Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
117793/18.5YIPRT-A.L1-7
Relator: CONCEIÇÃO SAAVEDRA
Descritores: MEIO DE PROVA
DECLARAÇÕES DE PARTE
ADMISSIBILIDADE
INQUIRIÇÃO DE TESTEMUNHA
FORMA
DESPACHO DE MERO EXPEDIENTE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/26/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I- O novo meio de prova por declarações de parte consagrado no art. 466 do C.P.C. de 2013, ganhando particular interesse em matérias do foro íntimo ou pessoal dos litigantes, não presenciadas por terceiros e, em princípio, de mais difícil demonstração, não se restringe, todavia, à prova nesses casos;
II- Como meio de prova que é e inscrita no âmbito da livre apreciação pelo tribunal, a validade das declarações de parte não pode ser desconsiderada antecipadamente sob o pretexto da sua pressuposta ou previsível desnecessidade ou desinteresse, seja porque o juiz valoriza, em particular e à partida, outros meios de prova, seja porque formou já a sua convicção face à prova produzida;
III- Assistindo à parte o direito de provar os factos por si alegados e que sustentam a sua pretensão, ou de fazer a contraprova dos factos contra si invocados, é à mesma que, salvas as restrições de inadmissibilidade legal, incumbe eleger os meios de prova adequados à demonstração com que está onerada ou que, de algum modo, convém à prossecução dos seus interesses;
IV- O despacho que determina a inquirição de uma testemunha de forma não exactamente coincidente com a preconizada na lei não tem um carácter meramente procedimental, interferindo no conflito de interesses entre as partes, não dispensando, por isso, a respetiva fundamentação, designadamente no que se refere às exigências impostas à parte para assegurar o depoimento;
V- Não se afigura razoável onerar a parte que requereu a inquirição de testemunha residente no estrangeiro com a realização das diligências necessárias à comunicação por via de uma concreta solução de videoconferência indicada pelo Tribunal, quando, à partida, se desconhece se os meios tecnológicos necessários existem na morada indicada e/ou da viabilidade de qualquer contacto preliminar entre a parte e a referida testemunha de modo a providenciar por esses meios;
VI- Cumpre ao Tribunal obter previamente o acordo das partes para a utilização de qualquer meio tecnológico expedito, fiável e disponível em concreto para inquirição da testemunha arrolada, sem prejuízo, na falta daquela alternativa, da sua audição por videoconferência a solicitar às entidades estrangeiras competentes.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.

I- Relatório:
Intentou A [ ....,Lda], contra B [ ....Consultores em Comunicação, S.A.], providência de injunção, pedindo o pagamento da quantia global de € 31.913,50, incluindo a taxa de justiça suportada no montante de € 153,00, sendo € 22.154,00 o valor de capital não pago pela Ré, respeitante ao remanescente da fatura nº 131/2012, por serviços que a A. lhe prestou de consultoria artística e produção de espetáculo de música em inauguração de fábrica de gás liquefeito em Agosto de 2012, e juros acrescidos de € 9.606,50.
A Ré deduziu oposição, excecionando a prescrição dos juros e impugnando a factualidade alegada. Sustenta, no essencial, que não deve o montante indicado pois ficou acordado um encontro de contas entre as partes no âmbito da fatura reclamada, na sequência, por sua vez, da regularização das contas entre a Ré e a Puromix, sociedade que representava a Ré em diversos projetos em Angola e que, materialmente, se confundia com a A., sendo irmãos os sócios e principais responsáveis de cada uma delas. Conclui que o remanescente valor daquela fatura se deve considerar compensado com as responsabilidades da sociedade de direito angolano Puromix para com a Ré, conforme assumido e aceite pela A. através do seu gerente, principal sócio e responsável. Pede a procedência da exceção e a improcedência da causa.
A convite do Tribunal, e ao abrigo do nº 3 do art. 10 do DL nº 62/2013, de 10.5, a A. apresentou petição inicial aperfeiçoada e a Ré contestou a mesma, respondendo ainda a A. à matéria de exceção.
