Com efeito, o arquivamento ocorrido no inquérito pelo Ministério Público não configura uma sentença judicial, não existindo claramente a figura do caso julgado quanto à mesma. E ainda que uma decisão instrutória emane de um juiz, face à natureza da mesma, também quanto a esta não se forma caso julgado sobre questões que possam contender com a afirmação da responsabilidade penal do arguido em julgamento, pois tal cabe sempre ao juiz de julgamento, o mesmo acontecendo com a decisão que incidiu sobre tal decisão emanadas pelo Tribunal Superior. Aliás, estas limitaram-se a não admitir o recurso, mas a irrecorribilidade de uma decisão instrutória não determina que se faça caso julgado sobre os factos relativos à responsabilidade do arguido, ou sequer que constitua a absolvição do mesmo, mas tão só a pronuncia ou não pronúncia tendo por base os indícios existentes. Logo, inexistem decisões judiciais das quais possa resultar caso julgado que nos permitam aferir da excepção. Por outro lado, as “decisões” a que se faz apelo nesta ampliação de recurso poderiam ter determinado a arguição da excepção perante o Tribunal a quo, não podendo ser feita apenas em sede de recurso, como vimos. A tudo acresce que caso estivéssemos perante sentenças proferidas a nível penal, ou seja, na sequência de julgamento ocorrido nesta jurisdição, o que não é manifestamente o caso, é a lei adjectiva que dá resposta sobre a possibilidade de tais decisões poderem ser atendidas na apreciação da questão cível, nos seus artigos 623º e 624º ambos do Código de Processo Civil. Por tudo o exposto, não se admite a ampliação do recurso. * Questões a decidir: O objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.ºs 5.º, 635.º n.º3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do CPC), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida. Importa assim, saber, no caso concreto: - Se é de alterar os factos contidos na sentença quanto aos pontos 8, 10, 13, 14 e 15, bem como serem aditados os factos alegados pelo Apelante em 10º e 11º d) da petição inicial, por não terem sido contestados, ou colocados em causa na audiência de julgamento, devendo ter sido considerados provados; - Aferir se devem considerar-se preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito ou pelo risco, defendido neste recurso, relativamente ao condutor do veículo seguro na ré, com a consequente condenação desta no pagamento dos danos ao Autor. * II. Fundamentação: No Tribunal recorrido foram considerados provados os seguintes Factos: (Dinâmica do acidente) 1. No dia 22 de novembro de 2015, pelas 18h29, Avenida Marginal ao Km. 8,3, sentido Lisboa-Cascais, junto a S. Amaro de Oeiras, concelho de Oeiras, ocorreu um acidente de viação; 2. Foram intervenientes o veículo com matrícula …, conduzido por A… e segurado na R (titulado pela Apólice nº: ….) e o A. 3. A faixa de rodagem no local é constituída por 4 vias, 2 para cada sentido, de cerca de 12 metros de largura, no total, separadas entre si por pilares e linhas longitudinais contínuas. 4. As vias de trânsito naquele local, no sentido Lisboa-Cascais, são ladeadas por vivendas muradas, possuindo um passeio pedonal contíguo, rebaixado a fim de permitir o acesso às aludidas moradias (em mais de 15 m longitudinais). 5. À hora do embate já se tinha verificado o pôr do sol, o que aconteceu pelas 17h18. 6. O campo de visibilidade era de cerca de 10 m e havia chuviscado cerca das 18h00. 7. Existe uma passagem de peões desnivelada a cerca de 250m do local em que ocorreu o embate. 8. O veículo ligeiro Audi/A4, conduzido por A... seguia integrado numa fila de, pelo menos, três viaturas, distanciadas entre si em cerca de 10 m, e a uma velocidade constante que não excedia os 50Km/h. 9. À frente, em primeiro lugar circulava o veículo conduzido por AS…; a seguir, em segundo lugar, circulava o PNY, segurado na R e conduzido por A…; em terceiro lugar, imediatamente atrás do PNY, circulava o veículo conduzido por AP…; e finalmente, em quarto lugar circulava a viatura de M… (*sendo a redacção deste decorrente de despacho rectificativo posterior). 10. O condutor do Audi, segurado na R, seguia atento à condução e ao ambiente circundante, mantendo uma distância entre os 20 e os 40 cm do passeio. 11. Momentos antes do embate, o Autor movia-se no passeio contíguo à faixa de rodagem em que circulavam os veículos referidos em 9. 12. Chegado próximo do Km 8,3 em Santo-Amaro/Oeiras, o Autor parou, ficando virado para a faixa de rodagem e deixou passar o veículo conduzido por AS… 13. Imediatamente após o veículo conduzido por AS… ter passado pelo Autor este, de forma repentina, “atirou-se” de braços e cabeça esticados para a frente como se fosse “mergulhar” para a faixa de rodagem. 14. O Autor embateu sobre a parte superior esquinada da lateral direita anterior do Audi, tombando depois para o pavimento da faixa de rodagem, onde ficou deitado junto ao lancil do passeio. 15. A imprevisibilidade e rapidez do movimento referido em 13., determinou a insusceptibilidade de o condutor do Audi imobilizar o veículo antes do embate. (Dos Danos) 16. Do sinistro resultaram danos no guarda-lamas da frente do lado direito, no pilar direito dianteiro e na parte superior da extrema direita do pára-brisas do veículo Audi. 17. Como consequência do acidente, o Autor foi transportado para o Hospital de Santa Maria, no qual ficou internado de 22.11.2015 a 06.01.2016. 18. O Autor sofreu um traumatismo cranioencefálico muito grave com tetraparésia espástica sequelar, hematoma subdural com efeito de massa, traumatismo da face, traumatismo torácico e contusão hepática. 19. No referido internamento hospitalar foi submetido a craniectomia descompressiva, esteve com ventilação mecânica e monitorização neurológica invasiva. 20. O Autor foi admitido em 07.01.2016 no Centro de Reabilitação de Alcoitão (CMRA), onde cumpriu um programa de reabilitação. 21. Em 03.06.2016, foi emitido um atestado médico de incapacidade multiuso, que atribuiu ao Autor uma incapacidade permanente global de 91% pelo Capítulo III 2.12.2.2 b) da Tabela Nacional de Incapacidades. 22. Em 17.06.2016, o Autor foi sujeito a novo internamento hospitalar para a realização de cranioplastia frontotemporoparietal esquerda com colocação de osso autólogo, rede de titânio e metilmetacrilato, tendo-lhe sido dada alta hospitalar em 21.06.2016. 23. Em 25.08.2016, o Autor foi novamente admitido no Centro de Reabilitação de Alcoitão, tendo tido alta após melhoria em 28.10.2016. 24. O Autor continua a necessitar de realizar diversos tratamentos, o que faz actualmente na Holanda. 25. A 19.05.2017, de acordo com o relatório do médico assistente, as sequelas foram consideradas permanentes. 26. Observou-se Défice Funcional Temporário Total (períodos de internamento e/ou de repouso absoluto), entre 22.11.2015 e 28.10.2016, sendo fixável num período de 342 dias, atendendo aos períodos de internamento hospitalar no HSM e CMRA. 27. Fixou-se Défice Funcional Temporário Parcial (período que se iniciou logo que a evolução das lesões passou a consentir algum grau de autonomia na realização desses actos, ainda que com limitações), entre 29.10.2016 e 19.05.2017, sendo. fixável num período 203 dias. 28. Na presente data, o Autor apresenta as seguintes sequelas permanentes: Afasia global (ou seja, disfunção da linguagem); Locomove-se lentamente, com o apoio dos pais, mas utiliza a cadeira de rodas para circular no exterior; Equilíbrio dinâmico comprometido; Paresia dos membros direitos, com atrofia muscular; Pé direito em valgo (ou seja, desalinhado); Aparelho ortodôntico nos quadrantes inferiores; Ausência dos dentes 11, 12, 21, 22 e 23; Prognatismo (ou seja, desarmonia facial envolvendo dentes, ossos e músculos); Cicatriz frontal direita, supraciliar, horizontal, com 3,5 cm de comprimento; Cicatriz fronto-temporo-parietal esquerda, arciforme, com 26 cm de comprimento; Cicatriz pré-auricular esquerda, vertical, com 3,5 cm de comprimento; Deformidade temporal esquerda; Cicatrizes dispersas pelo couro cabeludo; Cicatriz no lábio inferior direito, vertical, com 1,5 cm de comprimento; Cicatriz na fossa ilíaca direita, horizontal, com 15 cm de comprimento; Duas cicatrizes na face anterior do antebraço direito, verticais, com 8,5 cm e 5 cm de comprimento; Vestígios cicatriciais dispersos pela coxa e perna direitas. 