Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
118584/24.0YIPRT.L1-6
Relator: ADEODATO BROTAS
Descritores: INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA
PARQUEAMENTO TEMPORÁRIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/23/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1- Aos litígios emergentes de serviço de parqueamento automóvel temporário em parques públicos, concessionados à requerente/apelante, pelo Município de Ponta Delgada, não é aplicável a norma de exclusão da competência dos Tribunais Administrativos prevista no art.º 4º, nº 4, al. e) do ETAF.
2- Antes se aplica a norma de atribuição de competência aos Tribunais Administrativos estabelecida no art.º 4º nº 1, al. e) do ETAF, por o litígio ter por base um contrato com génese em contrato submetido a regras de contratação pública.
3- A esta vista, os Tribunais Cíveis são materialmente incompetentes para apreciar e decidir um litígio emergente na falta de pagamento de serviços de parqueamento automóvel temporário em parques de estacionamento concessionado pelo Município à requerente.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência, neste colectivo da 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa

I-RELATÓRIO.

1- DR, SA, instaurou procedimento de injunção, contra Eng.º EMD, Lda, pedindo:
- A condenação da requerida no pagamento da quantia de 1.681,20€, acrescida de 229,80€ de juros de mora.
Alegou, em síntese, que procede à exploração de parqueamento automóvel na cidade de Ponta Delgada; a requerida estacionou o veículo de matrícula 9…-…-… em vários parques de estacionamento que a requerente explora, sem proceder ao pagamento do tempo de utilização. Descreve os diversos estacionamentos, por montante, dia e local, num total de 1.681,20€.

2- Citada, a requerida deduziu oposição.

3- O processo foi remetido à distribuição pelos juízos locais cíveis de Ponta Delgada, do Tribunal Judicial da Comarca dos Açores.

4- Por despacho de 07/11/20204, foi decidido:
Decisão:
Em face de todo o exposto julgo o presente Tribunal absolutamente incompetente em razão da matéria para conhecer a presente acção e, consequentemente, absolvo a Requerida da instância.
Valor da acção: € 1.987,50 (artigos 296.º, 297.º, n.º 1, e 306.º, do CPC).
Custas pela autora, nos termos do disposto no artigo 527.º do CPC.”