No final da petição inicial aperfeiçoada, requereu a A. o depoimento de parte do legal representante da Ré, António ......, à matéria de facto que indica, e declarações de parte do legal representante da A., Paulo ......, à matéria que também indica.
Por sua vez, no final da contestação à petição inicial aperfeiçoada, requereu a Ré o depoimento de parte do gerente da A., Paulo ....., à matéria que indica, e declarações de parte do Presidente do Conselho de Administração da Ré, António ......, à matéria que também refere. Mais arrolou como testemunha Vicente ......, empresário, residente em Luanda, República de Angola, A inquirir por videoconferência, a solicitar à Justiça da República de Angola”.
Em 29.6.2021, foi dispensada a audiência prévia e elaborado despacho saneador que conferiu a validade formal da instância, mais se identificando o objeto do litígio e enunciando os temas da prova. Já no que se refere aos meios de prova, decidiu-se quanto às declarações de parte requeridas do seguinte modo:
Declarações de parte requeridas pela Autora e pela Ré
O Código de Processo Civil introduziu como meio de prova autónoma, a prova por declarações de parte. O art. 466°, n 1 do Código de Processo Civil remete em termos formais para o regime do depoimento de parte, indo ao encontro do seu regime substancial, quando afirma que o Tribunal valora livremente as declarações de parte salvo se as mesmas constituírem confissão – nºs 2 e 3.
Este meio de prova dirige-se primordialmente às situações de facto em que apenas tenham tido intervenção as próprias partes. Com esta medida pretende-se obviar às dificuldades inerentes à prova de factos relativamente aos quais se revela, em regra, inviável ou difícil a produção de outro meio de prova — cf. António Abrantes Geraldes — Novo Processo Civil — Caderno II – CEJ, Nov — 2013, pág. 17.
Acresce que, não é um direito potestativo da parte, a prestação de declarações, antes cabendo ao julgador aferir da necessidade previsível da utilidade dessa pretensão, sob pena de o depoimento se transformar num mero desabafo ou tempo de antena.
O que pretende a parte afirmar que não tenha já feito no respectivo articulado?
O que pretende a parte provar que não possa ser provado por outro meio idóneo, seja prova documental, seja testemunhal arrolada pelo próprio?
Acresce que, compulsada a petição inicial e a contestação não se vislumbra – atentos os requisitos de admissibilidade – a pertinência da produção deste meio de prova em sede dos presentes autos, sendo que, o pretendido pelas partes se mostra afinal num repetir o que já se mostra escrito, inviabilizando, desde logo, a prova a realizar.
Quer os factos pertinentes para a decisão da causa quer os instrumentais são passíveis de prova por documentos e por depoimento de testemunhas. Repare-se que, em momento algum, se mostra alegada a falta de outro meio de prova para a demonstração dos factos controvertidos, nos presentes autos.
Ora, a interpretação do preceito legal em causa deverá ter um âmbito restritivo, tal como acima referimos, não se vislumbrando como pertinente a produção de declarações de parte da Autora, nem da Ré nos presentes autos,
Assim, face ao exposto, indeferem-se as declarações de parte da Autora e da Ré.”
Por sua vez, mais adiante no mesmo despacho, ainda quanto aos meios de prova e antes de se designar data para a realização da audiência de discussão e julgamento, decidiu-se:
“A testemunha arrolada pela Ré será inquirida via webex, devendo a parte proceder às diligências necessárias à comunicação.
Notifique.”
Inconformada, interpôs recurso a Ré, culminando as alegações por si apresentadas com as seguintes conclusões que se transcrevem:

A) Tendo a R., ora Apelante, em sede de oposição a requerimento de injunção contra si dirigido pela A., aqui Apelada, requerido declarações de parte do Presidente do seu Conselho de Administração, indicando concretamente a matéria a que pretendia que fossem prestadas, só poderiam estas ser recusadas, atento o disposto no n.° 1 do art. 466°, do Cód. Proc. Civil, e não se colocando a questão da oportunidade, se do requerimento resultasse que não se tratava de factos em que o declarante tivesse intervindo pessoalmente ou de que tivesse conhecimento directo ou se tais factos já estivessem plenamente provados ou só admitissem outro meio de prova legalmente previsto, ou ainda se o Tribunal tivesse indícios de que a prova requerida configurava mero expediente dilatório.
