Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | FÁTIMA VIEGAS | ||
Descritores: | COMPETÊNCIA MATERIAL DO TRIBUNAL REDE ELÉCTRICA NACIONAL CONCESSIONÁRIA | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 09/25/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | RECLAMAÇÃO | ||
Decisão: | PROCEDENTE | ||
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Sumário: | O Juízo Central Cível é materialmente incompetente para julgar providência cautelar, instaurada contra a REN- Rede Elétrica Nacional, em que a requerente pretende a suspensão das prestações devidas a coberto do acordo - celebrado com a requerida, concessionária da RNT – previsto no artigo 5.º-A n.º2 b) do Decreto-Lei n.º172/2006 de 23.8 (na redação do DLn.º76/2019 de 3.6), que visa a atribuição de reserva de capacidade de injeção na RESP e se insere no procedimento para obtenção de licença de produção de eletricidade, porquanto, estamos em presença de acordo estabelecido no âmbito de relações jurídico-administrativas, celebrado por entidade que, embora de natureza privada, atua na prossecução do interesse público, ao abrigo de regulamentação que lhe confere e permite o exercício de poderes públicos, pelo que, a competência para a apreciação do acordo caberá aos tribunais administrativos. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa: I-Relatório 1- Sunshining S.A., requerente na providência cautelar comum que interpôs contra REN – Rede Elétrica Nacional recorreu da decisão que julgou procedente a exceção de incompetência absoluta do juízo central cível e considerou ser a matéria da competência dos tribunais administrativos. 2-Na referida providência a requerente formulara os seguintes pedidos: (i) Suspensão da obrigação de pagamento das prestações prima facie devidas pela Requerente ao abrigo do Acordo celebrado em … de abril de 2021 (cfr. Doc. n.º 1), até que seja proferida sentença na ação principal, a intentar pela Requerente, de que depende o presente procedimento cautelar; (ii) Inibição da REN de executar a garantia bancária prestada ao abrigo da Cláusula 7.ª, n.º 2, do Acordo; Ou, subsidiariamente, (iii) As providências cautelares que V. Exa. considere adequadas, à luz do disposto no artigo 376.º, n.º 3, do CPC.” 3 -No recurso que interpôs a recorrente apresentou as seguintes conclusões: (A) 1.ª Não basta o mero estatuto de concessionária — v.g., de serviço público ou de obra pública — para que os seus contratos (ou outros atos) ganhem foros de administratividade. 2.ª É preciso que para tal tenha sido expressamente autorizada por uma norma jurídica, sendo-lhe por essa via, no âmbito e na exata medida dessa autorização, atribuída uma capacidade parcial de direito público. 3.ª Compreende-se, assim, que não é pelo facto de a REN ser concessionária de serviço público que todos os contratos que celebre, ou o Acordo em particular, são administrativos, com os inerentes poderes de jus imperii. 4.ª É um “falso princípio” que o estatuto de concessionária implica a administratividade dos contratos que celebre. 5.ª Não só não é assim, como “a regra” é, na verdade, o oposto, ordenando-se em princípio os atos e contratos das concessionárias no Direito Privado e só excecionalmente no Direito Administrativo — di-lo a nossa doutrina mais autorizada, bem como a jurisprudência dos nossos tribunais superiores. 6.ª Ou seja, a convocação, pelo Tribunal a quo, do estatuto de concessionária da REN, como fundamento da Sentença tendente à qualificação do Acordo como contrato administrativo, é muito pouco decisiva, pois a regra é a de que os contratos celebrados pelas concessionárias são contratos privados e não administrativos. (B) 7.ª Apesar de o procedimento para obtenção da licença de produção — conduzido não por uma empresa privada, mas pela DGEG (ou seja, pelo Estado) — ser um procedimento administrativo, que culmina na prática de um ato administrativo (a licença de produção), daí não decorre a administratividade da atribuição, pela REN (uma empresa privada), de reserva de capacidade, pois tal atribuição ocorre “fora” desse procedimento. 8.ª Num outro plano, apesar de os operadores das redes de transporte e distribuição de eletricidade estarem obrigados a dar acesso às redes por si exploradas, designadamente aos produtores de energia elétrica, não se pode perder de vista que tais redes correspondem a infraestruturas físicas com uma capacidade que é naturalmente finita e limitada. 9.ª Daí que, precisamente, no artigo 6.º, n.º 2, da referida Diretiva (UE) 2019/944, se ressalve que “[o] operador da rede de transporte ou de distribuição pode recusar o acesso no caso de não dispor da capacidade necessária”. 10.ª Ora, ao estabelecer que, antes de iniciado o procedimento de licenciamento, os produtores devem obter a “reserva de capacidade de injeção da RESP”, quer-se apenas assegurar que as redes têm efetiva disponibilidade para receber a energia dos produtores e que não há uma legítima justificação para a recusa de acesso à rede. 11.ª Essa disponibilidade, caso exista, é então atestada através de um “título emitido pelo operador da RESP” (cfr. artigo 5.º-A, n.º 2, alínas a) e c), do Decreto-Lei n.º 172/2006), pelo qual o produtor passa a ter o direito, conforme se refere hoje no artigo 18.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º15/2022, “à utilização do ponto de injeção na RESP com a capacidade que lhe for atribuída”. 12.ª Ou seja, o “título emitido pelo operador da RESP” de reserva de capacidade de injeção na rede é uma concretização do dever de dar acesso às redes que impende, precisamente, como se viu, sobre os operadores das redes de transporte e distribuição de eletricidade, 13.ª É um título que confirma a disponibilidade da rede para a receção da energia elétrica a produzir e que, consequentemente, confirma o direito do produtor de aceder à rede, por não existir o obstáculo a que se refere o artigo 6.º, n.º 2, da Diretiva (UE) 2019/944. 14.ª Está em jogo uma componente regulatória (especificamente de Direito da Concorrência) do regime legal de eletricidade: o acesso a uma infraestrutura essencial e a capacidade da infraestrutura como pressuposto indispensável para que aquele acesso ocorra. 15.ª E os quadros regulatórios em questão, decorrência da chamada essential facilities doctrine, não pressupõem a administratividade do direito de acesso às infraestruturas essenciais ora em causa (as redes de eletricidade). 16.ª O “título emitido pelo operador da RESP” é um ato praticado por uma empresa privada que confirma o direito dos produtores de acesso às redes de eletricidade e que atesta não existir uma justificação objetiva legítima — a falta de capacidade das redes — para recusar esse acesso. 17.ª E assim como o “título emitido pelo operador da RESP” não é um ato administrativo, também não é um contrato administrativo o “[a]cordo entre o requerente e o operador da RESP com assunção, por aquele, dos encargos financeiros decorrentes da construção ou reforço da rede necessários para a receção da energia produzida pelo centro eletroprodutor”. 18.ª Aquele “acordo” é sim um contrato que visa criar as condições — a capacidade de injeção nas redes — para que se possa concretizar o direito de acesso às redes do produtor que o celebre. (C) 19.ª Veja-se que a REN, na qualidade de Operador da Rede de Transporte, bem como a E-REDES, concessionária da rede de distribuição, celebram com os produtores e comercializadores de energia elétrica contratos respeitantes às redes elétricas e que são, indiscutivelmente, contratos privados e não contratos administrativos. 20.ª Referimo-nos concretamente ao “Contrato de Uso das Redes”, celebrado entre os produtores ou comercializadores (entre outros agentes) de energia elétrica e os “operadores das redes”. 21.ª Novamente, estes contratos são também concretização do direito de terceiros de aceder às redes, regulando em pormenor esse acesso entre os vários operadores. 22.ª Estes contratos são, reitere-se, verdadeiros contratos privados, e não contratos administrativos - isto apesar de se tratar de contratos celebrados com as “concessionárias das redes” de transporte e de distribuição de eletricidade e de se encontrarem profundamente hetero-regulados, constituindo objeto de uma acentuada regulação pública por normas legais e regulamentos administrativos. 23.ª E são contratos privados, apesar de as respetivas condições gerais serem previamente aprovadas pela Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (“ERSE”), conforme impõe o artigo 13.º, n.º 1, do RARI. 24.