5- Inconformada, a requerente interpôs o presente recurso, apresentando as seguintes CONCLUSÕES:
a) Vem o presente recurso apresentado contra o Douto Despacho A Quo, que decidiu julgar a incompetência material do Juízo Local Cível de Ponta Delgada, para cobrança dos créditos da Autora DR, SA.
b) O princípio do contraditório impõe que, antes de ser proferida a decisão final, seja facultada às partes a discussão de todos os fundamentos de direito em que a ela vá assentar, sendo aquele princípio o instrumento destinado a evitar as decisões surpresa, principalmente, em questões suscitadas oficiosamente pelo tribunal.
c) A não observância do contraditório, no sentido de não se conceder às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre a questão a conhecer, na medida em que possa influir no exame ou decisão da causa, constitui uma nulidade processual, nos termos do art.º 195º, que ora se vem arguida, de acordo com a regra geral prevista no art.º 199º.
d) No âmbito da sua atividade, a A. celebrou um contrato de concessão com a Câmara Municipal de Ponta Delgada, através do qual lhe foi cedida a exploração particular de zonas de estacionamento automóvel na cidade sem cedência de quaisquer poderes de autoridade, ou de disciplina.
e) No seguimento deste contrato de concessão, a DR adquiriu e instalou em vários locais da cidade de Ponta Delgada, dispendiosas máquinas para pagamento dos tempos de estacionamento automóvel, para as quais desenvolveu o necessário software informático.
f) Enquanto utilizadora do veículo automóvel 9…-…-…, a Ré estacionou o mesmo em diversos Parques de Estacionamento que a A. explora comercialmente na cidade de Ponta Delgada, sem, contudo, proceder ao pagamento dos tempos de utilização, num total em dívida de € 1681,20 que a Ré recusa pagar.
g) A natureza jurídica da quantia paga pelos utentes em contrapartida da prestação do serviço de parqueamento é a de um preço e não de um encargo ou contrapartida com natureza fiscal ou tributária.
h) As ações intentadas pela A. contra os proprietários de veículos automóveis inadimplentes, que não tenham procedido ao pagamento dos montantes devidos, não se inserem em prorrogativas de autoridade pública munida de ius imperii, mas sim no âmbito da gestão enquanto entidade privada.
i) A recorrente ao atuar perante terceiros, não se encontra munida de poderes de entidade pública, e sim com poderes de entidade privada, pelo que, e contrariamente ao entendimento do Tribunal “a quo”, o contrato estabelecido entre si e os automobilistas, relativo à utilização dos parqueamentos explorados, é de direito privado, cuja violação é suscetível de fazer o utilizador incorrer em responsabilidade contratual por incumprimento do contrato.
j) A doutrina qualifica este tipo de contrato como uma relação contratual de facto - em virtude de não nascer de negócio jurídico - assente em puras atuações de facto, em que se verifica uma subordinação da situação criada pelo comportamento do utente ao regime jurídico das relações contratuais, com a eventual necessidade de algumas adaptações.
k) O estacionamento remunerado, apresenta-se como uma afloração clara da relevância das relações contratuais de facto e a relação entre o concessionário e o utente resulta de um comportamento típico de confiança.
l) Comportamento de confiança, que não envolve nenhuma declaração de vontade expressa, e sim uma proposta tácita temporária de um espaço de estacionamento, mediante retribuição.
m) Proposta tácita temporária da A., que se transforma num verdadeiro contrato obrigacional, mediante aceitação pura e simples do automobilista, o qual, ao estacionar o seu automóvel nos parques explorados pela A., concorda com os termos de utilização propostos pela A., amplamente publicitados no local.
n) Essencial para se determinar a competência dos tribunais administrativos é, a existência de uma relação jurídica administrativa.
o) O conceito de relação jurídica administrativa pode ser tomado em diversos sentidos, seja numa aceção subjetiva, objetiva, ou funcional, sendo certo que nenhuma das acessões permite englobar a presente situação.
p) Caso contrário, teríamos de entender como públicas quaisquer relações jurídicas, já que todo o interesse de regulação, é em si mesmo um interesse público e nessa medida, tudo seria público, até à mais ténue e simples regulamentação de relações entre particulares, desde que geradoras de
direitos e obrigações suscetíveis de ser impostos coativamente.
q) A DR, SA., não efetua atos de fiscalização, não tendo poderes para autuar coimas ou multas por incumprimento das regras estradais, tarefa que está exclusivamente atribuída às autoridades públicas de fiscalização do espaço rodoviário da cidade.
r) Nos termos do disposto no artigo 2º do DL 146/2014 de 09 de outubro, a atividade de fiscalização incide exclusivamente na aplicação das contraordenações previstas no artigo 71º do Código da Estrada, o qual estabelece as coimas aplicáveis às infrações rodoviárias ali identificadas.
s) Os montantes cobrados pela DR, SA., não consubstanciam a aplicação de quaisquer coimas, nem a empresa processa quaisquer infrações praticadas pelos utentes dos parqueamentos.
t) Verificada a violação da obrigação contratual de pagamento do tempo de imobilização dos seus veículos, nos parqueamentos explorados pela DR, SA., são os automobilistas posteriormente notificados para procederem ao pagamento omitido, sendo então cobrado o tempo máximo de utilização, por falta de referência concreta ao tempo efetivo de utilização.
u) Quaisquer infrações ou coimas que devam ser aplicadas aos automobilistas prevaricadores de regras estradais, ficam a cargo da Autarquia, sem qualquer intervenção ou conexão com a atividade da empresa concessionária.
v) A DR, SA e, ao contrário o que vem referido na douta sentença, nunca atuou em substituição da autarquia, munida de poderes concessionados.
w) Fundamental é que a Recorrente carece, em absoluto, de poderes de autoridade, fiscalização ou ordenação efetiva, apenas podendo registar os incumprimentos de pagamento e tentar recuperar judicialmente, sem acesso direto a um título executivo, os valores que tiverem sido sonegados, em violação da relação contratual de confiança, pelos utentes.
x) Por tudo o que se alegou, mal andou o Tribunal “a quo” ao declarar-se incompetente em razão da matéria, pois, o Tribunal recorrido é o competente, motivo pelo qual foram violados, entre outros, os artigos 96º, al. a), 278º, Nr.1 al. a), 577º al. a) e 578º do CPC, quer o artigo 4º nr.1, al. e) do ETAF, quer ainda o artigo 40º da Lei 62/2013 de 26 de agosto.
TERMOS EM QUE, DEVE O PRESENTE RECURSO SER JULGADO PROCEDENTE, E EM CONSEQUÊNCIA, SER DECLARADA A NULIDADE DA DOUTA DECISÃO A QUO POR PRETERIÇÃO DO CONTRADITÓRIO E, QUANDO ASSIM SE NÃO ENTENDA, SER A DOUTA SENTENÇA RECORRIDA SUBSTITUÍDA POR OUTRA, QUE JULGANDO COMPETENTE O JUÍZO LOCAL CÍVEL DE PONTA DELGADA, ORDENE O PROSSEGUIMENTO DOS AUTOS.

