Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
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| Relator: | CRISTINA ALMEIDA E SOUSA | ||
| Descritores: | OMISSÃO DE PRONÚNCIA DENEGAÇÃO DE JUSTIÇA ERRO DOLO NEGÓCIO JURÍDICO BURLA INCUMPRIMENTO ATIPICIDADE DOS FACTOS | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 11/13/2019 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Texto Parcial: | N | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | NEGAR PROVIMENTO | ||
| Sumário: | Certos comportamentos assumidos no decurso de um processo negocial conducente à celebração de um contrato e recondutíveis à culpa in contrahendo, nos termos regulados no art. 227º ou integradores de certos vícios da vontade, especialmente, do erro motivado por dolo, previsto no art. 253º, ambos do Código Civil, são em tudo semelhantes ao erro ou engano astuciosamente criado pelo agente, no crime de burla, sendo que os negócios jurídicos onerosos, bilaterais e sinalagmáticos, como a empreitada ou a compra e venda, têm, pela sua natureza e efeitos jurídicos, especial aptidão para servirem de instrumento desse específico modo de execução do crime de burla. Isto sucederá sempre que, nos contratos, por comparação com o incumprimento civil, apareça caracterizado o ilícito penal, estribado na intenção de uma das partes, sempre, necessariamente, antecedente ou, pelo menos, contemporânea às negociações que antecedem a formação do negócio em concreto, de jamais vir a realizar a sua prestação obrigacional ou ciente da sua impossibilidade de o fazer, tanto no acto da celebração, como na data do vencimento da sua obrigação contratual, criando, pois, uma falsa aparência de negócio jurídico que mais não é do que um acto de apropriação ilícita e, além disso, com o único objectivo de se aproveitar do cumprimento da contraprestação, estando ciente de que irá causar ao outro contraente um prejuízo patrimonial, querendo esse resultado e esperando obter, à custa desse cumprimento pela outra parte no negócio, uma vantagem patrimonial a que sabe não ter direito. De acordo com os princípios da proporcionalidade, da protecção residual e do carácter fragmentário do direito penal, por um lado e com o princípio da autonomia privada do direito civil, por outro, embora se reconheça que os contratos civis podem, eles próprios, por si só, constituir o embuste ou o artifício típicos da burla, a tutela jurídico-penal deve ficar reservada às situações que, pela sua densificação enganosa ou grau de maquinação e mentira, quando comparadas com aquele erro que é, consabidamente, próprio dos usos do comércio, são de tal modo reprováveis, do ponto de vista ético-jurídico, que não podem senão ser enquadráveis no tipo de burla. A meros incumprimentos contratuais não pode ser atribuída tutela penal, sob pena de o direito penal ser convertido em instrumento de resolução de conflitos de interpretação de cláusulas contratuais, ou de divergências sobre o modo de execução dos contratos, ou de cobrança de dívidas deles emergentes, desvirtuando-se a sua natureza de direito do bem jurídico e de protecção da paz social, bem assim os princípios da intervenção mínima, da subsidiariedade e da fragmentariedade que lhe são característicos. | ||
| Decisão Texto Parcial: | |||
| Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes que integram a 3º Secção, neste Tribunal da Relação de Lisboa: I – RELATÓRIO Por decisão instrutória proferida em 30 de Abril de 2019, no âmbito do processo nº 9650/18.8T9LSB do Juízo de Instrução Criminal de Lisboa, …ª Secção, foi determinada a não pronúncia dos arguidos Sporting Club de Portugal, FN…, FA…, FM…, BM…, JV… e CF…, pela prática de um crime de burla qualificada p. e p. pelo art. 218° do Código Penal e de um crime de associação criminosa p. e p. pelo art. 299° n° l do Código Penal que a Assistente lhes imputa no requerimento de abertura da instrução e, consequentemente, o arquivamento dos autos. A assistente Ferreira Construção SA interpôs recurso desta decisão, no qual sintetizou as razões da sua discordância, nas seguintes conclusões: A - Por despacho/sentença, datada de 30 de abril de 2019, o Meritíssimo Juiz do Juízo de Instrução Criminal de Lisboa – …ª Secção, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, decidiu não pronunciar os arguidos Sporting Club de Portugal, FN…, FA…, FM…, BM…, JV… e CF…, pela prática de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelo Art. 218°, do Código Penal, e de um crime de associação criminosa, previsto e punido pelo Art. 299° n° 1, também do Código Penal, determinando o arquivamento dos Autos. B - Ora, a sentença recorrida acompanha, e com todo o respeito, acompanha mal, a tese defendida pelo Ministério Público, dos factos vertidos na queixa não configurarem ilícitos penais, mas sim incumprimento contratual civil. O problema é que existe mesmo burla. C - E que aqui começa o pecado capital - o Ministério Público não investigou nada, não averiguou nada, quando compete ao Ministério Público exercer a acção penal, orientada pelo princípio da legalidade, e para dirigir a investigação criminal, ainda quando realizada por outras entidades, conforme se pode ler no Art. 3° do Estatuto do Ministério Público. D - A Assistente é, deste modo, impedida de exercer a defesa dos seus interesses porque ignora as ações devolvidas pelo Ministério Pública, as suas inquirições e se chegou a realizar buscas. Como isto não aconteceu, existe uma denegação da justiça, de que o Tribunal recorrido deveria ter tomado conhecimento e se ter pronunciado. E - Para afastar a responsabilidade penal, não pode o Ministério Público, ou o Juiz de Instrução, limitarem-se a despachar que estamos perante uma questão civil, mas devem explicar quais os elementos do tipo legal ou quais as condições de punibilidade da conduta que não se indiciam. Existe uma conduta ilícita, com um fio condutor - não pagamento de facturas, levantamento indevido de garantia bancária, devolução das facturas um ano depois - realizada em associação pelos denunciados, tendo em vista um enriquecimento ilícito, à custa do património da Assistente. F - Inclusive, como é público e notório, estão a ser investigadas acções da antiga administração do Sporting Clube de Portugal, encabeçada pelo denunciado BC…, por indícios de crime contra o património do clube. O Ministério Público deveria ter investigado se existiria conexão com o presente processo, o Tribunal de Instrução Criminal a quo deveria ter ordenado essa investigação. G - Como esse douto Tribunal já afirmou, pode verificar-se uma identificação, de modo e de finalidade, entre a fraude que integra a burla e o dolo que vicia os contratos de carácter económico, e fraudes civis distintas de fraude penal, bastando considerar o dano culposo, o esbulho possessório sem violência, o incumprimento de contrato em geral. A queixa, que deu origem a este processo, não foi devidamente investigada pelo Ministério Público, e no mesmo erro incorre o despacho recorrido, ao considerar incumprimento contratual o que é uma actuação dolosa e ilícita dos denunciados, que deveria ser considerada de burla penal. H - Mais, no seu requerimento de abertura de instrução, a Assistente tinha requerido outros meios de prova, a saber: - Inquirição das testemunhas arroladas; - Notificação ao banco emissor do cheque, para indicar quem, quando e como levantou o cheque e o valor da garantia bancária, e onde foi depositado. - Inspeção tributária à contabilidade do Sporting, de forma a apurar se as faturas em causa foram ou não contabilizadas, e quais os fluxos financeiros da verba levantada. - Que o Sporting seja intimado a apresentar a ata de aceitação da obra, pois sem esta o Pavilhão João Rocha não teria licença de utilização; - E que o Sporting seja intimado a apresentar a ata da reunião do Conselho de Administração, onde foi deliberado acionar a garantia bancária já referida. I - Ora, sobre este pedido, o Tribunal a quo não se pronunciou, numa evidente omissão de pronúncia, desvalorizando a posição da Assistente e dos seus meios de defesa, numa atitude de preconceito tendo em vista o arquivamento do processo. J - O que também impossibilita a personalização dos delitos, como pretende o Tribunal recorrido. Como os denunciados agiram em associação criminosa, terá de ser o Ministério Público a investigar a actuação de cada um, como aliás já deveria ter feito, e não a Assistente a indiciar seja quem for. O processo deve voltar à fase de inquérito para ser devidamente e completamente investigado. K - Quer o Ministério Público quer o Tribunal de Instrução Criminal, aqui recorrido, com os seus despachos de arquivamento, cometeram denegação da justiça e omissão de pronúncia, ao não investigarem a verdade material dos actos objecto da queixa apresentada pela Assistente, que foi esbulhada de uma quantia demasiado considerável para ser ignorada. Nestes Termos e nos mais de Direito que doutamente serão supridos, deve a sentença do Juízo de Instrução Criminal de Lisboa - Juiz …, Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa ser revogada, por falta de fundamento legal para o arquivamento do processo, ordenando-se a continuidade do processo, com a devolução ao Ministério Público, para melhor instrução do processo, ou ao Juízo de Instrução recorrido, para a concretização das diligências requeridas e prosseguimento do processo. Tanto o Mº. Pº., como os arguidos Sporting Clube de Portugal, FR… e CF… apresentaram resposta, pronunciando-se no sentido da manutenção da decisão recorrida, em síntese e, no geral, por considerarem não estarem verificadas as nulidades invocadas, porque os factos correspondem a questões de índole meramente civil, inerentes à execução de um contrato de empreitada realmente celebrado, portanto, sem qualquer tutela penal e porque a assistente não imputou a qualquer dos arguidos qualquer facto concreto subsumível a qualquer dos crimes de burla ou de associação criminosa. Remetido o processo a este Tribunal da Relação, na vista a que se refere o art. 416º do CPP, o Mº. Pº. pronunciou-se pela improcedência do recurso, secundando a argumentação aduzida pelo Mº. Pº. em primeira instância. Cumprido o disposto no art. 417º nº 2 do CPP apenas a assistente respondeu, concluindo como no seu recurso. Colhidos os vistos nos termos previstos no art. 418º e realizada a conferência, cumpre decidir. II – FUNDAMENTAÇÃO 2.1. Delimitação do objecto do recurso e identificação das questões a decidir: De acordo com o preceituado nos arts. 402º; 403º e 412º nº 1 do CPP, o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação. Além destas, o tribunal está obrigado a decidir todas as questões de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afectem o recorrente, nos termos dos arts. 379º nº 2 e 410º nº 3 do CPP e dos vícios previstos no art. 410º nº 2 do CPP, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito (Acórdão do Plenário das Secções do STJ nº 7/95 de 19.10.1995, in Diário da República, I.ª Série-A, de 28.12.1995 e o AUJ nº 10/2005, de 20.10.2005, DR, Série I-A, de 07.12.2005). Umas e outras definem, pois, o objecto do recurso e os limites dos poderes de apreciação e decisão do Tribunal Superior (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do CPP, à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, 2011, págs. 1059-1061). Das disposições conjugadas dos arts. 368º e 369º por remissão do art. 424º nº 2 , todos do Código do Processo Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso pela seguinte ordem: Em primeiro lugar, das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão; Em segundo lugar, das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pela impugnação alargada, se deduzida, nos termos do art. 412º do CPP, a que se seguem os vícios enumerados no art. 410º nº 2 do mesmo diploma; Finalmente, as questões relativas à matéria de Direito. Seguindo esta ordem lógica, a primeira questão que cumpre apreciar é saber se se verificou a nulidade de omissão do inquérito ou a nulidade de diligências essenciais à descoberta da verdade; se houve denegação de justiça, ou omissão de pronúncia e se há ou não indícios da prática dos crimes de burla e de associação criminosa. 