Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6671/21.7T8LSB-A.L1-7
Relator: EDGAR TABORDA LOPES
Descritores: EXERCÍCIO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
ACÇÃO DE REGULAÇÃO
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
REGULAMENTO (CE) 2201/2003
RESIDÊNCIA DA MENOR
DESLOCAÇÃO PARA ESTADO MEMBRO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/20/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I–O Tribunal português é competente para a tramitação de uma acção de regulação do exercício das responsabilidades parentais intentada, a 17/03/2021, pelo progenitor (português) contra a progenitora (espanhola), relativa a uma criança nascida em 2020, que sempre viveu com os pais em Portugal (com carácter estável, aí tendo seu centro permanente e habitual de interesses) e que, na sequência de uma visita a Espanha a 21/12/2020, na época do Natal (autorizada pelo pai), não regressou, por opção da mãe que lá ficou a residir, terminando a relação.

II–O Regulamento (CE) nº 2201/2003 contém regras directas de competência internacional quanto às matérias por si abrangidas, estabelecendo - como regra geral - a competência dos tribunais do Estado-Membro em que a criança resida habitualmente à data em que seja instaurado processo relativo a responsabilidade parental (artigo 8.º, n.º 1).

III–O artigo 9.º do referido Regulamento permite que a competência do Estado-Membro da anterior residência habitual da criança se mantenha durante três meses, quando uma criança se desloque legalmente de um Estado-Membro para outro e passe a ter a sua residência habitual neste último.


Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa


Relatório


H… veio intentar (a 17 de Março de 2021) contra A… a presente acção de regulação do exercício das responsabilidades parentais, com pedido de fixação de medida provisória e cautelar urgente, ao abrigo do disposto no artigo 28.º do RGPTC, relativa à filha de ambos M ... nascida a 09 de Março de 2020.

A 25/10/2022 o Tribunal a quo proferiu o seguinte Despacho:

Da competência do presente Tribunal

Dispõe o art.º 62º, do CPC, que :
1–Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes:
a)- Quando a ação possa ser proposta em tribunal português, segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa; (…)

Por sua vez, estatui o art.º 59º, do CPC, que :
1–Sem prejuízo do que se ache estabelecido em regulamentos europeus comunitários e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62º e 63º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do art.º 94º”

Estipula ainda o artigo 9º do RGPTC, quePara decretar as providências tutelares cíveis é competente o tribunal da residência
da criança no momento em que o processo foi instaurado” (nº1) , mas , “ Se no momento da instauração do processo, a criança residir no estrangeiro e o tribunal português for internacionalmente competente, é competente para apreciar e decidir a causa o tribunal da residência do requerente ou do requerido (…)” [cfr. nº 7].

Decorre dos elementos carreados nos autos que a criança tinha em Lisboa o seu centro de vida, tendo nascido em Portugal, a 09.03.2020, onde os pais então viviam, filha de pai português e mãe espanhola. A criança saiu de Portugal em 21.12.2020, tendo o pai autorizado a sua saída temporária do território nacional, para visita dos familiares na quadra natalícia que residiam em Espanha, de acordo com o documento de autorização da saída, a qual tinha uma validade de seis meses a contar da data da assinatura (vd. fls. 60). Do exposto decorre que a residência habitual da criança era em Portugal, à data da instauração da ação, a 18.03.2021, pelo que, nos termos do disposto no artigo 8.º do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, de 27 de novembro, aplicável aos presentes autos por força do art.º 1º/1, al. b), e n.º 2 al. a) do mesmo Regulamento, o Juízo de Família e Menores de Lisboa – J 6 é competente internacionalmente para apreciar e decidir a presente ação.

Decorre ainda do disposto no art.º 10º Regulamento (CE) n.º 2201/2003, de 27 de novembro que, em caso de deslocação ilícita de uma criança, os Tribunais do Estado membro onde a criança residia habitualmente imediatamente antes da deslocação ou retenção ilícitas continuam a ser competentes até a criança passar a ter a sua residência habitual noutro Estado membro e se ainda não tiver decorrido um ano. Os presentes autos foram instaurados ainda não haviam decorrido três meses após a deslocação ilícita da M… .

Finalmente, do disposto no art.º 15º do Regulamento, sob a epígrafe “ Transferência para um tribunal mais bem colocado para apreciar a acção”, o legislador comunitário prevê que, excecionalmente, que os tribunais de um Estado-Membro competentes para conhecer do mérito, ao considerarem que um tribunal de um outro Estado-Membro com o qual a criança tenha uma ligação particular se encontre mais bem colocado para conhecer do processo, e se a tal servir o interesse da criança, peçam ao tribunal de outro Estado-Membro que se declare competente.

E, de entre as diversas situações que o mesmo legislador identifica como revelando existir uma ligação particular entre a criança com um Estado-Membro, duas são precisamente ter tido a criança a sua residência habitual nesse Estado-Membro (alínea b), do nº3, art.º 15º ), a criança for nacional desse Estado Membro (alínea c), do nº3, artº 15º ), ou um dos titulares da responsabilidade parental tiver a sua residência habitual nesse Estado-Membro (alínea d), do nº3, artº 15º) .

Dos preceitos citados e atendendo ainda aos considerandos do Regulamento (CE) nº 2201/2003 (cfr. considerando 12º), as regras de competência em matéria de responsabilidade parental são definidas em função do superior interesse da criança e, em particular, do critério de proximidade, justificando-se que o mérito de um processo seja julgado por tribunal do Estado-Membro com o qual a criança tenha uma ligação particular, pois que, em princípio, estará ele melhor colocado/preparado para conhecer do processo.

O conceito de “residência habitual”, cada vez mais utilizado em instrumentos internacionais, não é definido pelo Regulamento, mas deve ser determinado pelo juiz em cada caso, com base nos elementos de facto.

Dito isto, temos que o Requerente e a Requerida viviam em Portugal como marido e mulher, que a criança nasceu em Portugal, sendo registada como cidadã portuguesa, que o Requerente é português, que a Requerida, embora cidadã espanhola, residia em Portugal pelo menos desde agosto de 2018 e se encontrava inscrita no centro de saúde da Lapa, Lisboa, desde 15.07.2019 (vd. documentos de fls. 15,16 e 17).

Assim, somos a concluir que a criança tinha em Lisboa o seu centro de vida, e que o Tribunal português será o competente para regular o exercício das responsabilidades parentais da criança M… .

De acordo com o disposto no artigo 19.º, n.º 2 do mesmo RegulamentoQuando são instauradas em tribunais de Estados-Membros diferentes ações relativas à responsabilidade parental em relação à uma criança, que tenham o mesmo pedido e a mesma causa de pedir, o tribunal em que o processo foi instaurado em segundo lugar suspende oficiosamente a instância até que seja estabelecida a competência do tribunal em que o processo foi instaurado em primeiro lugar”.
E estabelece o seu n.º 3,Quando estiver estabelecida a competência do tribunal em que o processo foi instaurado em primeiro lugar, o tribunal em que o processo foi instaurado em segundo lugar declara-se incompetente a favor daquele”.

Considerando que a ação judicial intentada pela progenitora em Espanha deu entrada em 19.03.2021, conforme informação da autoridade judiciária espanhola, atenta a situação de litispendência, deverá ser declarada a incompetência dos autos que correm termos em Gijon, a favor dos presentes autos.
Notifique.

Remeta certidão da presente decisão ao Tribunal de Gijon, para os fins tidos por convenientes e designadamente para os termos do disposto no artigo 19.º, n.º 3 do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, de 27 de Novembro.
Informe a DGRSP (FLS. 113)”.

