Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | SOUSA PINTO | ||
Descritores: | PROCESSO DE PROMOÇÃO E PROTECÇÃO CONSTITUIÇÃO DE MANDATARIO MENOR | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 12/17/2020 | ||
Votação: | MAIORIA COM * VOT VENC | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PROCEDENTE | ||
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Sumário: | I – Não pode o tribunal oficiosamente declarar a nulidade do mandato que uma menor de 17 anos tenha celebrado com advogado por si escolhido para a representar em processo de protecção de crianças e jovem em perigo, na medida em que estando em causa uma questão de anulabilidade do acto (art.º 125.º do CC), não é tal invalidade de conhecimento oficioso. II - Pese embora inexista disposição expressa habilitadora da menor (de 17 anos) poder, por si só, constituir mandatário, passando procuração a advogado, considera-se que a harmonia do sistema e uma interpretação extensiva, quer do art.º 103.º, quer do art.º 5.º da Convenção Europeia sobre o Exercício dos Direitos das Crianças, permitem que se deva admitir que uma menor de 17 anos, que se presume terá maturidade adequada (não esquecer que o n.º 2 do art.º 103.º se aplica a todos os menores independentemente da idade, pelo que quem se apresenta com 17 anos terá à partida essa maturidade, na medida que está à beira de atingir a maioridade), possa, por si própria, escolher o seu advogado. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Os juízes desembargadores que integram o presente colectivo do Tribunal da Relação de Lisboa, acordam, I – RELATÓRIO Nos autos de Promoção e Protecção que correm a favor de AAA, de 17 anos, foi proferido, em 23-09-2020, o seguinte despacho: «Procuração junta com requerimento de 21.09.2020 Conforme resulta do texto da procuração em apreço, foi o Sr. Dr. BBB constituído mandatário da menor AAA, tendo tal mandato sido outorgado pela própria menor. Ora, tendo a menor nascido a 11.09.2003, verifica-se que a mesma carece de capacidade para o exercício de direitos, maxime, para a celebração de negócios jurídicos (arts 122º, 123º e 1157º do Código Civil). Assim sendo, declara-se a nulidade do mandato corporizado na procuração em apreço. Notifique. * Diligencie a secção pela nomeação de patrono oficioso à jovem. * Considerando o teor da decisão que antecede, considera-se não escrito o requerimento apresentado a 21.09.2020. Notifique.» Inconformada com tal decisão veio a apelante apresentar as suas alegações, nas quais verteu as seguintes conclusões: «1. O Tribunal recorrido declarou a nulidade do mandato forense constituído por uma jovem de 17 anos, visada num processo de promoção e protecção e considerou não escrito o requerimento de defesa apresentado pela jovem em 21.09.2020, subscrito pelo mandatário por ela constituído. 2. Ao não ter fundamentado, de direito e de facto, a decisão recorrida, o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 607 nº 4 do CPC e 726 do CPC (cfr. art 615 do CPC), preceitos que foram interpretados em violação dos princípios constitucionais da confiança, do acesso ao direito e aos tribunais e da igualdade disposto nos artigos 1º, 13º, 20º e 205º da Constituição da República Portuguesa. 3. O Tribunal recorrido deveria ter fundamentado a decisão recorrida, explicando, em termos de lógica comunicacional, em que medida é que, pela matéria alegada e pela prova produzida, entendeu que a pretensão da recorrente não merece provimento, interpretando correctamente o disposto nos artigos 607 nº 4 do CPC e 726 do CPC, em conformidade com os princípios constitucionais da confiança, do acesso ao direito e aos tribunais e da igualdade disposto nos artigos 1º, 13º, 20º e 205º da Constituição da República Portuguesa. 4. O menor pode celebrar, negócios jurídicos próprios de sua vida corrente, relativos à profissão arte ou ofício, relativos à administração ou disposição de bens que o menor de 16 anos tenha adquirido pelo seu trabalho, podendo celebrar contrato de trabalho (art 123nº 2 do código do trabalho), perfilhar (art 1601), ser representante (art 263), adquirir a posse (art 1266 do código civil), adquirir por usucapião (art 1281) contrair casamento (art 1850) para ser testemunha (art 495 do CPC) aderir a associações juvenis e partidos políticos (art 15 nº 2 do DL 595/74 de 07.11. e aderir a associações de menores (art 2 da Lei 124/99 de 30.08). 