2.2. Da fundamentação de facto: Para apreciação do presente recurso, importa considerar a seguinte factualidade: No dia 20 de Novembro de 2018, Ferreira Construção, S.A. apresentou no DIAP de Lisboa uma queixa crime contra Sporting Clube de Portugal, FN…; FA…, FM…, BM…. JV… e CF…, imputando-lhes a prática de um crime de burla qualificada e de um crime de associação criminosa, p. e p., respectivamente, pelos art. 217º nº 1 e 218º e pelo art. 299º nº 1 do Código Penal (requerimento de fls. 1 a 31). No requerimento de queixa, a assistente Ferreira Construção SA, alegou, em síntese, o seguinte (transcrição parcial): No dia 8 de maio de 2015, a Denunciante e os denunciados celebraram um contrato de empreitada, conforme. Doe. n.° 1 junto à queixa, e que para todos os efeitos legais se dá por reproduzido; O referido contrato referia-se à empreitada de construção do Pavilhão João Rocha, que foi construído em duas parcelas de terreno sitas em Lisboa, na Rua Francisco Stromp, descritas na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n.° 2365 e n.° 2079, da freguesia do Lumiar, e inscritas nas respectivas matrizes sob os artigos 3529 e 3053, ambas da freguesia do Lumiar, onde anteriormente esteve edificado o antigo Estádio José Al vai ade, conforme o já referido doc. n.° 1. Tal empreitada foi feita e tal Pavilhão, como é do conhecimento do público em geral, foi inaugurado a 21 de junho de 2017. E tem estado a funcionar desde essa data. O Pavilhão João Rocha é um pavilhão gimnodesportivo localizado na freguesia do Lumiar, em Lisboa. Com capacidade para 3 000 pessoas, é a atual casa das modalidades de alto rendimento do Sporting Clube de Portugal: andebol, futsal, hóquei e voleibol. Localizado junto ao Estádio José Alvalade, o pavilhão recebeu o nome do antigo presidente do clube JR…, uma das figuras da história do Sporting CP, que permaneceu no cargo entre setembro de 1973 e outubro de 1986. Foi inaugurado a 21 de junho de 2017. Nas cerimónias, que tiveram por anfitrião o Presidente BC…, participaram, entre outras individualidades, o Secretário de Estado da Juventude e do Desporto, JP…, o Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, FMe…, o Presidente da Junta de Freguesia do Lumiar, PA…, o Arquiteto AM… e o Engenheiro Coordenador Geral da obra, HP…. O primeiro jogo realizado no Pavilhão João Rocha foi realizado a 6 de setembro de 2017. Após a sua inauguração, o Pavilhão João Rocha hospedou todas as partidas descasa do andebol, do futsal, do hóquei em patins e do voleibol do Sporting Clube de Portugal, além de ter hospedado as competições europeias da sua equipa de ténis de mesa e goalball. Além de eventos desportivos, também hospedou o congresso “The Future of FootbalF durante o mês de março de 2018. Nunca o Sporting poderia ter obtido os licenciamentos, necessários para o Pavilhão João Rocha estar aberto ao público, se não estivesse bem concluído. Muito menos poderia ter sido inaugurado. Além disso, os dirigentes do Sporting continuam a dizer que o clube é o dono do maior e melhor pavilhão desportivo de Portugal. Todavia, A denunciante, no dia 29 de setembro de 2017, enviou ao primeiro arguido as seguintes faturas (com a condição de pagamento a 30 dias): - n.° FT 2017A/273 no valor de €114.126,27, confonne Doc. n.° 2 já junta aos autos e para todos os efeitos legais se dá por reproduzida; - n.° FT 2017A/274 no valor de €6.006,65 conforme. Doc. n.° 3 já junta aos autos e para todos os efeitos legais se dá por reproduzida; - n.° FT 2017A/275 no valor de €27.535,58 conforme. Doc. n.° 4, já junta aos autos e para todos os efeitos legais se dá por reproduzida; - n.° FT 2017A/276 no valor de €1.449,24 conforme Doc. n.° 5, já junta aos autos e para todos os efeitos legais se dá por reproduzida; - n.° FT 2017A/277 no valor de €47.975,00 conforme Doc. n.° 6, já junta aos autos e para todos os efeitos legais se dá por reproduzida; - n.° FT 2017A/278 no valor de €2.525,00 conforme Doc. n.° 7, já junta aos autos e par todos os efeitos legais se dá por reproduzida. Facturas essas que totalizam o valor de €189.636,85. (cento e oitenta e nove mil e seiscentos e trinta e seis euros e oitenta e cinco cêntimos). Tais facturas não foram, até à presente data, pagas. E só foram devolvidas à denunciante, a 28 de setembro de 2018. Ou seja, Mais de um ano após o Sporting as ter recebido para pagamento. A devolução das facturas à denunciante, por parte do arguido Sporting, foi feita através de comunicação escrita onde o Sporting alega não terem sido, tais faturas, validadas pela denunciada FICOPE- Fiscalização, Coordenação e Projetos de Engenharia, Lda., conforme doc. n.° 8, já junta aos autos e par todos os efeitos legais se dá por reproduzida. Esta empresa era a responsável pela fiscalização da obra do Pavilhão João Rocha, conforme o já referido, doc. n.° 1 (contrato de empreitada), que, na verdade, tinha confirmado e validado todas as obras nos autos de medição. No entanto, Para garantir a obra, a Denunciante prestou uma garantia bancária a favor da denunciada Sporting, no montante de € 374 848,10 (trezentos e setenta e quatro mil e oitocentos quarenta e oito euros e dez cêntimos), conforme, doc. n.° 9 - garantia bancária, já junta aos autos e que aqui dá por reproduzida para todos os efeitos legais. Tal banco, através de comunicação escrita datada de 27 de novembro de 2017, interpelou a denunciante acerca do acionamento da Garantia Bancária por parte do denunciado Sporting Clube de Portugal, conforme carta de interpelação que aqui dá para todos os efeitos legais por integralmente reproduzida, doc. n.° 10. E a quantia de tal garantia foi paga ao denunciado Sporting, através de cheque bancário a 12 de dezembro de 2017, conforme, doc. n.° 9 (extrato de conta n.° 105), já junta aos autos e par todos os efeitos legais se dá por reproduzida. Contudo, assim que a Denunciante recebeu a comunicação do Banco, informou, por carta registada a 30 de novembro de 2017, que que se opunha ao pagamento da garantia, conforme doc. n.° 10, que dá aqui por integralmente reproduzido, para todos os e legais. E opôs-se porque a obra em causa estava concluída, inaugurada e em funcionamento, como é do conhecimento público, como já acima referido e mencionado no doc. n° 10. Porém, mesmo sabendo desse pressuposto negativo, o denunciado Sporting, sem qualquer fundamento legal, acionou a garantia bancária prestada pela Denunciante. Ou seja, a garantia de quantia de € 374.848,10 (trezentos e setenta e quatro mil e oitocentos e quarenta e oito euros e dez cêntimos) foi levantada do banco pelo denunciado Sporting. em 12 de dezembro de 2017. O levantamento da garantia bancária foi acionado, em conluio, entre os denunciados, o Sporting e os seus dirigentes, tendo como pretexto, abusivo e ilícito, a FICOPE não ter validado os as faturas. Isto é, a devolução das faturas foi o começo de um plano, elaborado e premeditado entre os denunciantes, para poderem acionar a garantia bancária e apoderarem-se com essa quantia. Os denunciados, em conluio, pessoa coletiva e as pessoas singulares que a representa, prepararam um plano, em associação, para fazerem suas a quantia das faturas, de € 199 617,74 (cento e noventa e nove mil e seiscentos e dezassete euros e setenta e quatro cêntimos), e a da garantia bancária - € 374.848,10 (trezentos e setenta e quatro mil e oitocentos e quarenta e oito euros e dez cêntimos euros). Num total de € 574 465,84 (quinhentos e setenta e quatro mil e quatrocentos e sessenta e cinco euros e oitenta e quatro cêntimos). E fizeram-no, bem sabendo os denunciados que a obra estava mais que concluída, respeitando o contrato de empreitada, e que, portanto, não havia qualquer fundamento para a garantia ser usada e apropriarem-se ilegitimamente da quantia monetária dela constante. Assim, os denunciados para além de não pagarem a obra, e as faturas em falta ainda representam um montante elevado de dinheiro, acionaram a garantia a que não tinham qualquer tipo de direito, bem sabendo disso. Os denunciados, com esta conduta, bem demonstraram que nunca tiveram intenções de pagar a obra em causa, tanto mais que para além de não pagar(em) o que deviam (devem), os denunciados acionaram ilicitamente a garantia bancária que foi prestada para boa execução da empreitada. Anexos à queixa apresentada, pela assistente Ferreira Construção, S.A., foram juntos doze documentos, entre os quais, o contrato de empreitada celebrado entre a assistente e o Sporting Cube de Portugal, com vista à construção de um pavilhão desportivo com a designação «Pavilhão Desportivo João Rocha» pelo preço global de € 7.496.962,00; cópias de seis facturas e correspondentes autos de medição dos trabalhos de execução do referido pavilhão; uma carta dirigida pelo Sporting Clube de Portugal à assistente Ferreira Construção, Lda., devolvendo as referidas facturas, de uma garantia bancária tendo por beneficiário o Sporting Clube de Portugal; de uma carta do Banco Santander dirigida à assistente, dando notícia da interpelação feita pelo Sporting para accionar a referida garantia bancária e a convidar assistente a informar o que tivesse por conveniente para avaliarem da justeza de tal interpelação e de uma carta da assistente e dirigida ao Banco Santander, na qual aduz as razões por que considera que o acionamento da garantia bancária é ilegítimo (documentos de fls. 33 a 75); O Mº.Pº. no decurso do inquérito (despachos de fls. 89 a 91; de fls. 416) determinou, respectivamente: A junção aos autos das certidões permanentes da assistente e da sociedade Ficope – Fiscalização e Coordenação e Projectos de Engenharia, Lda. e que a assistente juntasse aos autos cópias dos anexos ao contrato de empreitada dos autos e do caderno de encargos contendo as condições gerais e administrativas, o que esta fez (cfr. fls. 112 a 415); Que o Banco Santander juntasse aos autos cópia da interpelação feita pelo Sporting Clube de Portugal com vista ao acionamento da garantia bancária, que esclarecesse porque é que, tendo recebido tal interpelação, questionou a assistente sobre a justeza da interpelação e em que data ocorreu o pagamento da quantia indicada na mesma garantia bancária, o que o Santander fez (fls. 421 a 435). E a fls. 443 a 450 determinou o arquivamento do processo, mais tendo referido que «não é necessária a realização de quaisquer outras diligências, uma vez que já é possível concluir pela inexistência de crime» (cfr. fls. 445). Em 22 de Fevereiro de 2019, o Mº. Pº. determinou o arquivamento do inquérito, com fundamento na inexistência de qualquer crime, em virtude de a omissão do pagamento das facturas pelo denunciado Sporting Clube de Portugal não configurar qualquer erro ou engano astuciosamente provocado, mas antes corresponder a um eventual incumprimento contratual que terá de ser dirimido no âmbito do direito civil, o mesmo tendo concluído em relação ao acionamento da garantia bancária que a assistente qualificou de abusiva, mas que, no entendimento do Mº. Pº., face ao texto da mesma garantia bancária, foi accionada de acordo com o respectivo texto e com a condição, nele exarada, ou seja, o Banco ser interpelado por escrito, até ao dia 15 de Janeiro de 2022, portanto, em conformidade com todos os requisitos formais, nela, previstos. Quanto à inexistência do imputado crime de associação criminosa, o despacho de arquivamento concluiu que não havendo qualquer artifício fraudulento ou engodo que «consubstancie a prática de um crime de burla, também fica prejudicado o preenchimento do tipo objectivo do crime de associação criminosa, dado que, em traços muito gerais, este tipo de crime exige a congregação de três elementos essenciais: um elemento organizativo, um elemento de estabilidade associativa e um elemento de finalidade criminosa, sendo certo que esta última, naturalmente, inexiste, no caso dos presentes autos» (transcrição parcial, despacho de fls. 443 a 450); Por requerimento de 14 de Março de 2019, a assistente Ferreira Construção, Lda. requereu a instrução (requerimento de fls. 461 a 474); Por despacho proferido em 20 de Março de 2019, foi admitida a instrução, indeferidas todas as diligências probatórias requeridas pela assistente e designada data para a realização do debate instrutório (despacho de fls. 484 e 485); Este despacho foi notificado à assistente a todos os arguidos (cfr. expediente de notificação constante de fls. 487 a 510); E do mesmo não foi interposto recurso (cfr. expediente de notificação constante de fls. 487 a 510); No dia 24 de Abril de 2019, realizou-se o debate instrutório (acta de fls. 542 a 544); No dia 30 de Abril de 2019, foi proferida a decisão instrutória (fls. 549 a 557 e acta de fls. 558 e 559); Tal decisão tem o seguinte conteúdo (transcrição): Nos presentes autos o Ministério Público procedeu a inquérito, tendo no fim deste proferido despacho de arquivamento conforme resulta de fls. 443 a 450 dos autos. A