29. O quantum doloris foi fixado em 7 numa escala de sete graus de gravidade crescente, tendo em conta o tipo de traumatismo, a gravidade das lesões resultantes, o período de recuperação funcional, nomeadamente o grande período de internamento hospitalar, e os tratamentos efectuados. 30. Fixou-se um défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica, avaliado pela globalidade das sequelas (corpo, funções e situações de vida) e a experiência médico-legal relativamente a estes casos, em 90 pontos em 100. 31. O dano estético permanente ficou-se em 6, numa escala de sete graus de gravidade crescente, tendo em conta os seguintes aspectos: a utilização de produtos de apoio (ortóteses nos membros direitos, andarilho e cadeira de rodas), e as cicatrizes ao exame objectivo e a afasia global. 32. Propõe-se como tratamentos médicos regulares necessários, consulta de medicina dentária/estomatologia (implicando os tratamentos necessários) consultas de neurologia e oftalmologia, com periodicidade estimada anual; e de medicina física e reabilitação, com periodicidade estimada semestral, com manutenção de tratamentos desta especialidade durante pelo menos 2 ciclos/ano de 20 sessões cada. 33. Como produtos de apoio indicam-se barras de apoio; talher, copo e prato adaptados; cadeira de banho; resguardo para sanita; cadeira de rodas manual; andarilho; ortótese para os membros direitos, e como necessidade de adaptação do domicílio, adaptação de entrada e circulação de cadeira de rodas, com base de duche de acesso directo. 34. Impõe-se ajuda de terceira pessoa em 8h/dia: de substituição para higiene e actividades instrumentais de vida diária; de complemento para vestir/despir e transferências; e de supervisão para alimentação após confeção do prato e deslocações dentro do domicílio. 35. Ao tempo do sinistro, o Autor tinha 15 anos e era estudante do 9.º ano de escolaridade, frequentando ainda um curso técnico profissional de contabilidade e outro de pastelaria, com razoável aproveitamento. 36. O Autor sofria então de miopia e estigmatismo, tendo uma visão de 60% e 40% em cada olho. 37. Era um jovem alegre, muito activo e gostava de desporto, praticava regularmente actividade física ao ar livre (em especial, calistenia). 38. As suas limitações deixaram-no com desgosto e apreensão quanto ao futuro. 39. O seu estado de saúde após o acidente afastou-o do convívio com os amigos e namoradas. (Antecedentes Processuais) 40. No âmbito dos autos de inquérito n.º 1310/15.8PBOER, que correram termos Departamento de Investigação e Ação Penal – 1ª Secção de Oeiras, foi proferido pelo Ministério Público despacho de arquivamento, em 05.04.2017, relativamente ao crime de ofensa à integridade física por negligência de que vinha acusado o condutor A...(então arguido). De tal despacho consta, para além do mais, que: Com excepção da testemunha T…, os restantes depoimentos vão no sentido de que foi a própria vítima a causadora do acidente, atravessando a via em local proibido e sem se certificar de que o podia fazer em condições de segurança. 41. Requerida a abertura de instrução, em 04.04.2018, foi proferida decisão de não pronúncia pelo Juízo de Instrução Criminal de Cascais. 42. Desta decisão instrutória foi interposto recurso pelo Autor (então assistente) para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por decisão sumária de 24.10.2018, rejeitou o recurso e, posteriormente, por Acórdão, indeferiu a reclamação que o Autor apresentou da referida decisão sumária. * Foi considerado na sentença que não se logrou demonstrar que: a. O condutor do Audi não conseguiu controlar o seu veículo vindo a colher o Autor quando esteve circulava na zona pedonal (no passeio) da Avenida Marginal. b. O Autor ao tempo do sinistro usava os seus óculos. * Da impugnação da decisão da matéria de facto: No âmbito da impugnação da matéria de facto estabelece o art. 640.º do C.P.C.:«(…), deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. E nos termos do nº 2 no caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes. Em caso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, o recorrente deve identificar os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, não podendo limitar-se a indicar os depoimentos prestados e a listar documentos, sem fazer a indispensável referência àqueles pontos de facto, especificando os concretos meios de prova que impunham para cada um desses pontos de facto fosse julgado provado ou não provado. A apresentação das transcrições globais dos depoimentos das testemunhas não satisfaz a exigência determinada pela al. a) do n.º 2 do art. 640.º do C.P.C.( Cfr. Acs. do S.T.J. de 19.02.2015, Proc. n.º 299/05.6TBMGD.P2.S1 (Tomé Gomes) e Proc. n.º 405/09.1TMCBR.C1.S1 (Maria dos Prazeres Pizarro Beleza), in www.dgsi.pt. ). Salienta-se ainda que o S.T.J. «tem vindo a sedimentar como predominante o entendimento de que as conclusões não têm que reproduzir (obviamente) todos os elementos do corpo das alegações e, mais concretamente, que a especificação dos meios de prova, a indicação das passagens das gravações e mesmo as respostas pretendidas não têm de constar das conclusões, diversamente do que sucede, por razões de objectividade e de certeza, com os concretos de facto sobre que incide a impugnação.»( Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 771; cfr. ainda os Acs. do S.T.J. citados pelos Autores). Assim, se o recorrente impugna determinados pontos da matéria de facto, mas não impugna outros pontos da mesma matéria, estes não poderão ser alterados, sob pena de a decisão da Relação ficar a padecer de nulidade, nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. d), 2ª parte, do C.P.C. É, assim, dentro destes limites objectivos que o art. 662.º do C.P.C. atribui à Relação competências vinculadas de exercício oficioso quanto aos termos em que pode ser feita a alteração da matéria de facto, o mesmo é dizer, quanto ao modus operandi de tal alteração. Por outro lado, há que considerar que nos termos estabelecidos no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 12/2023, de 17/10/2023, publicado no Diário da República n.º 220/2023, Série I de 2023-11-14, no qual se uniformizou a seguinte jurisprudência: Nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa. Importa ainda ter presente que no nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção, face ao qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção firmada acerca de cada facto controvertido, tendo porém presente o princípio a observar em casos de dúvida, consagrado no artigo 414º do C.P.C., de que a «dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita». Conforme é realçado por Ana Luísa Geraldes («Impugnação», in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, Vol. I. Coimbra, 2013, pág. 609 e 610), em «caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela 1ª instância, em observância dos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte». E mais à frente remata: «O que o controlo de facto em sede de recurso não pode fazer é, sem mais, e infundadamente, aniquilar a livre apreciação da prova do julgador construída dialecticamente na base dos referidos princípios da imediação e da oralidade.» Assim, apesar de se garantir um duplo grau de jurisdição, tal deve ser enquadrado com o princípio da livre apreciação da prova pelo julgador, previsto no artº 607 nº 5 do C. P. Civil, sendo certo que decorrendo a produção de prova perante o juiz de 1ª instância, este beneficia dos princípios da oralidade e da mediação, a que o tribunal de recurso não pode já recorrer. De acordo com Miguel Teixeira de Sousa, in “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, pág. 347, “Algumas das provas que permitem o julgamento da matéria de facto controvertida e a generalidade daquelas que são produzidas na audiência final (…) estão sujeitas à livre apreciação do Tribunal (…) Esta apreciação baseia-se na prudente convicção do Tribunal sobre a prova produzida (art.