B) Não sendo esse o caso e antes resultando dos factos a que foi indicado que o declarante neles terá intervindo pessoalmente ou deles terá conhecimento directo, não podem tais declarações ser recusadas com base num juízo ex ante de prognose quanto ao seu teor e pertinência, os quais só poderão ser aferidos após a produção das declarações.
C) Assim, ao indeferir as declarações de parte oportunamente requeridas pela R., ora Apelante, apesar destas se enquadrarem nos requisitos legais para a sua admissão, e apenas com base num exercício prospectivo quanto ao seu interesse e relevância, violou o despacho recorrido o disposto no n.° 1 do art. 466°, do Cód. Proc. Civil, pelo que deve ser anulado e substituído por outro que tais declarações de parte admita.
D) O despacho impugnado, ao indeferir a pretensão da Apelante de que a testemunha por si indicada e residente em Angola, fosse inquirida por videoconferência a solicitar à Justiça daquele país, e determinar que aquela fosse antes inquirida via Webex, impondo à R. que providenciasse pelos meios necessários para o efeito, sem indicar os fundamentos de facto e/ou de Direito de tal decisão, incorreu na nulidade prevista na alínea b) do n.° 1 do art. 615°, do Cód. Proc. Civil, aplicável ex vi do n.° 3 do art. 613°, do mesmo diploma, a qual deve ser declarada, com as legais consequências.
E) Ainda que assim se não entenda, deverá o despacho impetrado, no segmento assinalado na Conclusão anterior, ser anulado, por violar o disposto no n.° 5 do art. 502°, do Cód. Proc. Civil, uma vez que o Tribunal não pode impor à parte que arrola a testemunha residente no estrangeiro que garanta os meios tecnológicos para que esta, em tempo real, e por meio visual e sonoro, comunique com o Tribunal durante a audiência de julgamento, antes competindo ao Tribunal assegurar-se de que a testemunha, no seu local de residência, dispõe de tais meios tecnológicos.”
Pede a procedência do recurso.
Não se mostram oferecidas contra-alegações.
O recurso foi admitido como apelação, com subida em separado e efeito meramente devolutivo.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
*
II- Fundamentos de Facto:
A factualidade a ponderar é a que acima consta do relatório.
*
III- Fundamentos de Direito:
São as conclusões que delimitam o objeto do recurso (art. 635, nº 4, do C.P.C.). Por outro lado, não deve o tribunal de recurso conhecer de questões que não tenham sido suscitadas no tribunal recorrido e de que, por isso, este não cuidou nem tinha que cuidar, a não ser que sejam de conhecimento oficioso.
Assim, e de acordo com as conclusões acima transcritas, cumpre apreciar:
- se devem ser admitidas as declarações de parte do Presidente do Conselho de Administração da Ré, conforme por esta requerido;
- da nulidade da decisão quanto à forma inquirição da testemunha indicada pela Ré e/ou da sua substituição por outra.
A) Das declarações de parte do Presidente do Conselho de Administração da Ré, conforme por esta requerido:
A apelante/Ré insurge-se contra a decisão acima transcrita que indeferiu as declarações de parte do Presidente do Conselho de Administração da Ré, António ......, à matéria que indica, e que requerera no final da contestação por si deduzida à petição inicial aperfeiçoada.
Vejamos.
O Código de Processo Civil de 2013 veio estabelecer no seu art. 466, sob a epígrafe “Declarações de parte”, que: “1. As partes podem requerer, até ao início das alegações orais em 1.ª instância, a prestação de declarações sobre factos em que tenham intervindo pessoalmente ou de que tenham conhecimento directo. 2. Às declarações das partes aplica-se o disposto no artigo 417.º e ainda, com as necessárias adaptações, o estabelecido na secção anterior. 3. O tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão.”
Trata-se de uma disposição inovadora que visa um tipo de prova diverso do previsto na Secção anterior que alude à prova por confissão e ao depoimento de parte (arts. 452 a 465 do C.P.C.).