5. O menor pode ainda ter intervenção, em questões de responsabilidades parentais (podendo ser ouvido art 1901 do Cc), deve ser ouvido quanto à nomeação de tutor (art 1931 Cc) e em matérias de infância e juventude (o art 10 da LPCJP faz depender a intervenção da não oposição do visado), devendo também ser ouvido, quanto às medidas de promoção e protecção (art 84 nº 1 da LPCJP). 6. Uma promoção e protecção como a presente, tal como sucede com os processos tutelares educativos, pode culminar com fixação de medidas limitativas ou privativas da liberdade. 7. Sejam elas as medidas de colocação - acolhimento familiar e acolhimento em instituição (nos processos de promoção e protecção, cfr. art 35 da Lei n.º 147/99, de 01 de Setembro) ou as medidas tutelares aplicadas nos Processos Tutelares Educativas: internamento em centro educativo, em regime fechado (cfr. art 4´Lei n.º 166/99, de 14 de Setembro) ou até a medida de confiança a instituição (com vista à adopção). 8. E se um maior de 16 anos já responde jurídico-penalmente pelos factos que pratica (sendo julgado em tribunal de adultos, como se de um adulto se tratasse), podendo, também ele, constituir livremente mandatário (sem autorização dos seus progenitores), dificilmente se compreende como é que o Tribunal recorrido não aceitou o mandato forense de uma jovem de 17 anos, que pretende escolher o seu advogado, num processo de promoção e protecção. 9. Podem constituir-se assistentes em processo penal, além das pessoas a quem leis especiais conferirem esse direito, os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos (artigo 68º, n°. 1 al. a), do C.P.P.). 10. Nos casos dos ofendidos maiores de 16 anos – cfr. al. a) do artigo 68º, nº. 1, do C.P.P., só eles podem requerer, em nome próprio (e não representados pelos pais) a constituição como assistente, incumbindo-lhe assim, em nome próprio, constituir mandatário. Se os pais o fizerem, tal pedido é indeferido, com fundamento em ilegitimidade. 11. De acordo com o art 88 nº 4 da LPCJP a jovem pode consultar o processo, designadamente através do seu advogado. O Art 94 da mesma LPCJP prevê que a jovem tem o direito de se fazer acompanhar de advogado. O art 58 confere à jovem o direito de contactar com o seu advogado. 12. Ao obrigar, como parece pretender o Tribunal recorrido, que a Jovem de 17 anos (que já pode casar sem o consentimento dos pais, que já responde criminalmente sem o consentimento dos pais, que já pode praticar livremente uma série de actos sem o consentimento prévio de ninguém) obtenha consentimento dos seus pais (com que está desavinda e em conflito de interesses), para constituir advogado, a Decisão judicial recorrida interpretou o disposto no art 103 da LPCJP em violação grosseira dos arts 1, 13º e 20º da Constituição da República Português e dos princípios constitucionais da confiança, da igualdade e do acesso ao direito. Termos em que, fazendo-se a correcta interpretação dos elementos dos autos e a melhor aplicação das normas legais invocadas, deverá a Decisão Judicial Recorrida ser revogada e substituída por outra que reconhecendo como plenamente válido e eficaz, para os presentes autos de promoção e protecção, o mandato forense livremente constituído pela jovem recorrente, considere como escrito e aprecie, tudo quanto foi requerido pela jovem em 21.09.2020.» O Digno Magistrado do Ministério Público, face às alegações apresentadas, concluiu no sentido de que “a decisão recorrida deve manter-se nos seus precisos termos na medida em vai ao encontro do legalmente previsto.” II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO O objecto do recurso é limitado e definido pelas conclusões das alegações da recorrente. Nesta medida, a apreciação do recurso incidirá sobre a apreciação da invocada nulidade do despacho por falta de fundamentação de facto e de direito e a verificação do erro de julgamento, por violação de lei e dos princípios constitucionais da confiança, da igualdade e do acesso ao direito artgs. 