Assistente Ferreira Construção, SA, por discordar do despacho de arquivamento veio nos termos do art° 287° n°l al. b) do CPP, requerer a abertura da instrução pedindo a pronúncia dos arguidos Sporting Club de Portugal, FN…, FA…, FM…, BM…, JV… e CF…, pela prática de um crime de burla qualificada p. e p. pelo art° 218° do Cod. Penal e de um crime de associação criminosa p. e p. pelo artp 299° n°l do Código Penal. Procedeu-se à realização do debate instrutório com observância das formalidades legais. * CUMPRE DECIDIR: O Tribunal é competente. O Ministério Público tem legitimidade para exercer a ação penal. Não existem nulidades, exceções ou questões prévias de que cumpra conhecer e que obstem ao conhecimento do mérito da causa. * Conforme resulta do art° 286° do CPP a instrução tem como fim a comprovação judicial de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito com vista a submeter ou não os factos a julgamento. No caso dos autos a instrução visa a comprovação judicial de não acusar os arguidos, ou seja pretende-se que se afira da existência ou não de indícios dos quais resulte a possibilidade razoável de em julgamento vir a ser aplicada aos arguidos urna pena, pela prática dos factos e ilícitos que lhes são imputados no requerimento de abertura da instrução. Dispõe o art° 308° n° 1 do CPP que se até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o Juiz, por despacho pronuncia o arguido pelos respetivos factos, caso contrário, profere despacho de não-pronuncia, Resulta por outro lado do art° 283° n° 2 do CPP, para onde remete o art° 308° n° 2 do mesmo diploma legal, que os indícios são suficientes sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento uma pena ou uma medida de segurança. O despacho de não pronúncia deverá ser proferido sempre que, perante o material probatório constante dos autos, não se indicie que o arguido, se vier a ser julgado, venha provavelmente a ser condenado, sendo tal probabilidade um pressuposto indispensável da submissão do feito a julgamento - v, G. Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 1994, 205-. Para ser proferido despacho de pronúncia embora não seja preciso uma certeza da infração é necessário que os factos indiciários sejam suficientes e bastantes, para que logicamente relacionados e conjugados formem um todo persuasivo da culpa do arguido. Os Assistentes pretendem a pronúncia dos arguidos pela prática de um crime de burla qualificada p. e p. pelo art. 218º do Código Penal e de um crime de associação criminosa p. e p. pelo art. 299° n° 1 do Código Penal. Importa assim verificar se existem indícios da prática de factos pelos arguidos, que integrem a tipicidade objetiva e subjetiva dos ilícitos que lhe são imputados pela Assistente no requerimento de abertura da instrução. Pratica o crime de burla quem “com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de atos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial. Constituem assim elementos do crime de burla: - A obtenção para o agente ou para terceiro de um enriquecimento ilegítimo; - Que o agente astuciosamente induza em erro ou engano outrem; - Que através desse meio, determine o ofendido à prática de atos causadores de prejuízos patrimoniais. Entre todos os elementos terá de existir uma relação de causa efeito, para que a conduta astuciosa do agente induza diretamente em erro ou engano, a vítima. Tal conduta deve ser causa adequada a produzir o enriquecimento ilegítimo do agente ou de terceiro e o consequente prejuízo patrimonial. Para que o crime de burla se verifique tem de existir um engano astuciosamente provocado pelo agente. Tem de existir uma conduta ardilosa, do agente, idónea a determinar outrem - tomando como padrão o homem médio, naquelas circunstâncias concretas-, à prática de um ato lesivo do património. Pretende ainda a Assistente como supra se referiu a pronúncia dos arguidos pela prática do crime de associação criminosa p. e p. pelo art°299° do Cod. Penal. Resulta de tal norma legal que, quem promover ou fundar grupo, organização ou associação cuja finalidade ou atividade seja dirigida à prática de um ou mais crimes é punido com pena de prisão de um a cinco anos. Ora como se refere no Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, fls. 1158, para se aferir se se está um não perante factos que preencham a tipicidade do referido ilícito, para além de se verificar a existência de uma organização, é necessário avaliar se da mera associação de vontades dos agentes resulta sem mais um perigo para bens jurídicos protegidos de forma notória maior, do que o que existiria no caso de se estar perante apenas uma comparticipação criminosa. * Dos autos resulta que a Assistente pretende a pronuncia do Sporting Clube de Portugal, FN… e FA… (atuais Presidente e Vice-Presidentes, respetivamente, do Conselho Diretivo do Sporting Clube de Portugal), BM…, JV… e CF… (anteriores Presidente e Vice-Presidentes, respetivamente, do Conselho Diretivo do Sporting Clube de Portugal) pela prática dos crimes supra mencionados, referindo a assistente e indiciando-se nos autos que: - No dia 08.05.2015, a Assistente e o Sporting Clube de Portugal celebraram um contrato de empreitada, relativo à construção do Pavilhão João Rocha, construído em duas parcelas de terreno, sitas na Rua Francisco Stromp, em Lisboa; - A referida empreitada foi concluída e entregue ao Sporting Clube de Portugal tendo o Pavilhão João Rocha sido inaugurado no dia 21.06.2017 e funcionado desde essa data em pleno, com todas as licenças necessárias para o referido funcionamento; - No dia 29.09.2017, a Assistente enviou ao Sporting Clube de Portugal as seguintes seis faturas, todas com condição de pagamento a trinta dias: - n° FT 2017A1/273, no valor de € 114.126,27 (cento e catorze mil, cento e vinte e seis euros e vinte e sete cêntimos); - n° FT 2017/A1/274, no valor de € 6.006,65 (seis mil, seis euros e sessenta e cinco cêntimos); - n° FT 2017/A1/275, no valor de € 27.535,58 (vinte e sete mil, quinhentos e trinta e cinco euros e cinquenta e oito cêntimos); - n° FT 2017/A1/276, no valor de € 1.449,24 (mil, quatrocentos e quarenta e nove euros e vinte e quatro cêntimos); - n° FT 2017/A1/277, no valor de € 47.975,00 (quarenta e sete mil, novecentos e setenta e cinco euros); - n° FT 2017/A1/278, no valor de € 2.525,00 (dois mil, quinhentos e vinte e cinco euros);. - Tais faturas no valor total de 189.636,85 Euros, não foram pagas e foram devolvidas à assistente em 28/9/2018, através de comunicação escrita, com a alegação de que tais faturas não tinam sido validadas pela FICOPE - Fiscalização, Coordenação e Projetos de Engenharia, Lda., (sociedade responsável pela fiscalização da obra do Pavilhão João Rocha); - Para garantir a obra, a Assistente prestou uma garantia bancária, com o n.° …, a favor do Sporting Clube de Portugal, no valor de € 374.848,10 (trezentos e setenta e quatro mil, oitocentos e quarenta e oito euros e dez cêntimos); - No dia 27.11.2017, o Banco Santander Totta, SA interpelou a Assistente quanto ao acionamento da garantia bancária por parte do Sporting Clube de Portugal, tendo a mesma informado a referida instituição de crédito, através de carta registada na data de 30.11.2017, que se opunha ao pagamento da referida garantia, uma vez que a obra estava concluída, inaugurada e em funcionamento; - Posteriormente, o montante correspondente à referida garantia bancária foi pago ao Sporting Clube de Portugal, através de cheque bancário, datado de 12.12.2017. * Entende a Assistente que o Sporting Clube de Portugal não tinha qualquer fundamento legal para acionar a garantia bancária prestada pela Assistente. Mais entende que com a referida conduta, os arguidos delinearam e executaram um plano para fazerem suas as quantias acima referidas, no valor total de € 574.465,84 (quinhentos e setenta e quatro mil, quatrocentos e sessenta e cinco euros e oitenta e quatro cêntimos), que sabiam não lhes pertencer, não pagando a obra realizada e apropriando-se ilegitimamente de uma quantia monetária a que não tinham direito, demonstrando que nunca tiveram intenção de pagar a obra em causa. Não obstante o referido pela assistente entende-se que os autos não indiciam nem a Assistente descreve factos concretos situados no tempo e no espaço e praticados por cada um dos arguidos que sejam suscetíveis de integrar a tipicidade objetiva e subjetiva dos crimes que lhes imputa. Dos autos resulta que existe um litígio entre a assistente e os arguidos, relacionado com os contratos que celebraram, designadamente com o acionamento da garantia dada pela Assistente. Tal divergência sobre o eventual cumprimento ou incumprimento dos contratos celebrados e do acionamento indevido ou devido da garantia terá de ser apreciado no foro próprio ou seja o foro cível, não se indiciando como supra já se referiu a prática de factos que sejam suscetíveis de integrar qualquer um dos ilícitos que a Assistente imputa aos arguidos. Assim sendo e considerando a factualidade imputada no RAI aos arguidos e fazendo um juízo de prognose afigura-se como mais provável a absolvição destes em julgamento do que a sua condenação pela prática de tais factos e dos crimes referidos. Face ao exposto tendo em conta os elementos constantes dos autos, pelas razões referidas e pelas referidas pelo Ministério Público no despacho de arquivamento que aqui se dá por reproduzido, considero que não existem indícios suficientes e bastantes para pronunciar os arguidos pelos factos e crimes referidos no RAI, pelo que não serão os mesmos pronunciados - cf. Art° 283° n°2 ex vi art° 308° n°2 do Cód. Proc. Penal-, * DECISÃO * Tendo em conta o exposto as considerações expendidas e disposições legais citadas não pronuncio os arguidos Sporting Club de Portugal, FN…, FA…, FM…, BM…, JV… e CF…, pela prática de um crime de burla qualificada p. e p. pelo art. 218° do Código Penal e de um crime de associação criminosa p. e p. pelo art. 299° n° l do Código Penal que a Assistente lhes imputa no RAI, pelo que e consequentemente determino o arquivamento dos autos. Fixo em 3 UCs a taxa de Justiça devida pela Assistente. Notifique. Oportunamente arquive. 2.3. Apreciação do mérito do recurso Cumpre realizar o seguinte ponto de ordem, antes de prosseguir a análise do presente recurso: O presente recurso não tem, nem pode ter por objecto o despacho de arquivamento, mas apenas as nulidades invocadas na medida em que possam ter sido praticadas no decurso do inquérito e, por via do chamado efeito à distância, possam influir no exame e decisão da causa, concretamente, na validade e eficácia da decisão instrutória. Dos despachos do Mº. Pº. proferidos no final do inquérito não há recurso, porque ou o arguido ou o assistente suscitam a intervenção hierárquica, nos termos do art. 278º , para sindicância do mesmo e eventual prossecução do inquérito com a realização de novas diligências probatórias, nos termos requeridos e que venha a ser deferidos, ou, em alternativa, requerem a abertura da instrução para a comprovação judicial da decisão de arquivamento ou de acusação, como previsto no art.286º do CPP. Não tendo o assistente reclamado hierarquicamente do despacho de arquivamento, como lhe teria sido permitido pelo art. 278 nº 2 do CPP e tendo optado pela alternativa de requerer a instrução, o que passa a ser objecto da apreciação por este Tribunal é o despacho de não pronúncia que, diga-se, não é uma sentença, e não outra decisão qualquer. Quanto à omissão de inquérito. A recorrente veio alegar que o Mº. Pº. nada fez para averiguar os factos relatados na queixa. Apesar da obscuridade, da mistura e da confusão entre a omissão do inquérito, falta de fundamentação do despacho de arquivamento e da decisão instrutória, omissão de pronúncia e denegação de justiça evidenciadas nas conclusões, especialmente, nas assinaladas com as letras C, D, E e K, uma vez que, das respostas, quer do Mº. Pº., quer dos arguidos, resulta que todos perceberam o alcance das motivações e conclusões da recorrente, irá proceder-se sem mais delongas, ao conhecimento do mérito do recurso. Nessa conformidade, prevenindo a possibilidade de a recorrente ter invocado a omissão do inquérito como uma nulidade e na medida em que a mesma, sendo insanável, é de conhecimento oficioso e a todo o tempo, importa, antes de mais, apreciá-la. Em processo penal, da conjugação dos arts. 118º a 123º; 125º e 126º do CPP, resulta que as invalidades dos actos processuais se desdobram em duas espécies - as nulidades e as irregularidades. A estas ainda acresce a inexistência