Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
405/18.0TELSB-H.L1-9
Relator: MARIA JOÃO FERREIRA LOPES
Descritores: DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO DAS DECISÕES
DESPACHO DE APRESENTAÇÃO DE ARGUIDO
PRIMEIRO INTERROGATÓRIO DE ARGUIDO PRESO
MEIOS DE PROVA
FACTOS IMPUTADOS
NULIDADE DE DESPACHO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/25/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário:  (da responsabilidade da relatora)
I. O dever de fundamentação das decisões judiciais, nos casos e nos termos previstos na lei, é uma exigência e, ao mesmo tempo, uma garantia constitucional integrante do conceito de Estado de direito democrático.
II. A remissão, por parte do JIC, para os meios de prova elencados nos despacho de apresentação de arguido para primeiro interrogatório judicial não é vedada pela lei.
III. Do estatuído nos artigos 141.º/4, e) e 194.º/6, b) do Código de Processo Penal extrai-se, inequivocamente, que não pode o JIC enunciar os elementos probatórios em que fundamenta a conclusão de fortes de indícios de cometimento des crimes pelo arguido e aplicação de medida de coação, para a prova dos autos, em termos que o destinatário terá de adivinhar o que releva, qual a leitura e interpretação feita pelo JIC.
IV. Carecendo, o despacho da enunciação – em sentido naturalístico e concreto e não meramente vago e genérico - dos elementos do processo que indiciam os factos imputados, não pode o arguido exercer cabalmente o seu direito de defesa, nem pode o Tribunal de Recurso sindicar a bondade do despacho do JIC, sendo nulo.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9.ª secção criminal do Tribunal da Relação de Lisboa

I. Relatório
1. Após realização de primeiro interrogatório judicial de arguido detido decidiu o JIC impor ao arguido AA as seguintes medidas de coação:
- TIR;
- Proibição de contactos entre si e com todos os cidadãos e empresas mencionados no despacho de apresentação, do qual têm conhecimento;
- Obrigação de Permanência na Habitação,
Medidas que aplicou “nos termos e ao amparo nas disposições conjugadas nos art.ºs 191.º, n.º1, 192.º, n.º1, 193.º, n.º1 e 2, 194.º, n.º3, 196.º, 201.º, n.º 1 e 2, e bem assim o artigo 204.º, al. a), b) e c), todos do Código de Processo Penal.”
E por entender existirem fortes indícios do cometimento, pelo arguido, de
- seis crimes de corrupção activa no sector privado na forma agravada. p. e p. no artigo 9.º/1 e 2 da Lei 20 2008, de 21 de Abril, na redação introduzida pela Lei 30 2015, de 22 de Abril, com referencia aos colaboradores da ... e de entidades terceiras identificados como BB, CC, DD, AB e EE e FF;
- um crime de corrupção passiva no sector privado, na forma agravada. p. e p. no artigo 8.º/1 e 2 da Lei 20 2008, de 21 de Abril, na redação introduzida pela Lei 30 2015, de 22 de Abril, com referência aos actos de intervenção nas decisões da ... do próprio arguido AA;
- quatro crimes de branqueamento de capitais. p. e p. no artigo 368.º-A nº 1 alíneas j) e k) e 3 do CP relativamente às operações com utilização das entidades ..., ..., ... e ...;
- crimes de falsificação de documentos, relativamente aos contratos celebrados com as entidades ..., ..., ... e ..., p, e p. no artigo 256.º/1 a) e d) do CP.
2. Inconformado com este despacho veio o arguido dele recorrer, pedindo a respectiva revogação, alegando,
- ser nulo o despacho recorrido, de harmonia com o disposto nos artigos 97.º/5 e 194.º/6, corpo, ambos do CPP, nulidade que é atendível em sede de recurso, nos termos do artigo 410.º/3, do mesmo diploma, sendo inconstitucional qualquer interpretação normativa em sentido contrário;
- inexistência de fortes indícios do cometimento dos crimes que lhe foram imputados;
- inexistência de perigo de continuação da actividade criminosa;
- inexistência de perigo de perturbação do inquérito;
- inexistência de perigo de fuga;
- se se entender que existe residualmente esse perigo de fuga, o mesmo encontrar-se-ia acautelado com a mera a imposição da obrigação de não se ausentar para o estrangeiro (a conjugar com a proibição de contactos), sendo excessiva a imposição ao arguido da medida de coacção de obrigação de permanência na habitação;
- admitir a prestação de caução por depósito, cumulada com a proibição de contactos, sendo que esta medida cautelar tem a virtualidade de obviar os perigos que se pretendem prevenir.