Desta decisão veio a Requerida recorrer, apresentando Alegações que culminou com as seguintes Conclusões:
i.-A fixação de efeito meramente devolutivo ao presente recurso torna o seu efeito inútil, e prejudica os atos que venham a ser praticados, desde logo a conferência de pais designada para o próximo dia 28 de novembro, pelas 13h30, existindo prejuízo considerável no superior interesse do Menor com o andamento do processo até que seja definitivamente fixada a competência do Tribunal, devendo ser atribuído efeito suspensivo ao presente recurso, oferecendo-se a Recorrente à prestação de caução.
ii.-O Tribunal errou na interpretação a efetuar quanto à residência da criança e critérios de proximidade à Menor, tendo feito tábua rasa de todas as provas juntas ao processo que confirmam a residência da criança à data da propositura da ação ser Espanha – com confirmação desta residência pela Autoridade Central e pelo próprio Tribunal Espanhol (conforme Formulário C de 08.03.2022 remetido a Tribunal em 27 de junho de 2022).
iii.-Considerando-se que o processo em Portugal avançaria – o que não se concede e por mero dever de patrocínio se concede – a competência seria desde logo «perdida» porquanto a Requerida reside em Espanha e aí pretende continuar a residir, e o próprio Requerente na sua proposta de regulação autoriza a residência da Menor em Espanha, apenas em Gijon pelo que, será Espanha o Tribunal mais bem colocado para conhecer dos presentes autos.
iv.-O prosseguimento dos autos e a atribuição de efeito meramente devolutivo ao presente recurso violam os dos princípios de aproveitamento dos autos e bem assim a proibição da prática de atos inúteis que regem o processo civil português- Cfr. Artigo 130.º do CPC.
v.-É manifestamente contraproducente o Tribunal Espanhol estar posteriormente a repetir qualquer ato já praticado pelo Tribunal Português, devendo ser este o Tribunal a tomar conhecimento e apreciar a ação de regulação de responsabilidades parentais desde o seu início.
vi.-O andamento destes autos sem uma decisão definitiva sobre a competência não é do interesse da Menor M…, devendo antes fixar-se a competência em primeiro lugar, sendo aliás, a exceção de competência internacional uma exceção dilatória que obsta ao conhecimento dos autos até que seja definitivamente fixada.
vii.-As vantagens obtidas com a determinação do efeito suspensivo são claramente superiores ao que sucederia se a instância prosseguisse, efetuando um raciocínio sobre o real e verdadeiro interesse da criança e a exequibilidade da proteção dos seus direitos, neste sentido e com atribuição do efeito suspensivo na interposição de recurso em casos similares, atente-se para o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 02/09/2009, no âmbito do processo n.º 810/08.0TBCTB.C1 e Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 20/03/2014, no âmbito do processo n.º 2831/12.0TBVCT-B.G1, disponível para consulta em www.dgsi.pt
viii.-A manutenção da data designada para a Conferência de Pais e bem assim o desenvolvimento dos presentes autos são consideravelmente prejudiciais para a Recorrente e para a Menor que têm direito a uma decisão definitiva sobre o Tribunal competente, sem que haja lugar à duplicação de atos, e que, seja o Tribunal mais bem colocado para apreciar a ação a decidir sobre os mesmos, o qual, como se verá é Espanha.
ix.-Atento o prejuízo considerável e o oferecimento de caução, deverá ser fixado efeito suspensivo na interposição do presente recurso, ao abrigo do disposto no artigo 647.º, n.º 4 do CPC ex vi artigo 33.º, n.º 1 do RGPTC e artigo 32.º, n.º 4 do RGPTC, em nome do superior interesse da Menor, oferecendo-se a Requerida para prestar caução nos presentes autos, o que se requer.
x.-O presente recurso tem por objeto a decisão proferida pelo Tribunal a quo, datada de 25 de outubro de 2022, com a referência Citius n.º 419911841, no âmbito do processo de regulação das responsabilidades parentais que opõe o Recorrido e a Recorrente, ao abrigo do disposto no artigo 28.º do RGPTC, em que o Tribunal a quo determinou serem os tribunais portugueses os internacionalmente competentes para decidir sobre o mérito dos presentes autos, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 59.º do CPC e artigos 8.º, 10.º e 15.º do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, de 27 de novembro.
xi.-A decisão do Tribunal a quo parte de parte de premissas totalmente erradas para formar a sua convicção, porquanto: (1) A autorização para deslocação não foi temporária; (2) A residência habitual da criança à data da propositura da ação era Espanha; (3) Não existiu qualquer deslocação ou retenção ilícitas; (4) A criança está em Espanha desde 21 de Dezembro de 2020 – quase 2 (dois) anos! (5) O Tribunal Português não é o mais bem colocado para apreciar a ação;
xii.-O Tribunal a quo desconsiderou totalmente a decisão do Julgado de Primeira Instância n.º 8 de Gijon, Espanha, o qual considerou ser Espanha a residência da Menor, considerando-se territorialmente competente para julgar a presente ação.
xiii.-A decisão do Tribunal a quo é atentatória aos mais elementares princípios da competência internacional dos tribunais, do Regulamento Europeu aplicável e do superior interesse da Menor, sendo nula.
xiv.-O Tribunal a quo aplicou erradamente o artigo 10.º do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, de 27 de novembro para fundamentar a sua competência no presente, com o fundamento de que a deslocação da criança Menor em Espanha é ilícita.
xv.-Não existiu qualquer deslocação ilícita, e muito menos retenção (uma vez que o próprio Pai admite que a residência da Menor seja Gijon, Espanha), pelo que é nula a decisão do Tribunal a quo por baseada em premissas falsas, fundamentando a sua decisão num facto falso, o que inquina completamente a decisão sobre a competência internacional.
xvi.-É nula a decisão por ter em total desconsideração pelo Despacho do Julgado de Primeira Instância n.º 8 de Gijon, Espanha, que decidiu: «O Juiz, no processo acima referido e sem prejuízo do envio das informações solicitadas pela autoridade judicial portuguesa, considera que este tribunal tem competência para apreciar este processo, sem prejuízo do envio das informações solicitadas pela autoridade portuguesa. O pedido é de custódia de uma menor, nascida em Março de 2020 em Portugal, de nacionalidade espanhola, de mãe espanhola e pai português. A menor foi transferida para Espanha com autorização do seu pai a 21 de Dezembro de 2020, e está registada em Gijon com autorização parental desde Fevereiro de 2021, residindo em Espanha desde então. Note-se também que o procedimento aberto por uma possível transferência ilícita foi arquivado, tal como consta da documentação enviada por Portugal. Por isso, e pelo previsto no artigo 8 do Regulamento Europeu n.º 2019/1111, os tribunais espanhóis seriam competentes para conhecer da ação por ser o tribunal da residência habitual da menor ao tempo da submissão da ação, não há provas de remoção ilegal da criança, e entende-se que este fórum é o mais apropriado para os interesses da criança, dado que é o local de residência da criança e que a remessa seria evitada no caso de ser necessário levar a cabo qualquer acção em relação à criança.»
xvii.-Atentos os documentos constantes dos autos juntos tanto pela Recorrente como pelo Recorrido a decisão do Tribunal deveria ter sido outra, e uma que respeitasse a prova e as decisões proferidas pelas instâncias vizinhas.
xviii.-O progenitor, Recorrido, autorizou a saída da Menor de Portugal, a Menor e a Recorrente, com o auxílio e consentimento expresso do Recorrido, partiram de Portugal para Espanha, na data de 21 de dezembro de 2020 Inclusive, foi o Recorrido que as transportou de carro, numa viagem de aproximadamente 8 (oito) horas – conforme ambas as Partes confirmam
xix.-O Recorrido consentiu expressamente na deslocação da criança e aceitou a sua ausência do território nacional, conforme consta do documento de autorização de saída.
xx.-Não resulta provado no processo, por qualquer forma, que a Recorrente e a Menor voltariam para Portugal após aquele dia, não se verificando qualquer comprometimento da Recorrente nesse sentido ou outro qualquer acordo entre os progenitores da Menor – apenas as declarações do Recorrido, com comportamentos completamente contraditórios.
xxi.-O Recorrido autorizou a saída de Portugal para Espanha, assinando autorização de saída e posteriormente assinando a “HOJA PADRONAL” é um documento que, conforme se poderá ler no mesmo, nas letras pequenas constantes da parte inferior necessário para efetuar o registo administrativo das pessoas, no caso da Recorrente e da Menor, num determinado município em Espanha, porém, veio depois requerer regresso da Menor a Portugal, referindo ao mesmo tempo autorizar o estabelecimento da Menor junto da Mãe em Espanha – sinalando assim comportamentos completamente contraditórios entre si, mas que têm ínsitos uma conclusão clara: Tribunais competentes para decidir da regulação de responsabilidades parentais da Menor são os Tribunais Espanhóis: onde a menor reside e foro com o qual tem maior proximidade.
xxii.-Mal andou o Tribunal a quo ao fundamentar a sua decisão sobre a competência internacional dos tribunais portugueses com base numa premissa errada e sem qualquer prova que a sustente, e ao total arrepio dos documentos juntos nos autos pelas partes.
xxiii.-A “HOJA PADRONAL” é prova inequívoca da fixação da residência da Menor em Espanha, sendo que este registo significa que, para efeitos civis, determinada pessoa irá tornar-se residente em Espanha, mantendo nesse país a sua residência efetiva e permanente. O documento refere: Causa da inscrição: mudança de residência. Se se trata de uma mudança de residência, por favor indique o município de origem: Portugal”, pelo que não podia sem culpa o Recorrido desconhecer o teor do documento que assinou.
xxiv.-O Recorrido ao assinar o referido documento não podia desconhecer o conteúdo do mesmo, este último é fluente na língua espanhola, compreendendo e comunicando na língua, tendo já trabalhado com clientes espanhóis e comunicado durante toda a relação com a Recorrente em espanhol.
xxv.-É falso que o Recorrido tenha sido enganado e que no momento da assinatura considerasse ser um documento obrigatório e necessário para a vacinação da criança, porquanto basta que a Recorrente esteja registada em Espanha para que a sua filha pudesse beneficiar dos cuidados médicos e vacinação, que também podem ser assegurados a uma criança em qualquer país da União Europeia – pelo que também por aí cai a tese mirabolante do Recorrido!
xxvi.-Resulta também confirmado que a deslocação da Menor M… para Espanha foi lícita, através do “Certificado de Empadronamiento” datado de 11 de fevereiro de 2021, o qual atesta que, pelo menos nesta data, a Menor já se encontrava registada e com residência fixa em Espanha com a autorização expressa do Recorrido.
xxvii.-Não existe qualquer prova nos autos, além das declarações do Recorrido, de que a deslocação não tenha sido lícita, tendo o Gabinete Jurídico e de Contencioso, a 19 de abril de 2021 informado, mediante email, a mandatária do Recorrido de que o pedido efetuado por aquele de regresso da criança a Portugal, tramitado também em Espanha, foi negado, tendo o processo sido encerrado.
xxviii.-Desconsiderou o Tribunal a quo, não tendo sequer tomado este facto em consideração na sua fundamentação que o processo proposto pelo Recorrido junto da Autoridade Central não cumpriu com os pressupostos previsto na Convenção de Haia, de 15 de outubro de 1980, sobre os Aspectos Civis do rapto Internacional de Crianças, declarando que a deslocação da Menor para Espanha se considera uma deslocação consentida.
xxix.- Andou mal o Tribunal a quo ao aplicar o disposto no artigo 10.º do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, de 27 de novembro, porquanto o mesmo apenas é aplicável perante uma situação deslocação ou retenção ilícitas de uma criança, o que não se verificou, desconsiderando a prova junta pela Recorrente nesse sentido, a decisão da Autoridade Central Espanhola, o Certificado de Empadronamiento e o Despacho proferido pelo Julgado de Primeira Instância n.º 8 de Gijon, Espanha.
xxx.-Ainda que houvesse deslocação ilícita – que não existiu e apenas por mero dever de patrocínio se equaciona e não se concede – os Tribunais portugueses continuariam a não ser competentes para decidir do presente caso porquanto: (1) criança encontra-se há quase 2 (dois) anos em Espanha; (2) Não foi dado provimento ao pedido de regresso do Menor pela Autoridade Central, porquanto considerou-se existir deslocação lícita, e ser a residência habitual da criança na data da propositura da ação em Espanha; (3) A criança encontra-se perfeitamente integrada em Espanha, sendo este o seu meio, e sendo isto mesmo reconhecido pelo próprio Recorrido, pelo que, também por aqui existe errada aplicação da lei por parte do Tribunal a quo que errou na aplicação do artigo 10.º do Regulamento, pese embora este artigo não seja o aplicável ao caso concreto.
xxxi.-Atendendo às regras previstas no Regulamento (CE) n.º 2201/2003, de 27 de novembro, sobre competência internacional, caberá aplicar aos presentes autos o disposto no artigo 8.º, n.º 1 daquele diploma, em detrimento de qualquer outro, sem prejuízo da correta aplicação da do artigo 15º do Regulamento, porquanto que o critério decisivo para a determinação da competência em sede de responsabilidade parental não será apenas e só o da residência habitual – que conforme se verá adiante era Espanha, mas também, e com maior relevância ainda o critério da proximidade, sendo este uma decorrência ou manifestação da proximidade, enquanto critério aferidor, e não o contrário.
xxxii.-O Tribunal a quo desconsiderou todo o circunstancialismo e factos que preenchem os critérios para aferição da residência habitual da criança nos termos do artigo 8.º do Regulamento, bem como nos termos do artigo 15.º, e bem assim a todos os factos e documentos presentes nos autos, fazendo uma errada subsunção do direito aos factos.
xxxiii.-Conforme determina o artigo 8.º do Regulamento, o critério atributivo de competência é o critério da residência habitual da criança à data da propositura da ação: a Menor saiu de Portugal a 21 de dezembro de 2020, autorizada pelo seu progenitor e acompanhada pela Recorrente- Cfr. Documento de Autorização de Saída já referido supra; O progenitor da criança, Recorrido, assinou e consentiu em fevereiro de 2021 a mudança da residência da criança para Espanha- Cfr. Documento “Hoja Padronal” já referido supra, o documento “Certificado de Empadronamiento”, junto pela Recorrente com a apresentação do requerimento nos autos com a referência citius 39685960, datado de 24 de agosto de 2021, o qual certifica que na data de 11 de fevereiro de 2021 a Menor se encontra, efetivamente, registada em Espanha e com a sua residência nesse país, mais especificamente, em Gijón – não tendo nenhuma desta prova sido considerada pelo Tribunal a quo.
xxxiv.-À data da propositura da ação junto dos tribunais portugueses a criança já tinha a sua residência fixa e estável em Espanha, junto da sua mãe, ora Recorrente, e junto dos restantes familiares do lado materno.
xxxv.-O critério de proximidade do foro com a Menor foi corretamente invocado na decisão do Tribunal a quo, mas, com o devido respeito, o preenchimento e aplicabilidade foi efetuada de forma errada, desconsiderando todas as ligações da Menor com Espanha.
xxxvi.-Segundo a jurisprudência aplicável (vide Acórdão Mercredi, de 22 de dezembro de 2010, Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, de 14 de janeiro de 2020, no âmbito do processo n.º 1868/20.0T8PDL.L1-2 e Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito do processo n.º 6987/13.6TBALM.L1.S1, datado de 28 de janeiro de 2016, disponível para consulta em www.dgsi.pt a título de exemplo) a residência habitual da Menor era e é à data da propositura da ação: Espanha.
xxxvii.-O conceito de residência habitual assim interpretado justifica que os tribunais portugueses não sejam os tribunais internacionalmente competentes para decidir sobre as questões da vida da Menor, por feito da situação plurilocalizada que ora se verifica. Os tribunais portugueses são os tribunais mais distantes da Menor M… e com menor ligação à mesma.
xxxviii.-Os elementos identificados pelo Tribunal a quo como elementos de proximidade relativamente à M..., são na realidade parcos, e caem perante os elementos de proximidade face ao país onde se encontra desde Dezembro de 2020: (1) A M… tem a necessária presença física em Espanha desde 21 de dezembro de 2020, vivendo nesse país desde essa data, sendo por esse motivo Espanha a sua residência habitual: é aí que se encontra inscrita na escola, no centro de saúde, tem os seus amigos e maioria dos familiares; (2) A M…, no sentido formal, fixou a sua residência em Espanha em fevereiro de 2021, conforme se encontra provado nos autos pelo “HOJA PADRONAL” e o “Certificado de Empadronamiento”- data anterior à propositura da ação; (3) A M…, no que ao sentido material diz respeito, tem o seu centro de vida familiar, social e escolar também em Espanha. (4) A M… tem dupla nacionalidade: portuguesa e espanhola, e apenas fala e domina a língua espanhola;
xxxix.-A M… só viveu em Portugal até aos 9 (nove) meses de idade, tenho muito desse tempo sido passado em confinamento, por contraposição aos quase 2 (dois) anos que já passou em Espanha. A Menor não conhece nem experienciou qualquer costume, prática ou celebração típica portuguesa. Ao contrário, a Menor está, consciente das celebrações e festividades do Dia de Reis que ocorrem em Espanha e que tem vindo a celebrar desde que se mudou com a Recorrente para aquele país.
xl.-Tanto a criança como a Recorrente encontram-se de forma estável a residir em Espanha, tendo a Recorrente já reestabelecido nesse país a sua vida, não tendo intenções de retornar, de momento, a Portugal, nem a isso se opondo o Recorrido. A criança encontra-se completamente integrada em Espanha, não existindo quaisquer dúvidas sobre esse aspeto.
xli.-Espanha é o país da residência habitual da Menor e simultaneamente o país na qual a Menor tem toda a sua vida e reside desde 21 de dezembro de 2020 até à data de hoje – volvidos quase 2 (dois) anos, razão pela qual apresenta com este país uma relação mais estreita.
xlii.-A única relação que a criança tem com Portugal é o facto do seu pai e dos seus meios-irmãos aí residirem, sendo a sua figura de referência a Recorrente, como aliás, reconhece o Recorrido.
xliii.-Por aplicação do disposto no artigo 8.º do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, de 27 de novembro, sempre se deverá entender que os tribunais portugueses não têm competência para a apreciação do mérito da causa, porquanto a residência habitual da Menor era à data da propositura da ação e é até hoje: Espanha, pelo que mal andou o Tribunal a quo ao não ter determinado a sua incompetência, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 8.º do mesmo Regulamento.
xliv.-Andou mal o Tribunal a quo na interpretação e aplicação do artigo 15.º do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, transferir a instância para um tribunal mais bem colocado para apreciar os presentes autos e ao desconsiderar todo o circunstancialismo relevante para decidir sobre a competência internacional dos tribunais portugueses para julgarem o mérito dos presentes autos, uma vez que se verifica, sem margem de dúvida, que a criança M… apresenta uma ligação estreita com um outro Estado-Membro que não Portugal.
xlv.-Também com base no artigo 15.º do Regulamento se impunha a atribuição de competência aos Tribunais Espanhóis porquanto (1) a criança M... depois de instaurado o processo nos tribunais portugueses, pelo Recorrido, adquiriu a sua residência noutro Estado-Membro, em Espanha; (2) a criança tem a sua residência habitual nesse Estado-Membro; e (3) um dos titulares da responsabilidade parental tem a sua residência habitual nesse Estado-Membro, no caso, a Recorrente, pelo que dos cinco requisitos, ainda que não cumulativos, previstos no artigo 15.º do Regulamento que permitem e fundamentam uma possível transferência dos autos para o Tribunal mais próximo da Menor, quatro daqueles se encontram verificados a favor da jurisdição do Tribunal Espanhol.
xlvi.-Andou mal o Tribunal a quo na aplicabilidade e interpretação dos factos relevantes para preenchimento e aplicação do artigo 15.º do Regulamento, em manifesta violação dos princípios do superior interesse da criança e do princípio da proximidade, princípios orientadores e expressamente consagrados no Regulamento (CE) n.º 2201/2003, diretamente aplicável na ordem jurídica portuguesa.
xlvii.-Assim e por tudo o supra exposto, deverá o presente recurso ser julgado procedente, por provado e, consequentemente ser declara a incompetência internacional dos tribunais portuguese para prosseguir com os autos e decidir da regulação das responsabilidades parentais por aplicação do artigo 8.º e 15.º do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 576.º, n.º 1 e n.º 2, artigo 577.º, alínea a), artigo 578.º e artigo 278.º, n.º 1, alínea a) do CPC”.