jurídica que ocorre quando o acto processual se mostra inidóneo para se integrar na estrutura da relação processual penal, em virtude de lhe faltarem elementos essenciais à sua própria substância, que inviabilizam a produção de quaisquer efeitos jurídicos. Não é sanável, nem susceptível de sanação pela sua não arguição, ou decurso do tempo, até porque, uma vez verificada, impede a própria produção do efeito de caso julgado (Simas Santos e Leal Henriques, Código de Processo Penal Anotado, I, 1999, p. 594). Mas não está expressamente prevista na Lei. Entre as nulidades, há um escalonamento em duas dimensões de gravidade: as nulidades insanáveis ou absolutas e as nulidades sanáveis ou relativas. O regime das nulidades obedece a três princípios essenciais: o da legalidade, enunciado no nº 1 do art. 118º, do qual resulta que a violação ou a inobservância das disposições da lei de processo penal só determina a nulidade, quando esta for expressamente cominada na lei, exemplificando o art. 119º algumas nulidades insanáveis e exemplificando o art. 120º as que são sanáveis; o princípio da irregularidade de todos os restantes actos praticados contra a lei e um terceiro, que consiste na autonomização das proibições de prova, às quais foi fixado um regime jurídico próprio. As nulidades, sejam sanáveis ou insanáveis, porque restringem ou podem colocar em crise o princípio constitucional contido no art. 32º nº 2 da CRP, quanto ao direito a um julgamento no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa, têm natureza excepcional e, por isso, não admitem aplicação analógica (João Conde Correia, Contributo para a Análise da Inexistência e das Nulidades Processuais Penais, Coimbra Editora, 1999, p. 152; Costa Pimenta, Processo Penal, Sistema e Princípios, 2003, Livraria Petrony, p. 158). Aos dois graus de intensidade das nulidades estão associados efeitos jurídicos diversos: as nulidades insanáveis, podem ser conhecidas a todo o tempo, até ao trânsito em julgado da decisão final, e tanto podem ser conhecidas oficiosamente pelo Tribunal, como a requerimento do titular do direito protegido pela norma violada, como pelo Mº. Pº. (art. 219º da CRP), sendo irrelevante a renúncia à respectiva arguição, ou a aceitação expressa dos efeitos do acto inválido, bem como a prevalência da faculdade a cujo exercício se dirige o acto nulo. Diversamente, as nulidades sanáveis não são de conhecimento oficioso do Tribunal, só serão declaradas mediante arguição por quem tenha legitimidade para tal e sanam-se se os interessados renunciarem expressamente à sua arguição, tiverem aceite expressamente os efeitos do acto ou se tiverem prevalecido de faculdade a cujo exercício o acto anulável se dirigia, tal como previsto no art. 121º nº 1 als. a) a c) e nº 2 do CPP. De acordo com o disposto no nº 3 do artigo 120º do CPP, as nulidades relativas têm de ser arguidas nos seguintes prazos: tratando-se de nulidade de acto a que o interessado assista, antes que o acto esteja terminado [alínea a)]; tratando-se da nulidade referida na alínea b) do número anterior, até cinco dias após a notificação do despacho que designar dia para a audiência [alínea b)]; tratando-se de nulidade respeitante ao inquérito ou à instrução, até ao encerramento do debate instrutório ou, não havendo lugar a instrução, até cinco dias após a notificação do despacho que tiver encerrado o inquérito [alínea c)]; e logo no início da audiência nas formas de processo especiais [alínea d)]. Por isso, se a pessoa titular do interesse posto em causa com o acto anulável não diligenciar pela arguição dentro do prazo legalmente fixado, o vício tem-se por sanado e tudo se processa, como se o acto tivesse sido válida e eficazmente praticado. Seguindo a mesma técnica, tanto o art. 119º, como o art. 120º, em total harmonia com o princípio da legalidade, enumeram taxativamente as nulidades absolutas e relativas, através da identificação dos concretos actos praticados ou omitidos que são considerados nulos ou anuláveis e de uma cláusula genérica de remissão para as «que forem cominadas em outras disposições legais». Tanto umas, como outras implicam a destruição dos efeitos substantivos, processuais e materiais dos actos feridos de nulidade, assim como a invalidade dos actos subsequentes que tenham com estes uma conexão cronológica, lógica, ou valorativa, o chamado efeito à distância, que se verifica quando, na análise das circunstâncias concretas do caso, existe um nexo de antijuridicidade entre o acto inválido e aquele ou aqueles que se lhe seguem que impõe a invalidade de todos eles (por contágio da nulidade, tornando-as inaproveitáveis, as provas secundárias a elas causalmente vinculadas, a não ser que essas provas secundárias pudessem ter vindo a ser obtidas directamente, mesmo na falta da prova nula, através de um comportamento lícito alternativo) e, sempre que possível e necessário, a repetição do acto nulo ou anulável. Com efeito, no que respeita aos efeitos da declaração de nulidade, o artigo 122º nº 1 do CPP, estabelece que «as nulidades tornam inválido o acto em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afectar», sendo que, nos termos do nº 2 deste artigo «a declaração de nulidade determina quais os actos que passam a considerar-se inválidos e ordena, sempre que necessário e possível, a sua repetição», dispondo-se no n.º 3 que «ao declarar uma nulidade o juiz aproveita todos os actos que ainda puderem ser salvos do efeito daquela». É o chamado efeito à distância da nulidade, em concretização da chamada doutrina alemã «Fernwirkung des Beweisverbots» e da que os americanos designam de «Fruit of the Poisonous Tree», também vigente na ordem jurídico-penal portuguesa (Figueiredo Dias, Para Uma reforma Global do Processo Penal Português, in Para uma Nova Justiça Penal, Coimbra, 1983, pág. 208; Manuel da Costa Andrade, Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, Coimbra Editora, 2006, pág.175; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, pág.227 e Ac. do Tribunal Constitucional nº 198/2004 de 24 de Março, in http://www.tribunalconstitucional.pt/). O CPP sanciona como nulidade insanável, nos termos do art.119º nºs 1 e 2 al. d), a falta do inquérito, nos casos em que a lei determinar a sua obrigatoriedade. Esta obrigatoriedade de realização do inquérito confunde-se com dever de investigar do Mº. Pº., cuja configuração resulta da conjugação das atribuições e competências que em matéria de investigação criminal e acção penal lhe estão estatutariamente atribuídas, nos termos dos arts. 3º nº 1 al. c); 47º; 58º e 63º da Lei 47/86, de 15.10, segundo a redacção da Lei 114/2017, de 29.12 e das regras específicas que regem a tramitação do processo penal, com especial enfoque, nos arts. 48º a 56º do CPP e nas que se referem às finalidades e razão de ser do inquérito, contidas nos arts. 262º e seguintes do mesmo código. A verificação desta nulidade depende, pois, da ocorrência cumulativa de duas circunstâncias: a notícia de factos em relação aos quais não seja evidente, nem notório que os mesmos são destituídos de tutela penal (seja por via da prescrição, de amnistia, da extinção do direito de queixa, de despenalização resultante da sucessão de leis penais no tempo, ou da manifesta falta de tipicidade) e a total omissão de diligências probatórias de investigação. Não foi o que aconteceu no caso vertente. Compulsado o processo, verifica-se que, anexos à queixa apresentada, pela assistente, a fls. 1 a 31, foram juntos doze documentos, entre os quais, o contrato de empreitada celebrado entre a assistente e o Sporting Cube de Portugal, com vista à construção de um pavilhão desportivo com a designação «Pavilhão Desportivo João Rocha» pelo preço global de € 7.496.962,00; cópias de seis facturas e correspondentes autos de medição dos trabalhos de execução do referido pavilhão; uma carta dirigida pelo Sporting Clube de Portugal à assistente Ferreira Construção, Lda., devolvendo as referidas facturas, de uma garantia bancária tendo por beneficiário o Sporting Clube de Portugal; de uma carta do Banco Santander dirigida à assistente, dando notícia da interpelação feita pelo Sporting para accionar a referida garantia bancária e a convidar assistente a informar o que tivesse por conveniente para avaliarem da justeza de tal interpelação e de uma carta da assistente e dirigida ao Banco Santander, na qual aduz as razões por que considera que o acionamento da garantia bancária é ilegítimo (documentos de fls. 33 a 75); O Mº.Pº. no decurso do inquérito (despachos de fls. 89 a 91; de fls. 416) determinou, respectivamente: A junção aos autos das certidões permanentes da assistente e da sociedade Ficope – Fiscalização e Coordenação e Projectos de Engenharia, Lda. e que a assistente juntasse aos autos cópias dos anexos ao contrato de empreitada dos autos e do caderno de encargos contendo as condições gerais e administrativas, o que esta fez (cfr. fls. 112 a 415); Que o Banco Santander juntasse aos autos cópia da interpelação feita pelo Sporting Clube de Portugal com vista ao acionamento da garantia bancária, que esclarecesse porque é que, tendo recebido tal interpelação, questionou a assistente sobre a justeza da interpelação e em que data ocorreu o pagamento da quantia indicada na mesma garantia bancária, o que o Santander fez (fls. 421 a 435). E a fls. 443 a 450 determinou o arquivamento do processo, mais tendo referido que «não é necessária a realização de quaisquer outras diligências, uma vez que já é possível concluir pela inexistência de crime» (cfr. fls. 445). Daqui resulta que não pode dizer-se que o inquérito tenha sido omitido, na medida em que o Mº. Pº, depois de apresentada a queixa, proferiu despachos a determinar a recolha de documentos, analisou-os, depois da sua junção aos autos e, de seguida, proferiu despacho a determinar o arquivamento dos autos, precisamente, com base na análise de tais documentos e com referência à factualidade que deles se podia extrair, por comparação com a que vinha alegada no requerimento de queixa. Não houve, por conseguinte, qualquer nulidade traduzida em omissão do inquérito. Porque, na fase de inquérito, o único acto legalmente obrigatório é o interrogatório do arguido, se se verificarem as circunstâncias previstas no nº 1 do artigo 272º do Código de Processo Penal, e uma vez que a queixa foi apresentada contra sete pessoas, quanto muito o que se poderia configurar, seria a nulidade emergente da omissão do interrogatório dos arguidos. Não há dúvida de que, tendo o inquérito por finalidade a prolação de uma decisão sobre a acusação (artigo 262º nº 1) e de que para tal efeito é essencial averiguar da ocorrência de um crime, da identificação do seu autor ou autores e da respectiva responsabilidade, na medida em que o processo penal visa a descoberta da verdade e a realização da justiça, a necessidade de audição daquele ou daqueles contra quem o inquérito é instaurado, surge como uma das manifestações das garantias de defesa do arguido consagradas, em geral, no art. 32º nº 1 da Constituição sob a forma do direito a ser ouvido pela autoridade judiciária antes de ser tomada qualquer decisão que pessoalmente o afecte, nos termos dos art. 61º nº 1 al. b); 141º e 144º do CPP. O art. 272º do CPP, de harmonia com as referidas garantias de defesa impõe a obrigatoriedade da realização do interrogatório do arguido, se o inquérito correr contra pessoa determinada em relação à qual haja fundada suspeita da prática de crime e desde que seja possível notificá-la. Porém, a omissão do interrogatório como arguido, da pessoa ou pessoas contra quem é apresentada a queixa, ou que na denúncia ou notícia do crime é indicada como suspeita da prática dos factos integradores do mesmo constitui uma nulidade relativa, logo, sujeita arguição para ser operante, arguição essa que para ser tempestiva tem de ser feita dentro do prazo fixado no art. 120º nº 3, ou seja, até ao encerramento do debate instrutório ou, não havendo lugar a instrução, até cinco dias após a notificação do despacho que tiver encerrado o inquérito. «A falta de interrogatório como arguido, no inquérito, de pessoa determinada contra quem o mesmo corre, sendo possível a notificação, constitui a nulidade prevista no artigo 120º nº 2, alínea d), do Código de Processo Penal» (Ac. do STJ nº 1/2006 de 23 de Novembro de 2005, Diário da República n.