Rematou o corpo da motivação com as conclusões que a seguir se transcrevem:
“(…)
O recorrente está indiciado por crimes de corrupção ativa no setor privado, corrupção passiva no setor privado, branqueamento e falsificação de documentos, qualificações que, para efeitos de aplicação de medidas de coação, excetuado o TIR, exigem a «enunciação dos elementos do processo que indiciam os factos imputados», conforme preceitua o artigo 194. 0, n. 0 6, alínea b), do CPP.
A mera enunciação nominativa dos elementos do processo (volumes, apensos, interceções telefónicas e autos de busca) não dá qualquer informação — a exigida pelo referido artigo 194.0 — sobre em que elementos do processo o despacho a quo se fundou.
Acresce que, a indiciação do recorrente e a avaliação da sua conduta são textualmente mera reprodução do alegado pelo MP, inexistindo valoração própria dos indícios de crime pelo JIC, pelo que, o despacho a quo é nulo, cominação taxada pelos artigos 97. 0, n. 0 5, e 194. 0, n.0 6, corpo, ambos do CPP, o que expressamente se invoca, nulidade que é atendível nesta sede, nos termos do artigo 410. 0, n. 0 3, do CPR
A cautela,
O artigo 194. 0, n. 0 6, do CPP, interpretado no sentido de que a nulidade do despacho judicial de aplicação das medidas de coação, por falta de fundamentação, fica sanada se não for arguida até ao final da diligência em que se procedeu à notificação do mesmo, redunda em norma materialmente inconstitucional, por violação dos artigos 1.0, 2. 0, 3.0, n. 0 3, 16. 0, n. 0S 1 e 2,0, n.0S 3, 20.0, n.0S 1 e 4, e 32.0, todos da CRP, e 6.0, n. 0 2, da CEDH.
O artigo 194.0, n.0 6, do CPP, interpretado conjuntamente com os artigos 119. 0, a contrario, e 120. 0, n.0S 1 e 3, alínea a), do CPP, no sentido de que a nulidade do despacho judicial de aplicação das medidas de coação, por falta de fundamentação, fica sanada se não for arguida até ao final da diligência em que se procedeu à notificação do mesmo, redunda em norma materialmente inconstitucional, por violação dos artigos 1.0, 2. 0, 3. 0, n. 0 3, 16. 0, n.0S 1 e 2, 18.0, n.0S 1, 2 e 3, 20. 0, n.os 1 e 4, e 32. 0, todos da CRP, e 6. 0, n. 0 2, da CEDH.
O artigo 410.0, n.0 3, do CPP, interpretado no sentido de que a nulidade do despacho judicial de aplicação das medidas de coação, por falta de fundamentação, não pode ser arguida no recurso interposto dessa mesma decisão judicial, redunda em norma materialmente inconstitucional, por violação dos artigos 1.0, 2. 0, 3.0, n.0 3, 16.0, n.0S 1 e 2, 18.0, n. 0S l , 2 e 3, 20. 0, n. 0S 1 e 4, e 32.0, todos da CRP, e 6. 0, n.0 2, da CEDH.
O artigo 410.0, n. 0 3, do CPP, interpretado conjuntamente com os artigos 119.0, a contrario, e 120.0, n.0S I e 3, alínea a), do CPP, no sentido de que a nulidade do despacho de aplicação das medidas de coação, por falta de fundamentação, não pode ser arguida no recurso interposto dessa mesma decisão judicial, redunda em norma materialmente inconstitucional, por violação dos artigos 1. 0, 2. 0, 3. 0, n.0 3, 16.0, n.0S 1 e 2, 18.0, n. 0s 1, 2 e 3, 20. 0, n. 0S 1 e 4, e 32. 0, todos da CRP, e 6. 0, n. 0 2, da CEDH.