O depoimento de parte continua a constituir o meio técnico através do qual se pretende conseguir que o depoente reconheça a realidade de um facto que lhe é desfavorável, de acordo com o disposto nos arts. 352 e seguintes do C.C. e 452 e seguintes do C.P.C.. De resto, como bem resulta do título da Secção onde se inserem os normativos citados do Código do Processo Civil, o depoimento de parte visa a prova por confissão.
Já as declarações de parte serão livremente apreciadas pelo tribunal quando não constituam confissão (nº 3 do art. 466), e revelam especial utilidade para a decisão quando versem sobre factos que ocorreram entre as partes, sem a presença de terceiros intervenientes([1]).
Em todo o caso, “tais declarações devem ser encaradas como qualquer outro momento de recolha de prova, à qual assistem os advogados das partes com plena liberdade ao nível do exercício do contraditório, não se justificando um tratamento diverso, designadamente daquele que têm os depoimentos de parte oficiosamente determinados pelo Tribunal já em sede de julgamento.”([2])
Este novo meio de prova por declarações de parte instituído no C.P.C. de 2013 veio responder a uma corrente que se vinha densificando no sentido de considerar e valorizar o depoimento de parte ainda que sem carácter confessório e de livre apreciação pelo tribunal, desde que este viesse a revelar um efeito útil para a descoberta da verdade([3]).
Concluiu-se, designadamente, a tal propósito no Ac. da RL de 29.3.2011([4]): “Nada existe na Lei que impeça o tribunal de admitir um depoimento da parte sobre factos que lhe não sejam desfavoráveis, embora nenhum efeito relevante se possa retirar do mesmo, para além de um eventual esclarecimento suplementar, o que sempre seria admissível ao abrigo do principio da cooperação.”
O atual art. 466 do C.P.C. complementa, pois, o novo art. 452, nº 1, do mesmo Código([5]), que, reproduzindo o anterior art. 552 do C.P.C. de 1961, acrescenta agora que a comparência pessoal das partes ordenada pelo tribunal pode destinar-se, não apenas à prestação de depoimento de parte, mas também à prestação de informações ou esclarecimentos sobre factos que interessem à decisão da causa.
Tais preceitos concertam-se ainda, por último, com o art. 411 do C.P.C. que, sob a epígrafe, “Princípio do inquisitório”, estabelece que “Incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.”
Está, por isso, plasmado hoje na lei processual que o tribunal apreciará livremente o depoimento de parte não confessório, podendo as partes requerer, até ao início das alegações orais em 1ª instância, a prestação de declarações sobre factos em que tenham intervindo pessoalmente ou de que tenham conhecimento direto, e que também o tribunal o pode determinar oficiosamente([6]).
Assim, como meio de prova que é e inscrita no âmbito da livre apreciação pelo tribunal, a validade das declarações de parte não pode ser desconsiderada antecipadamente sob o pretexto da sua pressuposta ou previsível desnecessidade ou desinteresse, seja porque o juiz valoriza, em particular e à partida, outros meios de prova, seja porque formou já a sua convicção face à prova produzida.
Conforme salienta Luís Pires de Sousa([7]), apreciando desenvolvidamente o tema: “(…) o juiz não pode rejeitar o requerimento de prestação de declarações de parte pela simples razão de entender que o mesmo é desnecessário face à prova já produzida.
O que o juiz pode fazer é rejeitar a prestação de declarações de parte por inadmissibilidade legal, o que pode ocorrer em duas situações:
(i) Quando os factos sobre que a parte se proponha prestar declarações já estejam plenamente provados por documento ou por outro meio de prova com força probatória plena (Art. 393.2. do Código Civil, por analogia);
(ii) Quando os factos sobre que a parte se proponha prestar declarações beneficiem de prova pleníssima, designadamente os casos de presunções legais inilidíveis, casos em que não é admissível prova em contrário.
(…).”
Estamos, deste modo, perante um meio de prova que o tribunal aprecia livremente, o que deve ser entendido no mesmo plano de outros meios de prova que mereçam idêntica apreciação, não se afigurando possível classificá-lo, aprioristicamente, como meio de prova insuficiente ou meramente subsidiário.