O Recorrido veio, de seguida, apresentar as suas Contra-Alegações, as quais concluiu com as seguintes Conclusões:
1.–O Recurso apresentado pela Recorrente tem como objecto o Douto Despacho proferido no dia 25 de Outubro de 2022, que determinou a competência internacional dos tribunais portugueses para conhecerem do mérito da presente acção.
2.–Ora, a decisão proferida no despacho sub judice vem devidamente fundamentada, quer de facto, quer de direito, revelando-se perfeitamente consentânea com o disposto quer na legislação interna, quer nos instrumentos internacionais aplicáveis quanto à competência internacional dos tribunais portugueses para conhecer do mérito da presente acção não merecendo a mesma, por isso, qualquer reparo. Senão vejamos,
3.–Começa a Recorrente por requerer, ao abrigo do disposto no art. 647.º, n.º 4 do CPC, aplicável ex vi art. 33.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (“RGPTC”), a atribuição de efeito suspensivo ao presente recurso de apelação, no entanto, a verdade é que se verifica precisamente o oposto daquilo que alega a Recorrente, já que é manifestamente evidente que a atribuição de tal efeito ao presente recurso é susceptível de agravar ainda mais o superior interesse da menor M..., filha das partes, que está privada de ver e estar com o pai, por força de uma decisão unilateral e premeditada da mãe de se deslocar com a menor para Espanha, e aí permanecer sem o necessário consentimento do pai. Para além disso,
4.–E salvo o devido respeito, não existe qualquer erro do Mmo. Tribunal a quo na interpretação que fez acerca da residência da criança e que determinou a decisão acerca da competência internacional dos tribunais portugueses para conhecer do mérito da presente acção, por ser indesmentível que a menor, à data em que foi proposta a presente acção, era residente em Portugal, tendo sido ilicitamente retida em Espanha pela mãe até à presente data.
5.Decorre da prova produzida nos presentes autos que a menor M... , é uma cidadã portuguesa, nasceu no dia 9 de Março de 2020, em Portugal, tendo aqui residido, com os seus pais e com os seus três irmãos consanguíneos, até Dezembro de 2020, quando foi deslocada pela sua mãe para Espanha, a pretexto de aí passar a quadra natalícia, tendo aí ficado ilicitamente retida até aos dias de hoje (cfr. documentação junta aos autos com a petição inicial).
6.–Estando igualmente demonstrada que a saída da menor do território nacional havia sido autorizada pelo Recorrido só com uma data de validade de seis meses, o que claramente demonstra que a mesma sempre teve como pressuposto o regresso da criança e nunca a sua alteração de residência (cfr. Doc. n.º 1 junto com o requerimento que a Recorrente apresentou aos autos no dia 06/07/2021).
7.–Ora, a residência habitual da criança, de acordo com a jurisprudência do TJUE, que tem vindo a ser acolhida de modo constante e uniforme pela jurisprudência dos tribunais superiores portugueses, é um conceito autónomo, norteado pelo critério do superior interesse da criança, deve basear-se em elementos factuais concretos, que permitam concluir com certeza e segurança jurídica qual o local onde esta tenha estabelecido o “centro efectivo da sua vida, encontrado de acordo com os elementos disponíveis no momento da entrada do processo em tribunal”. Ora,
8.–E, sendo a M... uma criança ainda tão pequena, essa realidade factual afere-se naturalmente por referência à realidade social, profissional e familiar dos seus progenitores, com quem residia desde que nasceu.
9.–Sendo por isso manifestamente insuficiente, a mera junção pela Recorrente de um formulário de inscrição administrativa (Hoja Padronal) para afastar uma realidade que resulta provada, e nunca contestada, acerca da residência efectiva dos progenitores e da criança, até esta ter sido deslocada e ilicitamente retida em Espanha pela sua mãe.
10.–Aliás, resultou demonstrado em que circunstâncias e com que convicções é que o Recorrido, de boa fé, assinou a referida Hoja Padronal – acreditando no que lhe foi dito pela Recorrente: que o mesmo era necessário para a vacinação da criança e a obtenção de subsídios decorrentes da maternidade e nunca para efeitos de alteração da residência da M... para Espanha – assim impugnando a força probatória que daquele documento se pretendia retirar, para comprovar a autorização da alteração da residência da criança para Gijón, Espanha.
11.–Foi neste contexto, que o Recorrido assinou aquele formulário administrativo, escrito numa língua estrangeira (que o Recorrido conhece, mas que não é a sua língua-materna), sem o mesmo estar sequer preenchido, datado ou assinado pela Recorrente, conforme, aliás, se alcança de cópia do documento, tal como ele foi remetido pelo Recorrido à Recorrente em Janeiro de 2021, ora junto (cfr. Doc. n.º 1).
12.–Perante isto, é claro que tal documento não afasta aquela que era a realidade factual da menor à data da propositura da acção, quando esta foi na companhia da sua mãe passar a quadra natalícia a casa da avó materna, no pressuposto de que regressariam a casa depois do Dia de Reis que a Recorrente, aproveitando-se das limitações de viagem decorrentes da pandemia, foi adiando sucessivamente o regresso, aproveitando-se da ingenuidade e paciência do Recorrido. Além disso,
13.–O momento relevante para a aferição da competência de um tribunal é o da realidade factual da criança à data em que é intentada a acção em tribunal (cfr. nomeadamente art. 9.º do RGPTC, art. 38.º da LOSJ e art. 8.º do Regulamento).
14.–Pelo que bem andou o Tribunal ao concluir que são os tribunais portugueses os internacionalmente competentes para apreciar e decidir acerca da regulação do exercício das responsabilidades parentais desta menor, por ser neste país decidir que a M... tinha a sua residência habitual à data da instauração da acção.
15.–Não podendo em momento algum proceder a tese da Recorrente de que, perante o facto de a menor se encontrar actualmente em Espanha – aí estando ilicitamente retida pela sua mãe, note-se! – e atendendo às (alegadas) delongas do sistema judiciário português, os tribunais portugueses deixam de ser os mais bem colocados para conhecer da presente acção, pois tal seria violador das normas acerca da competência internacional e premiar justamente a atitude da Recorrente de se deslocar para Espanha na companhia da criança e aí permanecer com esta sem o necessário consentimento do pai.
16.–Alega ainda a Recorrente que o Mmo. Tribunal a quo não deveria ter-se declarado competente depois de ter sido proferido um Despacho pelo Julgado de Primeira Instância n.º 8 de Gijón a considerar-se competente para conhecer e julgar a presente acção.
17.–Contudo, importa fazer notar que o Despacho proferido pelo Tribunal de Gijón nada demonstra relativamente ao centro de vida efectivo e real da criança, e fundamenta a sua competência com base nos únicos elementos de que dispunha e que lhe foram apresentados pela mãe – a autorização de saída de território nacional e a “Hoja de Empadronamiento” – já que o Recorrido não chegou a ser citado para aqueles autos.
18.–Por último, e quanto ao facto de o Recorrido ter propugnado com a propositura da presente acção (quando a criança tinha apenas 1 ano de idade) que fosse fixada a residência junto da mãe, atenta a tenra idade da criança, importa ter presente que, tendo esta actualmente já quase 3 anos de idade, já não subsiste o motivo invocado para a criança ficar a residir com a mãe, pelo que o Recorrido pretende que lhe seja agora atribuída a guarda da criança, passando esta a consigo residir, juntamente com os seus três filhos, irmãos consanguíneos da menor.
19.–Além disso, mesmo quando entendeu que a menor deveria manter-se à guarda e cuidados da mãe, em nenhum momento o Recorrido se conformou com a competência internacional do Tribunal espanhol para conhecer da presente acção, já que a criança sempre viveu em Portugal e estava previsto que aqui regressaria depois de passar o Natal em casa da avó materna em Espanha.
20.–Face a tudo o que vem exposto, resulta manifestamente evidente que não assiste qualquer razão à Recorrente ao peticionar que seja fixado ao presente recurso efeito suspensivo – que deverá por isso improceder – já que é evidente que o superior interesse da M... reclama precisamente o contrário, uma vez que é urgente que esta retome os convívios regulares com o pai e irmãos, interrompidos por força da deslocação e retenção ilícita da menor para Espanha com a mãe, sendo um direito da criança poder conviver com os dois progenitores, em igualdade de circunstâncias, e usufruir e beneficiar da presença dos mesmos na sua vida. Quanto ao mérito do presente recurso,
21.–Não assiste qualquer razão à Recorrente ao alegar que o Douto Despacho enferma de nulidade, por violação dos princípios de competência internacional dos tribunais, sendo tal entendimento uma clara deturpação da realidade factual e uma interpretação despropositada da legislação em vigor, contrária aos princípios mais basilares de um ordenamento jurídico, nomeadamente os da segurança e certeza jurídica, bem como ao princípio do superior interesse da criança. Senão vejamos,
22.–Começa a Recorrente por alegar que não existiu qualquer retenção ilícita da criança, já que o próprio pai admite que a residência da menor é em Gijón, a que acresce o facto de não ter sido considerado no Despacho sob recurso o teor do Despacho proferido pelo Julgado de Primeira Instância n.º 8 de Gijón. Ora,
23.–Em 07/07/2021 teve lugar a conferência de pais nos presentes autos, onde foi proferido um Despacho que determinou, entre outras coisas, que face dos requerimentos apresentados por ambas as partes fosse oficiado o Tribunal espanhol para prestar informação acerca do estado atual do processo de regulação das responsabilidades parentais aí intentado pela Recorrente.
24.–Remetido o ofício através das instâncias competentes, não foi apresentada qualquer resposta pelo Tribunal de Gijón ao pedido de esclarecimentos remetido.
25.–A 27/09/2021, foi proferido novo Despacho onde determinou o Mmo. Tribunal a quo que: (i) fosse informado o Tribunal de Gijón que a residência e o centro de vida da criança sempre foi em Portugal, uma vez que a criança e os pais residiam em Portugal, e que este foi o local do nascimento de M...; (ii) pese embora o progenitor tenha concedido autorização para que a criança se ausentasse do território nacional na companhia da mãe, a mesma foi concedida por um prazo máximo de 6 (seis) meses, pelo que a deslocação da criança respeitaria apenas a uma deslocação temporária, para visita à família materna e celebração da quadra natalícia de 2020; e que (iii) os presentes autos foram propostos pelo progenitor contra a progenitora, a 17.03.2021, com vista a regular todas as questões relativas ao exercício da parentalidade da menor.
26.–Por último solicitava ainda ao Tribunal Espanhol informação acerca do estado atual da ação que aí corria termos e da posição que vier a tomar em face dos esclarecimentos que aí vinham prestados.
27.–Notificado às partes, nada foi dito relativamente ao teor do referido Despacho que expressamente reconhece – e bem! – a residência da menor M... em Portugal à data da propositura da presente acção, bem como a falta de consentimento do progenitor para a retenção da menor em Espanha.