O artigo 379. 0, n.0 2, do CPP, interpretado conjuntamente com o artigo 4. 0 e com o artigo 194. 0, n. 0 6, ambos do CPP, bem como com os artigos 119. 0, a contrario, e 1200, n.0S 1 e 3, alínea a), ambos do CPP, no sentido de que o regime de arguição de nulidade da sentença em recurso não pode ser aplicado, por analogia, à arguição de nulidade do despacho de aplicação de medidas de coação por falta de fundamentação, redunda em norma materialmente inconstitucional, por violação dos artigos 1. 0, 2.0, 3.0, n.0 3, 16. 0, n. 0S I e 2, 0, n. 0S 1, 2 e 3, 20.0, n.0S 1 e 4, e 32. 0, todos da CRP, e 6. 0, n. 0 2, da CEDH.
Inconstitucionalidades que expressamente se invocam, pelo que, nos termos do artigo 410.0, n.0 3, do CPP, deve ser reconhecida a invocada nulidade.
Sem prescindir,
A inculpação do recorrente filia-se na titularidade das sociedades corruptoras, ou em acordos celebrados com GG, de que seriam indícios:
- ser amigo, desde o fim da década de 90, de GG;
- ser sogro de DD;
- ter-lhe GG proporcionado a utilização de duas casas - a de ... e a de ... - para relacionamento extramatrimonial;
- ter feito obra na casa de ... sem contrapartida, ou com contrapartida inferior ao que seria devido;
- ter sido acionista da ....
Cumpre, desde já, deixar registado que, conforme o arguido esclareceu, no interrogatório perante o JIC, conhece GG desde ..., e não desde final da década de ... (que o MP afirma, sem o menor fundamento), quando lhe foi apresentado por HH, que era quem tratava da piscina, na casa do recorrente, em ....
É verdade que existe uma relação de amizade entre AA e GG, que o primeiro começou, efetivamente, por negar, por razões de estabilidade conjugal (em que o Juiz a quo não acredita, porque não é ele, a fazer fé na versão de GG, que o mesmo magistrado toma como boa, quem é objeto da apertada vigilância familiar, ainda aqui no relato do JIC). Mas essa amizade, conjugada com a posição de AA no ..., é suficiente para, segundo as regras da experiência comum, se concluir que AA é detentor de participação nas sociedades dos ... - a ..., a ..., a ... e a ...?
É que, nos 26 volumes dos autos e seus Apensos, não há qualquer documento que revele que AA constituiu as referidas sociedades, ou que tem registadas participações nelas, ou que elas são detidas, fiduciariamente, por terceiros; ou contas ou movimentos bancários que revelem tal participação; tão pouco qualquer testemunho ou interceção telefónica donde se possa concluir aquela titularidade.
Dir-se-á: mas esse facto, a amizade com AA, conjugado com a disponibilização das casas de ... e de ..., não será suficiente? Seria, se GG não fosse, como os autos documentam, um homem muito rico, com comprovada e intensa relação com o ..., e AA não fosse ele, no Grupo, quem exercia a supervisão técnica de operações. Sendo assim, qual a perplexidade pela disponibilização das casas para estar nas boas graças do recorrente? Que vinhos franceses, a custar milhares de euros a garrafa, são oferecidos aos administradores de grandes grupos? E joias para as Mulheres? Dir-se-á que a proporção não é a mesma, e não é. Mas também a fortuna de GG e a importância do ... para ele, para o que seja legal, e para o que não seja, não é a mesma. E nem se diga que a posição de AA no Grupo conduzia, necessariamente, a aperceber-se dos alegados negócios de GG. E II também não deveria ter-se apercebido? E os demais responsáveis pelo ... por esse mundo fora?