Tal como se defendeu, aliás, no Ac. do STJ de 7.2.2019([8]), o nº 3 do art. 466 do C.P.C. não dá cobertura à exigência de corroboração por outros meios de prova, resumindo-se no respetivo  sumário: “Sendo as declarações de parte de livre apreciação pelo tribunal, podem determinar, por si sós, a convicção do julgador, sem necessidade de corroboração por outros meios de prova.”
Finalmente, e quanto à valoração das declarações de parte, diz-nos ainda Luís Filipe Pires de Sousa([9]): “(…) Num sistema processual civil cuja bússola é a procura da verdade material dos enunciados fáticos trazidos a juízo, a aferição de uma prova sujeita a livre apreciação não pode estar condicionada a máximas abstratas pré-assumidas quanto à sua (pouca ou muita) credibilidade mesmo que se trate das declarações de parte. Se alguma pré-assunção há a fazer é a de que as declarações de parte estão, ab initio, no mesmo nível que os demais meios de prova livremente valoráveis. A aferição da credibilidade final de cada meio de prova é única, irrepetível, e deve ser construída pelo juiz segundo as particularidades de cada caso segundo critérios de racionalidade.
Sintetizando, diremos que: (i) a degradação antecipada do valor probatório das declarações de parte não tem fundamento legal bastante, evidenciando um retrocesso para raciocínios típicos e obsoletos de prova legal; (ii) os critérios de valoração das declarações de parte coincidem essencialmente com os parâmetros de valoração da prova testemunhal, havendo apenas que hierarquizá-los diversamente.
Em última instância, nada obsta a que as declarações de parte constituam o único arrimo para dar certo facto como provado desde que as mesmas logrem alcançar o standard de prova exigível para o concreto litígio em apreciação.(…).”
No caso em análise, a Ré havia requerido a tomada de declarações do respetivo Presidente do Conselho de Administração, António ....., aos factos alegados nos artigos 8º a 19º e 21º da contestação deduzida à p.i. aperfeiçoada.
Nos aludidos artigos a Ré descreve um negócio envolvendo as partes e uma terceira sociedade angolana, através de contatos pessoais entre os respetivos responsáveis, negócio esse que, na tese da defesa, explicará não ser devida a quantia reclamada pela A. nos autos. Refere-se, aliás, à concreta posição assumida pelo referido Presidente do Conselho de Administração perante o gerente da A. e a sua participação em conversações mantidas entre ambos, do que decorre que estarão em causa factos em que o mesmo interveio pessoalmente e de que terá conhecimento direto.
O Tribunal indeferiu, nos termos acima transcritos, as declarações de parte justificando, em súmula, que os factos em questão são passíveis de prova por documentos e testemunhas e que não foi alegada a falta de outro meio de prova, concluindo pela sua falta de pertinência no caso concreto.
Não podemos concordar, pelas razões já indicadas, com o entendimento seguido nem com a afirmação feita de que cabe ao julgador aferir da necessidade previsível da utilidade da prestação de declarações de parte.
Como já defendemos no Ac. desta Relação de 29.4.2014([10]), se as declarações de parte assumem particular interesse em matérias do foro íntimo ou pessoal dos litigantes, não presenciadas por terceiros e, em princípio, de mais difícil demonstração, a lei não restringe, todavia, a sua admissão a esses casos, antes estabelecendo como requisito de admissibilidade, no que respeita à incidência, que as declarações da parte respeitem a factos em que o litigante interveio pessoalmente ou de que teve conhecimento direto.
Como referimos no mencionado Acordão, estamos no âmbito mais amplo do direito que assiste à parte de provar os factos por si alegados e que sustentam a sua pretensão, ou de fazer a contraprova dos factos contra si invocados, no quadro do direito de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efetiva (art. 20 da C.R.P.), pelo que, nessa medida, e salvas as restrições de inadmissibilidade legal, é a cada uma das partes que incumbe eleger os meios de prova adequados à demonstração com que está onerada ou que, de algum modo, convém à prossecução dos seus interesses.