º 655.º, n.º1), ou seja, as regras da ciência e do raciocínio e em máximas da experiência”. Para que a decisão da 1ª instância seja alterada haverá que averiguar se algo de “anormal” se passou na formação dessa apontada “convicção”, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção do julgador de 1ª instância, retratada nas respostas que se deram aos factos, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, ou com outros factos que deu como assentes. Porém, e apesar da apreciação em primeira instância construída com recurso à imediação e oralidade, tal não impede a «Relação de formar a sua própria convicção, no gozo pleno do princípio da livre apreciação das provas, tal como a 1ª instância, sem estar de modo algum limitada pela convicção que serviu de base à decisão recorrida(…) Dito de outra forma, impõe-se à Relação que analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, de modo a apreciar a sua convicção autónoma, que deve ser devidamente fundamentada» (Luís Filipe Sousa, Prova Testemunhal, Alm. 2013, pág. 389). Por outro lado, importa ter presente que a impugnação de factos que tenham sido considerados provados ou não provados e que não sejam importantes para a decisão da causa, não deve ser apreciada, na medida em que alteração pretendida não é susceptível de interferir na mesma, atenta a inutilidade de tal acto, sendo certo que de acordo com o princípio da limitação dos actos, previsto no art.º 130.º do Código de Processo Civil não é sequer lícita a prática de actos inúteis no processo ( v.d. Acórdão do STJ de 17/05/2017 (Fernanda Isabel Pereira), disponível em www.dgsi.pt e, ainda, os Acórdãos da Relação de Guimarães, de 15/12/2016 (Maria João Matos) e desta Relação de 26/09/2019 (Carlos Castelo Branco), também da citada base de dados). Feito este enquadramento, haverá que aferir quais os pontos concretos que devem ser apreciados por este tribunal. O Recorrente pretende que se alterem as respostas contidas nos pontos 8., 10., 13., 14. e 15. Mais pretendendo que se considere matéria alegada e que no seu entender não consta dos factos contidos na sentença, em concreto, o que resulta, segundo o seu juízo, de documentos juntos com o seu articulado inicial, alegando concretamente “Auto da PSP de Participação de Acidente, no qual expressamente se declara que não foi visível quaisquer vestígios do peão (leia-se do aqui Apelante) no solo betuminoso, apenas parte do retrovisor direito do veículo no passeio a norte da artéria – facto alegado em 8º d) da p.i.; Doc. 3 - Relatório de Peritagem-Averiguação de “T...– Gabinete de Peritagem, Lda.”, a solicitação de Inter Partner (representante em Portugal da Apelada), alegadamente a pedido da sua representada e no qual se refere, a pág. 10, que “….. o sinistrado não chegou a pisar a faixa de rodagem, mais precisamente na via de trânsito da direita por onde seguia o VS (leia-se veículo segurado), dado que nenhum dos membros inferiores sofreu lesões” e que a posição do aqui A. aqui Apelante, se encontrava sobre o passeio. – facto alegado em 10º e 11º d) da p.i.”. Importa desde já dizer que o alegado nos artºs 10º e 11º da petição inicial apenas reproduz o que consta do relatório da “T...– Gabinete de Peritagem, Lda.” – doc. 3 – limitando-se a dizer que deste relatório resulta que “.. o sinistrado não chegou a pisar a faixa de rodagem, mais precisamente na via de trânsito da direita por onde seguia o VS (leia-se veículo seguro), dado que nenhum dos membros inferiores sofreu lesões”, concluindo que de tal afirmação advém que o aqui A. se encontrava sobre o passeio quando ocorreu o embate. Quanto às alterações, quer dos factos considerados, bem como os aditados, acaba por pretender que se considerem as seguintes, a inserir nos factos: 8. O veículo ligeiro Audi/A4, conduzido por A... seguia integrado numa fila de, pelo menos, três viaturas, distanciadas entre si em cerca de 10 m, e a uma velocidade constante que não excedia os 50Km/h , sendo que o veículo Audi, conduzido por A... excedia esta velocidade. 10. O condutor do Audi, segurado na R, seguia atento à condução e ao ambiente circundante, mantendo uma distância máxima de 30 cm do passeio. 13. Não foi visível quaisquer vestígios do peão (leia-se o Autor) no solo betuminoso, apenas parte do retrovisor direito do veículo no passeio a norte da artéria”. 13-A O sinistrado não chegou a pisar a faixa de rodagem, mais precisamente na via de trânsito da direita por onde seguia o VS (leia-se veículo segurado), dado que nenhum dos membros inferiores sofreu lesões, encontrando-se a sua posição sobre o passeio”. 14. A parte superior esquinada da lateral direita anterior do Audi embateu na cabeça do Autor, que tombou ficando deitado sobre o passeio. 15. O modo imprevisível e a rapidez com que se desenvolveu o acidente, determinou a insusceptibilidade de o condutor do Audi imobilizar o veículo antes do embate. No que concerne ao ponto 8. na sentença foi dado como provado que: 8. O veículo ligeiro Audi/A4, conduzido por A... seguia integrado numa fila de, pelo menos, três viaturas, distanciadas entre si em cerca de 10 m, e a uma velocidade constante que não excedia os 50Km/h. Na pretendida alteração quanto à velocidade em que seguia o veículo Audi, no sentido de ser considerado que excedia os 50km/hora, socorre-se o do depoimento de AP… e de AS…, concluindo que considerando que aquela controlava a velocidade por “cruise control” e o veículo interveniente no acidente a ultrapassou, deveria o mesmo seguir pelo menos a uma velocidade 51 km/h. Também relativamente ao ponto 10., a sentença considerou provado que: 10. O condutor do Audi, segurado na R, seguia atento à condução e ao ambiente circundante, mantendo uma distância entre os 20 e os 40 cm do passeio. A questão recursória quanto à alteração diz respeito à ordem de grandeza de distância do veículo em relação ao passeio, entende que tal resulta do depoimento da testemunha AS…, bem como do depoimento do condutor do veículo, A… Na análise de tais pontos, sendo que quanto aos demais a sua almejada alteração decorre entre outros factores igualmente desta, importa aferir da percepção levada a cabo por este tribunal dos depoimentos gravados das testemunhas ouvidas e que assistiram ou tiveram intervenção no acidente em causa. AP…, condutora que seguia no sentido Lisboa-Cascais, imediatamente atrás por onde circulava o veículo interveniente no acidente, afirmou que vinha a circular a “baixa velocidade”, dizendo que sempre conduz com pouco velocidade, tinha o “cruise control” fixo nos 50km, e momentos antes foi ultrapassada por um veículo de matrícula estrangeira, mas lentamente, fazendo pisca, pois havia pouco movimento, colocou-se à sua frente, estava a chuviscar e abrandou ainda mais para ficar mais atrás. Afirmou que o veículo que a ultrapassou continuou, mas a circular na ordem dos 50, pois a própria seguia a 40 km. Na verdade, a fixação do “cruise control” apenas estabelece um máximo e não um mínimo, pelo que a sua existência não determina que a velocidade fosse exactamente essa, podendo ser inferior. Logo, nada releva a ultrapassagem ocorrida anteriormente no sentido de poder ser considerado que o veículo com o qual ocorreu o embate seguia a mais de 50 km/h, tal não decorre do depoimento no seu todo, nem foi este o sentido dado no depoimento prestado. Prosseguiu aliás, a mesma testemunha que só depois de tal manobra e “depois de já ter passado a ponte da Ribeira da lage, e aí o que viu foi algo “que rolou para trás” e caiu, até pensou que era um cartão grande”. Explicou