1º, 13º e 20º da Constituição da República Português. III – FUNDAMENTOS 1. De facto Os elementos de facto a considerar são os que constam do relatório supra. 2. De direito Apreciemos as questões que se encontram suscitadas no recurso. Refere a apelante que a decisão recorrida enferma da nulidade por falta de fundamentação de facto e de direito, prevista no art.º 615.º, n.º 1, al. c) do CPC. Vejamos. Dispõe o art.º 615.º, n.º 1, b) do CPC: «1 - É nula a sentença quando: […] b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; […].» No que se refere à falta de fundamentação, tem sido unânime o entendimento de que apenas a falta absoluta de fundamentação gera a nulidade prevista no art. 615º, nº1, b), do CPC. Conforme ensinava José Alberto dos Reis, no “Código de Processo Civil Anotado”([1]): «Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto. Se a sentença especificar os fundamentos de direito, mas não especificar os fundamentos de facto, ou vice-versa, verifica-se a nulidade do n.º 2.° do art. 668.°» Parece-nos ser patente que, in casu, a decisão não padece de falta de fundamentação, pois o que releva é a ausência absoluta de motivação. Na decisão recorrida, vêm especificados os fundamentos de facto e de direito. Há que não olvidar que nos encontramos perante um despacho, a que se aplica obviamente a citada nulidade, por via do disposto no art.º 613.º, n.º 3 do CPC, sendo certo, porém, que tratando-se de simples despacho, pouco complexo, a exigência de fundamentação, tendo de se encontrar expressa, será necessariamente menor. Ora, no caso, verifica-se que a Exma. Juíza refere o facto em que alicerça a sua decisão – a menoridade da AAA (nascida a 11-09-2003) - e a base jurídica em que aquela assenta – sua incapacidade para o exercício de direitos, à luz do disposto nos artgs. 122.º, 123.º e 1157.º do Código Civil). Pode discordar-se da fundamentação e da decisão, mas não se verifica a falta daquela, o mesmo é dizer: não está demonstrada a nulidade a que se reporta a al. b) do n.º 1 do art. 615.º do CPC. Improcede assim esta questão. Apreciemos agora a questão da legalidade da decisão, a qual, na óptica da recorrente integrará um erro de julgamento. A decisão recorrida fundou-se na interpretação literal do disposto nos artgs. 122.º e 123.º do CC, que referem: «Artigo 122º (Menores) É menor quem não tiver ainda completado dezoito anos de idade. Artigo 123º (Incapacidade dos menores) Salvo disposição em contrário, os menores carecem de capacidade para o exercício de direitos.» Como se verifica a incapacidade dos menores para o exercício de direitos não é absoluta, estipulando desde logo a lei a possibilidade de excepções a tal princípio. Tal circunstancialismo, leva-nos a admitir que o legislador não terá pretendido impor uma barreira intransponível com a estipulação da idade da maioridade nos 18 anos, como sendo apenas a partir dela que haverá a possibilidade de total exercício de direitos, designadamente de celebração de negócios jurídicos. Desde logo, verificam-se as excepções consignadas no artg. 127.º do CC e, principalmente, o facto do legislador ter entendido que os negócios jurídicos por eles celebrados sejam passíveis de anulabilidade (tendo esta que ser suscitada por quem a lei considera ter legitimidade para tal – art.º 125.º do CC) e não de nulidade, invalidade por sua natureza mais rigorosa e grave que visa tutelar princípios mais marcantes e que levaria a que pudesse ser invocada a todo o tempo por qualquer interessado, podendo ser declarada oficiosamente pelo tribunal (art.º 286.º do CC). Deparamo-nos assim, desde logo, com uma actuação ilegítima por parte do tribunal, pois que sendo o negócio jurídico celebrado apenas passível de ser invalidado por anulabilidade, esta não poderia ser conhecida oficiosamente pelo tribunal, antes teria de ser suscitada por quem para tal tivesse legitimidade, designadamente os pais da menor (art.º 125.º, n.