Por conseguinte, as limitações a impor aos meios de prova utilizáveis em cada caso devem mostrar-se “materialmente justificadas e respeitadoras do princípio da proporcionalidade”([11]).
Encontra-se, pois, verificada, no caso, a previsão do art. 466 do C.P.C., dado que a Ré requereu, em tempo, a prestação de declarações por parte do respetivo Presidente do Conselho de Administração identificando a concreta matéria objeto do depoimento de que este, face ao alegado, terá conhecimento direto.
Estando em causa um meio de prova ao alcance dos litigantes que a lei expressamente consagra (art. 466 do C.P.C.), e porque verificados os necessários requisitos de admissibilidade, motivo válido não se vislumbra para a sua rejeição.
Assim sendo, não pode manter-se o despacho recorrido que indeferiu as declarações de parte do Presidente do Conselho de Administração da Ré que a mesma requerera.  
B) Da nulidade da decisão quanto à forma inquirição da testemunha indicada pela Ré e/ou da sua substituição por outra:
No final da sua contestação à petição inicial aperfeiçoada, a Ré indicou, sob a menção “Prova testemunhal”:
A inquirir por videoconferência, a solicitar à Justiça da República de Angola:
Vicente ......, empresário, residente na Rua Eduardo Mondelane, nº ....., Ingombotas, em Luanda, República de Angola”.
Ainda no referido despacho de 29.6.2021, decidiu-se a propósito:
“A testemunha arrolada pela Ré será inquirida via webex, devendo a parte proceder às diligências necessárias à comunicação.
Notifique.”
A apelante insurge-se, sustentando, em súmula, que tal despacho é nulo por falta de fundamentação, nos termos do art. 615, nº 1, al. b), do C.P.C., e que, mesmo assim não se entendendo, deve o mesmo ser revogado por violar o disposto no nº 5 do art. 502 do C.P.C., uma vez que o Tribunal não pode impor à parte que arrola a testemunha residente no estrangeiro que garanta os meios tecnológicos para que esta, em tempo real, e por meio visual e sonoro, comunique com o Tribunal durante a audiência de julgamento, antes competindo ao Tribunal assegurar-se de que a testemunha, no seu local de residência, dispõe de tais meios tecnológicos.
Conforme desenvolve ainda no texto da alegação, deve ser proferida decisão que determine que o Tribunal tome as providências adequadas a aferir da existência dos meios tecnológicos adequados no local de residência da testemunha, caso entenda não aceitar a sua requerida inquirição por videoconferência através da Justiça da República de Angola.
Analisando.
As nulidades da decisão previstas no art. 615 do C.P.C. constituem deficiências que não podem confundir-se com o erro de julgamento.
Há, designadamente, nulidade da sentença, quando esta “Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão” (al. b) do nº 1 do art. 615).
A razão de ser da sanção prevista é a circunstância da motivação, quer de facto quer de direito, constituir pilar essencial de uma qualquer decisão, sendo a falta de fundamentação que motiva a nulidade a respetiva omissão absoluta e não apenas a fundamentação deficiente([12]).
O dever de fundamentação traduz-se, assim, na explicitação dos factos e das razões de direito em que se baseia a decisão judicial e que a justificam, sendo que tal dever se encontra expressamente consagrado no art. 205 da Constituição da República Portuguesa e no art. 154 do C.P.C..
Assim, estabelece o art. 205, nº 1, da C.R.P., que: “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.”
Dispõe, por sua vez, o art. 154 do C.P.C., que: “1. As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas. 2. A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade.”
Estabelece ainda o art. 152, nº 4, do mesmo C.P.C., que: “Os despachos de mero expediente destinam-se a prover ao andamento regular do processo, sem interferir no conflito de interesses entre as partes; consideram-se proferidos no uso legal de um poder discricionário os despachos que decidam matérias confiadas ao prudente arbítrio do julgador.”
Assim, os despachos de mero expediente – de que constitui exemplo o que designa a data para a realização de uma diligência – são inócuos do ponto de vista da decisão, julgamento, aceitação ou reconhecimento do direito adquirido, tendo por finalidade apenas prover ao andamento regular do processo e pressuposto necessário não interferirem no conflito de interesses entre as partes, nos mesmos se dispensando o dever de fundamentação (art. 205, nº 1, da C.R.P.)([13]).