ainda que só nessa altura é que viu, em sentido perpendicular e já na estrada, o carro estava na estrada, inclinado, que a parte superior do que julgou ser um cartão estava encostado ao carro, a parte de baixo estava no passeio. Também afirmou que só quando chegou a passar no local é que viu uns “pés”, aí é que fez pisca para a direita e parou, apercebendo-se nessa altura que o que julgava ser “um cartão grande” era afinal uma pessoa. Foi peremptória em dizer que o veículo não ocupou o passeio, pois seria visível pela própria que seguia atrás, seguindo o veículo seguro na ré numa “condução perfeitamente normal”. Em relação à testemunha AS…, este afirmou que seguia no sentido Lisboa-Cascais, no veículo imediatamente antes do interveniente no acidente, o mesmo prestou um depoimento emotivo, disse que o peão vinha a correr, e o pressentimento que teve era que se queria suicidar, até parou e olhou para trás, pois surgiu a correr quando o veículo do próprio passou pelo mesmo. Frisou que a ideia que teve foi que não foi a tempo de se lançar no veículo próprio e fê-lo relativamente ao veículo que seguia atrás de si. Mais afirmou que foi o peão que se lançou para cima do carro, apenas não o fez em relação ao seu “porque não foi a tempo”. Também seguia na faixa da direita, seguindo a cerca de 20/30 km e o veículo que seguia atrás, seguia a 20 ou 30 metros atrás de si, era um senhor idoso e é natural que não se tenha apercebido sequer da situação. Manteve a ideia que o peão pretendia lançar-se para cima do carro. Seguiam a 20/30 cm do passeio, mas sem nunca ter invadido o mesmo, “seguindo normalmente”, o peão “mergulhou” e viu-o bater, no veículo seguia um casal, até partiu o vidro (para brisa) do veículo, a senhora que seguia no veículo nesse lugar estava em pânico. De tal depoimento não resulta que o veículo em causa seguisse a uma velocidade nos termos propugnados pelo recorrente na alteração pretendida quanto ao ponto 8., nem resulta tal conclusão do depoimento da anterior testemunha, pelo que desde logo pela prova que o recorrente indicou neste recurso esta não é de molde a considerar a alteração. Mas igual entendimento resulta quanto à alteração do ponto 10, em relação à distância concreta do veículo do passeio. Pois de tais depoimentos não resulta que o veículo, ou alguns dos seus componentes (neste caso o retrovisor) estivessem a ocupar parte do passeio, ou sequer que se possa concluir que afinal não mantinha “uma distância máxima de 30 cm do passeio”, como resulta do ponto 10. Com efeito, na alteração pretendida a situação ficará ainda menos precisa, dado que o recorrente até pretende que se considere “uma distância entre os 20 e os 40 cm do passeio”, sem que tal resulte sequer da prova indicada. Em relação à testemunha A…, condutor do veículo interveniente no acidente, motorista, actualmente reformado (dizendo que a esposa já faleceu, há cerca de sete anos), acaba por frisar que não tem interesse na demanda, pelo facto de ter sido intentada contra a companhia de Seguros, pois “já foi ilibado”. Com efeito, quanto ao interesse de uma testemunha haverá que aquilatar se a mesma terá alguma vantagem com o sentido da decisão final do processo, sendo normalmente requisito de uma testemunha idónea que esta não esteja interessada, material ou moralmente no desfecho do processo. Nesse sentido se diz que ninguém é reputado boa testemunha em causa própria ou ninguém é obrigado a manifestar-se contra si próprio. Com bem refere Luís Filipe Pires de Sousa ( in “Prova testemunhal”, pág. 294 ess. ) «a propósito do interesse da testemunha no desfecho do processo, uma teoria generalizada e decorrente do senso comum é a de que ninguém se aparta da verdade se não tiver interesse em mentir. Donde deriva que as testemunhas serão parciais se têm relações ou conexões com o objecto do processo. Em sentido contrário, todo aquele que não espera qualquer dano ou benefício a sua declaração será imparcial». Mas como bem frisa o mesmo autor tais asserções não podem ser consideradas em termos absolutos, pelo que será sempre perante o caso concreto que se deve averiguar da parcialidade ou não do depoimento, ainda que se possa admitir à priori a existência de circunstancias propiciadoras da parcialidade do testemunho. Logo, o que haverá que considerar é valorar, em primeiro lugar, a declaração da testemunha e só depois a pessoa da testemunha, sob pena de se incorrer no viés confirmatório, ou seja a atitude a tomar é proceder à análise do depoimento sem as possíveis circunstâncias que sejam susceptíveis de afectar a sua imparcialidade. Logo, haverá que considerar a contextualização do relato e nomeadamente a existência de corroborações periféricas. Posto isto, a testemunha terá sempre uma perspectiva de interesse nem que seja moral, mas tal face ao depoimento igualmente emotivo prestado e conjugado com os demais, leva-nos a considerar que o depoimento nos merece toda a credibilidade. Com efeito, a testemunha, motorista de profissão, afirmou que este foi o único acidente que teve em milhões de quilómetros de estrada que fez. Esclareceu que nesse dia, estava uma chuva ligeira, já era de noite e não havia movimento na marginal, ao passar a bomba de gasolina da “Prius”, ia atrás de um carro e ultrapassou o mesmo a 40/30 à hora, e quando viu o outro veículo que seguia à sua frente a travar, tal determinou que tivesse abrandado ainda mais. Tal é consentâneo com o que resulta do depoimento da testemunha AS…, ao dizer que teve a sensação que o peão pretendia “lançar-se” para a estrada, sendo plausível que tenha travado, surgindo os sinais de travagens (luminosos) para o veículo que seguia imediatamente atrás, o que levaria a um maior abrandamento da velocidade do veículo, pelo que não seria de alterar o ponto 8.. A testemunha afirmou que foi nessa altura que surgiu a “criança” com a cabeça virada para o seu carro junto da esposa embatendo no pára-brisa, saltou como “um leão”, a esposa até ficou traumatizada, entende que o peão escolheu o seu carro para se lançar. Passou nessa altura uma ambulância, a que o próprio fez sinal para se deslocar ao local. Foi sempre afirmando que o peão saltou e bateu no pára-brisa, o guarda lamas tinha um risco, segundo crê do sapato do peão, não havia batida à frente no veículo. Apenas viu alguém saltar para cima do carro e estatelar-se no chão, apenas admite que pode ter feito uma guinada, mas “quando o viu pelo ar”, havia pouca luz. Estava a cerca de 30/40 cm do passeio, como o faz habitualmente. Ainda que não tenha sido mencionado foi ainda percepcionado o depoimento da testemunha M…, este anunciou que vinha atrás do veículo conduzido por AP…, que estava a chover e já era de noite, vinham 3 ou 4 carros bastante devagar, que travou a fundo quando o “carro que estava à sua frente se desviou e o próprio travou”. Confrontado com o depoimento prestado no auto de participação junto com a petição inicial, acabou por contrariar tal depoimento, dizendo que a guinada não ocorreu da esquerda para a direita, mas sim da direita para a esquerda, estava em choque na altura e deve ter sido um lapso de escrita, reafirmando que não seguia atrás do veículo que foi interveniente no embate, mas sim atrás de um outro, sendo o conduzido pelo próprio o terceiro veículo. Porém, afirma com certeza que seguiam todos muito devagar, estava escuro e chovia. Logo, também deste depoimento não resulta que se possa afirmar o ora pretendido pelo recorrente, o que nos leva a considerar inalterados os pontos 8. e 10. dos factos. Mas e que dizer dos demais pontos? ou seja, os pontos 13., 14. e 15. bem como o aditamento do ponto 13-A. Na sentença foi considerado que: 13. Imediatamente após o veículo conduzido por AS… ter passado pelo Autor este, de forma repentina, “atirou-se” de braços e cabeça esticados para a frente como se fosse “mergulhar” para a faixa de rodagem. 