ª Que são contratos de natureza privada confirma-o, desde logo, a circunstância de quer o Regulamento das Relações Comerciais dos Setores Elétrico e do Gás, quer o RARI, assumirem, de forma expressa, que quaisquer litígios entre as partes naqueles Contratos de Uso das Redes devem ser dirimidos nos “tribunais judiciais” (ou arbitrais) e não nos tribunais administrativos (cfr. artigo 375.º, n.º 2, e artigo 47.º, n.º 2, respetivamente). 25.ª O fenómeno não é novo e já se encontra bem estudado na doutrina portuguesa — está em causa a relação entre a “regulação administrativa e o contrato privado”, surgindo “[o] contrato privado como objeto de regulação administrativa”. 26.ª A mera circunstância de a DGEG aprovar “o modelo de Acordo” não implica, de todo, a sua administratividade, ao contrário do que afirma a Requerida, ora Recorrida, na sua Oposição (cfr. artigo 57.º), e ao contrário do que parece sugerir o Tribunal a quo quando também menciona na fundamentação da Sentença essa realidade. 27.ª Na verdade, trata-se de algo normal e compreensível num cenário típico do Estado Regulador, em que os contratos de Direito Privado, em certos setores, são objeto de intensa regulação pública e administrativa (atuando aqui a DGEG como entidade com competências de regulação no setor elétrico), 28.ª Demonstram-no, uma vez mais, os Contratos de Uso das Redes, cujas condições gerais são aprovadas pela ERSE (cfr. artigo 13.º, n.º 1, do RARI) 29.ª Ao contrário do que sugere o Tribunal recorrido, da mera circunstância de o Acordo, celebrado nos termos e para os efeitos do artigo 5.º-A, n.º 2, alínea b), do Decreto-Lei n.º 172/2006, se encontrar “condicionado ao regime que vem aí previsto”, um regime regulatório, e de “cabe[r] à DGEG aprovar o modelo de título e do acordo”, não se segue a administratividade destes — o há aí é, simplesmente, “a presença de um contrato entre sujeitos privados como quid sobre o qual incidem medidas de regulação administrativa; a doutrina já há muito identificou este fenómeno do contrato privado “cercado” pelo direito público». (D) 30.ª Não se nega, evidentemente, que a produção de eletricidade é uma atividade que é do interesse da comunidade — mas nega-se, sim, que isso seja critério da administratividade do Acordo. 31.ª Não se pode esquecer que a atividade de produção de energia elétrica se encontra hoje, e há vários anos — em especial por influência do Direito da União Europeia —, liberalizada. 32.ª O Tribunal recorrido e a REN parecem ignorar que a relevância pública da atividade privada desenvolvida por produtores de eletricidade, privados, como a Requerente, ora Recorrente, não significa que esteja em causa uma tarefa administrativa e que os contratos que incidam sobre essa realidade prossigam um fim administrativo, devendo ser, por isso, administrativos. 33.ª Não é pelo facto de o fim do Acordo — criar condições para o exercício de uma atividade privada de produção de eletricidade (capacidade na rede) — ter relevância pública, que esse fim passa a ser administrativo, ao invés de ser de natureza privada (i.e., o desenvolvimento daquela atividade, privada). 34.ª É um fim, é certo, que interessa ao Direito Administrativo, e concretamente ao Direito da Regulação, mas não é um fim a cargo do Estado ou da administração pública, que justifique a administratividade dos contratos que o tenham por objeto. 35.ª Insista-se: a atividade de produção de eletricidade, em geral, e a atividade desenvolvida e a desenvolver pela ora Recorrente — bem como pelos demais promotores que terão celebrado com a REN um acordo similar àquele objeto dos presentes autos —, em particular, é uma atividade estritamente privada, que não é da titularidade da Administração Pública nem é uma atividade que a concessionária da RNT deva prosseguir. 36.ª Portanto, se num certo sentido se poderá dizer que a atividade de produção de eletricidade é de interesse público ou serve o interesse público — e daí, justamente, a regulação administrativa a que está sujeita —, isso não implica que tal atividade deixe de ser privada e que os contratos celebrados com a REN (uma empresa privada) tendo em vista o seu desenvolvimento deixem de ter natureza privada. (E) 37.ª O Acordo revela-se, muito claramente, um contrato característico do Direito Privado, desprovido das notas típicas dos contratos administrativos ou de jus imperii. 38.ª Os direitos e obrigações das partes estabelecidos no Acordo são direitos e obrigações que não são estranhas — são mesmo comuns — nos contratos de natureza privada. 39.ª Não se descobrem traços típicos dos “contratos administrativos” nos direitos e obrigações que o Acordo contém. 40.ª Isto sem prejuízo de o seu conteúdo se encontrar parcialmente conformado pelo Direito da Regulação, o que, como abundantemente demonstrado acima, não altera a natureza privada do Acordo (tal como os contratos celebrados, por exemplo, no domínio bancário, de conteúdo conformado por regulamentos do Banco de Portugal, não perdem a sua natureza privada). 41.ª Não há no Acordo um dos mais claros fatores ou indícios típicos da administratividade dos contratos: a presença das chamadas “cláusulas exorbitantes”. 42.ª Sendo certo que é um critério conhecido da administratividade dos contratos o seguinte: “são contratos de direito público administrativo aqueles que contêm cláusulas que os particulares não são admitidos a inscrever nos contratos que, entre si, celebram”. 43.ª O Acordo não contempla quaisquer cláusulas que confiram à REN o poder de o modificar unilateralmente ou o poder de aplicação de sanções administrativas — não se vislumbra, no Acordo, nenhuma dessas prerrogativas de autoridade. 44.ª Nem faz, em rigor, sentido que a REN disponha desses poderes públicos de autoridade, dado estar-se diante de um contrato, celebrado entre duas empresas privadas, tendente ao exercício de uma atividade privada. (F) 45.ª Antes de se aferir se um contrato preenche algum dos critérios de administratividade que se encontram plasmados nas diversas alíneas do n.º 1 do artigo 280.º do CCP, há que verificar se pelo menos uma das partes no contrato é um dos sujeitos elencados nos citados artigos 3.º ou 7.º do CCP. 46.ª Se sim, então o contrato poderá, eventualmente, ser administrativo (“poderá”, pois não basta que seja celebrado por um contraente público, tendo ainda de se subsumir aos critérios de administratividade); se não, então falha o primeiro e fundamental pressuposto de que depende a administratividade do contrato. 47.ª Acontece, justamente, que a REN não pode ser considerada um contraente público no âmbito do Acordo celebrado com a Recorrente. 48.ª A única hipótese era se a REN fosse uma entidade cujos contratos sejam por si celebrados “no exercício de funções materialmente administrativas” (cfr. artigo 3.º, n.º 2, do CCP). 49.ª Contudo, a REN apesar de exercer uma atividade “em regime de serviço público”, não exerce uma função verdadeiramente administrativa, que tenha sido objeto de apropriação pública — di-lo a nossa doutrina mais autorizada na matéria. 50.ª O contrato de concessão é apenas um expediente para sujeitar aquela atividade privada a uma regulação pública especialmente profunda, subordinando-a a obrigações de serviço público. 51.ª Não é a REN, por isso, uma entidade subsumível ao artigo 3.º, n.º 2, do CCP — e não é, pois, no contexto do Acordo, um “contraente público”, de tal forma que o Acordo não pode ser um contrato administrativo, sendo antes um contrato de natureza privada, para cuja apreciação são competentes os tribunais judiciais. (G) 52.ª O Tribunal a quo errou ao considerar os tribunais administrativos competentes para julgar o presente processo cautelar, violando o disposto no artigo 211.º, n.º 1, da Constituição, no artigo 40.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, e no artigo 4.º, n.º 1, alínea e), do ETAF).” 4- A requerida/recorrida contra-alegou apresentando as seguintes conclusões recursivas: 1. A Recorrente pretende, através do presente recurso afastar a natureza administrativa do Acordo, o qual constitui uma das três modalidades de atribuição de reserva de capacidade de injeção na RESP. 2. Contudo, conforme foi já sobejamente demonstrado supra, não lhe assiste qualquer razão, bastando, para tal, socorrermo-nos do elemento mais claro e determinante neste contexto – a lei. 3. Uma leitura atenta do diploma legal que estabelece a organização e funcionamento do Sistema Elétrico Nacional, seja o Decreto-Lei n.º 172/2006, seja o Decreto-Lei n.º 15/2022, permite concluir, sem quaisquer incertezas, que o Acordo que a Recorrente celebrou com a REN é um título administrativo. 4. Com efeito, nos termos do n.º2 do artigo 18.