º 1, al. a) do CC). Por outro lado, ainda que esta argumentação fosse bastante para levar à revogação do despacho recorrido, não se deixa de entender que, pese embora inexista disposição expressa habilitadora da menor poder, por si só, constituir mandatário, passando procuração a advogado, considera-se que a harmonia do sistema poderá levar a tal admissão. Vejamos. A Lei de protecção de crianças e jovens em perigo – Lei n.º 147/99, de 01 de Setembro([2]) – que “tem por objecto a promoção dos direitos e a protecção das crianças e dos jovens em perigo, por forma a garantir o seu bem-estar e desenvolvimento integral” (art.º 1.º), consagra no seu art.º 4.º, os princípios orientadores da intervenção, de que destacamos (no que ao caso mais importa) os referidos nas alíneas: «a) Interesse superior da criança e do jovem - a intervenção deve atender prioritariamente aos interesses e direitos da criança e do jovem, nomeadamente à continuidade de relações de afecto de qualidade e significativas, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto; (…); i) Obrigatoriedade da informação - a criança e o jovem, os pais, o representante legal ou a pessoa que tenha a sua guarda de facto têm direito a ser informados dos seus direitos, dos motivos que determinaram a intervenção e da forma como esta se processa; j) Audição obrigatória e participação - a criança e o jovem, em separado ou na companhia dos pais ou de pessoa por si escolhida, bem como os pais, representante legal ou pessoa que tenha a sua guarda de facto, têm direito a ser ouvidos e a participar nos actos e na definição da medida de promoção dos direitos e de proteção; (…).»([3]) No âmbito de tais processos, visa-se, numa primeira fase, alcançar um acordo de promoção e protecção que de acordo com a definição inserta na alínea f) do art.º 5.º se traduz no “compromisso reduzido a escrito entre as comissões de protecção de crianças e jovens ou o tribunal e os pais, representante legal ou quem tenha a guarda de facto e, ainda, a criança e o jovem com mais de 12 anos([4]), pelo qual se estabelece um plano contendo medidas de promoção de direitos e de protecção.” Por outro lado, há que ter presente que a intervenção das comissões de protecção das crianças e jovens depende da não oposição da criança ou do jovem com idade igual ou superior a 12 anos (art.º 10.º, n.º 1), sendo que tal oposição da criança com idade inferior a 12 anos é considerada relevante de acordo com a sua capacidade para compreender o sentido da intervenção (n.º 2 desse preceito). Ainda no âmbito da mesma Lei, encontramos os seguintes direitos das crianças e jovens, inerentes à matéria que nos cumpre apreciar: - O art.º 58.º (Direitos da criança e do jovem em acolhimento), n.º 1, alínea h) – “A criança e o jovem acolhidos em instituição, ou que beneficiem da medida de promoção de protecção de acolhimento familiar, têm, em especial, os seguintes direitos: (…). h) Contactar, com garantia de confidencialidade, a comissão de protecção, o Ministério Público, o juiz e o seu advogado.” - O art.º 88.º (Caráter reservado do processo) n.º 4 – “A criança ou jovem podem consultar o processo através do seu advogado ou pessoalmente se o juiz ou o presidente da comissão o autorizar, atendendo à sua maturidade, capacidade de compreensão e natureza dos factos.” - O art.º 103.º (Advogado) – n.º 1 – “Os pais, o representante legal ou quem tiver a guarda de facto podem, em qualquer fase do processo, constituir advogado ou requerer a nomeação de patrono que o represente, a si ou à criança ou ao jovem. 2 - É obrigatória a nomeação de patrono à criança ou jovem quando os seus interesses e os dos seus pais, representante legal ou de quem tenha a guarda de facto sejam conflituantes e ainda quando a criança ou jovem com a maturidade adequada o solicitar ao tribunal. 3 - A nomeação do patrono é efetuada nos termos da lei do apoio judiciário.” 4 - No debate judicial é obrigatória a constituição de advogado ou a nomeação de patrono aos pais quando esteja em causa a aplicação da medida prevista na alínea g) do n.º 1 do artigo 35.º e, em qualquer caso, à criança ou jovem.” Por outro lado, a Convenção Europeia sobre o Exercício dos Direitos das Crianças, adotada em Estrasburgo, em 25 de janeiro de 1996, dispõe no seu art.º 5.