14. O Autor embateu sobre a parte superior esquinada da lateral direita anterior do Audi, tombando depois para o pavimento da faixa de rodagem, onde ficou deitado junto ao lancil do passeio. 15. A imprevisibilidade e rapidez do movimento referido em 13., determinou a insusceptibilidade de o condutor do Audi imobilizar o veículo antes do embate. O recorrente considerando a supra pretendida alteração e tudo o que alegadamente justificaria a mesma, entende que tal decorreria a alteração que ora se preconiza. O raciocínio que preside à mudança do facto contido no ponto 11. Seria a consideração de uma velocidade superior a 50 km/h, o que não ficou provado, pelo que soçobra igualmente tal pretensão. O mesmo ocorre com os demais factos contidos nos pontos 13. e 14., com efeito quer do auto de participação da polícia, quer do relatório de peritagem levado a cabo pela ré, não nos permite concluir que o embate se deu com o retrovisor do veículo, que alegadamente ocupou o passeio, pois é certo que resulta que tal elemento do veículo, ou parte do espelho do mesmo, foi projectado para o passeio ( tendo este 1,50m de largura) e a cerca de 5 metros do local onde o peão ficou imobilizado, sendo que este ficou imobilizado na faixa de rodagem. Mas tal não seria compatível com um embate pelo retrovisor, constando sim do croqui da participação que as partes embatidas do veículo eram todas situadas na lateral, desde o para brisa, ao para lamas e, claro, retrovisor, que com o embate acabou por ser projectado. Do relatório a que faz referencia o recorrente e alusão no artº 10º e 11º da petição inicial, até resulta a marca de cabeça do peão no vidro dianteiro, local onde, juntamente com o guarda lamas no sitio mais próximo, há um maior vestígio, sendo que das fotos juntas nem sequer resulta que o retrovisor tenha sido ficado na integra no chão, existindo ainda uma parte intacta no veículo, pois apenas parte do espelho se encontrava no solo, e no passeio a cerca de 5 metros do local do embate. Da prova, manifestamente não resulta que o peão “não tenha chegado a pisar a faixa de rodagem”, pois o que resulta é que o peão “mergulhou” para o veículo, pelo que a sua queda advém desse comportamento ou choque com o veículo, aliado ao facto de se encontrar a circular (e não parado) o que determinou que a sua imobilização já ocorre na faixa de rodagem, mas a cerca de 10cm do passeio, como se alude na participação, decorrente da sua projecção, como disse a testemunha “o viu pelo ar” tendo a imobilização ocorrido no asfalto, mas os danos mais evidentes são na parte superior do corpo, pois foi nesta ou com esta que se deu o embateu no veículo. Somos assim, em corroborar a fundamentação da sentença que, a par da análise que fez da prova especificamente aludida nesta decisão, discorre ainda que: “Também o técnico averiguador de seguros, MG…, corroborou o relatório acidentário respectivo e constante dos autos. Mencionou ter tomado depoimento aos intervenientes e testemunhas (em parte prova indirecta e por isso não relevada judicialmente) e, objectivamente, ter constatado a inexistência de rastos de travagem, a consensualização de que momentos antes do embate o condutor que seguia na frente sem se ter apercebido da aproximação do peão e da sua imobilização, tal como da trajectória do veículo acidentado (sem guinadas anteriores ou contemporâneas do embate), e bem assim do estudo dos corpos e seus movimentos, em razão dos danos verificados na viatura e dos traumatismos e lesões de que padeceu o A – reiterando e confirmando o já fixado em local próprio no que concerne a 1 a 7 e 14 a 16. Vista a sua experiência de décadas, primeiro enquanto militar da GNR, que exerceu funções na Divisão de Trânsito e posteriormente como perito averiguar, questionou-se ainda na hipótese alternativa e hipotética de a viatura ter abalroado o passeio, aquele concreto passeio, e foi esclarecedor ao mencionar que então haveria de verificar-se marcas na jante, no para-choques e que somente as observou na coluna dianteira do veículo, por outro lado, também os danos físicos seriam diversos e o corpo jogado em sentido contrário, não cairia, da sua experiência, no asfalto (ao invés, acrescentamos, sendo embatido a 50Km/h seria projetado em movimento contrário ao da força motora sobre si infligida). Das medições que fez no local foi incisivo quanto ao rigor do constante no seu relatório e designadamente do lancil deter entre 12/16 cm de altura.”. De tudo o exposto, resulta manifesta a improcedência do recurso quanto à alteração dos factos contidos na sentença, os quais se revelam devidamente considerados, tendo por base a prova e as regras de experiência comum. * III. O Direito: A questão essencial a decidir no recurso seria, quer a alteração dos factos, bem como a existência, por força de tal alteração, da verificação dos pressupostos da responsabilidade por facto ilícito, convocando o recorrente a existência da ilicitude na violação do artº 13º do Código da Estrada, ou seja, a violação por parte do condutor do veículo seguro na ré, da distância do veículo da berma que permitiria evitar acidentes. Concluindo que a “(…)esse condutor exigia-se em face das circunstâncias concretas (trafego diminuto naquele dia, hora e local, reduzida velocidade de circulação de veículos automóveis, piso molhado ainda que não estando a chover, ocaso do sol) que observasse um especial dever de cuidado de tal modo que fizesse circular o seu veículo a uma distância de maior segurança do passeio pedonal.”. Concluindo ainda pela verificação dos demais factos que preenchem tal tipo de responsabilidade. Como resulta evidente na improcedência da alteração dos factos, não existem nos autos factos que nos permitam integrar a actuação do condutor do veículo em causa na responsabilidade civil por facto ilícito de molde a condenar a ré, concluindo o recorrente que se deve alterar a sentença, mas sem sequer aludir em que termos, o que nos leva a considerar que pretende que seja a ré condenada nos termos peticionados, sem ao menos admitir alguma eventual concorrência de responsabilidade, quer seja por culpa, ou esta associada ainda ao risco. No entanto, nas suas conclusões 25. a final, acaba por trazer à colação a responsabilidade pelo risco, aludindo que “há que dizer que nas acções emergentes de acidente de viação, quando o autor formula o pedido de indemnização com base na culpa do lesante, implicitamente está a formulá-lo com base no risco, visto este estar englobado na causa de pedir invocada, por os factos ou razões de facto serem os mesmos com excepção dos referentes à existência de culpa”, pelo que conclui que não haverá que “descartar em absoluto estarmos perante responsabilidade pelo risco, enquanto solução jurídica que pode e deve também ser apreciada face aos factos apurados dados como provados e como supra se disse, os decorrentes das alterações factuais”. Porém, sem cuidar dos factos em causa nestes autos, dos quais decorre a culpa do lesado, nos termos bem fundamentados na sentença proferida pelo Juiz a quo, a qual subscrevemos na íntegra quanto ao afastamento da responsabilidade civil por facto ilícito, mas igualmente pela existência de factos consubstanciadores da culpa do lesado, acaba por trazer à colação uma decisão desta Relação, mas na qual se entendeu que: “no caso de atropelamento de peão por veículo automóvel sem que tenha sido apurada culpa de qualquer deles não há lugar à repartição entre o risco do veículo e o risco do peão, não integrando essa hipótese a previsão do artigo 506º, nº 1 , do C. Civil , sendo-lhe em contrapartida aplicável o regime preconizado pelo artigo 503º , nº 1 , do C. Civil.” ( cf. Ac. TRL 08-02-2024, procº 1334/18.3TBALM.L1-8). Quid Juris? Ora, como bem se discorre na sentença proferida e na análise do caso concreto “considerando o apurado, somos desde logo do entendimento que o veículo segurado na R seguia numa estrada nacional, no respeito pelos limites objectivos de velocidade do local, e subjectivamente adequados às condições de