6- Não consta dos autos que tenham sido apresentadas contra-alegações.

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7- Com data de 16/12/2024, foi proferida decisão sumária sobre o mérito do recurso, nos termos dos artºs 652º nº 1, al. c) e 656º do CPC, com o seguinte teor decisório:
III-DECISÃO.
Em face do exposto, decide-se julgar o recurso improcedente e, por consequência confirma-se e mantém-se a decisão sob recurso.
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8- Notificada da decisão sumária, a apelante veio requerer, ao abrigo do art.º 652º nº 3, segunda parte, que sobre a matéria do despacho recaia acórdão.
Invoca, em síntese, que a decisão sumária em causa se socorre de jurisprudência, toda ela anterior à alteração efectuada pela Lei 114/2019, de 12/09, designadamente no art.º 4º nº 4, al. e) do ETAF que determina que “estão… excluídas do âmbito da jurisdição  administrativa e fiscal a apreciação de litígios emergentes das relações de  consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a  respetiva cobrança coerciva”; que a actuação da apelante não se insere numa relação jurídico administrativa e, não actua com poderes de autoridade; no mais, dá por reproduzidos os fundamentos da apelação aos quais, de novo, acrescenta, praticamente copiando, uma decisão sumária deste Tribunal da Relação (8ª Secção), de 17/12/2024, proferida no Proc. 16685/24.0YIPRT.L1 que, segundo refere, decidiu que o tribunal cível é competente para acções de cobrança de dívidas de estacionamento em parques explorados pela apelante.

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II-FUNDAMENTAÇÃO.

1- Objecto do Acórdão.
A questão que se coloca e importa analisar e decidir consiste em saber se:
- Se há fundamento para revogar a sentença, com o consequente reconhecimento da competência material do tribunal a quo e continuação dos autos.

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2- Factualidade Relevante.

Com relevância para a decisão das questões enunciadas, importa ter presente o teor do RELATÓRIO supra.

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3- A Questão Enunciada: A revogação da sentença, com o consequente reconhecimento da competência material do tribunal a quo e continuação dos autos.