º: «Nos processos perante uma autoridade judicial, que digam respeito a crianças, as Partes deverão considerar a possibilidade de lhes conceder direitos processuais adicionais, em especial: a) O direito de pedirem para serem assistidas por uma pessoa adequada, da sua escolha, que as ajude a exprimir as suas opiniões; b) O direito de pedirem, elas próprias ou outras pessoas ou entidades por elas, a designação de um representante distinto, nos casos apropriados, um advogado; c) O direito de nomear o seu próprio representante; d) O direito de exercer, no todo ou em parte, os direitos das partes em tais processos.» Tendo presente este quadro legal dificilmente poderemos negar a uma menor de 17 anos o direito a escolher o seu advogado. Na realidade, por via dos normativos e diplomas que vimos de apresentar, seremos forçados a concluir que quer o art.º 103.º, quer o art.º 5.º da Convenção Europeia sobre o Exercício dos Direitos das Crianças, numa interpretação extensiva([5]), permitem que se deva admitir que uma menor de 17 anos, que se presume terá maturidade adequada (não esquecer que o n.º 2 do art.º 103.º se aplica a todos os menores independentemente da idade, pelo que quem se apresenta com 17 anos terá à partida essa maturidade, na medida que está à beira de atingir a maioridade), possa, por si própria, escolher o seu advogado, o que no nosso ordenamento jurídico actual apenas poderá ser feito pela passagem de procuração a advogado, posto que o regime de apoio judiciário hoje em vigor não permite que seja o requerente de tal apoio, ou mesmo o tribunal, a fazer a escolha do causídico. Não podem restar dúvidas que, na situação colocada pela recorrente, a letra da lei se quedou aquém do seu espírito, e aí haverá que adequar a letra ao respectivo espírito por via da indicada interpretação extensiva. Com efeito, verifica-se que a lei tem um especial cuidado em conferir aos jovens uma atenção particular no que concerne aos seus direitos de informação, audição e participação nas matérias que directamente os envolvem e lhes dizem respeito, conferindo-lhes, por vezes, a faculdade de decidirem por si próprios sem a intervenção de quem os represente. Tal é feito amiúde, sem que os progenitores ou quem tem a sua guarda de facto tenham uma intervenção em seu nome e representação, desde logo na possibilidade que lhes é conferida de, a partir dos 12 anos se poderem opor à proposta de acordo que a comissão de protecção lhes apresentar. Foi aliás essa situação que se verificou no caso em apreço. Nessa senda, o art.º 103.º, dedicado aos advogados, permite aos jovens – por eles próprios - a solicitação ao tribunal da nomeação de um advogado. Ora, tal nomeação, atento o n.º 3 do mesmo preceito, de acordo com o normativo literal deveria ser feita nos termos do que dispõe a lei de apoio judiciário, o que sempre implicaria, à partida, que a mesma viesse a recair, com grande probabilidade, sobre um advogado desconhecido do menor. A ser assim, se é obrigatória a existência de advogado na fase do debate, não se vê porque razão uma jovem com 17 anos de idade, não possa ela própria escolher o advogado que a representará e em quem depositará mais confiança. Em sentido idêntico ao aqui defendido, em sede processual penal (onde também inexiste norma expressa a admitir que o menor com 16 anos possa constituir, por si próprio, mandatário), também se sustenta que o assistente menor pode, por si só, sem necessidade de ser representado pelos seus legais representantes, constituir mandatário, como é o caso do acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 03-06-2009([6]), com o seguinte sumário: «O menor de 16 anos, podendo constituir-se assistentes, em conformidade com o disposto no art. 68º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Penal, também pode passar procuração a advogado para o representar nessa qualidade.» Mais recentemente, pode ainda ver-se, nesse mesmo sentido, o acórdão do Tribunal da Relação do Coimbra de 10-12-2018([7]): «I – O representante legal só tem legitimidade para requerer a sua constituição como assistente nos autos enquanto a ofendida não completar 16 anos de idade. II – Não têm aplicação no processo penal as