trânsito, estado da via e dos elementos envolventes, tal qual considerou o tribunal demonstrado e que constam da matéria de facto provada ocorreu o referido acidente – factos 1 a 6 e 10 e 11. Ficou, ainda demonstrado que, momentos antes do acidente o peão, que se encontrava imobilizado junto da via se lançou sobre a mesma e necessariamente sobre a viatura PNY que naquele instante ali circulava, logo após a viatura conduzida por AS. As condições de visibilidade eram de cerca de 10m e, por isso, suficientes para a perceção da via pelo A e dos elementos circundantes. Ora, na precisa altura em que o condutor do veículo PNY ia a passar no local (e isso também o evidenciam os danos sofridos na viatura, a fortiori) lança-se sobre a mesma, caindo posteriormente no asfalto, junto do lancil do passeio onde primeiramente se encontrava (factos 13 e 14). Existia em local próximo passagem desnivelada para os peões transcorrerem a Estrada Marginal naquele local (Sto. Amaro de Oeiras) –facto 7. Assim, a única discussão que caberia eventualmente no caso concreto, e que se prende com a susceptibilidade de contribuição de qualquer um dos intervenientes para os danos sobrevindos, resultaria de ambos terem adoptado comportamentos preenchedores de infração de diferentes regras estradais, ou de nenhum deles o ter feito o que, manifestamente, não foi o caso. É que se do apurado concludentemente resulta que o condutor do PNY seguia no cumprimento de todas as normas estradais atinentes e observando o dever de cuidado objetivo que lhe era exigível e de que era capaz, já quanto ao A a resposta é diferenciada: Lançou-se sobre a via, uma estrada nacional com duas vias de trânsito em cada sentido, e ainda que se pressuponha a intenção de atravessamento da mesma em clara e ostensiva contravenção com o que a respeito a lei dispõe.(…) Por conseguinte, no caso presente, verifica-se que o acidente verificado apenas e somente se pode imputar ao A, à sua conduta displicente e em ostensiva violação das mais elementares normas de circulação pedonal. As consequências foram absolutamente arrasadoras, é certo, e totalmente lamentáveis para qualquer pessoa com o mais pequeno senso de humanismo, mas de modo algum são susceptíveis de imputar-se ao veículo interveniente, porquanto a sua actuação foi, de todo em todo, imprevisível e não estava de modo algum na capacidade de qualquer condutor, por mais avisado que o fosse, colocado na situação do condutor do veiculo segurado na R. impedir ou de algum modo moderar e minorar as consequências gravíssimas observadas.”. É insofismável que tendo o atropelamento/embate ou a queda do peão ocorrido no âmbito da circulação de um veículo, consubstanciando a verificação de um acidente de viação em sentido lato, haverá que aferir se estamos perante a responsabilidade pelo risco, pois estando em causa essa responsabilidade responderá a ré como Companhia de Seguros no âmbito da responsabilidade civil e do seguro obrigatório - D.L. 291/2007 (alterado, sendo a 4ª versão pela Lei nº 32/2023, de 10/07). Na responsabilidade pelo risco esta abrange os danos provenientes dos riscos próprios do veículo. Logo, dentro dos pressupostos da responsabilidade civil, o dano indemnizável será aquele que estiver em conexão causal com o risco. Para traduzir esta ideia, a lei refere-se aos «danos provenientes dos riscos próprios do veículo». O dano liga-se por um nexo causal ao facto material em que se configura o risco. O dano terá de ser sempre condicionado por uma relação de causalidade, mesmo indirecta com o facto em que se materializa o risco (cfr. Dario Martins de Almeida, in Manual de Acidentes de Viação, , 2a ed. Pág. 317 e ss). Assim, a indemonstração do nexo causal inviabiliza a pretensão do lesado à indemnização com base no risco, pois a responsabilidade objectiva pressupõe todos os requisitos da responsabilidade subjectiva, menos a culpa e a ilicitude do facto (STJ, 21.11.1978, BMJ, 281°-307). Preceitua, assim, o artigo 505º do Código Civil que “Sem prejuízo do disposto no artigo 570.°, a responsabilidade fixada pelo n.° 1 do artigo 503.° só é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.” Como se alude no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01/06/2017: «O regime normativo decorrente do estatuído nas disposições conjugadas dos arts. 505º e 570º do CC deve ser interpretado, em termos actualistas, como não implicando uma impossibilidade, absoluta e automática, de concorrência entre culpa do lesado e risco do veículo causador do acidente, de modo a que qualquer grau ou percentagem de culpa do lesado inviabilize sempre, de forma automática, a imputação de responsabilidade pelo risco, independentemente da dimensão e intensidade dos concretos riscos de circulação da viatura. II. Compete ao Tribunal formular um juízo de adequação e proporcionalidade, perante as circunstâncias de cada caso concreto, pesando, por um lado, a intensidade dos riscos próprios da circulação do veículo e a sua concreta relevância causal para o acidente; e, por outro, valorando a gravidade da culpa imputável ao comportamento, activo ou omissivo, do próprio lesado e determinando a sua concreta contribuição causal para as lesões sofridas, de modo a alcançar um critério de concordância prática que, em determinadas situações, não conduzirá a um automático e necessário apagamento das consequências de um risco relevante da circulação do veículo, apenas pela circunstância de ter ocorrido alguma falta do próprio lesado, inserida na dinâmica do acidente.» ( in endereço da net aludido ). A propósito da responsabilidade pelo risco do art° 503º e a concorrência de culpas, importa ainda ter presente o decidido no Acórdão do STJ de 28/03/2019, quer na decisão, quer na doutrina que a sustenta: «(...) diz Calvão da Silva, decompondo a norma em análise - a ressalva feita no início do art. 505° (“Sem prejuízo do disposto no artigo 570o”) é para aplicar à responsabilidade fixada no n.° 1 do artigo 503°; e esta é a responsabilidade objectiva; logo, a concorrência entre a culpa do lesado (art. 570°) e o risco da utilização do veículo (art. 503°) resulta do disposto no art. 505°, que só exclui a responsabilidade pelo risco quando o acidente for imputável - i.e., unicamente devido, com ou sem culpa - ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte (exclusivamente) de força maior estranha ao funcionamento do veículo. E, efectivamente, parece-nos que só assim interpretado o art. 505º, logra significado e efeito útil a sua parte inicial. Assentando a responsabilidade fixada no n.° 1 do artigo 503º no risco da utilização do veículo, e não na culpa, e estando o concurso da conduta culposa do condutor ou detentor do veículo com facto culposo do lesado previsto directamente no art. 570°, não seria razoável interpretar a parte inicial, acima transcrita, do art. 505º, como aplicável havendo culpas de ambas as partes. Numa tal interpretação, aquela parte inicial seria absolutamente desnecessária: mesmo que o art. 505º dela fosse amputado, sempre o caso de concorrência entre facto ilícito e culposo do condutor e facto culposo do lesado seria regulado pelo disposto no art. 570°.(...) Assim, uma interpretação progressista ou actualista do art. 505°, que tenha em conta (art. 9º/l) a unidade do sistema jurídico - isto é, que considere o sistema jurídico global de que a norma faz parte e, neste, o referido acervo de normas que consagram o concurso da culpa da vítima com o risco da actividade do agente, e repute adquirida, como princípio geral e universal do pensamento jurídico contemporâneo, essa regra do concurso - e as condições do tempo em que tal norma é aplicada - em que a responsabilidade pelo risco é enfocada a uma nova luz, iluminada por novas concepções, de solidariedade e justiça - impõe, segundo este autor, que se tenha por acolhida, naquele normativo, a regra do concurso da culpa do lesado com o risco próprio do veículo, nem sequer se lhe podendo opor o obstáculo representado pelo n.