º do referido diploma legal, “a atribuição de reserva de capacidade de injeção na RESP consta de um título emitido nas seguintes modalidades: […] b) Modalidade de acordo entre o interessado e o operador da RESP” (destaque e sublinhado nossos). 5. De acordo com o n.º 4 do mesmo artigo, “A DGEG aprova o modelo do título referido no n.º 238” (destaque e sublinhado nossos). 6. O n.º 8 do mesmo artigo estabelece também que “Os títulos de reserva de capacidade de injeção na RESP atribuídos nas modalidades referidas no n.º 2 (onde se inclui a modalidade de acordo) são transmissíveis até à emissão da licença de produção, efetuando-se a sua transmissão através de averbamento no título a efetuar pela DGEG ou pelo operador de rede competente.” (destaques e sublinhado nossos) 7. O n.º 10 do mesmo artigo acrescenta ainda que “O pedido de alteração da titularidade do título de reserva de capacidade de injeção na RESP depende de reforço da caução” (destaque e sublinhado nosso). 8. Já o n.º 2 do artigo 20.º do mesmo diploma determina que “Para efeito da celebração de acordos para construção ou reforço da RESP, o membro do Governo responsável pela área de energia, tendo em conta as metas de energia renovável a atingir pelo País definidas nos planos estratégicos, pode definir, mediante despacho, a capacidade máxima de injeção na RESP a atribuir nessa modalidade (…).”. 9. O n.º3 do mesmo artigo dispõe ainda que “Os pedidos para a celebração do acordo são apresentados até ao dia 15 de março à DGEG (…)” (destaque nosso). 10. Nos termos do n.º 4 do mesmo artigo “Com a apresentação do pedido, o interessado remete à DGEG o documento de prestação de caução (…)” (destaque nosso). 11. Por seu turno, o n.º 1 do artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/2022 é absolutamente claro ao determinar que “na modalidade de acordo entre o interessado e o operador da RESP, o título de reserva de capacidade de injeção na RESP é o próprio acordo.” (destaque e sublinhado nosso). 12. E o seu n.º 2 acrescenta “A minuta de acordo a celebrar entre o interessado e operador da RESP é aprovada pela DGEG”39. (destaque nosso). 13. Também é importante mencionar que a lei determina ainda que o título de reserva de capacidade, mesmo na modalidade de acordo, deve integrar, como anexo, a licença de produção subsequente [cfr. alínea a) do n.º 4 do artigo 29.º do Decreto-Lei n.º 15/2022]. 14. E ainda elenca os eventos que levam à sua caducidade, designadamente em caso de não obtenção da licença de produção ou exploração nos prazos previstos na lei [cfr. alínea b) do n.º 6 do artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 15/2022]. 15. Normas praticamente análogas existem igualmente no Decreto-Lei n.º 172/2006, diploma vigente à data de celebração do Acordo, mas cumpre referir que, para efeitos do que aqui se discute, o que releva é justamente o Decreto-Lei n.º 15/2022, tendo presente a disposição transitória deste diploma legal, que determina que o mesmo é aplicável aos processos pendentes (cfr. n.º 1 do artigo 276.º do Decreto-Lei n.º 15/2022). 16. Ora, tudo isto concorre para que o título de reserva de capacidade, na modalidade de acordo, seja um título administrativo, e não um mero contrato de natureza privada. Por muito que isso possa custar à Recorrente, é o que a lei nos diz. 17. Com efeito, esta modalidade de atribuição de reserva de capacidade não resulta da livre negociação entre partes privadas, mas sim da aplicação de um regime legal imperativo, através de minuta aprovada pela DGEG. 18. A sua forma contratual é meramente instrumental, exigida pela lei para formalizar a atribuição do título e regular a relação entre o promotor e o operador. Tal exigência apenas se verifica porque, contrariamente a outros regimes, os custos associados à reserva de capacidade são suportados diretamente pelos promotores – razão pela qual se impõe uma disciplina contratual e não um mero ato administrativo unilateral. 19. A atuação da REN no âmbito da celebração do TRC é feita no exercício de funções públicas e em cumprimento de um dever legal - não enquanto parte num contrato paritário – independentemente de ser entidade privada. 20. Pelo que, bem decidiu o Tribunal a quo ao declarar a sua incompetência absoluta. 21. A questão é simples, a solução é legalmente determinada e o esforço argumentativo da Recorrente revela-se, com o devido respeito, perfeitamente despropositado e infrutífero. 22. A Recorrente poderá discordar da consequência legal do regime, mas não é por isso que o pode tentar reconfigurar ao sabor da sua conveniência. 23. A jurisdição competente resulta da natureza pública do ato – e neste caso, trata-se de um título administrativo, emitido por uma entidade a quem lhe foram atribuídos poderes públicos, no quadro de uma concessão de serviço público. 24. E o que verdadeiramente importa é isto: a) O Acordo, nos termos da lei é um título administrativo; b) Sendo o primeiro passo do procedimento administrativo de licenciamento da atividade de produção de energia elétrica em Portugal; c) A atribuição de tal título depende de pedido dirigido à entidade licenciadora – a DGEG; d) A forma contratual é imposta pela lei, não resultando da autonomia das partes; e) Os custos são suportados pelos promotores, o que justifica a necessidade de regulação da relação através de um acordo; f) A sua emissão depende da prévia prestação de caução; g) Pese embora com algumas limitações, o título de reserva de capacidade é transmissível, mediante pedido expresso do particular, reforço de caução e averbamento no respetivo título emitido; h) O título de reserva de capacidade integra a licença de produção subsequente; i) A lei determina os eventos que levam à caducidade do título de reserva de capacidade; j) Tudo isto resulta meridianamente claro dos artigos 18.º, 21.º, 22.º e 29.º do Decreto-Lei n.º15/2022; k) E tudo isto demonstra, de forma cristalina, que estamos perante um ato jurídico-público, sujeito à jurisdição administrativa. 25. Sendo um mero acordo entre privados, então que sentido faz que (i) a lei o qualifique como um título, (ii) determine que esse título marca o início do procedimento administrativo de licenciamento, (iii) imponha limites e condições à sua transmissão, (iv) defina a forma como essa transmissão se materializa (averbamento), (v) determine que este título integra como anexo o título administrativo seguinte no encadeamento procedimental legalmente previsto (licença de produção), (vi) imponha a caducidade do TRC caso não sejam cumpridos determinados prazos referentes ao alcance das fases seguintes do procedimento, e (vii) até a sua caducidade em caso de extinção dos títulos ulteriores (licença de produção e exploração)? Nenhum. 26. Conferir provimento ao alegado pela Recorrente significa subverter todo o regime de licenciamento da atividade de produção de energia elétrica em Portugal, uma vez que a coexistência de uma decisão desta natureza com todas as regras que se acabaram de elencar se revela manifestamente impossível. Seria, por isso, uma decisão ilegal. 27. Sendo a lei clara a este respeito, a Recorrente persiste na tese de que em causa está um contrato de direito privado, por ter plena consciência de que não lhe favorece ter de discutir, do ponto de vista substantivo, a modificação ou suspensão de contratos sujeitos a um regime jurídico-público. 28. Em suma, ainda que, por dever de rigor e patrocínio, a ora Recorrida tenha rebatido, ponto por ponto, os argumentos apresentados pela Recorrente, a verdade é que tal nem seria necessário: a lei basta-se a si mesma, e o resultado inevitável. * 5- Em 6.8.2025, em turno, foi proferida decisão singular que revogou a decisão da 1.ª instância e julgou improcedente a exceção de incompetência dos juízos centrais cíveis em razão da matéria. 6- Notificada dessa decisão, vem a requerida/recorrida REN requerer que sobre a questão seja proferido acórdão, por entender, ora em apertada síntese, que “Do exposto e por força da lei decorre muito claramente que a Decisão Individual labora em manifesto erro de julgamento e que Sentença Recorrida não merece qualquer censura, devendo, por isso, considerar-se verificada a exceção de incompetência absoluta do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, nos termos do disposto nos artigos 96.º e 99.º do CPC, determinando-se a manutenção da decisão de absolvição da RECLAMANTE da instância.”. 7- A recorrente, notificada da reclamação, em extensa resposta defende a manutenção da decisão singular defendendo a competência do Juízo Central Cível. * Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir tendo em conta o disposto no artigo 652.º n.