28.–O referido despacho foi novamente remetido através das instâncias competentes para o Tribunal de Gijón, e só a 27/06/2022 (quase um ano depois), foi junto aos presentes autos um Despacho proferido pelo Julgado de Primeira Instância n.º 8 de Gijón onde, desconsiderando-se toda a informação prestada pelo Mmo. Tribunal a quo, bem como o facto de a autorização de saída de menor do território nacional ter sido emitida com uma data de validade, este se limita a entender que a M... é residente em Espanha – e que, por isso, os tribunais espanhóis são internacionalmente competentes – apenas e só com base no facto de ter sido emitida pelo pai uma declaração de autorização de saída da menor para o estrangeiro e de a criança ter sido registada pela mãe como residente em Gijón desde fevereiro de 2021. Ora,
29.–O conceito de residência habitual ínsito no Regulamento, tem vindo a ser concretizado pelo TJUE como o local onde a criança tenha estabelecido o “centro efectivo da sua vida, encontrado de acordo com os elementos disponíveis no momento da entrada do processo em tribunal”, por ser esse o momento processual relevante para a fixação da competência.
30.–Ou seja, também de acordo com a jurisprudência do TJUE “corresponde ao local que revelar uma determinada integração do menor num ambiente social e familiar. Para esse fim, devem ser tidas em consideração, nomeadamente, a duração, a regularidade, as condições e as razões da permanência no território de um Estado Membro e da mudança da família para esse Estado, a nacionalidade do menor, o local e as condições de escolaridade, os conhecimentos linguísticos, bem como os laços familiares e sociais que o menor tiver no referido Estado. Incumbe ao órgão jurisdicional nacional determinar a residência habitual do menor tendo em conta o conjunto das circunstâncias de facto relevantes em cada caso concreto” (cfr. Acordão do TJUE proferido no âmbito do processo C-497/10 PPU, Barbara Mercredi / Richard Chaffe). Perante isto,
31.–Recorde-se que a menor M..., filha comum do Recorrido e da Recorrente, tem nacionalidade portuguesa, nasceu e viveu em Portugal, até ao dia 21 de Dezembro de 2020.
32.–Os dois progenitores da menor tinham, à data em que a menor nasceu e daí em diante, o seu centro de vida estabelecido em Lisboa, aqui residiam, em condições análogas às dos cônjuges, juntamente com a filha comum e os filhos do Recorrido, em regime de residências alternadas semanais, ou seja, aqui tinham estabelecida a sua vida social e familiar, aqui levavam a cabo as respectivas actividades profissionais, e aqui levavam a cabo as suas rotinas diárias, tais como idas ao médico, estando inscritos no centro de saúde da sua área de residência.
33.–Nenhum destes factos foi alguma vez contestado pela Recorrente, decorrem de modo claro de toda a documentação junta aos autos pelo Recorrido com a petição inicial que deu início aos presentes autos (cfr. Doc. n.º 1, 2 e 3 juntos com a petição inicial), e foram, aliás, igualmente reconhecidos no Douto Despacho proferido a 27/09/2021, sem que nenhuma das partes tivesse dele interposto recurso.
34.–Em Novembro de 2020, as partes decidiram que a vida em comum deixara de ser possível, contudo, mantiveram-se a residir na mesma casa.
35.–Chegados ao Natal de 2020 a Recorrente manifestou junto do Recorrido a sua vontade de passar o Natal e o Dia de Reis em Espanha, junto da sua mãe, levando consigo a menor, filha de ambos.
36.–O Recorrido concordou com essa ida e, de resto, pagou ele os bilhetes de avião, com partida a 23 de Dezembro e regresso a 9 de Janeiro, que acabaram por ser cancelados atendendo às restrições de deslocação impostas pela Pandemia (cfr. Doc. n.º 5 junto com a petição inicial).
37.–O Recorrido concordou então ser ele próprio a levar a Recorrente e a filha comum de ambos a Gijón, no dia 21 de Dezembro, sem que nunca tenha sido discutida entre as partes a possibilidade de a menor alterar a sua residência para Gijón e já não regressarem a Lisboa, tendo a Recorrente feito a mala para si e para a filha apenas para passar uns dias fora de casa, deixando em Lisboa todos os seus bens e da criança, o seu negócio e toda a vida em suspenso!
38.–O regresso da Recorrente e da menor estava previsto para depois do Dia de Reis, pois era para essa data que estivera agendado o vôo de regresso entretanto cancelado, sem uma data concreta, atendendo às dificuldades de circulação impostas pela pandemia, tendo a Recorrente pedido ao Recorrido uma declaração de autorização de viagem da menor para o estrangeiro, o que este fez, crente na necessidade da mesma para o regresso da sua filha, por via terrestre.
39.–A referida autorização (cfr. Doc. n.º 1 junto com o requerimento apresentado a juízo a 06/07/2021 pela Recorrente) foi emitida com a expressa menção de que a mesma era válida apenas pelo período de seis meses, o que demonstra claramente a convicção por parte do Recorrido de que esta viagem a Gijón se tratava apenas e só de uma visita à avó materna no período de Natal, e não de uma mudança de residência da menor, que este nunca autorizou, nem autorizaria.
40.–A Recorrente, após o Dia de Reis, foi mantendo no Recorrido a convicção de que conseguiriam, os dois, por acordo, encontrar um entendimento razoável acerca da vida da M... .
41.–E, ludibriando habilmente o Recorrido, a Recorrente enviou-lhe um formulário administrativo, escrito em língua castelhana, sem estar preenchido (cfr. Doc. n.º 1 já junto supra), que lhe pediu que o assinasse, alegando que era necessário para a poder vacinar a menor e pedir os subsídios a que tinha direito, decorrentes da maternidade.
42.–A Recorrente depois de receber o formulário assinado pelo pai, preencheu-o ela própria e entregou-o junto das autoridades administrativas (cfr. Doc. n.º 2 do requerimento apresentado a juízo pela Recorrente a 06/07/2021) como aliás resulta claro da análise do mesmo e do confronto com o documento ora junto com o presente recurso.
43.–Ora, uma vez que o documento não estava sequer preenchido quando foi assinado pelo Recorrido, nem este tinha conhecimento dos fins a que o mesmo se destinava, nada do que é alegado pela Recorrente acerca do que decorre do teor de tal documento releva para demonstrar a intenção do Recorrido de autorizar a alteração de residência da sua filha para Espanha,
44.–Desconhecendo o Recorrido em absoluto (como é natural) que documentos em Espanha são necessários para efectuar o registo de um cidadão como residente naquele país, bem como quais são os documentos necessários para aceder ao plano de vacinação nacional ou aos cuidados de saúde pública.
45.–O Recorrido assinou assim a referida “Hoja Padronal” de boa fé e confiando naquilo que lhe foi transmitido pela Recorrente, nunca com a intenção de autorizar a alteração da residência da sua filha para Espanha, pelo que é claro que a retenção da M... em Gijón, Espanha, desde 2020, é ilícita.
46.–Aliás, cumpre referir que a Recorrente nunca circunstancializa nas suas alegações a partir de que momento é que a viagem que se destinava a passar o Natal com a sua mãe em Gijón se torna uma mudança definitiva e permanente sua e da menor para aquele país, nem em que termos e com que pressupostos é que o Recorrido aceitou essa realidade,
47.–Porque simplesmente tal nunca aconteceu!
48.–É assim evidente, por tudo o que se referiu supra, que os documentos juntos pela Recorrente aos presentes autos – a “Hoja Padronal” e a Autorização de Saída de Menor do Território Nacional – são insuficientes para provar que ocorreu uma alteração lícita da residência da menor de Portugal para Espanha, tendo os mesmos sido devidamente contextualizados pelo Recorrido, assim impugnando a força probatória que dos mesmos se pretendia retirar, para comprovar a autorização da alteração da residência da criança para Gijón, Espanha.
49.–Ora, foi justamente com base apenas nestes dois elementos que o Tribunal de Gijón fundamenta o Despacho que proferiu e que foi junto aos presentes autos a 27/06/2022, não dispondo aquele Tribunal de nenhum outro elemento adicional, já que o Recorrido nunca foi sequer citado para a acção que corre termos em Espanha e, como tal, nunca teve oportunidade de aí alegar e demonstrar que a menor era residente em Portugal.
50.–Além disso, o Despacho proferido pelo Tribunal de Gijón não faz qualquer menção ao teor da informação prestada pelo Despacho proferido pelo Mmo. Tribunal a quo a 27/09/2022, remetido àqueles autos, e onde se lê claramente que a menor e a Recorrente eram residentes em Portugal à data de entrada da acção.
51.–Nesta medida, não merece qualquer censura o Douto Despacho sub judice por não ter considerado o Despacho proferido pelo Tribunal de Gijón, já que decorre de modo claro que este último se funda em elementos insuficientes, contraditórios, não faz qualquer enquadramento da realidade factual e ainda desconsidera ostensivamente o Despacho proferido pelo Mmo. Tribunal a quo.
52.–O mesmo se diga relativamente à decisão proferida pela Autoridade Central Espanhola, no âmbito do pedido de regresso ou exercício de direito de visitas da menor, intentado pelo Recorrido, onde a Autoridade Central Espanhola (apenas numa fase administrativa, e não no âmbito de um processo judicial) se limitou a indeferir o pedido de regresso com fundamento apenas e só no facto de o pai ter assinado o consentimento para a alteração de residência para Espanha, conforme decorre da informação prestada pela Autoridade Central Portuguesa, junta aos presentes autos a 16/08/2021. Ora,
53.–Além de tal decisão proferida pela Autoridade Central Espanhola estar fundamentada apenas e somente no documento assinado pelo Recorrido, manifestamente insuficiente para afastar a realidade factual que demonstra que a criança era efectivamente residente em Portugal à data em que deu entrada a presente acção,
54.–Cumpre referir que o procedimento previsto na Convenção de Haia não pretende estender o seu âmbito à regulação do exercício das responsabilidades parentais, sendo a competência para tal acção aferida por normas próprias e independentes das previstas para tal procedimento, que tem apenas como propósito ser uma medida de resposta rápida a uma actuação ilegítima de subtracção de um menor e assegurar o respeito pelo direito de custódia atingido e o direito de visita.
55.–Pelo que, o facto de não ter sido ordenado o regresso da criança no âmbito daquele procedimento não permite retirar nenhuma conclusão acerca de qual o Tribunal competente para a regulação do exercício das responsabilidades parentais, nem inibe as partes de alegar e provar – como sucedeu – no âmbito da presente acção, que a deslocação e retenção da menor em Espanha foi (e é ainda) ilícita, Além disso,
56.–Cumpre igualmente esclarecer que estando a criança quase com 3 anos de idade, a proposta do Recorrido, à data da propositura da presente acção (quando a criança tinha apenas 1 ano de idade), de que fosse fixada a residência da M... junto da mãe, atenta a tenra idade da criança – pese embora a sua deslocação ilícita para Espanha – já não é aquela que melhor promove o superior interesse desta criança, sobretudo atendendo à postura alienadora da mãe, pelo que o pai pretende que lhe seja atribuída a guarda da criança, passando esta a consigo residir, juntamente com os seus três filhos, pois só assim poderá o Recorrido ser um pai presente na vida da sua filha, acompanhar o seu crescimento e com ela criar uma vinculação segura, estável e significativa. Na verdade,
57.–O pedido da presente acção é tão-somente a regulação do exercício das responsabilidades parentais de uma criança menor de idade, e atenta a natureza de jurisdição voluntária dos presentes autos, bem como o princípio do superior interesse da criança é imperioso que na pendência do processo, e em particular até à apresentação das alegações previstas no art. 39.º do RGPTC, haja necessidade de considerar todas as características (evolutivas e estáticas) de cada criança, bem como as circunstâncias de cada caso, conformando o peticionado em função das mesmas.