° 2 do mesmo art. 9º, já que tal interpretação tem um mínimo de correspondência ou ressonância nas palavras da lei.” Também Brandão Proença (in “A Conduta do lesado como pressuposto e critério de imputação do dano extracontratual”, pág. 275 e 276) se tem mostrado profundamente crítico em relação ao entendimento tradicional nesta matéria, dizendo que “a posição tradicional, porventura justificada em certo momento, esquece, hoje, que, por exemplo, o peão e o ciclista (esse «proletariado do tráfego» de que alguém falava) são vítimas de danos, resultantes, muitas vezes, de reacções defeituosas ou pequenos descuidos, inerentes ao seu contacto permanente e habitual com os perigos da circulação, de comportamentos reflexivos ou necessitados (face aos inúmeros obstáculos colocados nas «suas» vias) ou de «condutas» sem consciência do perigo (maxime de crianças) e a cuja danosidade não é alheio o próprio risco da condução”, de tal modo que bem pode dizer-se “que esse risco da condução compreende ainda esses outros «riscos-comportamentos» ou que estes não lhe são, em princípio, estranhos”. Prosseguindo o mesmo autor “numa época em que a relação pura de responsabilidade, nos domínios do perigo criado por certas actividades, se enfraqueceu decisivamente, não parece compreensível, a não ser por preconceitos lógico-formais, excluir liminarmente o concurso de uma conduta culposa (ou mesmo não culposa) do lesado, levando-se a proclamada excepcionalidade do critério objectivo às últimas consequências”. Donde, ainda que possamos discutir a responsabilidade pelo risco que advém do artº 503° do CPC, haverá que considerar o disposto no artº 570.° do CC, que dispõe que: 1. Quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída. Sobre esta problemática importa ter presente a argumentação exposta no Acórdão do STJ, de 11/01/2018 ( endereço da net aludido): “(...) passou a defender-se uma solução alternativa que se traduz na admissibilidade daquela concorrência, desde que o sinistro ainda tenha uma conexão relevante com os riscos próprios do veículo, isto é, desde que o acidente não seja de imputar exclusivamente a factores externos integrados na órbita do lesado, de terceiro ou de casos de força maior estranhos ao veículo.” Defendendo-se a interpretação do art. 505° do CC no sentido de tornar o mesmo compatível com o art. 570°, pois só assim fará sentido a alusão que naquele preceito é feita ao disposto no n° 1 do art. 503°, norma que regula inequivocamente uma situação de responsabilidade objectiva do proprietário do veículo. É também feito apelo à necessidade de ajustamento das soluções legais às circunstâncias actuais, designadamente ao risco rodoviário, bem diverso daquele que era perceptível aquando da aprovação do Código Civil, de modo a implicar a concessão de maior protecção aos lesados que se encontrem em situação de maior vulnerabilidade. Ajustamento que também decorreria do facto de se ter generalizado o sistema de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel que vem assumindo cada vez mais uma função ressarcitiva de danos, com subvalorização de outros aspectos em que inclui a contribuição do lesado ou de terceiros para a sua ocorrência. Pressupõe-se ainda que o direito interno deve ser interpretado por forma a não colocar em causa o regime que dimana das Directivas Europeias sobre Seguro Automóvel, considerando que estas implicam uma efectiva tutela dos interessados em situação mais desprotegida, o que colidiria com uma interpretação do regime da responsabilidade civil que desconsidere os riscos próprios do veículo que também tenham interferido na ocorrência do sinistro. Como alude Calvão da Silva citado no último Acórdão referido “a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro ...” (RLJ 1347115). E ainda que em comentário posterior ao Ac. do STJ, de 4-10- 07, tenha tecido considerações que o levam a admitir a responsabilização do detentor do veículo noutras situações, “na base de uma apreciação individual no caso específico pelo julgador” (RLJ 137760), assevera que “só havendo prova certa e segura do facto da vítima ou de terceiro (ou de força maior) como causa única e exclusiva do acidente é que não haverá lugar a concurso do risco próprio do veículo como facto do lesado”. Esta foi igualmente a solução já preconizada no Ac. do STJ, de 4-10-07 (www.dgsi.pt – Santos Bernardino, publicado e comentado na RLJ 137°, págs. 35 e segs.), no qual se assumiu, de forma precursora em termos jurisprudenciais, que “o texto do art. 505° do CC deve ser interpretado no sentido de que nele se acolhe a regra do concurso do lesado com o risco próprio do veículo, ou seja, que a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro ”. Logo, considerando esta terceira via, que considera a responsabilidade da seguradora independentemente da exclusividade da imputação do acidente ao lesado, importa ter presente a argumentação constante do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 01/06/2017: “No nosso entendimento, o regime normativo decorrente do estatuído nas disposições conjugadas dos arts. 505° e 570° do CC deve ser interpretado, em termos actualistas, como não implicando uma impossibilidade, absoluta e automática, de concorrência entre culpa do lesado e risco do veículo causador do acidente, de modo a que qualquer grau ou percentagem de culpa do lesado inviabilize sempre, de forma automática, a eventual imputação de responsabilidade pelo risco, independentemente da dimensão e intensidade dos concretos riscos de circulação da viatura - o que nos afasta do resultado que decorreria de uma estrita aplicação da denominada tese tradicional : ou seja, não pode, neste entendimento, excluir-se à partida que qualquer grau de culpa do lesado (nomeadamente do utente das vias públicas mais vulnerável) no despoletar do acidente, independentemente da gravidade do facto culposo e do grau da sua efectiva contribuição para o sinistro, deva, sem mais, excluir automaticamente a responsabilidade decorrente, no plano objectivo, dos riscos próprios da circulação do veículo, independentemente da intensidade destes e do grau em que contribuíram causalmente, na peculiaridade do caso concreto, para o resultado danoso. Esta conclusão é, em última análise, imposta pelo princípio fundamental da adequação e da proporcionalidade - que naturalmente tenderá a inviabilizar a total e sistemática desresponsabilização.” Donde, é neste juízo de adequação e proporcionalidade que os Tribunais devem formular, perante as circunstâncias de cada caso concreto, pesando, por um lado, a intensidade dos riscos próprios da circulação do veículo e a sua concreta relevância causal para o acidente; e, por outro, valorando a gravidade da culpa imputável a comportamento, activo ou omissivo, do próprio lesado e determinando a sua concreta contribuição causal para as lesões sofridas, de modo a alcançar um critério de concordância prática que, em determinadas situações, não conduzirá a um automático e necessário apagamento das consequências de um relevante risco da circulação do veículo, apenas pela circunstância de ter ocorrido alguma falta do próprio lesado, inserida na dinâmica do acidente. Mas para que possamos discutir a eventual concorrência, temos de concluir que no acidente em causa se verifica uma situação de risco. Ora, dentro dos riscos próprios do veículo, a que se refere o artigo 503° do Código Civil, cabem, “além dos acidentes provenientes da máquina de transporte, os ligados ao outro termo do binómio que assegura a circulação desse veículo (o condutor)”( Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, vol. I, T ed., pág. 664 ). Logo, admite-se o concurso de culpa da vítima com o risco próprio do veículo, sempre que ambos colaborem na produção do dano, sem quebra ou interrupção do nexo de causalidade entre este e o risco, e o risco pela conduta da vítima como causa exclusiva do evento lesivo. Só não será desta forma se o facto do lesado tenha sido a causa única do dano, aí a responsabilidade fixada pelo n.