º 1/2006, Série I-A de 2006-01-02. Cfr., ainda, o Ac. do Tribunal Constitucional nº 52/2011 de 1 de Fevereiro de 2011, www.tribunalconstitucional.pt, que não julgou inconstitucionais as normas constantes dos artigos 272º nº 1, 119º alínea c), e 120º nº 2, alínea d), do Código de Processo Penal, quando interpretadas no sentido de que a falta de interrogatório como arguido, no inquérito, de pessoa determinada contra quem o mesmo corre, sendo possível a notificação, constitui a nulidade prevista no artigo 120º nº 2 alínea d) do Código de Processo Penal). No caso vertente, nenhuma das pessoas contra as quais foi apresentada a queixa foi formalmente constituída como arguida, nem sujeita a qualquer interrogatório, mas a verdade é que a assistente nem sequer arguiu a omissão dos interrogatórios como arguidos destas pessoas, pelo que a nulidade decorrente da não realização destas diligências, sendo relativa, se deve ter por sanada. A recorrente, de resto, nem sequer indicou quais seriam as diligências probatórias que, no presente caso, seriam as pertinentes e necessárias ao apuramento dos factos, para além daquelas a que já tinha feito menção, no seu requerimento de abertura de instrução e cuja realização tinha requerido, como se pode concluir da comparação entre a conclusão H do recurso (fls. 588 e 589) e o art. 60º do requerimento de abertura da instrução (fls. 473). Neste conspecto, cumpre referir que, por despacho proferido em 20 de Março de 2019 (cfr. fls. 484 e 495), a Mma. Juiz de Instrução Criminal indeferiu a realização das diligências requeridas pela assistente, no pedido de realização da instrução, com fundamento na sua desnecessidade e inutilidade para as finalidades da instrução. Ora, na fase da instrução, o Juiz tem ampla liberdade de investigação e, pese embora não possa ordenar a prática de actos ou diligências probatórias que hajam sido já efectuadas durante o inquérito, excepto se as mesmas padecerem de algum vício por preterição das formalidades legais a que estão sujeitos, ou se a repetição for indispensável à descoberta da verdade (cfr. art. 291º nº 3 do CPP), pode e deve praticar tanto os requeridos no pedido de abertura da instrução, como ordenar oficiosamente todos os actos que considere essenciais e/ou úteis à descoberta da verdade, indeferindo, por decisão irrecorrível, os que não interessarem à descoberta da verdade ou servirem apenas para protelar o andamento do processo, sem prejuízo da possibilidade de reclamação. Apenas está obrigado a interrogar o arguido e a tomar declarações ao assistente, se estes o requererem, tal como previsto no art. 292º nº 2 do CPP (sendo certo que a omissão destas diligências é também uma nulidade relativa dependente de arguição até ao encerramento do debate instrutório, nos termos dos arts. 118º e 120º nºs 1 al. d) e nº 3 al. c) do CPP, à semelhança do que sucede com o interrogatório do arguido, durante o inquérito, pela mesma ordem de razões – cfr. Ac. da Relação de Coimbra de 08.07.2015, processo 204/14.9PCCBR.C1, in http://www.dgsi.pt). É ao Juiz que compete, em seu prudente arbítrio, delimitar o âmbito e o conteúdo da actividade probatória a desenvolver no decurso da instrução, em função dos meios de prova ou de obtenção de prova que se afigurarem relevantes para a comprovação judicial da decisão proferida pelo Mº.Pº., no final do inquérito, no sentido de submeter ou não a causa a julgamento, sem qualquer vinculação ao que foi pedido pelo arguido ou pelo assistente, embora balizada por esses referentes que são, por um lado, a de descoberta da verdade material, erigida como valor essencial do sistema da livre apreciação da prova consagrado no art. 127º do CPP e, por outro, a finalidade da instrução expressamente prevista no art. 286º do mesmo código, de aferição judicial da legalidade ou ilegalidade processual da acusação ou abstenção de acusar. Trata-se de uma decisão livre, em relação à qual, sendo admissível a reclamação, não há, porém, recurso, tal como resulta das disposições conjugadas dos arts. 291ºnº 2 e 400º nº 1 al. b) do CPP. Ora, no caso vertente, a assistente nem reclamou do despacho de 20 de Março de 2019 que indeferiu a realização das diligências probatórias por si peticionadas, nem o mesmo pode ser arguido de nulidade, na medida em que a nulidade da insuficiência da instrução só pode concretizar-se com a omissão de actos que sejam obrigatórios e o despacho de 20 de Março de 2019 indeferiu diligências não obrigatórias de instrução. Daí que, em conformidade, o pedido final do recurso, na parte em que se refere «ordenando-se a continuidade do processo, com a devolução ao Ministério Público, para melhor instrução do processo, ou ao Juízo de Instrução recorrido, para a concretização das diligências requeridas e prosseguimento do processo», na medida em que só pela verificação de alguma nulidade arguida de forma eficaz para determinar a prática de diligências probatórias obrigatórias indevidamente omitidas poderia ter lugar, não merece provimento, já que tal arguição não foi feita em tempo útil. A assistente vem ainda invocar a denegação de justiça. A denegação de justiça não é, propriamente, um vício de uma decisão judicial, que inquine de forma directa a sua validade ou eficácia, mas, muito mais do que isso, constitui um crime p. e p. pelo art. 369º n.º 1 do C. Penal, que, tal como a sua inserção sistemática no Código Penal revela, protege a realização da Justiça, na vertente da exigência de observância e efectivo cumprimento do direito objectivo, por parte dos órgãos e seus titulares e agentes inseridos no sistema de administração da justiça, com especial enfoque para os Tribunais, de forma correcta assegurando a efectiva defesa dos direitos dos cidadãos e garantindo a dignidade da pessoa humana (Medina Seiça, Comentário Conimbricense ao Código Penal, anotação ao artigo 369º, p. 605 e seguintes). A execução típica traduz-se num comportamento objectivo – acto ou omissão contrários ao direito; levado a cabo por um funcionário, na acepção do art. 386º do CP; praticado no âmbito de inquérito processual, processo jurisdicional, por contra-ordenação ou disciplinar, por parte de funcionário, conscientemente assumido, havendo lugar à agravação no caso de o agente agir com intenção de prejudicar ou beneficiar alguém. A actuação contrária ao direito pode revestir diversas formas, tanto quando é praticada por acção, como quando ocorrer por omissão. A característica comum a todas elas, é a violação dos deveres funcionais inerentes ao cargo (tipo específico próprio) e, em resultado dela, a total falta de correspondência entre a decisão tomada e/ou o acto praticado e o direito objectivo aplicável, ou com a situação jurídica objectiva, o que implica que o direito aplicável tenha um teor literal claro e inequívoco que aponte para um conteúdo significativo unívoco, estando, pois, excluídos do seu âmbito as decisões que sejam objectivamente defensáveis, ou seja, aquelas que resultem da opção por uma das diferentes soluções possíveis, de acordo com as regras de interpretação e com os argumentos que sobre uma determinada previsão legal são apontados pela Doutrina e pela Jurisprudência em diferentes sentidos. Face à exigência típica decorrente da expressão “conscientemente”, só o dolo directo e o necessário são relevantes, não se encontrando abrangidas pela norma incriminadora e, por isso, não sendo puníveis as situações recondutíveis ao dolo eventual. Ora, a questão de saber se a celebração de um determinado negócio jurídico pode ou não constituir um artifício enganoso e, por via dele, à apropriação ilegítima de património alheio, por via da prática de actos de disposição patrimonial praticados pela própria vítima, mas determinados pelo erro ou engano astuciosamente criados pelo agente, com é próprio do crime de burla, está longe de ser consensual e sobretudo, depende de uma avaliação casuística das circunstâncias e da sua comparação com os critérios que são normalmente apontados, na doutrina e na jurisprudência para distinguir entre a assim chamada «fraude civil» e a «fraude penal». De resto, ciente da existência desses critérios de interpretação, é a própria recorrente quem faz uma resenha dos mesmos nas motivações 13 a 15 e na conclusão G). Ora o juízo da não verificação de indícios da prática dos crimes de burla e de associação criminosa explanado na decisão instrutória assentou, basicamente, na consideração de que o não pagamento das facturas emitidas pela assistente e dirigidas ao denunciado Sporting Clube de Portugal para pagamento de parte do preço da empreitada referente à construção do pavilhão desportivo João Rocha, assim como o acionamento da garantia bancária associada a tal contrato, não têm tutela penal por se reconduzirem a actos que devem ser apreciados em acção cível, por referência às regras legais em matéria de responsabilidade civil contratual que a Mma. Juiz de Instrução Criminal entendeu serem as aplicáveis. Esta argumentação pode não ser a mais correcta e foi justamente para avaliar esse acerto, que foi instaurado o presente recurso. Mas não viola qualquer dever funcional, inerente à função de julgar, antes é a concretização do dever de fundamentar as decisões judiciais em sintonia com os princípios consagrados nos arts. 205º da Constituição e 97º nº 5 do CPP, optando por uma das possíveis soluções de direito pertinentes para a solução da situação factual trazida à apreciação do Tribunal pela assistente, nos seus requerimentos de queixa e de abertura da instrução. A recorrente confunde o seu desagrado em relação aos argumentos e ao sentido da decisão instrutória com denegação de justiça, o que não é aceitável, sob pena de neutralização da liberdade e da independência dos tribunais e dos juízes, na administração da Justiça que são precisamente os garantes do bem jurídico tutelado no art. 369º do CP e de se fazer tábua rasa do regime jurídico dos recursos. É que, extremando o que parece resultar das motivações e conclusões do recurso, sempre que uma decisão judicial fosse desfavorável aos interesses de um dos sujeitos processuais, seria através da imputação do crime denegação de justiça ao magistrado judicial autor de tal decisão que se resolveria a discordância, relativamente à mesma. Por conseguinte, a alusão a denegação de justiça que a recorrente faz é completamente descabida, no caso vertente e sem qualquer fundamento legal. Quanto à imputada omissão de pronúncia. Nos termos do art. 379º nº 1 al. c) do CPP, a sentença é nula, sempre que se verifique a ausência de decisão do tribunal sobre matérias em que a lei imponha que o juiz tome posição expressa. Esta sanção da nulidade, exclusivamente prevista para as sentenças (atento o princípio da legalidade em matéria de nulidades, ínsito no art. 118º nºs 1 e 2 do CPP), visa garantir a completude ou exaustividade da decisão, de acordo com o qual, uma sentença deve conter, de forma esgotante, a apreciação dos factos e o respectivo enquadramento jurídico, em estreita coerência com o que foi alegado pelos sujeitos processuais; com a prova produzida e com o direito aplicável, segundo as várias soluções jurídicas possíveis e segundo os seus poderes de cognição, resultantes das regras do processo ou dos temas pertinentes à decisão de mérito sobre o objecto do processo ou sobre a tramitação do mesmo, que tenham sido colocadas à apreciação do tribunal, pelos sujeitos processuais. Trata-se de assegurar a coincidência significativa entre o que é pedido e o que é julgado. De acordo com o preceituado no nº 2 do artigo 608º do Código Processo Civil, aplicável, ex vi do art. 4º do CPP, o «juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. Não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras». É, pois, neste sentido, que deve ser interpretada a palavra «questões» incluída na previsão do art. 379º nº 1 al. c) do CPP, sentido este, que não se confunde com os simples argumentos, teses doutrinárias ou jurisprudenciais, razões, ou opiniões invocados pelos sujeitos processuais para sustentar a sua pretensão, reconduzindo-se antes a problemas concretos com incidência e influência directa no desfecho do processo, esteja em causa uma decisão de mérito sobre o seu objecto, ou apenas a aplicação de normas de direito adjectivo que obstem ao conhecimento do fundo da causa. «A nulidade resultante de omissão de pronúncia verifica-se quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (al. c) do n.º 1 do art. 379.