58.–Alega ainda a Recorrente que, de acordo com o disposto na alínea b) do art. 10.º do Regulamento, mesmo em caso de deslocação/retenção ilícita os tribunais portugueses seriam sempre competentes porque a criança está há quase dois anos a esta parte em Espanha, estando naquele país perfeitamente integrada.
59.–Contudo, e mais uma vez, a competência internacional é aferida por referência à data em que a acção foi proposta, sendo que a 17 de Março de 2021 a criança encontrava-se há menos de três meses em Espanha, tendo o progenitor suscitado em simultâneo com a presente acção um pedido de regresso junto das entidades competentes.
60.–Por tudo isto, não merece qualquer crítica ou reparo o Douto Despacho proferido pelo Mmo. Tribunal a quo, sendo correcta a aplicação que faz do disposto no art. 10.º do Regulamento às circunstâncias in casu, não assistindo por isso qualquer razão à Recorrente. Acresce ainda que,
61.–Tal como decorre claramente do Douto Despacho, da aplicação conjugada das normas de direito interno relativas à competência internacional (art. 59.º, 62.º do CPC e 9.º do RGPTC) e das normas do Regulamento, o critério que cumpre considerar em primeiro lugar é o da residência habitual da criança à data de instauração da acção.
62.–Além disso, as normas de direito interno e o Regulamento também são claros quanto ao momento processual que deve ser considerado para determinação da competência do Tribunal, que corresponde ao momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente (cfr. art. 8.º do Regulamento, art. 38.º da LOSJ e art. 9.º do RGPTC). Não obstante assim ser,
63.–A Recorrente, na tentativa de fundamentar a todo o custo o que peticiona, vem distorcer o que decorre da lei e da realidade de facto, alegando que também de acordo com os critérios previstos no art. 9.º do Regulamento (caso se entenda que aquele preceito é aplicável aos presentes autos) seriam competentes os tribunais espanhóis, pois os tribunais do Estado Membro da anterior residência habitual da criança só mantêm a sua competência, em derrogação do artigo 8.º, durante um período de três meses após a deslocação, e actualmente já decorreram dois anos.
64.–Ora, sendo o momento processual relevante para a determinação competência o da data de entrada da acção em juízo – isto é, a 17/03/2021 – tendo a criança sido deslocada de Portugal para Espanha e aí ilicitamente retida, a partir de dia 21/12/2020, é evidente que também de acordo com aquele artigo seriam competentes os tribunais portugueses.
65.–Face aos elementos carreados para os autos por ambas as partes, bem andou o Mmo. Tribunal a quo ao entender que, de acordo com o critério da residência habitual da criança, previsto no art. 8.º do Regulamento, seriam internacionalmente competentes os tribunais portugueses.
66.–Apesar de assim ser, a Recorrente persiste em alegar que à data da propositura da acção – Março de 2021 – a residência da criança era em Espanha, fundamentando aquilo que alega novamente com base na autorização de saída assinada pelo Recorrente válida por seis meses, na assinatura do formulário “Hoja Padronal” por parte do Recorrido e no “Certificado de Empadronamiento” que mais não é que a confirmação do registo efectuado por meio da “Hoja Padronal” por parte da Recorrente.
67.–Contudo, conforme já se disse e se insiste, nenhum daqueles documentos é suficiente para demonstrar e concluir que a residência da criança era em Espanha,
68.–E a Recorrente limita-se a alegar factos que correspondem à realidade actual, decorrente da retenção ilícita da M... naquele país posterior à data de propositura da presente acção por parte do Recorrido, ficando assim totalmente por demonstrar que a residência habitual da M... à data da propositura da presente acção fosse efectivamente em Espanha. Ora,
69.–É a própria Recorrente, quem assume que todas as deslocações da criança a Espanha, desde o seu nascimento foram sempre a título de visita,
70.–A menor nasceu em Março de 2020 em Portugal e aqui residiu até ter sido levada para Espanha pela sua mãe, em Dezembro de 2020, a pretexto de aí passar a quadra natalícia, pelo que resulta absurdo alegar que ao fim de três meses em Espanha, a menor já estava “integrada” naquele país.
71.–Os elementos de proximidade que permitem fixar o conceito de residência habitual relativamente a uma criança tão pequena, totalmente dependente dos seus progenitores, devem ser aferidos pela realidade destes que, neste caso, eram ambos residentes em Portugal.
72.–Também absurdo é mencionar, como faz a Recorrida, que a criança não fala português, desconhece tradições e costumes deste país, nunca celebrou um Natal em Portugal, para afastar a competência do Tribunal português.
73.–Já que todos esses factos são meras decorrências da decisão de retenção ilícita e não autorizada da menor em Espanha, e ainda que correspondam à verdade actualmente – o que, refira-se, não se aceita e apenas à cautela se concebe, como mera hipótese de raciocínio – nenhum dos mesmos era uma realidade em Março de 2021, quando o Recorrido intentou a presente acção.
74.–O mesmo sucede relativamente ao facto de a mãe actualmente ter encontrado um trabalho como administrativa em Espanha, sendo que à data de Março de 2021 (em que deixou o negócio que tinham em Lisboa de cozinha vegan e crua para ir passar o Natal a casa da sua mãe e não mais voltou) a Recorrente encontrava-se desempregada, tendo deixado fornecedores, senhorios, clientes, materiais, etc… pendentes do seu regresso a Lisboa!
75.–E quanto ao facto de a criança estar inscrita e estar previsto que em janeiro de 2023 passe a frequentar uma creche – decisão nunca autorizada pelo pai, em clara violação do princípio de exercício conjunto das responsabilidades parentais – em Gijón.
76.–Aliás, uma vez que a criança nem sequer frequenta um equipamento de ensino pré-escolar à presente data, é patentemente falso que a mesma tenha o seu centro social e educacional estabelecido em Espanha, como alega a Recorrente.
77.–Também não pode deixar de referir-se que tudo o que vem alegado relativamente à família alargada materna e à proximidade existente actualmente entre a criança e a avó materna, as tias e tio maternos, o primo nascituro, os primos em segundo grau e o filho da melhor amiga da Recorrente, além de ser também uma realidade posterior à data de entrada da presente acção e decorrente da deslocação e retenção ilícita da criança perpetrada pela Recorrente, existe igualmente do lado paterno.
78.–A menor tem em Portugal três irmãos consanguíneos, com quem residiu desde que nasceu, tendo sido dessa realidade familiar que a M... foi abrupta e injustificadamente retirada em Dezembro de 2020.
79.–Os irmãos da M... sentem saudades desta e perguntam ao pai por que motivo não está com eles, já que integram também eles o agregado familiar do pai, acompanharam a gravidez, nascimento e primeiros meses da menor, até esta ter sido afastada da sua família pela mãe. Além disso,
80.–A mãe do Recorrido reside próximo da casa deste, sendo presença assídua na vida do filho e dos netos, bem como a tia (irmã do Recorrido) e filhos desta, ao contrário do que refere a Recorrente.
81.–Também cumpre fazer notar que, desde que saiu de Portugal, a Recorrente nunca mais aqui regressou, nem trouxe a criança, para que esta pudesse pelo menos conviver com o seu pai, irmãos e restante família paterna,
82.–Os contactos da menor com o pai são extraordinariamente difíceis e esbarram com a total falta de colaboração por parte da mãe, que não auxilia nem estimula a menor durante as chamadas telefónicas que o pai faz, limitando-se a prendê-la numa cadeira e a pôr-lhe um telefone à frente, o que exaspera a menor, que começa a chorar porque quer sair dali, perante as tentativas inglórias do pai de interagir com a filha. Perante isto, e em conclusão,
83.–Resulta evidente de todo o exposto supra que de acordo com o critério da residência habitual da criança, estabelecido no art. 8.º do Regulamento, o tribunal internacionalmente competente para conhecer do mérito da presente acção é o Tribunal português, como reconheceu – e bem – o Mmo. Tribunal a quo.
84.–Por fim, decorre ainda do Douto Despacho que também de acordo com o critério residual de atribuição de competência previsto no art. 15.º do Regulamento - baseado na ligação particular entre a criança com um Estado Membro que não corresponde ao da sua residência habitual, sempre que tal promova o superior interesse da criança - se apurariam sempre como competentes os tribunais portugueses pois, de entre as diversas situações que aí vêm indicadas como critérios para concluir que existe uma ligação particular entre a criança com um Estado Membro, três deles são precisamente (i) ter tido a criança a sua residência habitual nesse Estado-Membro; (ii) a criança ser nacional desse Estado Membro; ou (iii) um dos titulares da responsabilidade parental ter a sua residência habitual nesse Estado Membro (cfr. alíneas b), c) e d), do n.º 3, art.º 15.º do Regulamento).
85.–Contudo, a Recorrente, novamente escamoteando o facto de a criança ter sido ilicitamente retida em Espanha pela mãe durante todo este tempo, tendo o Recorrido intentado a presente acção menos de três meses depois da saída da criança (de férias) do território nacional, vem alegar que, depois de instaurado o processo nos tribunais portugueses, a menor adquiriu a sua residência em Espanha, pelo que, de acordo com o princípio da proximidade, seria Espanha, e não Portugal, o tribunal competente.
86.–Ora, como refere ANABELA FIALHO, “Resolução de situações práticas – aplicação prática dos instrumentos” in “O Direito Internacional da Família”, Tomo I, Centro de Estudos Judiciários, Junho de 2014, p. 389: “…o artigo 15º parece não ser aplicável aos casos em que ocorre uma deslocação ou retenção ilícitas, sendo aplicável a estas situações o disposto no artigo10º, que, em regra, garante que os tribunais do Estado-Membro onde a criança tinha a sua residência habitual antes da deslocação ilícita continuam a ser competentes para decidir sobre o mérito da causa igualmente depois da deslocação ilícita.” (realce nosso)
87.–De facto, não faz qualquer sentido, seria até contraditório face ao superior interesse das crianças e violador do princípio da certeza e segurança jurídica, que em circunstâncias com as dos presentes autos, de deslocação e retenção ilícita de um menor num país estrangeiro, que se admitisse que depois se viesse considerar o Tribunal onde a criança está ilicitamente retida como competente de acordo com o critério da proximidade. Acresce que,
88.–Ao contrário do que alega a Recorrente os tribunais portugueses são os melhor posicionados para tomar uma decisão acerca da regulação do exercício das responsabilidades parentais da menor M..., podendo formar a sua convicção com base nos elementos carreados para os autos pelas partes e, caso haja necessidade de obtenção de algum elemento probatório em Espanha, poderão sempre socorrer-se dos instrumentos internacionais que existem para essa finalidade (cfr. Regulamento (CE) n.º 1206/2001 relativo à cooperação entre os tribunais dos países da UE no domínio da obtenção de provas em matéria civil ou comercial, revogado e substituído pelo Regulamento (UE) 2020/1783, a partir de 1 de julho de 2022)
89.–Assim sendo, - como é! - bem andou o Mmo. Tribunal a quo ao proferir o Douto Despacho sob recurso, nos termos do qual, ao abrigo do disposto nos art. 19.º, 8.º, 10.º e 15.º do Regulamento, declarou serem os Tribunais portugueses internacionalmente competentes para conhecerem do mérito da presente acção, uma vez que a menor M... tinha residência habitual em Portugal à data em que foi ilicitamente deslocada e retida num país estrangeiro, mantendo-se a ligação particular da menor com Portugal”.