Cumpre também esclarecer que o recorrente, como o registo do interrogatório revela, não disse que tinha uma relação distante com o genro (DD), mas sim com o pai deste (JJ), tendo dito, textualmente, que o via três vezes no ano, quando do aniversário dos três netos. Mas a relação de parentesco por afinidade, com DD, que, como os autos revelam, vive nos ..., e JJ, nos ..., na sequência de uma fraude de IVA, em ..., é indício que as empresas dos ... de que eram titulares pertenciam, realmente, a AA? E desde quando, no século XXI, o parentesco por afinidade tem a mesma força que tinha até aos anos 60 do século passado? E que fossem próximas as relações familiares, que não eram, iriam DD e JJ revelar a AA o que, alegadamente, andavam a fazer no ...? A acreditar na indiciação, a defraudar o Grupo?! Estas são as regras da experiência comum que fundam presunções naturais e não as proposições apriorísticas do MP que vai, depois, à busca de factos que possam colar com o desconhecido aprioristicamente afirmado.
São exatamente as regras da experiência comum que recusam quer à amizade entre AA e GG, quer à disponibilização de residências, quer ao parentesco por afinidade, a eficácia probatória de presunções naturais.
Tão pouco as obras em ..., que, como os autos documentam, foram pagas pelo recorrente, não tendo sido debitadas por valor inferior ao real, dispensando-se o MP de apresentar um princípio de prova sobre o tema.
Resta a ..., de que o recorrente foi efetivamente sócio, entidade que detinha a ..., que girava sobre o nome comercial de …. Certo é que o recorrente não tinha qualquer controlo sobre a atividade da holding, não havendo nada nos autos que o revele, tendo, efetivamente, cedido a sua posição, em ..., como se reconhece no despacho a quo, exatamente porque foi alertado para a possibilidade de se tratar de uma situação de partes relacionadas. Certo ainda é que, como o despacho a quo também reconhece, o recorrente não recebeu um cêntimo desta sociedade.
São, assim, insubsistentes as presunções naturais que se querem usar, partindo dos factos supra indicados.
Inerentemente se conclui que não resulta, em absoluto, clara (rectius, "forte") a intervenção, a título de corruptor, do arguido AA, designadamente, o conhecimento que ele tivesse do suborno alegadamente pago, na larga maioria dos casos, por empresas sob o controlo de GG.
Relativamente à indiciação de um único crime de corrupção passiva no setor privado, na forma agravada, o Ministério Público limita-se a afirmar, genericamente, que AA, servindo-se da sua posição de referência dentro do ..., terá abusado destes poderes, fazendo com que as decisões de contratação daquele Grupo recaíssem sobre as sociedades controladas por GG.
Do que não há qualquer indício de prova, incluindo o facto de AA não ter, para além da supervisão técnica, qualquer poder de decisão que, obviamente, não decorria da sua posição de acionista.
Assim, admitindo - sem conceder - que estas decisões se revelaram, não só contrárias aos deveres funcionais que impendiam sobre AA, que não impendiam, mas, também, prejudiciais para os interesses do sobredito ..., não se percebe de todo qual a vantagem, patrimonial ou não, indevida, que constitui a contrapartida dessa atuação. E a disponibilização das casas de ... e ...?! Ou as alegadas obras em ...?! Que coisa pouca como contrapartida de tantos milhões que o MP afirma serem os lucros da relação com GG?!
Porventura, o Ministério Público refere-se à repartição de lucros auferidos pelas sociedades controladas por GG, resultantes dos negócios realizados pelas mesmas com a ..., descrevendo a este respeito uma rede complexa de transferências financeiras entre empresas. E que prova de que, direta ou indiretamente, AA era titular direta, indiretamente ou fiduciariamente, dessas sociedades? É que apelar para DD e JJ é elemento de conexão frágil, como já se evidenciou. E que participação é esta, que não dá um cêntimo, aí onde não há rasto de recebimento por si ou por qualquer sociedade de que fosse comprovada ou indiciariamente titular?
Trata-se de meras suposições, desamparadas, que são, manifestamente, insuficientes para que se possa concluir, a partir delas, pela existência de uma vantagem indevida como contrapartida da alegada intervenção decisória do arguido AA.
Deixa-se ainda registado que, conforme o arguido referiu no seu interrogatório, e poderá ser facilmente comprovável, as decisões de venda de imóveis tinham de ser aprovadas por II e resultavam de propostas do setor imobiliário, devidamente fundamentadas.