°), sendo certo que não se tem por verificada quando o tribunal deixa de apreciar algum ou alguns dos argumentos invocados pela parte tendo em vista a decisão da questão ou questões que a mesma submete ao seu conhecimento, só ocorrendo quando o tribunal deixa de se pronunciar sobre a própria questão ou questões que lhe são colocadas ou que tem o dever de oficiosamente apreciar, entendendo-se por questão o dissídio ou problema concreto a decidir e não os simples argumentos, razões, opiniões ou doutrinas expendidos pela parte na defesa da sua pretensão.» Ac. do STJ de 09.02.2012, processo 131/11.1YFLSB, in http://www.dgsi.pt. No mesmo sentido, Acs. do STJ de de 24.10.2012, processo 2965/06.0TBLLE.E1; de 20.11.2014, processo 87/14.9YFLSB; de 17.06.2015 processo 1149/06.1TAOLH-A.L1.S1; de 02.05.2018, processo 736/03.4TOPRT.P2.S1; de 05.06.2019, processo 8741/08.8TDPRT.P1.S1, in http://www.dgsi.pt e Oliveira Mendes, Código de Processo Penal Comentado, obra colectiva, 2014, Almedina, pág. 1182). Ora, nos termos do art. 308º do CPP, encerrado o debate instrutório, o juiz profere despacho de pronúncia ou de não pronúncia, pelo que, da concatenação desta norma com as constantes do art. 97º nº 1 al. b) e nºs 4 e 5 do mesmo diploma, resulta, desde logo, que o legislador atribuiu à decisão instrutória a natureza jurídica de despacho e não de sentença, pelo que, por força dos princípios da legalidade e da tipicidade das nulidades consagrado no art. 118º do CPP, a omissão de pronúncia, como nulidade insanável, não se aplica à decisão instrutória, constituindo uma mera irregularidade que deveria ter sido suscitada até ao encerramento do debate instrutório (art. 123º do CPP ) e não foi. Em todo o caso, o assunto acerca do qual a recorrente invocou a omissão de pronúncia são as diligências probatórias que requereu, quando pediu a instrução e acerca das quais foi proferido o despacho de 20 de Março de 2019, pelo que a Mma. Juiz não deixou de se pronunciar sobre o pedido de realização de tais diligências, indeferindo-as, não havendo qualquer omissão de pronúncia. Relembra-se, em todo o caso, que a decisão tomada em 20 de Março de 2019 é um despacho irrecorrível, em relação ao qual não podem, por conseguinte, ser invocadas nulidades relativas ou irregularidades, por força do efeito de caso julgado. A recorrente também confunde e mistura na conclusão K a omissão de pronúncia com a ausência de investigação dos factos, mas quanto a este conspecto, além do que já foi referido quanto à natureza da omissão de pronúncia, quando aplicado à decisão instrutória, apenas poder constituir mera irregularidade e esta não ter sido arguida em tempo útil, no que se refere à omissão de inquérito, ou de diligências probatórias, remete-se a recorrente para tudo quanto já foi exposto acerca da inexistência de qualquer nulidade. Quanto ao invocado impedimento de exercício dos direitos de defesa da assistente, os seus direitos de intervenção no processo penal, têm a sua fonte nos arts. 20º e 32º nº 7 da CRP. Segundo o que dispõe o art. 20º nºs 1 e 5 da Constituição, todos têm garantido o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, mesmo que não tenham recursos económicos e, para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos. Nos termos do citado art. 32º nº 7 da Constituição, o ofendido tem o direito de intervir no processo, nos termos da lei. Foi, pois, a própria Constituição que previu a regulação pela lei ordinária dos termos e condições que o ofendido poderia vir a participar do processo penal, acometendo-lhe o CPP a função de colaborador do Mº. Pº., a cuja actividade terá, em princípio e com algumas excepções previstas na lei, de subordinar a sua própria intervenção no processo, tal como previsto no art. 69º do CPP. «Este reenvio para a lei não pode, porém, interpretar-se no sentido de uma completa liberdade de conformação por parte do legislador dos poderes processuais do ofendido. Dentre estes, o legislador não pode deixar de consagrar o direito (poder) de acusar, o poder de requer a instrução (no caso de arquivamento dos autos por deliberação do Ministério Público), o poder de recorrer da sentença absolutória [...]» (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª ed. revista, Coimbra Editora, 2007, pp. 523 e 524). «Ora, a remissão para a lei, constante do n.º 7 do artigo 32.º, (…) não pode ser interpretada como permitindo privar o ofendido daqueles poderes processuais que se revelem decisivos para a defesa dos seus interesses [...]» (Declaração de voto no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 205/2001, de 9 de Maio de 2001, disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt.). No caso vertente, não se vislumbra em que possam ter resultado lesados ou minimamente prejudicados os direitos de intervenção no processo da assistente – apresentou queixa, constituiu-se assistente, requereu a abertura da instrução, apresentou provas, recorreu da decisão instrutória, tal como lhe permite o seu estatuto jurídico e processual, não podendo confundir a circunstância de não lhe ter sido dada razão, com o prejuízo para os seus direitos de participação no processo porque essa é uma outra questão que tem a ver com o juízo de mérito sobre o objecto do processo e não se confunde com qualquer impedimento de maior ou menor grau ao exercício de tais direitos. De resto, nem sequer corresponde à realidade da tramitação processual a afirmação de que desconhece quais foram as diligências probatórias levadas a cabo, concretamente quanto a saber se houve inquirições ou buscas, porque bastariam as notificações dos despachos proferidos a fls. 89 a 91 e 416, através dos quais o Mº. Pº. lhe requisitou vários documentos e a leitura do despacho de arquivamento que igualmente lhe foi notificado, para ter percebido que não foram feitas quaisquer inquirições ou buscas e que o Mº. Pº., tal como a Mma. Juiz de instrução criminal assentaram os seus juízos acerca dos indícios, na análise da prova documental. Prevenindo, ainda, dada a natureza algo confusa das conclusões do recurso, que a recorrente tenha invocado a falta de fundamentação da decisão instrutória, em face do que consta das conclusões B e E, dir-se-á o seguinte: A fundamentação das decisões judiciais implica, em geral, um processo argumentativo de justificação da afirmação de que a determinados factos é aplicável uma determinada solução jurídica, através da enumeração e explicitação das razões de facto e de direito que conduziram a uma determinada subsunção jurídica dos o sentido da decisão. Numa dimensão endoprocessual, a fundamentação serve propósitos de clareza e compreensão pelos seus destinatários essenciais ao cumprimento da decisão e ainda de controlo da legalidade da actividade jurisdicional e do acerto e justiça da decisão, pelas autoridades judiciárias de recurso. Numa vertente extraprocessual, as exigências de fundamentação assumem-se como um mecanismo de legitimação democrática dos próprios Tribunais e da administração da Justiça. «A consagração constitucional do princípio da fundamentação das decisões judiciais é uma garantia do processo judicial, no sentido de um procedimento justo e adequado de acesso ao direito e de realização do direito. Mas é sobretudo o reconhecimento de que os tribunais, constitucionalmente investidos do poder de julgar, em nome do povo, têm que dar conta do modo como exercem esse poder através da fundamentação das suas decisões, assim se legitimando a sua própria função.» (Mouraz Lopes, “Gestão Processual: Tópicos para um incremento da qualidade da decisão judicial”, in Julgar, n.º 10, janeiro-abril 2010, p. 143. No mesmo sentido, Rogério Bellentani Zavarize, A Fundamentação das Decisões judiciais. 1 ed. – Campinas/SP: Millennium, 2004, p.123; Lenio Luiz Streck e Igor Raatz, O Dever de Fundamentação das Decisões Judiciais sob o Olhar da Crítica Hermenêutica do Direito, doi:10.12662/2447-6641oj.v15i20.p160-179.2017, Julho de 2017, https://www.researchgate.net/publication/322218024, Michele Taruffo, Il controllo di razionalità della decisione fra logica, retorica e dialettica https://iris.unipv.it/handle/11571/210955?mode=full.47#record, Francesco Conte, Il Significato constituzionale dell´obblligo di motivazione. In: Grinover, Ada Pelegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel; WATANABE, Kazuo (Coord.) págs. 30-31, https://books.google.pt). O dever de fundamentação das decisões judiciais, seja qual for a jurisdição em que sejam proferidas, é, pois, um dos alicerces do Estado de Direito Democrático, na medida em que assegura que o processo seja justo e equitativo, de harmonia com o disposto no art. 20º nºs 4 e 5 da Constituição, em face da aptidão do princípio da motivação para impedir a arbitrariedade e a descriminação, bem assim, para conferir imparcialidade às decisões, assegurando, por esta via, o respeito pelos direitos liberdades e garantias fundamentais em sintonia com os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da igualdade e da proporcionalidade, nos termos dos arts. 2º; 13º e 18º da Constituição, respectivamente. Em suma, o princípio da exigência de fundamentação assume-se como garantia da imparcialidade do juiz, do controle da legalidade da decisão, e da possibilidade de impugnação das decisões, a par da possibilidade de controle do exercício do poder judiciário fora do contexto processual, por parte do povo em nome de quem deve ser feita a administração da justiça, no contexto de uma concepção democrática do poder. «(…) O dever de fundamentação transporta para o domínio do processo penal questões de ética relacionadas com a salvaguarda da liberdade pessoal e com a função estadual punitiva. «No fundo, o dever de fundamentação abraça múltiplos princípios de densidade constitucional como o da dignidade da pessoa humana, da legalidade, da imediação e da contraditoriedade, da presunção de inocência, do direito à tutela efectiva e da livre apreciação da prova» (José Tomé de Carvalho, Breves Palavras Sobre a Fundamentação da Matéria de Facto no Âmbito da Decisão Final Penal no Ordenamento Jurídico Português, In Julgar, nº 21, Setembro-Dezembro de 2013, p. 78). Assim é que o dever de fundamentar uma decisão judicial é uma consequência da previsão contida no artigo 205º nº 1 da Constituição da República Portuguesa, que estabelece que «as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei». «Tratando-se de um princípio fundamental no ordenamento jurídico nacional, a sua concretização normativa, nos vários ordenamentos não pode deixar de concretizar as várias dimensões onde se sustenta: generalidade, indisponibilidade, completude, publicidade e concretização do duplo grau de jurisdição.» (Mouraz Lopes, “Gestão processual: tópicos para um incremento da qualidade da decisão judicial”, in Julgar, n.º 10, janeiro-abril 2010, p. 143). Na vertente processual penal, este imperativo constitucional densifica-se em várias disposições legais, desde logo, no princípio geral, consagrado no art. 97º nº 5 do CPP, quanto à exigência da especificação dos motivos de facto e de direito de qualquer decisão e, ainda mais especificamente, no art. 307º nº1 do CPP que prescreve que, “encerrado o debate instrutório, o juiz profere despacho de pronúncia ou não pronúncia (…) podendo fundamentar por remissão para as razões de facto e de direito enunciadas na acusação ou no requerimento de abertura da instrução”. O Juiz de instrução criminal deve, pois decidir expressa e fundamentadamente, procedendo à discussão dos indícios reportando-se naturalmente às razões de facto e de direito aduzidas no requerimento de abertura da instrução, bem como, à prova produzida na fase da Instrução, se submete ou não a causa a julgamento. No caso vertente, como se pode verificar da simples leitura da decisão instrutória a mesma encontra-se fundamentada com a enumeração dos factos trazidos pela assistente no seu requerimento de queixa e reproduzidos no requerimento de abertura da instrução, expôs as razões de direito com fundamento nas quais considerou que os factos não têm tutela penal, por se reconduzirem a questões de cumprimento de um contrato de empreitada ou, pelo menos, de divergências acerca da exigibilidade do pagamento das quantias tituladas nas facturas objecto destes autos e da garantia bancária associada ao referido contrato de empreitada. Mais uma vez, a recorrente confunde o seu descontentamento pelo facto de a Mma. Juiz de instrução criminal ter considerado que não existem indícios do crime de burla, nem do crime de associação criminosa, com a ausência de fundamentação. De acordo com o disposto no art. 283º nº 2, aplicável à instrução, ex vi do art. 308º nº 2 do CPP, a decisão instrutória será de pronúncia e, consequentemente, a causa só será submetida a julgamento se, face aos indícios probatórios carreados aos autos e de acordo com um juízo de prognose em relação à fase da discussão e julgamento, for possível concluir pela existência da probabilidade de se demonstrarem os elementos constitutivos da infracção e, consequentemente, de aos arguidos vir a ser imposta uma pena ou medida de segurança ou, pelo menos, no sentido de que essa probabilidade é maior do que a de virem a ser absolvidos (Figueiredo Dias Direito Processual Penal, volume I, pág. 133 e Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III volume, pág. 179). Face ao texto do art. 217º do CP, os elementos constitutivos do crime de burla (objetivos e subjetivos) são os seguintes: a) - o emprego de astúcia pelo agente; b) - o erro ou engano da vítima devido ao emprego da astúcia; c) - a prática de actos de disposição patrimonial pela vítima em consequência do erro ou engano em que foi induzida; d) - o prejuízo patrimonial da vítima ou de terceiro resultante da prática dos referidos atos; e) - a intenção do agente de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo. Exige-se, ainda, um duplo nexo de causalidade – entre o erro ou engano provocados astuciosamente pelo agente e a prática, pelo sujeito passivo, de actos tendentes a uma diminuição do património próprio ou alheio (portanto, a conduta enganatória do autor do crime tem de ser a causa da disposição patrimonial da vítima) e entre estes actos e a efectiva verificação do prejuízo patrimonial – aferido de acordo com a teoria da adequação (Almeida Costa, Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo II, p. 293; Bajo Fernandez, Manual de Derecho Penal, parte especial, p. 175; Beleza dos Santos, A burla prevista no artigo 451.