O Ministério Público veio, de seguida, apresentar Contra-Alegações, concluindo que a decisão sob recurso não violou qualquer disposição do Regulamento (CE) n.º 2201//2003, de 27 de Novembro, aderindo na íntegra aos fundamentos de facto e de direito nela constantes e entendendo que não padece de qualquer vício que a invalide, fazendo a correcta aplicação das normas legais aplicáveis.

QUESTÕES A DECIDIR

São as Conclusões da Recorrente que - nos termos dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil - delimitam, objectivamente, a esfera de actuação do Tribunal ad quem (exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial, como refere, Abrantes Geraldes[1]), sendo certo que, tal limitação, já não abarca o que concerne às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil), aqui se incluindo qualificação jurídica e/ou a apreciação de questões de conhecimento oficioso.
In casu, e na decorrência das Conclusões da Recorrente, importará verificar se se mostra bem decidida a questão da competência internacional do Tribunal português para apreciação da presente acção.

Corridos os Vistos, cumpre decidir.

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Os elementos factuais com relevo para a decisão são os que constam do Relatório, mas releva essencialmente que:
1–A M... nasceu em Portugal a 09 de Março de 2020, filha de Requerente e Requerida.
2–Pai (português) e Mãe (espanhola) viviam juntos, como marido e mulher, em Portugal.
3–A mãe residia em Portugal pelo menos desde Agosto de 2018 e encontrava-se inscrita no centro de saúde da Lapa, Lisboa, desde 15.07.2019.
4–A M... saiu de Portugal a 21 de Dezembro de 2020, levada e com autorização do pai, para visitar a família da mãe, em Espanha, na quadra natalícia.
5–Para essa viagem estavam marcadas viagens de avião, que foram canceladas por causa da pandemia, com voos marcados de ida a 23 de Dezembro e de regresso a 9 de Janeiro, sendo por isso que o pai a foi levar a Espanha de carro.
6–O pai autorizou a sua saída temporária do território nacional em documento com uma validade de seis meses a contar da data da assinatura (documento 1, junto a 23/08/2021).
7–A mãe decidiu ficar em Espanha com a M..., não regressando mais a Portugal.
8–A presente acção foi intentada a 17/03/2021.
9–O Ayuntamiento de Gijon emitiu a 11 de Fevereiro o “Certificado de Empadronamiento”, junto como documento 2, a 06/07/2021, no qual consta a M... como “habitante” na casa da mãe em Gijón.
10–O pai subscreveu um formulário datado de 11/02/2021 (“Hoja padronal”), junto a 06/07/2021, onde consta como residência da menor a Calle S… em Gijón.
11–A mãe intentou a 19/03/2021 no Tribunal de Gijón, em Espanha, uma acção tendente a regular as responsabilidades parentais da M... .
*

FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

A situação que cabe analisar nos presentes autos é relativamente simples, pese embora a complexificação que dela foi feita pelas partes, observando o volume das suas Alegações e o número das suas Conclusões.
Está em causa a competência internacional do Tribunal português, sendo que, quanto a ela, preceitua o artigo 59.º do Código de Processo Civil (Competência internacional), que “Sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º e 63.º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94.º”.
Vem isto a significar que – expressamente – o Código faz prevalecer as normas convencionais sobre a matéria que esteja em causa, dando corpo, aliás, à determinação constitucional que resulta do artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa (conjugado com o artigo 7.º, nºs 5 e 6), de forma que se tem como evidente a recepção automática das normas do direito internacional particular (enquanto direito convencional que decorra dos tratados e acordos que vinculem Portugal) e, como tal, de aplicação directa na nossa Ordem Jurídica (desde que - obviamente – tenham tido a respectiva ratificação, aprovação e publicação em Diário da República).
É neste contexto que somos remetidos para o Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho de 27 de Novembro de 2003 (relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental), o qual:
- nos termos do artigo 1.º, n.º 1, alínea b)[2], tem aplicação às matérias respeitantes à atribuição, ao exercício, à delegação, à limitação ou à cessação da responsabilidade parental;
- nos seus artigos 8.º, n.º 1[3], 9.º, n.º 1[4] e 10.º, estabelece como competentes[5] os tribunais do Estado-Membro da residência habitual da criança para tomarem decisões em matéria de responsabilidade parental.
Já se vê, portanto, a relevância que deve ser dada ao conceito de residência habitual, o qual nos conduz necessariamente a uma proximidade[6] concatenada com o interesse superior do/a menor.
Sobre esta matéria, o Acórdão da Relação de Lisboa de 10 de Maio de 2022 (Processo n.º 9528/20.5T8SNT.L1-7-Luís Filipe Sousa[7]) expendeu as seguintes considerações que merecem total acolhimento: “O Regulamento não define o conceito de residência habitual, sendo que este conceito deve ser objeto de uma interpretação autónoma (cf. Luís de Lima Pinheiro, Direito Internacional Privado, Vol. III, Tomo I, Competência Internacional, AAFDL, 2019, p 287).

Na jurisprudência, o Tribunal de Justiça já se pronunciou sobre a questão nestes termos:

·TJ 2/9/2009 (C-523/07), no qual se definiu o seguinte: O conceito de «residência habitual», na aceção do artigo 8. °, n.º 1, do Regulamento n.º 2201/2003, deve ser interpretado no sentido de que essa residência corresponde ao local que revelar uma determinada integração do menor num ambiente social e familiar. Para esse fim, devem ser tidas em consideração, nomeadamente a duração, a regularidade, as condições e as razões da permanência no território de um Estado-Membro e da mudança da família para esse Estado, a nacionalidade do menor, o local e as condições de escolaridade, os conhecimentos linguísticos, bem como os laços familiares e sociais que o menor tiver no referido Estado. Incumbe ao órgão jurisdicional nacional determinar a residência habitual do menor tendo em conta o conjunto das circunstâncias de facto relevantes em cada caso concreto.

·TJ 22/12/2010 (C-497/10 PPU, Mercredi/Chaffe), que
decidiu o seguinte: O conceito de «residência habitual», na aceção dos artigos 8. ° e 10. ° do Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.º 1347/2000, deve ser interpretado no sentido de que essa residência corresponde ao lugar que traduz uma certa integração da criança num ambiente social e familiar. Para tanto, e quando está em causa a situação de uma criança em idade lactente que se encontra com a mãe apenas há alguns dias num Estado-Membro diferente do da sua residência habitual, para o qual foi deslocada, devem designadamente ser tidas em conta, por um lado, a duração, a regularidade, as condições e as razões da estada no território desse Estado-Membro e da mudança da mãe para o referido Estado e, por outro, em razão, designadamente, da idade da criança, as origens geográficas e familiares da mãe, bem como as relações familiares e sociais mantidas por esta e pela criança no mesmo Estado-Membro. Cabe ao órgão jurisdicional nacional fixar a residência habitual da criança tendo em conta todas as circunstâncias de facto específicas de cada caso.

Na hipótese de a aplicação dos critérios acima referidos levar, no processo principal, a concluir que a residência habitual da criança não pode ser fixada, a determinação do tribunal competente deveria ser efetuada com base no critério da «presença da criança» na aceção do artigo 13.° do regulamento.
·TJ 28.6.2018, C-512/17: O artigo 8.º, n.º 1, do Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.o 1347/2000, deve ser interpretado no sentido de que a residência habitual da criança, na aceção deste regulamento, corresponde ao lugar onde, na prática, se situa o centro da sua vida. Cabe ao órgão jurisdicional nacional determinar onde se situava esse centro no momento em que foi apresentado o pedido respeitante à responsabilidade parental relativa à criança, com base num conjunto de elementos de facto concordantes. A este respeito, num processo como o que está em causa no processo principal, à luz dos factos julgados assentes pelo órgão jurisdicional nacional, constituem, em conjunto, circunstâncias determinantes:
- o facto de a criança ter residido, desde o seu nascimento e até à separação dos seus progenitores, em geral com estes num determinado lugar;
- a circunstância de o progenitor que, na prática, exerce, desde a separação do casal, a guarda da criança continuar a viver diariamente com esta naquele lugar e aí exercer a sua atividade profissional, que se inscreve no quadro de uma relação de trabalho celebrada por tempo indeterminado; e
- o facto de, no referido lugar, a criança ter contactos regulares com o seu outro progenitor, que continua a residir nesse mesmo lugar.

Em contrapartida, num processo como o que está em causa no processo principal, não se podem considerar circunstâncias determinantes:
- os períodos que, no passado, o progenitor que, na prática, exerce a guarda da criança passou com esta no território do Estado-Membro de que este progenitor é originário, no âmbito das suas licenças laborais ou de épocas festivas;
- as origens do progenitor em questão, os vínculos de índole cultural da criança com este Estado-Membro que daí decorrem e as suas relações com a sua família que reside no referido Estado-Membro; e
- a eventual intenção do referido progenitor de, no futuro, se instalar com criança neste mesmo Estado-Membro.

Na jurisprudência nacional, merecem destaque os seguintes arestos do STJ.

- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26.1.2017, Olindo Geraldes,1691/15:
I.–Nos termos do art. 8.º, n.º 1, do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, de 27 de novembro, os tribunais de um Estado-Membro são competentes em matéria de responsabilidade parental relativa a uma criança que resida habitualmente nesse Estado-Membro à data em que o processo seja instaurado no tribunal.
II.–O conceito de residência habitual, ou permanente, traduz em especial uma ideia de estabilidade do domicílio, assente, designadamente, num conjunto de relações sociais e familiares, demonstrativas da integração na sociedade local.
III.–Residindo a menor, desde que nasceu, no Luxemburgo, com a mãe, que aí reside há cerca de oito anos, são os tribunais desse país os competentes para conhecer da ação de responsabilidade parental relativa à menor.

- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28.1.2016, Isabel Pereira, 6987/13:

I–O Regulamento (CE) n.º 2201/2003, de 27-11, que revogou o Regulamento (CE) n.º 1347/2000, de 29-05, alargou o âmbito da competência no tocante às questões de responsabilidade parental, com a finalidade de garantir igualdade de tratamento entre crianças, dispondo em relação a todos os filhos menores, independentemente da existência, ou não, de um vínculo matrimonial entre os pais e da conexão da questão relativa a responsabilidades parentais com eventual processo de dissolução do casamento.
II–Tal Regulamento – diretamente aplicável na nossa ordem jurídica – contém, entre o mais, regras diretas de competência internacional quanto às matérias nele abrangidas, estabelecendo, como regra geral, no seu art. 8.º, n.º 1, a competência dos tribunais do Estado-Membro em que a criança resida habitualmente à data em que seja instaurado processo relativo a responsabilidade parental.
III–O TJUE, por Acórdão de 22-12-2010, considerou que a determinação do conceito de residência habitual há de ser feita à luz das disposições do dito Regulamento, nomeadamente do constante do seu considerando 12.º, daí resultando que “as regras de competência nele fixadas são definidas em função do superior interesse da criança, em particular do critério da proximidade”.
IV–De acordo com esta jurisprudência, o conceito de “residência habitual” corresponde ao lugar que traduz uma certa integração da criança num ambiente social e familiar, sendo que para determinar a residência habitual de uma criança, além da presença física desta num Estado-Membro, outros fatores suplementares (v.g. a duração, a regularidade, as condições e as razões de permanência num território de um Estado-Membro ou da mudança, a nacionalidade da criança, a idade e, bem assim, os laços familiares e sociais que a criança tiver no referido Estado-Membro) devem indicar que essa presença não tem carácter temporário ou ocasional.
VI–Resultando da factualidade apurada, em sede de processo de regulação das responsabilidades parentais, que: (i) a criança nasceu no dia 02-03-2011, em Milão, Itália, cidade onde os pais contraíram casamento; (ii) após o seu nascimento, o pai decidiu passar a residir em Portugal, exercendo funções de médico especialista no hospital de ..., cidade onde reside; (iii) a criança tem nacionalidade italiana e brasileira e fixou residência com a mãe em Milão, em Setembro de 2012, juntamente com a irmã uterina, em resultado de acordo dos pais; (iv) também por acordo dos pais e necessitando a mãe de estudar para um exame a ter lugar em Junho de 2013, veio para Portugal, em finais de Março de 2013, onde ficou em casa do pai; (v) permaneceu em território nacional em Agosto de 2013, por acordo dos pais, para conviver com os avós paternos, seguindo-se uma viagem ao Brasil para participar num convívio com a família paterna; (vi) ter a mãe, no regresso da criança e do pai, em Outubro de 2013, exigido que a criança regressasse a Itália, o que o pai não aceitou e; (vii) tendo sido proferida decisão no processo de entrega judicial de menor apenso a ordenar a entrega da criança à mãe, na sua residência, em Itália, deve decidir-se pela incompetência internacional dos tribunais portugueses, em virtude da residência habitual da criança se situar em Itália.