º3 do CPC. * Objeto da reclamação/questões a decidir: - se deve ser revogada a decisão singular, por a competência para apreciar a providência cautelar instaurada dever ser atribuída aos tribunais administrativos. ** II- Fundamentação 2.1- Fundamentação de facto: Os factos com interesse para a decisão são os que constam do relatório supra e ainda o seguinte, considerado na decisão singular: 1- no documento 1 junto com o requerimento inicial, pode ler-se: - «Considerando que: a) Nos termos legais uma das formas de atribuição de reserva de capacidade de injeção na Rede Elétrica de Serviço Público (“RESP”) consiste na celebração de um Acordo entre o operador da rede e os requerentes que pretendem suportar os encargos financeiros decorrentes da construção ou reforço de rede necessários para a receção da energia produzida pelos seus centros electroprodutores, com identificação da capacidade a atribuir (reserva de capacidade de injeção de potência na RESP); b) O Requerente é uma sociedade que pretende construir e explorar um centro electroprodutor de tecnologia fotovoltaica de 1143 MVA com ligação direta à Rede Nacional de Transporte de Eletricidade (“RNT”); c) Ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 5.º-A do Decreto-Lei n.º 172/2006, de 23 de agosto, na sua atual redação (“Decreto-Lei n.º 172/2006”), o Requerente endereçou à Direção-Geral de Energia e Geologia (“DGEG”) um pedido de atribuição de reserva de capacidade no âmbito da alínea b) do n.° 2 do artigo 5.°-A; d) Tendo-se verificado, em relação ao pedido referido no considerando anterior, uma ausência de capacidade de receção na RNT que permitisse dar resposta à capacidade pretendida, sendo necessário realizar investimentos na RNT não previstos no Plano de Desenvolvimento da Rede Nacional de Transporte (“PDIRT”) aprovado à data do pedido, a atribuição de reserva de capacidade neste caso em concreto, passa pela celebração de um Acordo entre a REN e o Requerente, em conformidade com o previsto na alínea b) do n.º 2 do artigo 5.º-A, no n.º 8 do artigo 5.º-A e do artigo 16.º, todos do Decreto-Lei n.º 172/2006; e) Foram efetuados outros pedidos de reserva de capacidade da RNT, tendo sido considerado adequado do ponto de vista do benefício e otimização global da integração na rede, incluindo a otimização da RNT e diminuição de impactes sócio ambientais das infraestruturas a construir, minimizando-se desta forma também o custo global das infraestruturas de rede a suportar pelos requerentes, a consideração de 14 (catorze) Pedidos de Acordo para a realização dos estudos de rede destinados à identificação dos reforços de rede necessários, tendo-se optado pela partilha por parte dos requerentes (“Requerentes”) dos custos com os reforços internos da RNT a realizar para receção da energia dos centros electroprodutores a desenvolver por cada um desses Requerentes, em conformidade com o n.º 3 do artigo 16.º do Decreto-Lei n.º 172/2006; f) Para os efeitos indicados nos considerandos anteriores, o Requerente adjudicou à REN um estudo específico para análise e identificação dos reforços necessários na estrutura interna da RNT, que estabeleceu os custos partilhados que cada requerente deve custear, assim como os custos específicos de desenvolvimento da RNT, caso existam, em resposta às necessidades do centro electroprodutor do Requerente; g) O estudo específico em questão visou, em primeiro lugar, a identificação dos novos reforços internos a construir na RNT necessários para a receção da energia produzida pelo referido centro electroprodutor de tecnologia fotovoltaica do Requerente, assim como o apuramento previsional dos custos totais associados às componentes de construção e gestão relativos aos reforços internos na RNT identificados imputáveis ao Requerente, uma previsão para o calendário de execução destes reforços, tendo em conta o estabelecido na alínea c) do n.º 1 e no n.º 3 do artigo 16.º, bem como no nº 7 do artigo 16.ºA, do Decreto- Lei n.º 172/2006; h) O modelo de acordo a celebrar entre a REN e os requerentes em geral foi aprovado pela DGEG, através do Ofício n.º 1/DG/2021, datado de 5 de janeiro de 2021, em cumprimento do disposto no n.º 9 do artigo 5.º-A do Decreto-Lei n.º 172/2006;» - «Cláusula 17.ª (Lei e Foro) O presente Acordo está sujeito à Lei Portuguesa e quaisquer litígios relativos à sua interpretação, validade e execução serão dirimidos pelo foro da Comarca de Lisboa.» 2.2-Fundamentação de direito: A questão a apreciar que se coloca à conferencia prende-se com a atribuição da competência material para julgar a providência cautelar instaurada, ou seja, se a causa pertence ao âmbito da jurisdição administrativa ou ao âmbito da jurisdição comum. O tribunal de 1.ª instância, na decisão recorrida, entendeu que a competência para apreciar a causa cabia aos tribunais administrativos; ao invés, na decisão singular considerou-se que o Juízo Central Cível era materialmente competente para o julgamento da causa. Tais divergências encerram de antemão, podemos dizê-lo, a conclusão de que a questão não se apresenta consensual. Como é sabido a competência em razão da matéria dos tribunais judiciais é estabelecida no art.64.º do CPC nos seguintes termos: São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional. Trata-se da consagração na lei processual do que estabelecido está no art.211º nº1 da CRP, “Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”. Assim, por via de tais normativos, a competência afere-se em função do que esteja estabelecido quanto à competência de outra ordem jurisdicional, se a causa estiver atribuída à competência de outros tribunais que não os tribunais judiciais, estes são materialmente incompetentes. Os tribunais judiciais são competentes, digamos, “por defeito”, julgam as causas que a lei não atribui a ordem jurisdicional distinta. Donde, no caso, o percurso a empreender para dar resposta à questão que nos ocupa impõe que se atente na competência dos tribunais administrativos, posto que, se a eles caber julgar a causa, é indubitável que o Juízo Central Cível, é materialmente incompetente. A questão da competência tribunais administrativos versus tribunais judiciais é antiga e recorrente, com inúmeras pronuncias dos tribunais e do tribunal de conflitos, mas, como é exemplo a presente situação, a sua resolução não abdica das circunstâncias do caso concreto e da sua configuração, inexistindo uma linha mestra a seguir em qualquer caso, embora se tenha que atender a princípios enformadores nesta matéria que apontarão o sentido da decisão. Por seu turno, a competência material dos tribunais administrativos está prevista, também, em sede constitucional, no art.212.º n.º 3 da CRP onde se diz que “Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.”. Comando que o art.4.º do ETAF (Lei 13/2002 de 19.2), densifica nos seguintes termos: 1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a: a) Tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais; b) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos emanados por órgãos da Administração Pública, ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal; c) Fiscalização da legalidade de atos administrativos praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas não integrados na Administração Pública; d) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos praticados por quaisquer entidades, independentemente da sua natureza, no exercício de poderes públicos; e) Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes; f) Responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 4 do presente artigo; g) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes, trabalhadores e demais servidores públicos, incluindo ações de regresso; h) Responsabilidade civil extracontratual dos demais sujeitos aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público; i) Condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime; j) Relações jurídicas entre pessoas coletivas de direito público ou entre órgãos públicos, reguladas por disposições de direito administrativo ou fiscal; k) Prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, habitação, educação, ambiente, ordenamento do território, urbanismo, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas; l) Impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo e do ilícito de mera ordenação social por violação de normas tributárias; m) Contencioso eleitoral relativo a órgãos de pessoas coletivas de direito público para que não seja competente outro tribunal; n) Execução da satisfação de obrigações ou respeito por limitações decorrentes de atos administrativos que não possam ser impostos coercivamente pela Administração; o) Relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores. 2 - Pertence à jurisdição administrativa e fiscal a competência para dirimir os litígios nos quais devam ser conjuntamente demandadas entidades públicas e particulares entre si ligados por vínculos jurídicos de solidariedade, designadamente por terem concorrido em conjunto para a produção dos mesmos danos ou por terem celebrado entre si contrato de seguro de responsabilidade. 