A apelante defendeu, nas alegações de recurso, que não actua com poderes de autoridade, nem em substituição de autoridade administrativa (Câmara Municipal) e, acrescentou, no requerimento para intervenção do Colectivo em Conferência, que embora a sua actuação não seja a prestação de Serviços Essenciais, nos termos do art.º 1º nº 2 da Lei 23/96, a sua relação com os utentes do serviço de parqueamento é uma relação de direito privado e, por isso, nos termos do art.º 4º nº 4, al, e) do ETAF, na redacção dada pela Lei 114/2019, de 12/09 - que determina que “estão… excluídas do âmbito da jurisdição  administrativa e fiscal a apreciação de litígios emergentes das relações de  consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a  respetiva cobrança coerciva; - os litígios que possa ter com os utilizadores dos parques de estacionamento estão excluídos da competência dos Tribunais Administrativos.
Vejamos.
Segundo se percebe, a apelante pretende afastar a competência dos tribunais administrativos para dirimir litígios entre ela e os utilizadores dos parques de estacionamento público por ela explorados, baseando-se na aplicação da regra de exclusão da competência dos tribunais administrativos prevista no art.º 4º nº 4, al. e) do ETAF.
Será assim?
O art.º 4º nº 4, al. e) do ETAF estabelece uma norma de exclusão de competência material dos Tribunais Administrativos dos litígios relativos a relações de consumo e de serviços públicos essenciais, determinando que:
4 - Estão igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal:
a) (…);
b) (…);
c) (…);
d) (…);
e) A apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva.”
Como é sabido, a Lei 23/96, de 26/07, conhecida Lei dos Serviços Públicos Essenciais (LSPE) criou, no nosso ordenamento jurídico, alguns mecanismos destinados a proteger o utente de serviços públicos essenciais. E, logo no seu art.º 1º, com epígrafe “Objecto e âmbito” determinou:
1 - A presente lei consagra regras a que deve obedecer a prestação de serviços públicos essenciais em ordem à protecção do utente.
2 - São os seguintes os serviços públicos abrangidos:
a) Serviço de fornecimento de água;
b) Serviço de fornecimento de energia eléctrica;
c) Serviço de fornecimento de gás natural e gases de petróleo liquefeitos canalizados;
d) Serviço de comunicações electrónicas;
e) Serviços postais;
f) Serviço de recolha e tratamento de águas residuais;
g) Serviços de gestão de resíduos sólidos urbanos.
h) Serviço de transporte de passageiros.
3 - Considera-se utente, para os efeitos previstos nesta lei, a pessoa singular ou colectiva a quem o prestador do serviço se obriga a prestá-lo.
4 - Considera-se prestador dos serviços abrangidos pela presente lei toda a entidade pública ou privada que preste ao utente qualquer dos serviços referidos no n.º 2, independentemente da sua natureza jurídica, do título a que o faça ou da existência ou não de contrato de concessão.”
Deste objecto e âmbito traçado pelo legislador, importa ter em atenção, desde logo, os requisitos objectivos de aplicação da LSPE. Assim, relativamente aos requisitos objectivos, o tipo contratual tem por objecto a prestação de serviços, nas palavras de Engrácia Antunes (Direito do Consumo, 2021, pág. 202) “… de interesse económico geral compreendidos no elenco do art.º 1º nº 2…”, isto é, actividades económicas de prestação de serviços de interesse geral e colectivo.
Por outro lado, de entre tais serviços, apenas estão actualmente abrangidos: os serviços de fornecimento de água, de energia eléctrica, de gás natural e gases de petróleo liquefeito canalizados, serviços de comunicações electrónicas, os serviços postais, os serviços de recolha e tratamento de águas residuais e os serviços de gestão de resíduos sólidos urbanos e serviços de transporte de passageiros.
Como bem salienta Engrácia Antunes (Direito do Consumo, cit., pág. 203, nota 393)O elenco legal reveste natureza taxativa, sem prejuízo da possibilidade, de a LSPE ou lei especial virem futuramente a considerar relevantes outros serviços de interesse económico geral…”. Aliás, no mesmo sentido, veja-se Jorge Morais Carvalho (Manual do Direito do Consumo, 7ª edição, 2021, pág. 384) que salienta que não podem ser acrescentados ao elenco legal outros serviços por via interpretativa.
Além disso, os serviços legalmente elencados são apenas relevantes na medida em que originem contratos duradouros, cuja existência e cumprimento se prolonga no tempo mediante prestações contínuas realizadas aos utentes. (Engrácia Antunes, Ob. Cit., pág. 203). Ou nas palavras de Jorge Morais de Carvalho, “… são, sem dúvida, contratos duradouros essenciais à existência da pessoa.” (Manual…, cit., pág. 386).
A ser assim, se os contratos abrangidos pela LSPE são: (i) de enunciação taxativa, e (ii) sem possibilidade de ampliação interpretativa, restará concluir que ao serviço de parqueamento automóvel temporário em parques públicos concessionados à requerente/apelante, não é aplicável a norma de exclusão da competência dos tribunais administrativos prevista no art.º 4º, nº 4, al. e) do ETAF.