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.6.2019, Raimundo Queirós, 1789/18:

I–O art.º 5º nº1 da “Convenção Relativa à Competência, à Lei Aplicável, ao Reconhecimento, à Execução e à Cooperação em Matéria de Responsabilidade Parental e Medidas de Protecção das Crianças”, adotada em Haia em 19 de Outubro de 1996, estabelece que “As autoridades jurídicas ou administrativas do Estado Contratante no qual a criança tem a sua residência habitual possuem competência para tomar as medidas necessárias à proteção da pessoa ou bens da criança”.
II–Assim, a competência internacional dos tribunais portugueses, nesta matéria, afere-se pelo critério da residência habitual da criança (arts. 59.º e 62.º do CPC)
III–O conceito de "residência habitual" - a que alude o referido art.º 5º nº1 da Convenção deve ser interpretado no sentido de que essa residência corresponda ao local onde se encontra organizada a sua vida familiar, social e escolar em termos de estabilidade e permanência.
IV–No caso em apreço, residindo os dois menores com os pais em Albufeira, Portimão, desde novembro de 2017, os Tribunais Portugueses são internacionalmente competentes para a regulação das responsabilidades parentais, instaurada em 4 de julho de 2018.

Na doutrina, António José Fialho, “A competência internacional dos tribunais portugueses em matéria de responsabilidade parental”, in Julgar, nº 37, pp. 18-21, afirma que: «O conceito de residência habitual da criança deve ser objeto de uma interpretação autónoma, em conformidade com os objetivos e finalidade dos instrumentos internacionais, a determinar com base num conjunto de circunstância de facto relevantes em cada caso concreto (teste de conexão), incumbindo ao órgão jurisdicional nacional determinar esse local.
As circunstâncias de facto relevantes em cada caso concreto que a doutrina e a jurisprudência têm utilizado para determinar a residência habitual são as seguintes:
a)-Presença da criança sem carácter temporário ou ocasional, revelando uma certa integração num ambiente social e familiar;
b)-Presença física da criança num determinado Estado (embora essa mera presença não seja suficiente);
c)-Duração, regularidade, condições e razões da permanência num Estado e da mudança da família para esse Estado;
d)-Nacionalidade da criança, local e condições de escolaridade, conhecimentos linguísticos, bem como laços familiares e sociais
nesse Estado;
e)-Aquisição ou locação de uma habitação ou pedido de atribuição
de uma habitação social;
f)-Idade da criança, ou seja, os fatores a tomar em consideração no caso de uma criança em idade escolar são diferentes daqueles a que se deve atender tratando-se de uma criança que terminou os seus estudos ou ainda daqueles que dizem respeito a uma criança em idade lactente;
g)-Sendo a criança de tenra idade, origens geográficas ou familiares da pessoa ou pessoas de referência com as quais a criança vive, a guardam efetivamente e dela cuidam;
h)-Estando a criança em idade lactante, razões da mudança da mãe para outro Estado, seus conhecimentos linguísticos e suas origens geográficas e familiares;
i)-Intenção dos progenitores, que, embora não seja, em princípio, decisiva para determinar a residência habitual de uma criança, pode constituir um indício suscetível de completar um conjunto de outros elementos concordantes, nomeadamente quando expressa em circunstâncias exteriores;
j)-Propositura conjunta de uma ação por ambos os pais de uma criança num tribunal da sua escolha (…).»

Ana Rita Oliveira Sousa Nogueira Lopes, O princípio do superior interesse da criança na regulamentação das responsabilidades parentais pela União Europeia, Universidade do Minho, 2017, pp. 59-62:
«Tem sido entendimento do TJUE que a residência habitual da criança deverá corresponder ao local em que a criança se encontra integrada num ambiente social e familiar. Assim, o termo “habitual”, na aceção do artigo 8.º deve refletir habitualidade e estabilidade. A ausência de tal definição poderá significar a existência de uma lacuna, ou então um mero erro do legislador. Poder-se-á ainda tratar uma opção deliberada por uma “técnica legislativa silenciosa” no intuito de preencher o conceito apenas no caso concreto. Nesta última hipótese, tem-se apontado que que não deve ser fornecida uma noção única de residência habitual, sob pena de daí resultar uma descrição excessiva por parte do legislador. Ademais, tem vindo a ser entendimento de que a interpretação do conceito de residência habitual levada a cabo noutros domínios do direito da União não poderá servir de base à interpretação do conceito plasmado no artigo 8.º, ao qual deve ser atribuído um significado autónomo. Trata-se, portanto, de um conceito de conteúdo variável, autónomo e próprio. Não obstante, há quem considere que esta indeterminação dá azo à divergência de decisões.

O conceito de residência habitual poderá ter de ser, como já referido, interpretado consoante o contexto do caso concreto em que se insira, levando-se a cabo uma interpretação sistemática. Para além do mais, deverá ter-se em conta os objetivos prosseguidos pelo Regulamento, devendo atender-se neste caso ao já referido considerando n.º 12, que manda atender ao superior interesse da criança orientado pelo critério da proximidade. Daqui decorre que o conceito de residência habitual deverá, à final, ser interpretado à luz do superior interesse da criança.
Neste contexto, por forma aferir qual a residência habitual de uma criança, cumpre salientar que a sua mera presença física em determinado local não releva por si só. Deverá antes verificar-se uma certa duração e estabilidade que se não se confunda como uma mera e breve presença física, da qual resulte uma intenção de se estabelecer nesse Estado. Assim, deverá levar-se a cabo uma ponderação de determinadas circunstâncias do caso concreto, como a duração da estadia da família no Estado-Membro; a nacionalidade da criança; o lugar e condições de escolarização da criança, os seus conhecimentos linguísticos, as relações familiares e sociais; ponderar-se-á também a intenção manifestada pelos progenitores, através de determinados fatores como a eventual compra ou o arrendamento de um imóvel ou o pedido de apoio social de habitação- sendo que a intenção dos progenitores não basta para determinar a residência habitual da criança, servindo apenas como um mero indício. Em suma, a ponderação destes fatores deverá indicar que a presença da criança não revela caráter temporário ou ocasional. Assim, por exemplo, neste contexto não relevará a presença física da criança num determinado Estado que aí se encontra a passar férias.
A ponderação da mera presença física da criança num determinado Estado enquanto fator a considerar na determinação da residência habitual tem sido analisada pelo TJUE. No acórdão OL vs. PQ apreciara-se qual a interpretação a dar ao conceito de residência habitual no caso particular em que uma criança nasça no Estado A (Grécia) com o qual não apresenta qualquer ligação, por opção de ambos os progenitores que, inicialmente, pretendiam que após o nascimento a criança regressasse ao Estado B, Estado da residência habitual de ambos (Itália). Sucede que, após o nascimento, por vontade da mãe, a criança permaneceu com ela no Estado A, onde teria nascido. Perante isso, o pai apresentou nos tribunais italianos um pedido de divórcio, requerendo ainda a regulação das responsabilidades parentais, pedindo que lhe fosse atribuída a guarda exclusiva da criança e que fosse ordenado o seu regresso da criança a Itália. Da mesma forma, apresentou nos tribunais gregos um pedido de regresso. Submetida a questão ao tribunal, procurou-se aferir se a mera presença física da criança nesse Estado constitui sempre “condição prévia necessária e evidente” na determinação da residência habitual de um recém-nascido. Conclui-se que a intenção inicial dos progenitores relativamente ao regresso da criança ao Estado da residência habitual de ambos, após o nascimento, não constitui consideração primordial a ter em conta. Justifica concluindo que a residência habitual na aceção do Regulamento constitui “uma questão de facto”. Desta forma, esta intenção inicial dos progenitores de que a criança residisse no Estado B após o seu nascimento não poderá prevalecer sobre a circunstância de a criança residir, de facto, no Estado A de forma contínua desde que nasceu. Da mesma forma, a falta de consentimento de um dos progenitores também não poderá neste caso servir de ponderação para determinação da residência habitual. Ademais, deduz-se que a consideração desta intenção inicial se mostrara contrária à eficácia do processo de regresso, que enquanto processo de natureza célere não se coaduna com a necessidade de recolha de prova para determinar a intenção em causa. De acordo com o descrito, ponderando o superior interesse da criança e o critério da proximidade, o TJUE concluiu que a circunstância de a criança nascer e permanecer continuadamente num determinado Estado-Membro determina que aí se fixe a sua residência habitual.
Note-se que caso não se mostre possível determinar a residência habitual da criança, não sendo possível determinar a competência de determinado tribunal com recurso ao artigo 12.º, atribuir-se-á competência aos tribunais do Estado onde se encontra a criança. O mesmo resulta do artigo 13.º, que determina a atribuição de competência baseada na presença física da criança»”.
Com esta contextualização, não nos parece ser possível suscitar dúvidas sérias sobre a circunstância de a M..., à data da interposição da acção ter residência em Portugal.
De facto, foi o local onde nasceu e viveu sempre (com os pais e os irmãos), só se tendo deslocado para Espanha, na época do Natal, para passar esta quadra festiva com a família da mãe (aliás, com a notável colaboração do pai que até a foi lá levar de carro, na perspectiva do seu regresso após o dia de Reis, intensamente vivido nesse país). Tratar esta normalidade de conduta de pai ao nível da anormalidade que constitui uma decisão de não regresso é pretender tudo confundir.
Nada indicia, bem pelo contrário, que o pai tenha aceite, configurado, ou sequer previsto que a mãe tomasse a decisão pessoal que tomou[8] ou que se tenha conformado com tal resolução (ou mesmo com a competência de um qualquer Tribunal espanhol).
Com os dados presentes nos autos e que sempre serão susceptíveis de melhor apuramento e confirmação, no seu normal desenrolar, não restam dúvidas de que, a 17 de Março de 2021, a residência habitual não tinha deixado de ser em Portugal, sendo certo ainda, que mesmo que se pudesse considerar que tal residência tinha sido transferida para Espanha, sempre estaríamos ainda dentro dos três meses a que o já aludido artigo 9.º do Regulamento se reporta.
O pai (independentemente do resultado final da presente acção, que será sempre julgada tendo em atenção o superior interesse da M...) teve uma conduta exemplar enquanto tal, até ao momento, ao levar a M... a Espanha, ao autorizar a deslocação (válida por seis meses, o que desde logo demostra que não seria para alteração definitiva da residência!), ao confiar no que a mãe lhe dizia para o bem da filha (nomeadamente quanto às vacinas), preenchendo documentação que esta lhe enviava (e que agora pretende usar contra si[9]), ao tentar sempre falar com a filha, ao intentar a presente acção.
A mãe não poderia, em qualquer circunstância, unilateralmente, alterar radicalmente a residência da criança. E, sem lugar a dúvida razoável, fê-lo.
A M... residia em Portugal e foi fazer uma visita a Espanha, sendo que, a partir do momento em que a mãe decide não regressar, independentemente de a deslocação ter sido lícita, a retenção em Espanha deixa de o ser, por as responsabilidades parentais não lhe estarem atribuídas em exclusivo.
A circunstância de a M... continuar a residir efectivamente em Espanha[10], utilizada que foi a política da acção directa e do facto consumado, é algo que terá de ser apreciada em termos de superior interesse da menor[11] aquando da decisão que os presentes autos venham a ter, mas tal não afecta a competência do Tribunal português para proceder à tramitação dos autos.
Os ulteriores termos do processo ditarão também a necessária conjugação entre o Tribunal português e o espanhol, eventualmente com recurso ao artigo 15.º[12] do Regulamento[13].
Assim tem-se por certo que o Tribunal a quo – numa decisão clara, bem estruturada e solidamente defendida em termos jurídicos – decidiu de forma certeira (inexistindo qualquer das “nulidades” invocadas pela Recorrente e que apenas se traduzem na sua discordância quanto ao decidido).