Em todo o caso, tal dever, quando exista, deverá ser ajustado, na sua exigência e detalhe, à complexidade do caso e à natureza da decisão, como no campo dos despachos interlocutórios.
O despacho aqui em questão, ao determinar a inquirição de uma testemunha de forma não exatamente coincidente com a preconizada na lei (cfr. art. 502, nº 5, do C.P.C., na versão do DL nº 97/2019, de 26.7) não tem um caráter meramente procedimental, interferindo no conflito de interesses entre as partes.
Nestas circunstâncias, competia ao Tribunal justificar minimamente o ordenado, ainda que sem grande desenvolvimento, designadamente no que se refere às exigências impostas à parte para assegurar o depoimento, pelo que a referida decisão viola o disposto nos arts. 154 do C.P.C. e 205 da C.R.P., sendo nula, nos termos dos arts. 615, nº 1, al. b), e 613, nº 3, do C.P.C., como defende a recorrente.
Todavia, compete a esta Relação sanar o vício, não obstando a dita nulidade à apreciação do mérito do recurso nesta parte (cfr. art. 665, nº 1, do C.P.C.).
Isto é, verificando-se a nulidade da referida decisão e cumprindo a esta Relação prosseguir com a correção do vício, passemos à apreciação de mérito.
Na decisão recorrida ordenou-se a inquirição da testemunha residente em Angola via webex, determinando-se que a Ré deveria proceder às diligências necessárias à comunicação.
Dispõe o nº 5 do art. 502, nº 5, do C.P.C., na versão do DL nº 97/2019, de 26.7, que: “Sem prejuízo do disposto em instrumentos internacionais ou europeus, as testemunhas residentes no estrangeiro são inquiridas através de equipamento tecnológico que permita a comunicação, por meio visual e sonoro, em tempo real, sempre que no local da sua residência existam os meios tecnológicos necessários.”
Como assinala a apelante, o referido dispositivo não estabelece aquela específica solução de videoconferência nem que seja a parte que arrola a testemunha a assegurar que tais meios serão disponibilizados, designadamente no local da residência da pessoa a inquirir.
Tal mostra-se, aliás, especialmente difícil no caso concreto, em que a inquirição terá lugar em Luanda, Angola, onde se desconhece da viabilidade prática daquela solução, como assinala a apelante.
Acresce que a pessoa a inquirir, de acordo com os articulados, será o gerente da angolana Puromix, irmão do gerente da A., sociedade que a Ré invoca estar envolvida no acordo que justificará a dispensa do pagamento reclamado nos autos.
Em anotação ao art. 502 do C.P.C., ainda que na versão da Lei nº 40-A/16, de 22.12 (sem relevância para o caso), dizem António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa([14]): “(…) Numa era de globalização tecnológica e de mobilidade permanente de mão de obra, não faz sentido que a inquirição de testemunhas residentes no estrangeiro continue a constituir factor de acrescida morosidade na conclusão dos processos. Nessa medida, ao abrigo do disposto no art. 6º, nº 1, deverá o juiz diligenciar pela obtenção do assentimento das partes (arts. 3º, nº 3, 7º, nº 1, e 415º) tendo em vista a agilização da inquirição das testemunhas por meios tecnológicos fiáveis, designadamente por Skype. Esta agilização não interfere no direito das partes, que continuam a poder deduzir todos os incidentes e formular instâncias perante tal testemunha. Cremos que a alteração deste preceito, cuja epígrafe passou a ser “Inquirição por meio tecnológico”, conflui no sentido desta agilização.”
Concordamos que, na atualidade, as opções da moderna tecnologia devem estar ao serviço de uma justiça célere e que a audição de testemunhas no estrangeiro não deve contribuir para indesejáveis atrasos no desenrolar do processo. Essencial é que tais meios sejam fiáveis e que estejam efetivamente disponíveis no local da residência do depoente, concordando as partes na sua utilização em concreto.