Pelo contrário.
Os serviços de utilização de parqueamento temporário explorados pela requerente/apelante, mediante contrato de concessão do Município de Ponta Delgada, estão abrangidos pela norma do art.º 4º, nº 1, al. e) do ETAF.
Com efeito, determina esta norma:
“1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a:
a) (…);
b) (…);
c) (…);
d) (…);
e) Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes;”
Trata-se, na al. e) do nº 1, do art.º 4º do ETAF, da enunciação do critério do contrato submetido a regras de contratação pública.
A propósito deste critério determinativo da competência dos Tribunais Administrativos, repete-se o que foi escrito na decisão sumária, retirado da lição de Mário Aroso de Almeida:
“Tal como antes, a alínea e) do art.º 4 º do ETAF atribui à jurisdição administrativa a competência para dirimir os litígios emergentes dos contratos que a lei submete a regras de contratação pública. A previsão do preceito compreende claramente litígios respeitantes a quaisquer contratos, que não apenas a contratos administrativos, e tanto contratos celebrados por pessoas colectivas de direito público, como contratos celebrados por entidades privadas quando sujeitas a regras de direito público em matéria de procedimentos pré-contratuais (ou seja, quando legalmente qualificadas como entidades adjudicantes, segundo a terminologia do CCP, como agora é explicitado no preceito. (…) A previsão da al. e) do nº 1 do artigo 4º do ETAF possui, contudo, um alcance mais amplo, pois, como foi dito, atribui à jurisdição administrativa a competências para dirimir conflitos emergentes de todos os contrato que a lei submeta a regras de contratação pública, independentemente da questão de saber se a prestação do co-contratante pode condicionar ou subsistir, de forma relevante, a realização das atribuições do contraente público. O critério não é, aqui, na verdade, o do contrato administrativo, mas o do contrato submetido a regras de contratação pública: desde que um contrato seja submetido a regras procedimentais de formação de Direito Administrativo, todas as questões que dele possam vir a emergir, devem ser objecto de uma acção a propor perante os tribunais administrativos, e não perante os tribunais judiciais – isto é, independentemente da sua qualificação ou não como contrato administrativo nos termos do CCP.” (Mário Aroso de Almeida, Manual do Processo Administrativo, 3ª edição, 2017, pág. 168 e seg.). * (sublinhado nosso).
No caso dos autos, a própria apelante reconhece que explora os parques de estacionamento mediante contrato de concessão celebrado com a Câmara Municipal de Ponta Delgada. De resto, ao abrigo do art.º 9º do Regulamento das Zonas de Estacionamento de Duração Limitada de Ponta Delgada (Aviso 4118/2004 de 30/04/2004, DR, II série 128, de 1/06/2004).
Portanto, a esta luz é de aplicar ao litígio em causa nos autos o critério atributivo de competência previsto no art.º 4º nº 1, al. e) do ETAF e, é de afastar a regra de exclusão de competência do art.º 4º nº 4, al. e) do ETAF.
O mesmo é dizer que, a esta vista, competentes para dirimir o litígio em causa nos autos são os Tribunais Administrativos.