Assim, só pode concluir-se que o Juízo de Família e Menores de Lisboa é competente para a presente acção, julgando-se o recurso improcedente e determinando-se o prosseguimento dos autos, em conformidade.

DECISÃO

Com o poder fundado no artigo 202.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, e nos termos do artigo 663.º do Código de Processo Civil, acorda-se, nesta 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, face à argumentação expendida e tendo em conta as disposições legais citadas, em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas a cargo da Recorrente.
Notifique e, oportunamente, remeta à 1.ª Instância (artigo 669.º do Código de Processo Civil).
***



Lisboa, 20 de Junho de 2023



Edgar Taborda Lopes
Luís Filipe Pires de Sousa
José Capacete



[1] António Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 6.ª edição Atualizada, Almedina, 2020, página 183.
[2] Artigo 1.º (âmbito de aplicação)
1. O presente regulamento é aplicável, independentemente da natureza do tribunal, às matérias civis relativas:
a)Ao divórcio, à separação e à anulação do casamento;
b)À atribuição, ao exercício, à delegação, à limitação ou à cessação da responsabilidade parental.
2. As matérias referidas na alínea b) do n.º 1 dizem, nomeadamente, respeito:
a)Ao direito de guarda e ao direito de visita;
b)À tutela, à curatela e a outras instituições análogas;
c) À designação e às funções de qualquer pessoa ou organismo encarregado da pessoa ou dos bens da criança e da sua representação ou assistência;
d) À colocação da criança ao cuidado de uma família de acolhimento ou de uma instituição;
e) Às medidas de protecção da criança relacionadas com a administração, conservação ou disposição dos seus bens.
3. O presente regulamento não é aplicável: (…)”.

[3] Artigo 8.º (competência geral)
1.-Os tribunais de um Estado-Membro são competentes em matéria de responsabilidade parental relativa a uma criança que resida habitualmente nesse Estado-Membro à data em que o processo seja instaurado no tribunal.
2.-O n.º 1 é aplicável sob reserva do disposto nos artigos 9.º, 10.º e 12.º
[4]Artigo 9.º (prolongamento da competência do Estado-Membro da anterior residência habitual da criança)
1.-Quando uma criança se desloca legalmente de um Estado-Membro para outro e passa a ter a sua residência habitual neste último, os tribunais do Estado-Membro da anterior residência habitual da criança mantêm a sua competência, em derrogação do artigo 8.º, durante um período de três meses após a deslocação, para alterarem uma decisão, sobre o direito de visita proferida nesse Estado-Membro antes da deslocação da criança, desde que o titular do direito de visita, por força dessa decisão, continue a residir habitualmente no Estado-Membro da anterior residência habitual da criança.
2.- O n.º 1 não é aplicável se o titular do direito de visita referido no n.º 1 tiver aceitado a competência dos tribunais do
Estado-Membro da nova residência habitual da criança, participando no processo instaurado nesses tribunais, sem contestar a sua competência.
[5]Sendo certo que o Considerando (12), enquadra o Regulamento, afirmando que “as regras de competência em matéria de responsabilidade parental do presente regulamento são definidas em função do superior interesse da criança e, em particular, do critério da proximidade. Por conseguinte, a competência deverá ser, em primeiro lugar, atribuída aos tribunais do Estado-Membro de residência habitual da criança, excepto em determinados casos de mudança da sua residência habitual ou na sequência de um acordo entre os titulares da responsabilidade parental”.
[6]Cfr. Acórdãos da Relação de Coimbra de 11 de Outubro de 2017 (Processo n.º 6484/16.8T8VIS.C1-Pires Robalo) e de Lisboa de 12 de Julho de 2012 (Processo n.º 1327/12.4TBCSC.L1.2-Sérgio Almeida), nos termos dos quais, “o critério decisivo para a determinação da competência em sede de responsabilidade parental não é tanto a residência habitual mas sim a proximidade. I. é, a residência habitual é uma decorrência ou manifestação da proximidade, enquanto critério aferidor, e não o contrário”.
[7]Subscritor do presente Acórdão enquanto primeiro adjunto.
[8]O que aliás se torna ostensivamente evidente, quando se constata não apenas a autorização dada e válida por seis meses, mas principalmente a circunstância de o plano inicial ter passado pela viagem em avião com bilhetes de ida e volta (que apenas as restrições provocadas pela pandemia de COVID-19 impediram).
[9] A “Hoja padronal” por si preenchida de forma alguma pode ter as consequências pretendidas pela Recorrente, sob pena de uma total inversão de valores, face ao diferente ordenamento jurídico e – ainda para mais – no contexto pandémico então vivido, com a natural preocupação de pai com filha.
[10]Sendo irrelevante que o Ayuntamiento diga que é essa a sua residência habitual.
[11]No Acórdão da Relação de Lisboa de 22 de Julho de 2022 (Processo n.º 7429/21.9T8LRS-B.L1-7-José Capacete [ora segundo Adjunto), escreve-se que, “não remetendo o Regulamento expressamente para o direito interno dos Estados-Membros, a determinação” do conceito de residência habitual, a sua determinação “há-de ser feita à luz das disposições e do objetivo do próprio Regulamento, nomeadamente do constante do seu considerando décimo segundo, daí ressaltando que “as regras de competência nele fixadas são definidas em função do superior interesse da criança, em particular do critério da proximidade”.
4.– Para que o superior interesse da criança seja respeitado da melhor forma, a “residência habitual” da criança deve corresponder ao lugar que traduz uma certa integração da mesma num ambiente social e familiar, devendo, para concretização do conceito à luz de cada caso concreto, ter-se em consideração a sua presença física num Estado-Membro, e ainda outros fatores suplementares indiciadores de que essa presença não tem carácter temporário ou ocasional, como por exemplo:
- a duração, a regularidade, as condições e as razões da permanência no território de um Estado-Membro, assim como da mudança; - a nacionalidade da criança; ~
- a sua idade;
- os laços familiares e sociais que a criança tiver no referido Estado-Membro;
- o lugar e condições de escolarização da criança;
- a intenção manifestada pelos progenitores, através de determinados fatores, como a ocupação profissional”.
[12]Artigo 15.º (Transferência para um tribunal mais bem colocado para apreciar a acção)
1. Excepcionalmente, os tribunais de um Estado-Membro competentes para conhecer do mérito podem, se considerarem que um tribunal de outro Estado-Membro, com o qual a criança tenha uma ligação particular, se encontra mais bem colocado para conhecer do processo ou de alguns dos seus aspectos específicos, e se tal servir o superior interesse da criança:
a) Suspender a instância em relação à totalidade ou a parte do processo em questão e convidar as partes a apresentarem um pedido ao tribunal desse outro Estado-Membro, nos termos do n.º 4; ou
b) Pedir ao tribunal de outro Estado-Membro que se declare competente nos termos do n.º 5.
2.O n.º 1 é aplicável:
a)A pedido de uma das partes; ou
b)Por iniciativa do tribunal; ou
c) A pedido do tribunal de outro Estado-Membro com o qual a criança tenha uma ligação particular, nos termos do n.º 3.
Todavia, a transferência só pode ser efectuada por iniciativa do tribunal ou a pedido do tribunal de outro Estado-Membro, se for aceite pelo menos por uma das partes.
3.- Considera-se que a criança tem uma ligação particular com um Estado-Membro, na acepção do n.º 2, se:
a)- Depois de instaurado o processo no tribunal referido no n.º 1, a criança tiver adquirido a sua residência habitual nesse Estado-Membro; ou
b)- A criança tiver tido a sua residência habitual nesse Estado-Membro; ou
c)-A criança for nacional desse Estado-Membro; ou
d)- Um dos titulares da responsabilidade parental tiver a sua residência habitual nesse Estado-Membro; ou
e)- O litígio se referir às medidas de protecção da criança relacionadas com a administração, a conservação ou a disposição dos bens na posse da criança, que se encontram no território desse Estado-Membro.
4.- O tribunal do Estado-Membro competente para conhecer do mérito deve fixar um prazo para instaurar um processo nos tribunais do outro Estado-Membro, nos termos do n.º 1.
Se não tiver sido instaurado um processo dentro desse prazo, continua a ser competente o tribunal em que o processo tenha sido instaurado nos termos dos artigos 8.º a 14.º
5.- O tribunal desse outro Estado-Membro pode, se tal servir o superior interesse da criança, em virtude das circunstâncias específicas do caso, declarar-se competente no prazo de seis semanas a contar da data em que tiver sido instaurado o processo com base nas alíneas a) ou b) do n.º 1. Nesse caso, o tribunal em que o processo tenha sido instaurado em primeiro lugar renuncia à sua competência. No caso contrário, o tribunal em que o processo tenha sido instaurado em primeiro lugar continua a ser competente, nos termos dos artigos 8.º a 14.º
6.- Os tribunais devem cooperar para efeitos do presente artigo, quer directamente, quer através das autoridades centrais designadas nos termos do artigo 53.º.
[13]Repare-se na situação analisada por Anabela Fialho (Resolução de situações práticas – aplicação prática dos instrumentos, in O Direito Internacional da Família, Tomo I, [em linha], Centro de Estudos Judiciários, Junho de 2014, páginas 389-390, disponível na internet em https://cej.justica.gov.pt/LinkClick.aspx?fileticket=neBXNORktOc%3d&portalid=30), quando refere o seguinte: “No que diz respeito à questão da competência, o princípio fundamental do Regulamento é o de que o foro mais apropriado em matéria de responsabilidade parental é o tribunal competente do Estado-Membro da residência habitual da criança, devendo o significado da expressão “residência habitual” ser interpretado em conformidade com os objetivos e as finalidades do mesmo. Trata-se de uma noção autónoma da legislação comunitária e a sua integração, caso a caso, implica que, ainda que o adjetivo “habitual” tenda a indicar uma certa duração, não se pode excluir que uma criança adquira a residência habitual num Estado-Membro no próprio dia da sua chegada, dependendo de elementos de facto e do caso concreto. Seja como for, a competência é determinada no momento em que o processo é instaurado no tribunal.
Assim, uma vez designado o tribunal, em princípio, este conserva a competência, ainda que a criança obtenha a residência habitual noutro Estado-Membro durante a tramitação da ação judicial – trata-se da consagração do princípio perpetuatio fori. Deste modo, uma alteração da residência habitual da criança enquanto está pendente o processo, não implica, sem mais, uma alteração de competência.
Porém, se tal servir o superior interesse da criança, o artigo 15º do Regulamento prevê a possibilidade de transferência do processo, embora sujeito a determinadas condições, para um tribunal do Estado-Membro para o qual a criança se mudou.
Ainda assim, há que ter presente que se a residência habitual da criança se alterar em resultado de uma deslocação ou retenção ilícitas, a competência só é transferida de acordo com condições muito apertadas.
Com efeito, o artigo 15º parece não ser aplicável aos casos em que ocorre uma deslocação ou retenção ilícitas, sendo aplicável a estas situações o disposto no artigo 10º, que, em regra, garante que os tribunais do Estado-Membro onde a criança tinha a sua residência habitual antes da deslocação ilícita continuam a ser competentes para decidir sobre o mérito da causa igualmente depois da deslocação ilícita. Assim, o artigo 15º do Regulamento compreende uma norma inovadora que permite, excecionalmente, que o tribunal incumbido de apreciar a ação possa transferi-la para um tribunal de outro Estado-Membro se considerar que este está melhor colocado para a apreciar, podendo, no mesmo pressuposto, transferir também alguns dos seus aspetos específicos e não todo o processo.
A transferência de um processo pode ocorrer quando a criança tiver uma “ligação particular” com o outro Estado-Membro, enumerando o nº 3 do artigo 15º as situações em que tal ligação existe, para efeitos do Regulamento:
1)-Depois de instaurado o processo no tribunal de origem, a criança adquiriu a sua residência habitual no outro Estado-Membro;
2)-A criança tem a sua residência habitual no outro Estado-Membro;
3)-A criança é nacional desse Estado-Membro;
4)-Um dos titulares da responsabilidade parental tem a sua residência habitual nesse Estado-Membro; ou
5)-O litígio diz respeito a medidas de proteção da criança relacionadas com a administração, a conservação ou a disposição dos bens na posse da criança, que se encontram no território do outro Estado-Membro.
Além de verificada alguma destas situações, para que ocorra a transferência do processo, ambos os tribunais devem estar convencidos de que a transferência é no superior interesse da criança, devendo os juízes cooperar para avaliar esta questão com base nas circunstâncias específicas do caso”.