° 1 do art.503º é afastada (tal foi ainda o entendimento sufragado no Acórdão subscrito pela mesma Relatora destes autos e proferido no proc. nº 1852/18.3PDL.Ll, de 7/11/2019, publicado in www.dgsi.pt, o qual seguimos igualmente de perto). Em conclusão, a ressalva do art. 570.º feita na l.a parte do art. 505.º é para aplicar à responsabilidade fixada no n.° 1 do art. 503.º; a responsabilidade fixada no n.° 1 do art. 503.º é a responsabilidade objectiva; logo a concorrência entre a culpa do lesado (art. 570.°) e o risco da utilização (art. 503.º) resulta do disposto no art. 505.º, que só exclui a responsabilidade pelo risco quando o acidente for imputável (leia-se unicamente devido, com ou sem culpa) ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte (leia-se, exclusivamente) de causa de força maior. A propósito de tal temática também na sentença recorrida se faz alusão à tese actual defendida por Maria da Graça Trigo (in Reflexões acerca da concorrência entre risco e culpa do lesado na responsabilidade por acidente de viação, em Estudos dedicados ao Professor Doutor Bernardo Lobo Xavier, Volume II, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2015, pág. 485 e seg.), dizendo-se na sentença que se defende “com amplitude assaz a suscetibilidade de repartição de danos na circunstância concausal de acidente de viação. Veio a autora defender que, a nível da causalidade entre o risco comum inerente à circulação de veículos e os danos sofridos por peões, não se pode negar que a força cinética de um veículo automóvel constitui causa adequada dos danos ocorridos, mesmo que a conduta do lesado, culposa ou não, tenha sido concausal em relação ao acidente de que resultaram os danos, pelo que a redução da indemnização devido à conduta concausal do lesado teria de ser limitada a uma percentagem diminuta. Segundo a referida teoria, apenas se poderia defender a inexistência de causalidade adequada por parte do veículo nas hipóteses de veículos estacionados ou simplesmente parados no trânsito (com ou sem condutor), nas quais a ausência de força cinética faça com que os veículos não constituam fonte de qualquer perigo específico. Com efeito, para a mesma autora o fundamento para a responsabilidade objectiva do detentor do veículo não é apenas o perigo de mau funcionamento da máquina – que aponta para a responsabilidade pelo «risco concretizado ou agravado», mas também o perigo da simples circulação da máquina.”. Mas a sentença de forma acertada afasta tal posição, face ao ocorrido nos autos. Com efeito, no caso, o atropelamento ou embate do peão, com a sequente queda, ocorreu como consequência directa da circulação do veículo, porém, não resulta dos factos que tenha sido a força motriz do veículo a contribuir para a ocorrência de tais acontecimentos. Na verdade, neste caso, o comportamento do lesado acaba por não se diferenciar quase em nada de um embate num eventual veículo parado, pois foi o recorrente que avançou contra o veículo, embatendo na lateral direita do mesmo, e foi nessa sequencia que o corpo do lesado ficou imobilizado no chão. E tal conclusão advém desde logo da localização dos danos, os do veículo que se situam no guarda-lamas da frente do lado direito, no pilar direito dianteiro e na parte superior da extrema direita do para-brisas. E quanto ao lesado este sofreu um traumatismo cranioencefálico muito grave com tetraparésia espástica sequelar, hematoma subdural com efeito de massa, traumatismo da face, traumatismo torácico e contusão hepática. Logo, estes danos na integridade física, situam-se essencialmente na parte superior do corpo, com incidência na cabeça, o que mais nos levam a considerar que foi o embate do Autor no veículo que originaram a gravidade de tais danos, aliado à queda sequencial, que naturalmente agravou ainda mais o estado do Autor, sem que resulte que foi a força motriz do veículo a provocar a queda, mas sim o embate e acto contínuo esta com imobilização do Autor no solo. Na verdade, no encadeamento dos factos, o que resulta é que o veículo seguro na ré seguia integrado numa fila de, pelo menos, três viaturas, distanciadas entre si em cerca de 10 m, e a uma velocidade constante que não excedia os 50Km/h. E à frente, em primeiro lugar circulava o veículo conduzido por AS…; a seguir, em segundo lugar, circulava o PNY, segurado na R e conduzido por A…; em terceiro lugar, imediatamente atrás do PNY, circulava o veículo conduzido por AP…; e finalmente, em quarto lugar circulava a viatura de M…. O condutor do Audi, segurado na R, seguia atento à condução e ao ambiente circundante, mantendo uma distância entre os 20 e os 40 cm do passeio. Quanto ao recorrente provou-se que momentos antes do embate, o Autor movia-se no passeio contíguo à faixa de rodagem em que circulavam os veículos referidos e chegado próximo do Km 8,3 em Santo-Amaro/Oeiras, o Autor parou, ficando virado para a faixa de rodagem e deixou passar o veículo conduzido por AS…. Ora, imediatamente após o veículo conduzido por AS… ter passado pelo Autor este, de forma repentina, “atirou-se” de braços e cabeça esticados para a frente como se fosse “mergulhar” para a faixa de rodagem. O Autor embateu sobre a parte superior esquinada da lateral direita anterior do Audi, tombando depois para o pavimento da faixa de rodagem, onde ficou deitado junto ao lancil do passeio. Ficou ainda demonstrado que a imprevisibilidade e rapidez do movimento referido determinou a insusceptibilidade de o condutor do Audi imobilizar o veículo antes do embate. Como deixámos referido mesmo a considerar-se a imputabilidade objectiva decorrente dos danos próprios da circulação automóvel, mesmo no caso de culpa do lesado, aquela não poderia ser de molde a ser a única e exclusiva fonte da ocorrência do dano, pelo que sempre será de excluir a responsabilidade quando para a relevância causal para o acidente este seja apenas imputável à culpa do lesado. Como se decidiu no Ac. STJ de 05/05/2022(Proc. 5080/18.0T8MTS.P1.S1, endereço da net aludido) “Face à interpretação actualista do art. 505.º do Código Civil, a exclusão da responsabilidade fixada pelo n.º 1 do art. 503.º restringe-se aos casos em que haja dolo ou por culpa grave do lesado, ou em que o facto do lesado deva considerar-se como causa exclusiva do acidente” (Ac. STJ de 05.05.2022, proc. 5080/18.0T8MTS.P1.S1). Deste modo, somos em concluir como a bem fundamentada sentença quando decide que no caso concreto não se vislumbra qualquer facto que permita configurar a possibilidade de o risco próprio da circulação do veículo (também) ter contribuído para a verificação do acidente, impedindo assim, a responsabilização da Recorrida, seguradora do veículo PNY, tendo por referência o que a par do mencionado se logrou demonstrar da condução prosseguida. Como bem se sumaria na decisão “(a)crescente-se que houve culpa grave do Autor, que decidiu atravessar subitamente a faixa de rodagem sem que se verificassem condições de segurança para tal, colocando em risco a sua própria integridade e a integridade dos outros utentes da faixa de rodagem, nada se encontrando provado que justifique o seu erro de avaliação ou a incapacidade de avaliar correctamente as circunstâncias com que se deparava e que lhe impunham outro comportamento.” Em face do exposto, cumpre concluir que a conduta do Autor, gravemente culposa, foi a única causa relevante do acidente, impondo a exclusão do direito indemnizatório a título de responsabilidade civil, quer por facto ilícito, quer pelo risco Improcede assim, a apelação. * IV. Decisão: Por todo o exposto, Acorda-se em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelo Autor e, consequentemente, mantém-se a decisão recorrida nos seus precisos termos. Custas pelo apelante. Registe e notifique. Lisboa, 5 de Dezembro de 2024 Gabriela de Fátima Marques Maria Teresa Mascarenhas Garcia João Brasão |