Pretendem, todavia, o MP e o despacho a quo fazer apelo à interceção telefónica referida no auto de interrogatório (págs. 9 e I l) para assinalar que a pretensão do arguido, em conversa com CC, sobre venda de imóveis ter sido feita a empresas de GG não dever ser referida a II. O que fazia todo o sentido, e nada tinha de suspeito, pois II, por razões pessoais, que são dele, detesta GG.
Conclui-se, assim, pela inexistência de fortes indícios de crime, aqueles que, com toda a probabilidade, levam à convicção da prática pelo arguido dos crimes de corrupção ativa e passiva, na forma agravada.
Quanto aos crimes de branqueamento, alegadamente praticados através das sociedades ..., ..., ... e ..., as duas primeiras detidas por ambos os arguidos, as restantes só por AA, a insuficiência indiciária no que respeita ao ilícito de corrupção passiva imputado a este último arguido comunica-se, necessariamente, aos delitos agora em questão.
Também a alegada falsificação, em número não determinado de documentos, com relação a empresas em que AA não tem qualquer participação está, pois, insuficientemente indiciada.
Adicionalmente,
Não se alcança como se pode afirmar um perigo de continuação da atividade criminosa, na vertente da angariação, por parte do arguido GG, de novos negócios com o ..., através do oferecimento de vantagens indevidas, quando simultaneamente se reconhece saber que houve «afastamento de muitos dos intervenientes em investigação», sendo «apertada [a] vigilância que a contratação passará a ter».
Se o que se visa é prevenir a prática de novos factos da natureza dos indiciados, não há dúvidas de que, com a suspensão de todos os implicados e o clima de cautela que se instalou na ..., o risco de continuação da atividade criminosa, se existisse, deixou de ser viável.
O Ministério Público não deixou de reconhecer que esse perigo se mostra mais mitigado em face das movimentações efetuadas dentro do ...», mas se assim é nada obsta a que o arguido AA possa aguardar os ulteriores termos processuais em liberdade, sujeito que está à medida de proibição de contactos com todos os cidadãos e empresas mencionados no despacho de apresentação.
Quanto à existência de perigo de perturbação do decurso do inquérito, nem o M. mo Juiz de Instrução nem o Ministério Público apontam qualquer facto concreto que indicie ter o arguido em preparação, ou em marcha, ou simplesmente em projeto, qualquer das condutas referidas (conformação de explicações, destruição de documentos, condicionamento de testemunhas).
Pelo contrário, o que se verifica é que o arguido AA colaborou com a investigação, tendo esclarecido todas as situações com interesse para os autos.
Além disso, está impedido de encetar contactos com co-arguidos e testemunhas, na medida em que lhe foi imposta a proibição de contactos com todos os cidadãos e empresas mencionados no despacho de apresentação.
Certo é também que, atendendo ao presente estádio processual, não se intui em que termos é que o arguido AA poderia agora adulterar o que quer que fosse.
Uma investigação iniciada em 2018, que dura, portanto, há 5 anos, já terá procedido a toda a recolha de prova que houvesse necessidade de obter.
O processo, aquando do interrogatório tinha já 26 volumes, para além dos diversos apensos que igualmente o constituem e da prova entretanto recolhida na sequência da realização de buscas. Neste contexto, quer porque a investigação já teve oportunidade de recolher a prova que lhe permitiu dar como indiciados os crimes que imputou ao arguido, quer porque a conduta processual do arguido se situa nos antípodas do afirmado perigo, será adequado dizer que a aplicação de uma medida de coação privativa da liberdade, no caso a de obrigação de permanência na habitação, se mostra completamente desproporcionada.
No tocante ao perigo de fuga, o quadro fáctico que os autos patenteiam permite concluir que a afirmação de tal perigo não passa de uma asserção gratuita e espúria, considerando que o arguido AA, apesar de ter sido avisado da operação "Picoas", via fonte da ..., e mesmo tendo à sua disposição meios rápidos para sair do país, não só se manteve em Portugal, como se dispôs a prestar declarações em sede de interrogatório judicial, encontrando-se desde então à disposição do processo e da justiça.