Aliás, a jurisprudência, chamada a pronunciar-se sobre questões iguais à dos autos e em que, inclusivamente, foi parte a ora apelante, tem decidido, uniformemente, no mesmo sentido: a competência material para estes litígios pertencer aos Tribunais Administrativos.
E embora se tratem de decisões proferidas anteriormente à alteração introduzida ao art.º 4º nº 4, al. e) do ETAF pela Lei 114/2019, de 12/09 – que, como vimos veio determinar “e) A apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva.” – mantêm actualidade visto que, como se verificou, aquela norma de exclusão da competência dos Tribunais Administrativos não tem aplicação no caso dos autos porque não se trata de Serviços Públicos Essenciais nem o diploma que estabelece quais são esses Serviços Públicos Essenciais admite ampliação por interpretação extensiva.
Por ser assim, volta a enunciar-se essa jurisprudência.
- TRL de 25/05/2010 (Proc. 2011, Anabela Calafate):
I – Ao cobrar as taxas pelo estacionamento dos veículos na via pública e ao proceder à fiscalização do cumprimento das regras de estacionamento fixadas no regulamento municipal, podendo até desencadear o procedimento para bloqueamento e remoção dos veículos, a concessionária está a agir no uso de poderes de autoridade em que foi investida através dos contratos de concessão, a fim de prosseguir, no lugar da autarquia, um fim de interesse público e que é o de facultar maior disponibilidade para o estacionamento e fluidez de circulação rodoviária.
II – Nos termos das disposições conjugadas dos art.º 1º e 4º nº 1 al f) do ETAF, são os tribunais administrativos os competentes para conhecer da questão relativa à cobrança da taxa sancionatória diária pelo estacionamento não pago pela recorrida à concessionária.”
- TRL de 20/01/2011 (Proc. 918, António Valente):
Celebrado um contrato de concessão entre a Câmara Municipal de --- e a autora D---, contrato esse de direito público, através do qual o município, munido de jus imperii, adjudicou a esta, a concessão, exploração, gestão e manutenção dos estacionamentos de duração limitada na cidade de --- – deliberação camarária/actos de gestão corrente é da competência dos tribunais administrativos a apreciação da acção de responsabilidade civil contratual, relativa ao contrato celebrado entre a concessionária e o réu que utilizou o estacionamento e não efectuou o pagamento da taxa de utilização”.
- TRL, de 07/10/2010 (Proc. 1763, Carlos Marinho):
“1. É redutora e desfocada a tentativa de afunilar e converter nas emanações meramente jus   privadas a complexa relação constituída através da concessão de exploração de estacionamento de duração limitada;
2. Até em termos semânticos, a palavra «concessão» aponta para as duas camadas da intervenção, ou seja, a externa, do concessionário, e a interna e medular, do concedente, já que significa "acto ou efeito de conceder; permissão; autorização; privilégio; favor; mercê". Num tal contexto, nunca o concessionário se consegue libertar dos contornos e conteúdos do que lhe é atribuído;
3. Em tal situação, vários conteúdos ultrapassam as meras intervenções privadas e vão das interdições ao vero exercício de actividade sancionatória e à regulação unilateral e não negociada, antes exercida em nome da legitimidade democrática e de um poder de soberania de natureza executiva;
4. Se o utente nem estabelece um contrato comum e apenas usa o espaço de estacionamento com determinados efeitos jurídicos inerentes pré-estabelecidos em Regulamento Municipal e se a entidade que cobra algo que é muito mais uma taxa que um preço tem por detrás de si um conjunto de mecanismos e regras impositivas emanadas de um órgão da administração local e não de um qualquer processo de formação da vontade negocial, não se vê como se possa falar em relação jurídica privadas;