3 - Está nomeadamente excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto a impugnação de: a) Atos praticados no exercício da função política e legislativa; b) Decisões jurisdicionais proferidas por tribunais não integrados na jurisdição administrativa e fiscal; c) Atos relativos ao inquérito e instrução criminais, ao exercício da ação penal e à execução das respetivas decisões. 4 - Estão igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal: a) A apreciação das ações de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, assim como das correspondentes ações de regresso; b) A apreciação de litígios decorrentes de contratos de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa coletiva de direito público, com exceção dos litígios emergentes do vínculo de emprego público; c) A apreciação de atos materialmente administrativos praticados pelo Conselho Superior da Magistratura e seu Presidente; d) A fiscalização de atos materialmente administrativos praticados pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça; e) A apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva. Como se vê a competência dos tribunais administrativos é delimitada positivamente nas diversas alíneas do n.º1 e no n.º2, mas, também, de forma negativa no n.º3 e n.º4, excluindo-se aqui certos litígios que, não fora essa expressa exclusão, tenderiam a ser integrados naquela competência positiva. Por outro lado, a dita competência independe do tipo de ação (leia-se ação principal ou processo cautelar), estando referenciada às questões objeto do litígio. Tendo o litígio trazido a juízo subjacente questão que integre alguma das alíneas do n.º1 a competência material deve ser atribuída à jurisdição administrativa. Daqui podemos já extrair que irreleva o facto de estarmos perante uma providência cautelar, se a questão objeto de litígio quadrar a alguma das hipóteses do n.º1 a competência será da ordem administrativa. E tanto assim que embora estejamos em presença de procedimento cautelar, não podemos perder de vista que ao mesmo se seguirá, como anuncia a requerente, a instauração da acção principal e as questões de um e outra não podem ser divergentes. Donde cremos, também, de utilidade perspetivar a solução de igual modo em face da futura ação principal que não pode deixar de ter por objecto o acordo firmado entre as partes e respetivas obrigações e, indubitavelmente, o regime legal a que o mesmo possa estar sujeito e que permita enquadrar a natureza desse acordo. Cremos, aliás, antecipando-nos, que será o enquadramento legal do acordo firmado entre as partes e sua regulamentação a pedra de toque para dar resposta à questão a decidir, de forma mais prevalecente do que a “mera” qualidade dos sujeitos envolvidos. Cumpre ainda deixar notado, introdutoriamente, com apelo ao Ac. TRL de 18.4.2023 (rel. Luís Filipe Pires de Sousa), que “Conforme constitui jurisprudência do STJ, o pressuposto processual da competência material deve ser aferido em função da pretensão deduzida, tanto na vertente objetiva, conglobando o pedido e a causa de pedir, como na vertente subjetiva, respeitante às partes, tomando-se por base a relação material controvertida tal como vem configurada pelo autor.” (acessível em www.dgsi.pt), pelo que, a resolução da questão em apreço não pode abdicar da análise do que alegado foi no requerimento inicial da providência, seja relativamente à causa de pedir invocada, seja a conformação legal aí efetuada, e, bem assim, a concreta pretensão deduzida pela requerente da providência cautelar. Vejamos: Na decisão recorrida a 1.ª instância empreendeu o seguinte raciocínio, que conduziu à decisão: “A competência dos tribunais administrativos vem regulada no Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (E.T.A.F.), aprovado pela Lei n.º 13/2002 de 19/2, que revogou o anterior aprovado pelo Dec.Lei n.º 129/84 de 27/4. Este novo Estatuto provocou uma alteração substancial de princípios e de competências, ampliando substancialmente o âmbito da jurisdição administrativa, no que foi acompanhado pelo novo CPTA (aprovado pela Lei n.º 15/2002 de 22/2), determinando que os tribunais administrativos passassem a assumir novas competências e ganhassem também maior agilidade, adequação e flexibilidade de procedimentos. Neste Código prevê-se que os Tribunais administrativos são competentes para a apreciação de questões de direito privado com questões de direito administrativo em termos muito mais amplos (art.2º, n.º 2 do C.P.T.A.) – designadamente “A apreciação de questões relativas à interpretação, validade ou execução de contratos” (art.4º n.º 2 al. l) do C.P.T.A.). O art 4.º do ETAF define o âmbito da jurisdição, referindo – de uma forma positiva -que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a: (…) “e) Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes;” (nº1). E, de uma forma negativa, excluindo do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios enunciados no nº3 e nº4. No caso dos autos, estamos perante uma pessoa colectiva de direito privado, concessionária de um serviço público: a Requerida é uma sociedade anónima que, nos termos de contrato de concessão celebrado com o Estado Português, exerce as funções de entidade concessionária da actividade de transporte de electricidade através da Rede Nacional de Transporte de Electricidade, tendo por objecto a operação e a exploração dessa infraestrutura em regime de serviço público e em exclusividade. No âmbito do seu objecto e actividade, cabe-lhe – nos termos do disposto no art.5ºA do Decreto Lei 76/2019 – atribuir a reserva de capacidade de injecção na Rede ESP, o que pode fazer nos termos do nº2, al.b) do mesmo artigo, por “acordo”, mas condicionado ao regime que vem aí previsto, sendo certo que o início do procedimento para obtenção de licença de produção de electricidade depende sempre de prévia atribuição de reserva de capacidade de injecção na RESP, sendo que cabe à DGEC aprovar o modelo de título e do acordo e nos termos do disposto no art.7ºA é a esta cabe, em última análise (1 - A atribuição, alteração e revogação da licença de produção, bem como a exploração em regime de teste ou experimental e a atribuição da licença de exploração de todos os centros eletroprodutores é da competência do diretor-geral de energia e geologia. 2 - A DGEG exerce as competências de entidade licenciadora, proferindo todas as decisões relativas à instrução e condução dos procedimentos de atribuição, alteração, transmissão, extinção das licenças e autorizações previstas no presente decreto-lei que não estejam expressamente reservadas ao membro do Governo responsável pela área da energia) assegurar que o interesse público é prosseguido. Não há dúvida alguma, e é assim que é apresentado pela Requerente na sua petição inicial, o Acordo que alega ter sido celebrado entre a Sunshining e a REN em … de abril de 2021, foi ao abrigo do artigos 5.º-A, n.º 2, alínea b), e 16.º do Decreto-Lei n.º 172/2006, de 23 de agosto, na redacção que resultou do Decreto-Lei n.