Ou seja, a existência de condições objetivas para encetar uma fuga (por ser um <
O que nega, de forma cabal, o prognóstico meramente teórico e estereotipado de perigo de fuga que consta do Despacho recorrido.
Seja como for, na eventualidade de ainda assim se entender que existe residualmente esse receio (alicerçado tão-só no estatuto económico do arguido), sempre a imposição da obrigação de não se ausentar para o estrangeiro se afiguraria suficiente para garantir as finalidades cautelares diagnosticadas no caso.
Sendo sobremaneira evidente, à vista da factualidade conhecida no processo, que as necessidades cautelares do caso não reclamam a aplicação da segunda medida de coação mais severa do nosso ordenamento jurídico (obrigação de permanência na habitação).
A manutenção da medida de proibição de contactos já imposta afigura-se como suficiente e idónea a prevenir os perigos alegadamente existentes, garantindo-se, deste modo, a necessidade, a adequação, a proporcionalidade e a intervenção mínima exigidas.
A título subsidiário, admite-se que a prestação de caução por depósito, promovida pelo Ministério Público, cumulada com a proibição de contactos já imposta, se revela como medida cautelar com a virtualidade de obviar os perigos (a nosso ver, inexistentes) que se pretendem prevenir.
Nestes termos, deve o presente Recurso ser julgado procedente e, em consequência, deve ser revogado o Despacho recorrido que determinou a sujeição do arguido AA à medida de coação de obrigação de permanência na habitação, mantendo-se a proibição de contactos já imposta, cumulada, caso se entenda necessário, pela prestação de caução por depósito promovida pelo Ministério Público.”
3. Admitido correctamente o recurso, o Magistrado do Ministério Público, na resposta que apresentou pugnou pelo não provimento do mesmo, alegando que a decisão recorrida não merece censura, porquanto fez correta interpretação dos indícios e da Lei aplicável, tendo realizado o Direito, rematando a respectiva motivação com as conclusões que seguidamente se transcrevem:
“(…)
1. O presente recurso vem interposto de uma decisão que já não se encontra vigente, uma vez que recai sobre a fixação de medidas de coação ao arguido AA, ora Recorrente, após primeiro interrogatório de arguido detido, decisão de folhas 12094 a 12275, proferida a ...-...-2023, a qual foi já substituída pela decisão de folhas 15344 e seguintes, proferida na data de ...-...-2023, que substituiu a medida de obrigação de permanência na habitação pela medida de caução.
2. O Recorrente dirige a sua discordância à medida de obrigação de permanência na habitação, que então lhe foi aplicada e começa por fundar a sua discordância, numa alegada ausência de fundamentação da decisão que aplicou as medidas, a qual tem que ser avaliada à luz dos indícios então recolhidos nos autos e com os quais o arguido foi confrontado.
3. O arguido AA, ora Recorrente, foi detido fora de flagrante nos presentes autos, na data de ... de ... de 2023, tendo sido sujeito a primeiro interrogatório de arguido detido, em conjunto com outros três arguidos, por suspeita de determinar decisões de contratação dentro do ... em função do recebimento e de proporcionar o recebimento de vantagens indevidas, em particular para o co-arguido GG e para um vasto conjunto de sociedades controladas e participadas por este último.
4. A relação de amizade com GG começou por ser negada pelo ora Recorrente, mas foi reconhecida pelo GG e resultou particularmente evidente após o confronto do ora Recorrente com sessões de intercepção telefónica em que, perante terceiros, dizia que o GG era como se fosse seu irmão — no caso quando, em conversa com a sua amiga KK, garantia que a mesma poderia usar como quisesse um cartão de crédito proporcionado por GG.
5. No seu interrogatório, o arguido AA confirmou as suas funções de administração, exercidas formalmente e de facto, dentro do ..., admitindo intervir em supervisão técnica relativamente a fornecedores, reconhecendo ter atingido a detenção de uma participação social de cerca de 30% no ..., agora reduzida para cerca de 22%, não conseguindo explicar a forma jurídica em que a mesma se traduzia, mas admitindo que vivia dos rendimentos gerados pela mesma, admitindo atingisse várias dezenas de milhões de euros por ano.