º do Código Penal e a fraude punida pelo artigo 456º do mesmo Código, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 76, pág. 291 a 325; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2008, p. 599 e 600; Cavaleiro de Ferreira, Scientia Juridica, Ano 1970, pág. 301). Por regra, a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso de obrigações assumidas em resultado da celebração de negócios jurídicos não deve ser confundida, e efectivamente não se confunde, com a prática do crime de burla. Tal só acontecerá quando um contrato é celebrado para encobrir e concretizar este crime e, na prática, acaba por se constituir como o próprio erro ou engano determinante do acto de disposição patrimonial da vítima conducente à correspondente apropriação pelo agente. Mas é preciso que acresçam outros factos que postulem a necessidade de intervenção do direito penal, naquilo que é a sua verdadeira essência de mecanismo de prossecução da paz social e de protecção de bens jurídicos, porque o direito civil contém já recursos próprios para dar resposta à má-fé das partes, através do regime jurídico das nulidades e das anulabilidades, com a consequente destruição dos efeitos dos negócios jurídicos e a indemnização pelo interesse contratual negativo, sendo que o entendimento contrário alargaria intoleravelmente o âmbito de aplicação do direito penal a áreas do comportamento humano, nas quais não deve ter aplicação, em sintonia com os princípios da subsidiariedade, fragmentariedade e necessidade do direito penal. Assim, por exemplo, no erro motivado por dolo, como vício intencional da vontade, em matéria de contratos, sendo um ilícito meramente civil e motivo de anulação de todos os negócios que dele padeçam, a forma de actuação do contraente de má fé que induz ou provoca o erro da outra parte, para dela obter uma determinada declaração negocial, é idêntica, do ponto de vista da natureza das condutas, do tipo de culpa e respectivo grau de censurabilidade, bem assim do seu impacto, ao nível do processo psicológico de motivação do interlocutor, à que é exigida pelo art. 217º do CP para a consumação do crime de burla. «Na doutrina civil o "dolo in contrahendo" determinante da nulidade do contrato (dolo grave ou causante) configura-se em termos praticamente idênticos ao engano constitutivo da burla (…) inclusive quanto à eficácia causal para produzir e provocar o acto dispositivo» (T. S. Vives Anton, Compendio de Derecho Penal, Parte Especial, 497-8. No mesmo sentido, Nelson Hungria, Comentários ao Código Penal, VII, pág. 168). Anote-se que não se trata, quando se fala em vícios intencionais da vontade negocial, de um dolo incidental ou subsequente, em que, no momento da celebração, o negócio é realmente querido por quem emite a declaração, mas no decurso da sua execução não cumpre, mesmo que dolosamente, a prestação a que se vinculou, caso em que apenas se poderá falar de incumprimento de um contrato válido e eficaz. Nos termos do art. 227º nº 1 do CC, as partes estão vinculadas a agir de acordo com as regras da boa fé, tanto nos preliminares, como na fase decisória de formação dos contratos, sob pena de terem de indemnizar os prejuízos que culposamente causarem à outra parte. Entre essas regras, contam-se os deveres de informação, de lealdade e de cooperação recíprocas entre os contraentes e um dos exemplos normalmente apontados como de inobservância culposa destes deveres é o de a conduta da parte faltosa dar origem à celebração de um contrato nulo ou anulável, como sucede, quando se verifica algum dos vícios na formação da vontade, sobretudo, os chamados vícios intencionais. Mas existem situações em que, nem o regime da responsabilidade civil contratual, nem o da nulidade ou anulabilidade previstos no Código Civil dão resposta cabal a certo tipo de comportamentos negociais, do ponto de vista da reposição da ordem jurídica e da salvaguarda da expectativa comunitária na validade e eficácia das regras do Direito. Desde logo porque, tendo o princípio da boa fé um acentuado carácter ético-jurídico, a sua violação poderá não ser sancionada, adequada e suficientemente, com a mera imposição de um dever de indemnizar, nem com a declaração judicial de nulidade ou com a anulação dos negócios jurídicos. De acordo com os princípios da proporcionalidade, da protecção residual e do carácter fragmentário do direito penal, por um lado e com o princípio da autonomia privada do direito civil, por outro, embora se reconheça que os contratos civis podem, eles próprios, por si só, constituir o embuste ou o artifício típicos da burla, a tutela jurídico-penal deve ficar reservada às situações que, pela sua densificação enganosa ou grau de maquinação e mentira quando comparadas com aquele erro que é, consabidamente, próprio dos usos do comércio, são de tal modo reprováveis, do ponto de vista ético-jurídico, que não podem senão ser enquadráveis no tipo de burla. (Cândido Conde-Pumpido Ferreiro, “Estafas”, Tirant lo Blanch, Valência, 1997, p. 55.; Costa Andrade, Sobre o Estatuto e Função da Criminologia Contemporânea, Separata de Documentação e Direito Comparado do BMJ, de 1983, nº 13, p. 25 e seguintes; Ac. da Relação de Coimbra de 07.06.2006, in http://www,dgsi.pt). Ficarão, de imediato, arredadas da tutela penal, além das pequenas mentiras irrelevantes e co-naturais ao mundo dos negócios (v.g., o empolamento fictício das qualidades da coisa, certos subterfúgios adequados à obtenção de um prazo dilatado de pagamento, etc.), as hipóteses em que a mentira ou o engano são de tal modo flagrantes e apreensíveis, mesmo pelo mais ingénuo dos cidadãos, que só uma imprevidência grosseira os determina a praticar o acto de disposição patrimonial, no domínio da tentativa ou do crime impossível, ou nos casos em que o risco de violação de bens jurídicos penalmente protegidos, foi criado e potenciou a efectiva violação, pelo próprio titular desses bens, por não ter, podendo e devendo fazê-lo, recorrido aos meios de auto-tutela que tinha ao seu dispor. Isto, partindo da constatação de que, no equilíbrio entre os princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade do Direito Penal e os da autonomia privada e da livre concorrência, a assunção da obrigação social de salvaguardar bens alheios tem, como reverso, a auto-responsabilização dos titulares dos bens jurídicos objecto de protecção e de que «o conhecimento de uns e o erro ou ignorância de outros, determina o sucesso, apresentando-se o erro como um dos elementos do normal funcionamento da economia de mercado, sem que se chegue a integrar um ilícito criminal» (Ac. do STJ de 03.02.2005 in http://www.dgsi.pt. No mesmo sentido, Acs. do STJ de 13.01.1993, BMJ nº 423, p. 214; de 01.07.1998, CJ, ASTJ, Tomo II, p. 223; Ac. do STJ de 18.10.2001; de 20.12.2006 e da Relação do Porto de 10.10.2007, estes in http://www.dgsi.pt). De harmonia com tais princípios, terão também de ficar de fora da tutela penal, os meros incumprimentos contratuais e outras condutas ilícitas, apenas do ponto de vista do Direito Privado, como sejam o abuso de direito. Mas, justamente, em nome desse equilíbrio é que certos contratos não podem servir de pretexto ou de cobertura de aparente legalidade, para a prática de actos ilícitos com relevância penal, como se nada, além de um incumprimento contratual tivesse sucedido, quando, na realidade, são verdadeiros actos de espoliação, que, por isso, justificam uma reacção mais acentuada da ordem jurídica, através da imposição de uma pena, em função do aumento do desvalor da conduta e do resultado e do respectivo grau de censurabilidade, que ultrapassa o ilícito meramente civil. Em sede de relações contratuais, haverá fraude penal quando «há propósito ab initio do agente de não prestar o equivalente económico; há um dano social e não puramente individual; há a violação do mínimo ético; há um perigo social, mediato ou indirecto; há uma violação da ordem jurídica que, por sua intensidade ou gravidade, tem como única sanção adequada a pena; há fraude capaz de iludir o diligente pai de família; há evidente perversidade e impostura; há uma mise-en-scène para iludir; há uma impossibilidade de se reparar o dano; há o intuito de um lucro ilícito e não do lucro do negócio (Júlio Fabbrini Mirabete, Manual de Direito Penal II, 19.ª Edição, pá. 297-8. No mesmo sentido, Francisco Muñoz Conde, in “Derecho Penal, Parte Especial”, Tirant lo Blanch, p. 404; J.A. Choclán Montalvo, em “El Delito de Estafa”, Bosch, Barcelona, 2000, p.80 e Cândido Conde-Pumpido Ferreiro, “Estafas”, Tirant lo Blanch, Valência, 1997; Costa Andrade, “Sobre o estudo e Função da Criminologia Contemporânea, in Separata do BMJ 13, p. 25 e, ainda, Ac. do STJ de 22.05.2002, CJ, ASTJ, Tomo II, p. 206 e Acs. do STJ de 10.05.2000; de 20.03.2002; de 03.02.2005; de 04.10.2007, processo 07P2599, Ac. da Relação de Évora de 20.05.2014, processo 1915/13.1TASTB.E1 e Acs. da Relação do Porto de 11.01.2017, processo 1830/12.6JAPRT.P1 e de 26.04.2017, processo 399/14.1T9STS.P1, in http://www.dgsi.pt). Os negócios jurídicos são um instrumento indispensável ao tráfego jurídico, ao desenvolvimento da economia e à prossecução de certas necessidades individuais das pessoas que neles figuram como contraentes, conquanto correspondam a genuínas vontades negociais e se destinem a prosseguir finalidades admitidas pelo Direito. O que não pode tolerar-se, sem prejuízo da quebra da confiança, nas relações comerciais e da emergência de sentimentos de insegurança e de suspeição no tráfego jurídico, é que os negócios jurídicos, constituam, em si mesmos considerados, o próprio artifício fraudulento, o engodo, o ardil ou embuste típicos do crime de burla. E a mentira ou o engano astuciosamente criados ou aproveitados para provocar ou induzir em erro outra pessoa, por forma a motivá-la a praticar um acto de desapossamento ou de perda de titularidade dos seus bens ou de terceiro e obter uma vantagem patrimonial injusta, à custa do património alheio, em que se materializa o crime de burla, pode perfeitamente ser praticado através de emissão de uma declaração negocial, erigindo-se o correspondente negócio jurídico em instrumento da fraude adequada à concretização do prejuízo patrimonial (Maia Gonçalves, C. Penal Anotado, 8.