disposições consagradas no Código Civil referentes às questões de representação de um menor de 18 anos, nomeadamente as responsabilidades parentais e o seu respetivo exercício.» Por tudo quanto se deixa dito, entende-se, sem necessidade de se recorrer aos princípios constitucionais invocados, que a apelação terá de proceder e o despacho recorrido deverá ser revogado e substituído por outro que admita a constituição do Exmo. Senhor advogado como mandatário da menor e, nessa conformidade, aprecie o requerimento por ele apresentado em 21-09-2020. IV - DECISÃO Desta forma, o presente colectivo decide julgar a apelação procedente e, assim, revogar o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que admita a constituição do Exmo. Senhor advogado como mandatário da menor e, nessa conformidade, aprecie o requerimento por ele apresentado em 21-09-2020. Custas da apelação por quem a final for responsável pelas custas da acção. Lisboa, 17-12-2020 José Maria Sousa Pinto Jorge Leal João Vaz Gomes, VENCIDO, conforme declaração de voto que segue: “Voto vencido pelas seguintes razões. A Convenção Europeia sobre os Direitos das Crianças de 25/1/1996 aprovada pela Resolução AR 7/2014 dispõe no seu art.º 5.º/C :Outros direitos processuais possíveis. Nos processos perante uma autoridade judicial, que digam respeito a crianças, as Partes deverão considerar a possibilidade de lhes conceder direitos processuais adicionais, em especial: a) O direito de pedirem para serem assistidas por uma pessoa adequada, da sua escolha, que as ajude a exprimir as suas opiniões; b) O direito de pedirem, elas próprias ou outras pessoas ou entidades por elas, a designação de um representante distinto, nos casos apropriados, um advogado; c) O direito de nomear o seu próprio representante; d) O direito de exercer, no todo ou em parte, os direitos das partes em tais processos. Será que o legislador especial da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, configurou uma capacidade especial do exercício do adolescente com 17 anos de idade de constituir o seu próprio advogado, passando-lhe procuração, norma especial consentida pelo art.º 127 do CCiv que contempla, entre outras, aquelas excepções à regra do art.º 122/123 do CCiv? Salvo disposição em contrário, os menores carecem de capacidade para o exercícios dos direitos, a capacidade judiciária tem por medida e base a capacidade do exercício dos direitos (art.ºs 123 do Cciv e 15/2 do CPC), sendo que a incapacidade dos menores estarem em juízo apenas pode ser suprida por intermédio dos seus representantes legais, salvo os actos que possam exercer pessoal e livremente, que não é o caso. Sendo solicitado ou havendo conflito real ou presumido entre o interesse dos filhos e o dos pais, o legislador da promoção e protecção estabeleceu no n.º 2, do art.º 103, a nomeação de advogado ao filho menor nos termos do regime do apoio judiciário e apenas isto. As excepções ao regime da incapacidade para o exercício dos direitos dos menores têm de vir expressamente previstos na lei (art.º 127/1 do Cciv) e não nos parece legítimo dada a natureza das normas que excepcionam o regime geral da incapacidade, a aplicação analógica de outros regimes a esta situação, e a interpretação extensiva (art.º 11 do Cciv) não permite concluir que o legislador do art.º 103 citado também quis atribuir ao adolescente a capacidade genérica de constituir advogado, de contrário, tê-lo-ia simplesmente dito. Por isso confirmaria a decisão.” _______________________________________________________ [1] Vol. V, 3ª edição (reimpressão), Coimbra Editora, 2012, p. 140 [2] Lei a que nos reportaremos de ora em diante, sempre que expressamente não indicarmos outra. [3] Sublinhados nossos. [4] Sublinhado nosso. [5] A interpretação extensiva pressupõe que, por via interpretativa, se conclua que a letra da lei ficou aquém do seu espírito, que o legislador disse menos do que queria e, por isso, há que dar à letra da lei um alcance conforme ao pensamento legislativo. [6] Pro.º 86/08.0TAARC-A.P2 – Relator Vasco Freitas, disponível em www.dgsi.pt [7] P.º 3045/15.2T9CBR-A.C1 – Relator Luís Teixeira, disponível em www.dgsi.pt |