6. Na imputação para efeito de primeiro interrogatório foi referido que o arguido AA tinha estabelecido uma estratégia com o arguido GG no sentido de este vir a montar um conjunto de empresas que pudessem vir a fornecer mercadorias e serviços para o grupo ..., assumindo AA o encargo de fazer com que as decisões de contratação da ... recaíssem sobre essas sociedades controladas pelo GG, prática admitida como de auxílio recíproco nos negócios.
7. De facto, ficou indiciado que tal estratégia foi implementada a partir do ano de ..., abrangendo todas as empresas do ..., não só em Portugal, como em vários outros países da ... e nos ... e na ..., e foi dirigida quer ao fornecimento de equipamentos de telecomunicações e da prestação de serviços, quer ao nível da venda de mobiliário para escritórios e lojas, quer mesmo ao nível das decisões de venda de imóveis por parte do ....
8. A capacidade de AA condicionar as decisões da ... foi utilizada não só no sentido da atribuição direta pela ... de contratos de fornecimento a sociedades controladas por GG, como também para fazer atribuir a entidades controladas pelo mesmo GG o papel de "traders" que eram impostas a outros fornecedores da ..., caso da ... e da ..., de forma a sacarem uma percentagem sobre esses negócios, criando assim uma rede de intermediários que era desnecessária para a contratação de fornecimentos à ....
9. AA possibilitou ainda a GG uma rede de contatos dentro dos quadros decisores da ..., suportada em pessoas da confiança do ora Recorrente, como o genro do próprio arguido AA, identificado como DD, que tinha o cargo de responsável por compras na ..., e como LL e MM, com capacidade de decisão de contratação de fornecimentos, ao nível do ... em países como a ... e os ... e mesmo em ..., para além de outros dirigentes da ... em Portugal, caso de CC e de BB, ficando evidenciado que todos os referidos decisores da ... associavam a pessoa de GG a ser uma extensão da pessoa de AA.
10. Indicia-se ter sido estabelecida entre GG e AA uma forma de repartição dos ganhos gerados nas sociedades do primeiro por via do incremento dos negócios com a ..., através da criação de estruturas societárias domiciliadas nos ..., ainda que controladas através de terceiros, nas quais começaram por ser concentrados os ganhos obtidos.
11. O ora Recorrente procurou negar a sua proximidade quer ao genro, DD, quer ao pai do mesmo, JJ, por serem estes que foram feitos figurar como beneficiários, leia-se fiduciários, das estruturas que vieram a receber os ganhos ilícitos, mas ficou evidenciado, durante o interrogatório, que o próprio DD se encontrava em Portugal, em casa do ora Recorrente, nas vésperas da operação policial desenvolvida nos presentes autos, e que o pai do mesmo, o referido JJ, mantinha contatos frequentes com o ora Recorrente e com o arguido GG.
12. Em face da proximidade entre o ora Recorrente e o seu familiar DD e o pai deste, foi entendido indiciado que o arguido AA detinha o controlo indireto de duas entidades domiciliadas em ..., nos ..., designadas de ... e de ..., as quais eram detentoras de contas bancárias abertas junto do ... e junto do ..., entre outras.
13. Outro indício dessa repartição de participações entre AA e GG nas referidas entidades advinha da diversidade de fiduciários, leia-se "homens de palha", usados para figurarem como sócios, tendo os arguidos feito constar como detentores das ações dessas entidades pessoas de sua confiança e residentes locais no ..., bem como a filha de GG, a arguida NN e colaboradores do GG.
14. A participação conjunta dos arguidos GG e AA ocorreu também em Portugal, através da sociedade ... (anteriormente designada de OO), tendo os dois referidos arguidos imposto a sua participação dominante na sociedade, os dois detinham 60%, aos sócios originais, identificados como PP e QQ.
15. Aliás a detenção da ... foi feita, por imposição do arguido AA, agora recorrente, através de uma entidade constituída no ..., a ..., na qual os arguidos AA e GG fizeram ocultar, a partir de ..., as suas participações, recorrendo ao nome da arguida NN, filha do GG.