ª ed., 1995, p. 731; Almeida Costa, Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo II, p. 307; Acs. da Relação de Coimbra de 13.12.2000; de 02.03.2005; de 07.06.2006, Ac. da Relação do Porto de 14.12.2017, processo 460/15.5PAMAI.P1 e Ac. da Relação de Lisboa de 10.04.2018, processo 9009/11.8TDLSB.L1 in http://www,dgsi.pt). Isto sucederá sempre que, nos contratos, por comparação com o incumprimento civil, apareça caracterizado o ilícito penal, estribado na intenção de uma das partes, sempre, necessariamente, antecedente ou, pelo menos, contemporânea às negociações que antecedem a formação do negócio em concreto, de jamais vir a realizar a sua prestação obrigacional ou ciente da sua impossibilidade de o fazer, tanto no acto da celebração, como na data do vencimento da sua obrigação contratual e, além disso, com o objectivo de se aproveitar do cumprimento da contraprestação, estando ciente de que irá causar ao outro contraente um prejuízo patrimonial, querendo esse resultado e esperando obter, à custa do cumprimento pela outra parte, no negócio, uma vantagem patrimonial a que sabe não ter direito. Na prática, tal modo de actuação pode traduzir-se num mero silêncio, no âmbito dos chamados comportamentos concludentes. Ora, em face da preponderância do princípio da boa fé nos negócios jurídicos, quer nas negociações com vista à formação do contrato (art. 227º do CC), quer no cumprimento das obrigações previstas, nas respectivas cláusulas e que integram o seu objecto imediato (art. 762º nº 2 do mesmo diploma), do seu conteúdo ético-jurídico, conjugados com a desnecessidade da adequação do engano ou mentira próprios da burla, por referência a um critério generalizador do tipo «homem médio» ou «bonus pater familiae», sendo tal adequação aferida em função dos contornos concretos de cada contexto factual e das características de personalidade da própria vítima, como acima ficou exposto, a propósito dos elementos constitutivos do tipo de burla, o anúncio de que se pretende comprar um determinado produto, que não corresponde à realidade, acompanhado da omissão da informação de que não se dispõe de quaisquer recursos monetários para efectuar o pagamento, configura uma mentira astuciosamente criada e causalmente dirigida e adequada à finalidade de convencer outrem a entregar-lhe essa coisa, objecto mediato do contrato, por exemplo, em cumprimento da obrigação, a cargo do empreiteiro, de realizar a obra, obtendo um certo resultado, em conformidade com o acordado, no prazo contratualmente previsto e sem vícios, que emerge da celebração de um contrato de empreitada e do respectivo regime jurídico, por exemplo, dos arts. 1207º e 1208º do CC. Este exemplo pode multiplicar-se e adaptar-se às declarações negociais típicas de qualquer outro tipo negocial, especialmente, no que se refere a contratos bilaterais, onerosos e sinalagmáticos, na medida em que a reciprocidade das prestações contratuais é potencialmente facilitadora da apropriação ilícita, através da prática dos actos de disposição patrimonial pela vítima. «Na órbita de conclusão de um contrato, se uma das partes se abstiver de declarar que não se encontra em condições de o cumprir, comete burla por actos concludentes, uma vez que a celebração de um negócio leva implicada a afirmação de que qualquer dos intervenientes tem a possibilidade de satisfazer as obrigações dele emergentes» (Almeida Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, p. 304). A eventual ingenuidade de alguns fornecedores não exclui a ilicitude, pois que, «não se compreende por que razão o descuido ou a leviandade do sujeito passivo deva excluir a relevância jurídico penal de uma conduta que, em todo o caso, consubstancia uma efectiva lesão do património (...) só esta perspectiva se harmoniza com o entendimento, hoje pacifico, de que a idoneidade do meio enganador utilizado pelo agente se afere tomando em consideração as características concretas do burlado (v.g. mercê de fragilidade intelectual, de inexperiência ou de especiais relações de confiança)» (Almeida Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, p. 304. No mesmo sentido, Fernanda Palma e Rui Pereira, «O crime de burla no código penal», RFDL, Lisboa, 1994, XXXV, RFDL, 1994, p. 328; Leal Henriques e Simas Santos, Código Penal Anotado, Vol. II, p. 538 e ss.). No caso vertente, a assistente pretende que a omissão de pagamento de um conjunto de seis facturas que perfazem uma quantia de cerca de € 199.617,74,00 e o acionamento de uma garantia bancária de € 374.848,10 correspondem a uma apropriação indevida de um valor que lhe pertence típica do crime e burla, porque reveladora de uma intenção inicial de não pagar o preço estipulado no contrato de empreitada. Acontece que esses valores representam, não a totalidade, mas uma pequena parte do valor global de € 7.496.962,00 contratualmente fixado entre o Sporting Clube de Portugal e a assistente Ferreira Construção, S.A. para o preço da construção do Pavilhão João Rocha. Segundo o que consta do teor dos documentos de fls. 59 a 67, as facturas em apreciação nestes autos representam o valor devido por alterações na execução da obra, nuns casos e pela execução de 95% da obra, segundo o auto de medição nº 33, noutros. Foram emitidas em 29 de Setembro de 2017, ou seja, já depois de concluídas as obras, segundo a versão dos factos apresentada pela própria assistente, no requerimento de abertura da instrução, que alegou que tal pavilhão foi inaugurado no dia 21 de Junho de 2017. Foram devolvidas sem pagamento, segundo o que consta do documento de fls. 68, por não terem sido validadas pela empresa responsável pela fiscalização dos trabalhos de construção do pavilhão. Quanto à garantia bancária, a mesma foi accionada uma vez cumpridas as condições expressamente previstas no próprio texto de tal garantia com cuja constituição e forma de acionamento a assistente expressamente concordou, tal como resulta do teor dos documentos de fls. 69 e de fls. 412 a 435. De resto, da descrição factual feita pela própria assistente, na medida em que no requerimento de abertura da instrução (aliás, à semelhança do requerimento da queixa crime), a assistente não imputou qualquer comportamento concreto, apto a enquadrar qualquer tipo de conluio entre os arguidos pessoas singulares, nem qualquer acto de convencimento da assistente a celebrar este contrato de empreitada, sem que o mesmo correspondesse a qualquer real declaração de vontade emitida pelo Sporting Clube de Portugal conducente à construção do pavilhão e ao pagamento do respectivo preço e que, sob a falsa aparência de uma vontade de celebrar uma empreitada, fosse, afinal, um mero embuste, um artifício usado para convencer a assistente a realizar a obra, sem lhe pagarem o preço e apenas para se apropriarem da obra pronta à custa do trabalho e dos recursos humanos e logísticos da assistente, caso em que se poderia ponderar a eventual prática do crime de burla. Muito pelo contrário, do próprio teor do requerimento de queixa, dos documentos que lhe estão anexos, assim como dos que foram juntos durante o inquérito e do requerimento de abertura da instrução pode concluir-se que o contrato de empreitada foi celebrado entre o Sporting Clube de Portugal e a Ferreira Construção SA, não havendo qualquer notícia de que não tenha sido regularmente cumprido até à emissão das referidas facturas em 29 de Setembro de 2017, ou seja, três meses depois da inauguração do pavilhão desportivo, segundo a alegação da assistente. É a própria recorrente que o afirma e da leitura do contrato junto a fls. 32 e seguintes não resta qualquer dúvida, de que é de empreitada o contrato que foi celebrado entre o Sporting Clube de Portugal e a Ferreira Construção, SA, tendo por objecto mediato, a construção do pavilhão desportivo João Rocha. O contrato de empreitada, tal como previsto e regulado nos arts. 1207º e seguintes do Código Civil, tem, além de outras, duas prestações: uma, a cargo do empreiteiro, que consiste na construção, criação, reparação, modificação de determinada coisa, tendo em vista a produção de determinado resultado material, outra, na esfera jurídica do dono da obra, de efectuar o pagamento do preço. É um contrato bilateral e sinalagmático em cuja execução é admissível, a oposição da excepção do não cumprimento do contrato que é o que parece estar na base da devolução daquelas seis facturas sem pagamento e no accionamento da garantia bancária, por efeito da incompleitude ou de defeitos na execução da obra contratada, face à explicação apresentada pelo Sporting Clube de Portugal para a devolução das facturas em causa, constante do documento de fls. 68. A excepção do incumprimento do contrato não cumprido tanto pode ser oposta ao incumprimento, como ao incumprimento parcial, como ao cumprimento defeituoso (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, pág. 410 e em Parecer, Col. Jur. Ano XII, Tomo IV, p. 21; Vaz Serra, Excepção de contrato não cumprido, BMJ nº 67, p. 37; Meneses Cordeiro, Violação Positiva do Contrato, ROA, Ano 41, pág. 148). Porque envolve e inexigibilidade temporária da prestação, caso estejam verificados os seus pressupostos, pode legitimar a omissão de pagamento emergente daquelas seis facturas e pode também justificar o acionamento da garantia bancária face ao teor literal da mesma, ou pode corresponder a um comportamento ilícito, mas que em qualquer caso, não incumbe ao direito penal, nem ao processo penal averiguar. Trata-se inequivocamente, quer à luz do conteúdo dos documentos apresentados pela assistente com a queixa e a convite do Mº. Pº., durante o inquérito, de divergências entre duas partes num contrato de empreitada acerca da forma como cada um deles cumpriu, ou não, as prestações a que se obrigou, eventualmente geradora de responsabilidade civil contratual, mas que nada tem a ver com a prática de qualquer crime de burla. O processo penal serve para reconstituir factos integradores de crimes, apurar as circunstâncias de tempo, modo e lugar em que foram cometidos, a identidade dos respectivos autores e responsabilizá-los com a imposição de uma pena ou medida de segurança, em ordem à protecção dos bens jurídicos visados com as normas do direito penal. Não serve para dirimir conflitos de interpretação de cláusulas contratuais, ou divergências sobre o modo de execução dos contratos, nem para cobrar dívidas deles emergentes como parece ser a intenção da assistente com a dedução da presente queixa, com o requerimento de abertura da instrução e, por fim, com o presente recurso, porque essas são questões de responsabilidade civil contratual que devem ser apreciadas na competente acção cível. Consequentemente, vale o que ficou dito acerca do crime de burla, também para o de associação criminosa. Nos termos do art. 299º do CPP, são elementos constitutivos do crime de associação criminosa, a existência de um grupo, associação ou organização; que a razão da sua existência e a respectiva actividade sejam a prática de crimes; que seja composta por uma pluralidade de pessoas; com uma certa duração temporal; que esteja dotada de um mínimo de estrutura organizatória; que exista, sob qualquer forma, um processo de formação de vontade colectiva e um sentimento de pertença, de ligação a tal grupo, organização ou associação, por parte dos membros, que o lideram, que dele fazem parte integrante ou que o apoiam. É, pois, da verificação cumulativa do factor organizativo, da estabilidade associativa e da finalidade criminosa, portanto, da existência de uma aliança com um mínimo de estrutura estável, duradoura, com ligação permanente aos indivíduos que a integram, um pólo aglutinador, mais ou menos coeso, e com vista à prática de crimes, desde que dê origem a uma realidade autónoma, diferente e transcendente das vontades e interesses dos seus membros que depende a existência de uma associação criminosa, nos termos e para os efeitos previstos no art. 299º do CP (Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, pág. 1161 e ss.). Ora, a assistente nem sequer efectuou qualquer concretização factual dirigida a qualquer dos arguidos apta a integrar seja o elemento de organização, seja a intenção comum de praticarem crimes. O recurso não merece, pois, provimento, na medida em que nem sequer está aqui em causa a suficiência ou insuficiência de indícios, mas sim a falta de tipicidade dos factos invocados no requerimento de abertura da instrução. Por fim, não pode deixar de se dizer que a conclusão exarada em F tem carácter estritamente especulativo e é de todo em todo irrelevante para o desfecho deste recurso. O recurso é, assim, totalmente improcedente. III - DECISÃO Termos em que decidem, neste Tribunal da Relação de Lisboa: Em negar provimento ao recurso, confirmando, na íntegra, a decisão instrutória de não pronúncia recorrida. Custas pela assistente, que se fixam em 5 UCs – art. 515º nº 1 al. b) do CPP. Notifique. * Acórdão elaborado pela primeira signatária em processador de texto que o reviu integralmente (art. 94º nº 2 do CPP), sendo assinado pela própria e pela Mma. Juíza Adjunta. Tribunal da Relação de Lisboa, 13 de Novembro de 2019 Cristina Almeida e Sousa Florbela Sebastião e Silva |