Não se afigura, assim, razoável onerar a parte que requereu a inquirição no estrangeiro, neste caso em particular, com a realização das diligências necessárias à comunicação por via de uma concreta solução indicada pelo Tribunal, quando, à partida, se desconhece se os meios tecnológicos necessários existem na morada indicada em Luanda e/ou da viabilidade de qualquer contacto preliminar entre a Ré e a referida testemunha de modo a providenciar por esses meios.
Cumprirá, pois, ao Tribunal, como referem os autores acima citados, e ao abrigo dos arts. 3, nº 3, 6, nº 1, 7, nº 1, e 415, todos do C.P.C., obter previamente o acordo das partes para a utilização de qualquer meio tecnológico expedito, fiável e disponível em concreto para inquirição da testemunha arrolada, sem prejuízo, na falta daquela alternativa, da sua audição por videoconferência a solicitar às entidades competentes da República de Angola, como fora requerido.
Donde, não pode também manter-se neste segmento o despacho recorrido.
*
IV- Decisão:
Termos em que e face do exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente a apelação e, em consequência:
- revogam o despacho recorrido que indeferiu a tomada de declarações de parte do Presidente do Conselho de Administração da Ré, António ......., mais determinando a admissão do referido meio de prova;
- revogam o despacho recorrido que ordenou a inquirição da testemunha indicada pela Ré e residente em Angola nos moldes indicados, determinando que o Tribunal obtenha previamente o acordo das partes para a utilização de qualquer meio tecnológico expedito, fiável e disponível em concreto para inquirição da mesma, sem prejuízo, na falta daquela alternativa, da sua audição por videoconferência a solicitar às entidades competentes da República de Angola.
Sem custas.
Notifique.
*
Lisboa, 26.4.2022
Maria da Conceição Saavedra
Cristina Coelho                    
Edgar Taborda Lopes
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[1] Abílio Neto, “Novo Código de Processo Civil- Lei nº 41/2013, Anotado”, Junho de 2013, pág. 169.
[2] “Audiência de julgamento no projecto do Código de Processo Civil (ainda em discussão no Parlamento)”, Comunicação publicada em www.cej.mj.pt.
[3] Ver, por todos, o Ac. da RG de 19.5.2011, Proc. nº 1498/08.4TVLSB.G1, em www.dgsi.pt, bem como a doutrina e jurisprudência no mesmo citadas. Ver, ainda, o estudo de João Paulo Remédio Marques, “A Aquisição e a Valoração Probatória de Factos (Des)favoráveis ao Depoente ou à Parte Chamada a Prestar Informações ou Esclarecimentos”, Revista “Julgar”, nº 16, 2012, págs. 137 e ss..
[4] Proc. nº 0019372, com sumário em www.dgsi.pt.
[5] Dispõe este normativo que: “O juiz pode, em qualquer estado do processo, determinar a comparência pessoal das partes para a prestação de depoimento, informações ou esclarecimentos sobre factos que interessem à decisão da causa.”
[6] Neste sentido, ver Ramos de Faria, “Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 2013, Vol. I, pág. 365, e Luís Filipe Pires de Sousa, “As Declarações de Parte. Uma Síntese”, CEJ, Abril de 2017, págs. 4/5.
[7] Ob. cit., págs. 25/26.
[8] Proc. 2200/08.6TBFAF-A.G1.S1, em www.dgsi.pt.
[9] Ainda “As Declarações de Parte. Uma Síntese”, pág. 37.
[10] Proc. nº. 211/12.6TVLSB.L1, da mesma relatora e com a mesma 1ª adjunta, disponível em www.dgsi.pt.
[11] Remédio Marques, ob cit., pág. 154.
[12] Cfr., J. Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado”, 1984, Vol. V, págs. 139, 140 e 141, e Antunes Varela, “Manual de Processo Civil”, 2ª ed., págs. 687/688.
[13] Cfr. António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, “Código de Processo Civil Anotado”, Almedina, 2018, Vol. I, pág. 186.
[14] Ob. cit., pág. 559. Veja-se que o atual nº 5 do preceito reproduz textualmente o nº 4 na versão anterior da Lei nº 40-A/16, de 22.12.