º76/2019, de 3 de junho (“Acordo entre o requerente e o operador da RESP com assunção, por aquele, dos encargos financeiros decorrentes da construção ou reforço da rede necessários para a receção da energia produzida pelo contro eletroprodutor, com identificação da capacidade a atribuir”) Também resulta da petição inicial que este procedimento é instrumental a uma acção declarativa cível a propor, para reconhecimento do direito da aqui Requerente à suspensão da execução do Acordo, em geral, e dos pagamentos devidos ao abrigo do Acordo celebrado com a REN, com fundamento “na suspensão dos efeitos da Declaração de Impacte Ambiental (“DIA”) favorável condicionada, relativa ao projeto da Sunshining, na sequência de uma ação administrativa de impugnação dessa DIA, proposta pelo Ministério Público, tendente à declaração de nulidade e anulação de tal ato” e que a impedem de prosseguir “com o licenciamento necessário à construção e exploração da central em causa”. Ora, em nosso entender, é manifesto que estará em causa a apreciação de um litígio à luz dos interesses públicos que estiveram na base na celebração do referido “acordo”, sendo também estes aqueles a que se deve recorrer na apreciação dos factos que agora são trazidos pela Requerente como fundamento deste procedimento cautelar As exigências previstas no referido DL para a celebração do “acordo” são expressão do interesse público que lhe está subjacente, pelo que – não obstante celebrado por privados – não se trata de um acto de gestão privada. Aliás, nem faria sentido fazer qualquer distinção em termos de regime aplicável entre as várias modalidades de proceder à atribuição de reserva de capacidade de injeção na RESP previstas no nº2 do art.5ºA, só porque esta se manifesta num contrato e não num acto unilateral do operador da RESP. Assim, na apreciação da validade, na interpretação e na execução de contratos que estejam sujeitos a um regime de contratação pública, designadamente, os acordos referidos na citada al.b) há que ter em conta os princípios de exigência, transparência, rigor e prossecução do interesse público, princípios estes todos de direito administrativo.” E, no essencial, concordamos com a argumentação da primeira instância plasmada na decisão acima transcrita. É de notar que vista a petição inicial é impressivo que a requerente alegue logo no art.1.º que “Os presentes autos cautelares têm por objeto mediato o Acordo celebrado entre a Sunshining e a REN, em … de abril de 2021, ao abrigo e para os efeitos do disposto nos artigos 5.º-A, n.º 2, alínea b), e 16.º do Decreto-Lei n.º 172/2006, de 23 de agosto, que estabelece o regime jurídico aplicável às atividades de produção, armazenamento, transporte, distribuição e comercialização de eletricidade1, na redação que resultou do Decreto-Lei n.º 76/2019, de 3 de junho.”, de onde decorre a assunção que o acordo firmado entre as partes, embora naturalmente, não abdique de uma manifestação de vontade das mesmas, como em geral qualquer acto, está conformado, porém, num regime legal e nele previsto e foi celebrado ao abrigo do mesmo. E, por isso, não estamos em presença tão somente de um contrato entre duas entidades privadas e que as mesmas de acordo com os seus interesses regularam como lhes aprouver. Resulta evidente que o acordo foi firmado ao abrigo e para os efeitos do disposto nos artigos 5.º-A, n.º 2, alínea b), e 16.º do Decreto-Lei n.º 172/2006, de 23 de agosto (já na redação dada pelo DL 76/2019 de 3.6, pois foi este diploma que introduziu o art.5.º-A. que vem invocado) Este art.5.º-A estabelece o seguinte, que não obstante a extensão tem utilidade transcrever: Atribuição de reserva de capacidade de injeção na RESP 1 - O início do procedimento para obtenção de licença de produção de eletricidade depende da prévia atribuição de reserva de capacidade de injeção na RESP. 2 - A atribuição de reserva de capacidade de injeção na RESP consta de: a) Título emitido pelo operador da RESP com reserva de capacidade de injeção na rede em nome do requerente; b) Acordo entre o requerente e o operador da RESP com assunção, por aquele, dos encargos financeiros decorrentes da construção ou reforço da rede necessários para a receção da energia produzida pelo centro eletroprodutor, com identificação da capacidade a atribuir; c) Título emitido pelo operador da RESP nos termos comunicados pela entidade gestora do procedimento concorrencial para atribuição de reserva de capacidade de injeção na rede. 3 - Nos casos referidos nas alíneas a) e b) do número anterior, o pedido de reserva de capacidade de rede para ligação de um centro eletroprodutor deve corresponder a um único valor de potência com a identificação da subestação e nível de tensão a que se pretende ligar e é apresentado na entidade licenciadora que o remete, no prazo de cinco dias, ao operador da RNT ou ao operador da RND consoante o caso. 4 - Os pedidos de atribuição de reserva de capacidade referidos na alínea a) do n.º 2 são decididos pelo operador da RESP, no prazo de 45 dias, após audição do gestor global do SEN e mediante o pagamento de um preço pelo serviço prestado, nos termos estabelecidos no Regulamento das Relações Comerciais, seguindo a prioridade decorrente da ordem da remessa da entidade licenciadora que regista a ordem de entrada dos pedidos. 5 - O operador da RESP pode solicitar esclarecimentos adicionais, por uma só vez, suspendendo-se o prazo de decisão desse pedido e dos pedidos subsequentes que abranjam a mesma subestação e nível de tensão. 6 - O pedido de atribuição de reserva de capacidade de injeção na RESP no caso da alínea a) do n.º 2 só pode ser recusado com fundamento na ausência de capacidade de rede ou na ausência de prestação de caução. 7 - Para os efeitos do número anterior verifica-se ausência de capacidade de rede disponível quando, tendo em conta os compromissos de ligação existentes, a potência a injetar exceda a capacidade disponível no ponto de interligação ou de receção, não existam condições técnicas que permitam implementar a ligação à rede, ou possa afetar-se a segurança e fiabilidade da RESP. 8 - Nos casos em que se verifique a ausência de capacidade de receção na RESP pode ser celebrado entre o requerente e o operador da RESP um acordo nos termos previstos na alínea c) do n.º 1 do artigo 16.º 9 - A DGEG aprova o modelo de título e do acordo referidos no n.º 2. 10 - A atribuição de reserva de capacidade de rede depende da prestação de caução pelo requerente destinada a garantir a obtenção da licença de produção e, quando aplicável, o cumprimento das condições do procedimento concorrencial, correspondendo: a) Ao valor de (euro) 10 000,00 por MVA de reserva de capacidade a atribuir, no caso previsto na alínea a) do n.º 2; b) Ao valor máximo de entre o correspondente a 5 /prct. dos encargos assumidos pelo requerente e o determinado nos termos da alínea anterior, para o caso previsto na alínea b) do n.º 2; c) Ao valor estabelecido no procedimento concorrencial, no caso da alínea c) do n.º 2. 11 - As cauções referentes à emissão dos títulos previstos na alínea a) e b) do n.º 2 são prestadas ao operador da RESP a que se pretende ligar, no prazo de 30 dias após comunicação da existência de capacidade disponível ou das condições do acordo. 12 - A caução referente à emissão do título previsto na alínea c) do n.º 2 é prestada à DGEG. 13 - As cauções referidas nos números anteriores revertem para abatimento aos custos de interesse económico geral (CIEG) enquanto medida que promove a sustentabilidade do SEN, nas seguintes situações: a) Não obtenção de licença de produção no prazo devido, após atribuição do título de reserva de capacidade de injeção na RESP; b) Incumprimento do acordo referido na alínea b) do n.º 2; c) Incumprimento das condições e prazos determinados no procedimento concorrencial, designadamente para a obtenção da licença de produção. 14 - A atribuição de reserva de capacidade de injeção na RESP nos casos em que a caução seja revertida nos termos do número anterior caduca, podendo a capacidade disponível ser objeto de nova atribuição. 15 - A caução é devolvida ao interessado, no prazo de cinco dias a contar da verificação das seguintes situações: a) Caducidade do pedido de reserva de capacidade de rede nos termos previstos no n.º 9 do artigo seguinte; b) Nos termos definidos no procedimento concorrencial previsto no artigo seguinte; c) Com a obtenção da licença de produção; d) Quando a verificação das situações referidas no número anterior não seja imputável ao requerente, nos termos a comprovar junto da DGEG e mediante decisão fundamentada desta. 16 - A decisão do pedido de reserva de capacidade de injeção na rede previsto na alínea a) do n.º 2 e a celebração do acordo previsto na alínea b) do n.º 2, são comunicados ao requerente e à entidade licenciadora. 17 - Os títulos de reserva de capacidade de rede e a posição contratual no acordo referido na alínea b) do n.º 2 são intransmissíveis até à emissão da licença de exploração, efetuando-se a sua transmissão através da alteração da titularidade da licença de produção. 