5. O objecto de uma acção pela qual se visa obter o pagamento de valores correspondentes a tal estacionamento brota no contexto de uma relação jurídica materialmente administrativa, o que não é desviado pela atribuição de faculdades de intervenção a empresa privada, já que o estatuto que regula os contornos da actividade cedida se submetem, manifestamente, a um regime substantivo de direito público;
6. Nos termos do disposto na alínea f) do n.º 1 do art.º 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a avaliação de negócio jurídico relativo a estacionamento cujas prestações se pretende cobrar coercivamente, porquanto o mesmo é regulado por normas de direito público que revelam a autoridade do Estado e a sua força reguladora e impositiva”.
- STJ, de 12/10/2010 (Proc. 1984, Moreira Alves):
 “I - Sendo a autora concessionária de um serviço reconhecidamente de interesse público, actua, nessa qualidade, em “substituição” da autarquia com os poderes inerentes que lhe foram concessionados.
II - Os contratos ou acordos tácitos que se concretizam sempre que os utentes utilizam para estacionamento os espaços públicos concessionados à autora, tanto esta como os referidos utentes estão submetidos às regras do Regulamento Municipal que disciplina aqueles estacionamentos, e só por isso tem a autora direito a cobrar as taxas de utilização fixadas no dito diploma.
III - Contendo tal Regulamento normas de direito público, que estabelecem o regime substantivo de tais contratos ou acordos tácitos, a execução de tais contratos cai no âmbito do disposto no art.º 4.º, al. f), do ETAF.
IV - Sendo, por conseguinte, do foro administrativo a competência material para apreciar o litígio a que se refere os autos.”
- Tribunal de Conflitos, nº 21/2010, de 25/11/2010 (Adérito Santos):
I - A competência material do tribunal afere-se pela relação jurídica controvertida, tal como é configurada na petição inicial.
II - Nos termos do artigo 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, os tribunais administrativos são os competentes para o julgamento das acções que tenham por objecto dirimir litígios emergentes de ralações jurídicas administrativas.
III - Por relações jurídicas administrativas devem entender-se aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de interesse público legalmente definido.
IV - Assim, compete à jurisdição administrativa conhecer de uma acção especial para cumprimento de obrigações emergentes de contrato, na qual a autora, concessionária da exploração e manutenção de parques de estacionamento em espaços públicos, em conformidade com determinado regulamento municipal, pede a condenação da ré no pagamento de quantias, devidas pela utilização desses parques.”
- Tribunal de Conflitos, nº 5/2010, de 09/06/2010 (Oliveira Mendes):
I - É contrato administrativo um contrato através do qual um município de concede uma empresa provada a exploração, gestão e manutenção de espaços públicos destinados ao estacionamento de veículos, bem como a instalação e exploração de parquímetros, contrato segundo o qual os utilizadores daqueles espaços de estacionamento ficam obrigados ao pagamento de taxa, cujo montante varia em função do tempo de utilização.
II - Cabe aos tribunais administrativos conhecer de acção em que se pretende obter o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes desse contrato.
- Tribunal de Conflitos, nº 24/2010, de 02/03/2011 (Maia Costa), igualmente publicado em www.dgsi.pt, sem sumário do Relator.

Em face do exposto resta concluir que é de manter a decisão singular proferida nos autos a 16/12/2024.

O recurso improcede.

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III-DECISÃO.

Em face do exposto, acordam, em Conferência, neste colectivo da 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, manter a decisão singular do relator e, decide-se julgar o recurso improcedente e, por consequência confirma-se e mantém-se a sentença sob recurso.

Custas na instância de recurso, pela apelante.

Lisboa, 23/01/2024
Adeodato Brotas
Cláudia Barata
Gabriela de Fátima Marques