18 - O disposto nos números anteriores não é aplicável à atribuição de licença de produção para instalação de novas unidades de produção, que utilizem diversa fonte primária, nos casos em que se mantém a potência de injeção na rede atribuída na licença de produção preexistente. E deste artigo extrai-se, quanto a nós, com particular relevância para o enquadramento da situação litigiosa subjacente à ação que o acordo em que a requerente se funda, é uma etapa de um percurso previsto na lei para atingir um fim, qual seja o licenciamento da produção de eletricidade, não é por isso um acordo que cumpra tal fim em si mesmo. Donde, o que sobressai – nisto se concordando com a argumentação da recorrida REN a este respeito - é que estamos no âmbito de um processo, ou seja, um conjunto de actos interdependentes para obtenção de uma licença, e o acordo objecto dos autos insere-se nesse processo devendo ser visto à luz do mesmo. Assim, não vemos como afirmar que o dito acordo tem uma natureza privada, ao invés, cremos que faz parte de um procedimento administrativo, regulado por lei e com intervenção de entidades públicas e não apenas da REN, enquanto concessionária. E a circunstância da concessionária ser uma entidade jurídica privada, uma sociedade anónima não afasta, a nosso ver, essa conclusão. Por outro lado, embora se trate de um “acordo” em que são partes duas empresas privadas e apesar da lei o mencionar como acordo na al. b) do n.º2 do art.5.º-A, daí não resulta sem mais que estejamos em presença de um contrato de natureza privatística. Note-se que esse “acordo”, no seio do procedimento de licenciamento, é considerado pela lei como um título, a par dos demais previstos na al. a) e c) do mesmo n.º2, como se pode concluir do n.º11 do artigo 5.º-A, ora em análise. Esse título não é um mero contrato entre privados, tanto mais que é a DGEG que aprova o modelo de título e do acordo referidos no n.º2 do art.5.º-A, como expressamente consta do n.º9 do mesmo artigo. E tanto assim é que, como alega a requerente no art.92.º do r.i., o Decreto-Lei n.º 15/2022, que revogou o anterior DL 172/2006, “passou também a impor, inovatoriamente, que, em caso de “[a]tribuição de título de reserva de capacidade de injeção na RESP na modalidade de acordo entre o interessado e o operador da RESP, (…) a licença de exploração pode ser emitida no prazo máximo de 90 dias após a data da entrada em funcionamento das respetivas infraestruturas da RESP a construir ou reforçar (…)” (cfr. artigo 14.º, n.º 3, alínea a))”, ou seja, é a lei que considera e continua a considerar no novo regime o acordo entre o requerente e operador da RESP como um título de reserva de capacidade, a par das duas outras modalidades. E o processo de formação deste título foge por completo ao normal processo de contratação/negociação entre privados, de acordo com a sua autonomia privada, celebrando os contratos que satisfaçam os seus interesses. Por isso, concomitantemente, se percebe que a requerente da providência tenha alegado, nos arts.39.º e seguintes do requerimento inicial, factualidade atinente ao licenciamento da central solar sempre apelando às normais legais que enformam esse licenciamento e, concretamente que “Como referido, querendo iniciar o procedimento de licenciamento da Central, a Sunshining endereçou à DGEG um pedido de reserva de capacidade de injeção na RESP.”, ou seja, a requerente iniciou o procedimento junto de uma entidade pública como previsto legalmente, e como diz no art.64.º do r.i., o acordo é imprescindível para o licenciamento da central. Mais, como alegado no art.65.º “O projeto de implementação da Central encontra-se sujeito a Avaliação de Impacte Ambiental (“AIA”), nos termos do disposto no Decreto-Lei n.º 151-B/2013, de 31 de outubro”, e é justamente por causa das questões que determinaram a suspensão da declaração de impacte ambiental condicional que havia sido emitida, que o litígio trazido a juízo se despoleta. O acordo em causa nos autos é uma peça num procedimento legalmente conformado com intervenção de entidades públicas, sujeito a regulamentação de natureza publico/administrativa, o que tudo é justificado por estar em presença o interesse público cuja satisfação, em certo enfoque, está atribuída a uma entidade concessionária de natureza privada. Se assim não fosse mal se compreenderia quer a regulamentação legal mais geral, quer a imposição ao requerente e à concessionária do cumprimento de um conjunto de procedimentos com vista à atribuição da licença, licença esta que não pode deixar de ser encarada como um ato administrativo, resultante de um procedimento administrativo. Não logramos pois, salvo o devido respeito por diferente opinião, enquadrar o conjunto de tais procedimentos e determinações legais concomitantes, no seio de um contrato particular, entre empresas, equiparado a qualquer outro contrato entre particulares. Desta feita não concedemos que possa colher a dicotomia que a requerente/recorrente defende na conclusão 7.ª do recuso, admitindo por um lado estarmos no âmbito de um procedimento administrativo que culmina na prática de um acto administrativo, mas autonomizando dele o acordo em causa para conferir a este uma natureza estritamente privada, defendendo que a atribuição da reserva de capacidade ocorre “fora do procedimento”. Mas se a atribuição de reserva de capacidade é uma fase do dito procedimento, não vemos como acompanhar a recorrente nessa argumentação. Se estivéssemos no domínio da mera contratação privada, não se perceberia que a requerente da providência invoque na mesma: “É a própria lei, aliás, que vincula os acordos celebrados para atribuição de reserva de capacidade de injeção na RESP — e os reforços da RNT — à finalidade última de receção da energia elétrica a produzir por determinado centro electroprodutor.” (art.166.º do r.i.); “De facto, como se refere no artigo 16.º, n.º 1, alínea c), do Decreto-Lei n.º 172/2006, está em causa um acordo “para construção de novas infraestruturas não previstas no Plano de Desenvolvimento e Investimento da Rede Nacional de Transporte (PDIRT), no Plano de Desenvolvimento e Investimento da Rede Nacional de Distribuição (PDIRD) ou para antecipação das ali previstas, ou, ainda, para reforço das já existentes que se revelem necessárias para a receção da energia produzida pelo centro electroprodutor” (art.167.º); “Aliás, a única razão pela qual um acordo deste tipo não regula expressamente situações como a referida, de forma a acautelar cenários extremos em que a implementação do centro electroprodutor está suspensa por razões externas ao promotor e em que há, inclusivamente, o perigo de nunca vir a ter lugar,” (art.187:º); “A única razão para isto, dizia-se, prende-se com o facto de a DGEG aprovar o “modelo do acordo” a celebrar entre os requerentes de reserva de capacidade de injeção e o operador da RESP (cfr. artigo 5.º- A, n.º 9, do Decreto-Lei n.º 172/2006), sem a intervenção dos requerentes.” (art.189.º); “Os promotores não têm qualquer liberdade de estipulação no que respeita a estes acordos, uma vez que têm de se sujeitar ao modelo de acordo pré-definido pela DGEG no seu Ofício n.º 1/DG/2021, de 5 de janeiro de 2021, aprovado nos termos do citado artigo 5.º-A, n.º 9, do Decreto-Lei n.º 172/2006.” (art.191.º); “Limitam-se a assinar, isto é, a aderir ao acordo que lhes é apresentado.” (art.192.º). Ora tais limitações a que a requerente da providência se refere e que não quadram evidentemente à contratação entre privados, quando estes, numa negociação justa, é suposto estarem em “pé de igualdade” e poderem conformar o conteúdo dos contratos que celebram, só têm razão de ser, porquanto, nos encontramos num domínio económico em que se impõe a salvaguarda de interesses públicos e em que o Estado não abdica de intervir não apenas por via da regulamentação da atividade e do acesso dos particulares à rede pública, mas conformando o conteúdo dos actos, e intervindo, nesse particular, diretamente no processo através da DGEG. Ademais, se o conteúdo do acordo é definito pela DGEG, e por isso não negociável, tal só se pode justificar pela prorrogativa de exercício de poderes públicos neste tipo de contratação, pelo que, assim sendo, não se pode simplesmente concluir, como faz, a recorrente que o acordo não contém nenhuma cláusula que os privados não pudessem convencionar, posto que a montante já se mostra arredada a sua capacidade de estipulação, veja-se por exemplo a imposição da prestação de caução. Donde, neste enfoque, se concorda com a decisão da 1.ª instância quando se refere “a um regime de contratação pública”, visto este, de forma mais simples, como contraposto àquele em que dominam interesses privados e entre privados e em que cabe ao direito privado e seus princípios reger a interpretação e execução dos respetivos acordos. Não cremos, por tudo quanto se disse, que seja o caso dos autos em que a interpretação e execução do acordo em dissenso entre as partes, não se nos afigura dever (poder) abdicar do regime legal que o prevê, dos interesses em presença, sendo que, como se viu, tal regime tem subjacente razões de interesse público, e a sua celebração insere-se no âmbito de um procedimento administrativo à luz do qual deve ser entendido e, por isso, interpretado. Acresce que, não se duvidará que no âmbito do referido processo de licenciamento, do qual como se viu, faz parte o acordo estabelecido e invocado nos autos, caso fossem praticados atos pelas entidades que nele intervém, mesmo incluindo o operador da Rede Elétrica de Serviço Público (Resp), traduzidos v.g. no indeferimento ou recusa do pedido de reserva, na recusa do operador em celebrar o acordo previsto na al. b) do n.º2 do art.5.º-A, etc., que a apreciação da legalidade dos mesmos não fosse da competência material dos tribunais judiciais. Ora deste ponto de vista, então, a mera qualidade do operador, no caso da recorrida REN, enquanto empresa privada, não obstaria, cremos, à atribuição de competência aos tribunais administrativos, posto que estaria a exercer, nesse domínio, poderes que lhe são conferidos, enquanto concessionária, ao abrigo de normas de interesse público, reguladoras de um interesse público mais vasto, justamente o que subjaz à organização e ao funcionamento do sistema elétrico nacional (SEN). E que nesta matéria – sistema elétrico nacional, em que se insere o sistema nacional de transporte de energia – impera o interesse público, cremos resulta da mera leitura do preâmbulo do decreto-lei n.º15/2022 de 14.1, que estabelece a organização e o funcionamento do Sistema Elétrico Nacional, transpondo a Diretiva (UE) 2019/944 e a Diretiva (UE) 2018/2001, e que revogou o Decreto-Lei n.º172/2006, de 23 de agosto, este vigente à data da celebração do acordo, concentrando, como ressalta do seu art.2.º, o regime jurídico aplicável às atividades de produção, armazenamento, autoconsumo, transporte, distribuição, agregação e comercialização de eletricidade, bem como à operação logística de mudança de comercializador e agregador, à organização dos respetivos mercados, à atividade de emissão de garantias de origem, à atividade de gestão de garantias do SEN, aos procedimentos aplicáveis ao acesso àquelas atividades e à proteção dos consumidores. Veja-se o disposto no seu art.4.º relativo aos princípios gerais, e do qual se evidencia, a nosso ver, que nos situamos, nas diversas vertentes de tal regulamentação, no âmbito de relações jurídico-administrativas e não no domínio de estritas relações de natureza privatística, “1 - O exercício das atividades abrangidas pelo presente decreto-lei obedece a princípios de racionalidade e eficiência dos recursos assegurando a sustentabilidade económico-financeira do SEN e do acesso universal, no quadro da concretização do mercado interno de energia, da transição energética, da preservação do ambiente e da proteção e igualdade de tratamento dos consumidores de eletricidade, dependendo da obtenção de licença, da atribuição de concessão, da realização do registo ou de comunicação prévia, nos termos dos procedimentos estabelecidos para cada uma das atividades. 2 - Todos os procedimentos previstos no presente decreto-lei obedecem aos princípios gerais que regem a atividade administrativa nos termos estabelecidos no Código do Procedimento Administrativo (CPA), aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de janeiro, na sua redação atual. 3 - Todas as atividades previstas no presente decreto-lei obedecem ao princípio da livre concorrência, incluindo as atividades em regime exclusivo, na medida em que as respetivas concessões e licenças são atribuídas através de procedimentos concorrenciais. 4 - Presume-se o interesse público, para a saúde e segurança públicas, ao planeamento, construção e exploração dos centros eletroprodutores de fonte renovável e/ou de instalações de armazenamento, incluindo a sua ligação à rede, no âmbito: a) Da alínea c) do n.º 11 do artigo 10.º e da alínea c) do n.º 1 do artigo 20.º do Decreto-Lei n.º 140/99, de 24 de abril, na sua redação atual; b) Da alínea c) do n.º 5 do artigo 51.º da Lei n.º 58/2005, de 29 de dezembro, na sua redação atual.” Nestes termos o facto da requerida ser uma empresa privada, concessionária da gestão e desenvolvimento da rede nacional de transporte de eletricidade, não é suficiente para afastar quanto se disse e fundamentar, nesse caso apenas com apelo à sua natureza de empresa privada, o afastamento da competência dos tribunais administrativos que em nosso entendimento resulta de quanto se deixou dito. É que, como se escreve no Ac. TRL de 8.10.2024 (Ana Rodrigues da Silva) “Não se mostrando necessário analisar o conceito de concessão administrativa, sempre se dirá que a mesma é uma forma de gestão de um serviço público, ou seja, um “acto constitutivo de uma relação jurídica administrativa pelo qual a pessoa titular de um serviço público atribui a outra pessoa o direito de esta, no seu próprio nome, organizar, explorar e gerir um serviço público” (Pedro Gonçalves in A Concessão de Serviços Públicos, pág. 130 apud Ac. STA de 21-05-2008, proc. 0862/07, relatora Angelina Domingues). Recorrendo às explicações de Joana Catarina Neto dos Anjos in Litígios entre as Concessionárias do Serviço Público de Abastecimento de Água e os Consumidores - Questão da Jurisdição Competente, Centro de Estudos de Direito Público e Regulação - Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Setembro 2014, pág. 15 acessível em https://www.fd.uc.pt/cedipre/wp-content/uploads/pdfs/co/public_24.pdf., quando existe uma concessão administrativa, “o serviço público é atribuído a uma entidade privada do sector privado (dominada por pessoas de direito privado), sendo estabelecida uma relação de colaboração entre a Administração Pública (titular do serviço) e o gestor do serviço.”.”, e, nessa medida, como se escreve, também, na decisão recorrida “No caso dos autos, estamos perante uma pessoa colectiva de direito privado, concessionária de um serviço público: a Requerida é uma sociedade anónima que, nos termos de contrato de concessão celebrado com o Estado Português, exerce as funções de entidade concessionária da actividade de transporte de electricidade através da Rede Nacional de Transporte de Electricidade, tendo por objecto a operação e a exploração dessa infraestrutura em regime de serviço público e em exclusividade.”. Embora a REN S.A., seja a uma entidade jurídica de natureza privada a mesma desenvolve, por via do contrato de concessão, atividade que, não fora a concessão, cabia ao estado assegurar por outra via, designadamente, pelos seus próprios organismos (cfr. que a concessão da RNT, foi atribuída à REN - Rede Eléctrica Nacional, S. A., pelos Decretos-Leis n.º 182/95 e n.º185/95, ambos de 27 de Julho, e pelo respetivo contrato de concessão, mantida na titularidade desta entidade pelo DL 29/2006, como resulta do seu art.69.º, e manteve-se subsequentemente). Tem por isso pertinência a conclusão a que se chegou no Ac. TRG de 30.6.2011 (rel. Carvalho Guerra “I. Os tribunais administrativos serão competentes para dirimir os litígios surgidos no âmbito das relações jurídicas públicas, devendo como tal considerar-se “aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido”. III. Está neste caso a “REN – Redes Energéticas Nacionais, SGPS”, na qualidade de “concessionária da Rede Nacional de Transporte de Energia Eléctrica”, que implica o exercício de um poder público, que visa a instalação e a regular exploração das linhas de muito alta tensão, bens considerados de utilidade pública, actividade regulada por disposições de direito administrativo.”, e ainda, como se escreve no sumário do Ac. do Tribunal de Conflitos de 25.3.2015 (rel. Teresa de Sousa) “I – A concessão de serviços públicos a uma entidade privada não significa que as respectivas actividades percam a sua natureza pública administrativa e por essa circunstância adquiram intrinsecamente natureza de actos privados a serem regulados pelo direito privado.”. (acessíveis em www.dgsi.pt). Em conformidade com tudo o exposto, estamos em presença de um acordo estabelecido no âmbito de relações jurídico-administrativas, celebrando por entidade que atua na prossecução do interesse público, ao abrigo de regulamentação que lhe confere e permite o exercício de poderes públicos, pelo que, a competência para a apreciação do acordo cabe aos tribunais administrativos e, como tal, na insubsistência da decisão singular proferida nos autos, merece provimento o recurso, devendo ser mantida a decisão recorrida da 1.ª instância. III- Decisão: Pelo exposto, acordam as juízas da 8.ª Secção Cível, na procedência da reclamação, revogar a decisão sumária e julgar o recurso improcedente, confirmando a decisão recorrida da 1.ª instancia. Custas pela recorrente. Lisboa, 25.9.2025 Fátima Viegas Maria Teresa Lopes Catrola Cristina da Conceição Pires Lourenço |