16. Os dados de contabilidade e fiscais evidenciam que, na sequência da intervenção como acionistas de AA e de GG, a sociedade ..., foi ficticiamente deslocada para a ..., de forma a obter vantagens fiscais, e passou a faturar fornecimentos a entidades do ..., os quais atingiram o montante de cerca de 157 milhões de euros, entre os anos de ... e de ....
17. Acresce ainda que em execução do acordado entre AA e GG, foram colocados na ... alegados contratos de desenvolvimento de produtos fornecidos ao ... por parte da multinacional ..., levando uma entidade representante deste último Grupo, no caso a ..., com filiais em ... e nos ..., a fazer pagamentos à ..., num montante total de cerca de 50 milhões de euros, entre ... e ... — factos que o referido PP veio a confirmar na sua inquirição.
18. Indicia-se que tal contratação de sociedades controladas por GG por parte das sociedades ... e dos ... foi conseguida por contatos estabelecidos, através de AA, e vantagens atribuídas a um quadro da ..., identificado como FF.
19. Ainda no âmbito da estratégia de obter vantagens por via de outros fornecedores do ..., indicia-se ainda que os arguidos GG e AA levaram a ... a aceitar que as aquisições feitas ao fornecedor ..., bem como ao fornecedor ..., fossem intermediadas pela RR, sociedade controlada pelo arguido GG.
20. Ficou ainda evidenciado que tais colaboradores da ..., caso do referido BB, aceitavam realizar tais contratos através das intermediárias controladas pelo arguido GG, apesar de poderem contratar diretamente e em melhores condições com as sociedades fornecedoras, em face das indicações transmitidas pelo arguido AA e em troca do recebimento de compensações indevidas.
21. A repartição com AA dos ganhos gerados nas sociedades de GG por via da contratação facilitada e incrementada com o ... foi também feita através da atribuição por este último de vantagens e de bens, incluindo imobiliários, a pessoas próximas do ora Recorrente e por indicação do mesmo.
22. Assim veio a acontecer, em ..., com a aquisição de um imóvel em ..., mais propriamente na ..., em ..., feita em nome da entidade ..., com registo no ... e controlada pelo GG, com o custo total de € 1.726.820,00, apenas destinado a disponibilizar o mesmo a AA.
23. Indicia-se ainda que o ora Recorrente, AA se concertou ainda com GG quanto a vantagens a atribuir a outros responsáveis no estrangeiro da ... que participaram nas decisões de contratação a favor das sociedades de GG, tal tendo sido o caso de LL, que foi presidente da ... até final de ... e tinha anteriormente exercido as mesmas funções na ..., tendo sido atribuída ao mesmo participação na sociedade ..., entidade fornecedora de fibra óptica para a ....
24. O mesmo tipo de vantagens foi concedido, por acordo entre AA e GG, relativamente ao identificado SS, que desempenhava funções de … e depois de designado "..." (compra de telemóveis e Ipads) no grupo ..., com a atribuição ao mesmo de um imóvel sito em ... e de um alegado empréstimo de € 2.000.000,00 a favor do mesmo MM, a pretexto da aquisição de um imóvel pelo mesmo em ....
25. Tal como foi imputado e se veio a evidenciar, a influência de AA, em conluio com GG, sobre o processo decisório da ..., em Portugal, estendeu-se às decisões de alienação de imóveis por parte de entidades do ..., incluindo por via de contatos mantidos com CC (CEO da ...), o que conduziu à realização da venda de imóveis em condições prejudiciais para aquele Grupo e geradoras de vantagens para GG e para AA e as suas sociedades.
26. Indicia-se que a referida contratação de venda de imóveis pela ... foi conseguida por via das indicações transmitidas por AA aos demais responsáveis da ..., mas também com a "compra", através da atribuição de vantagens indevidas, do comprometimento do já referido CC, que desempenhava as funções de Presidente Executivo do ..., como forma de o impedir de vir a discutir os critérios de venda aplicados.
27. GG obteve assim a colaboração de AA para montar estruturas societárias destinadas a figurar como fornecedores para o ... nos ... e na ..., para além de voltarem a repetir a estratégia de atribuir vantagens indevidas aos diretores locais, de forma a obterem o seu comprometimento com as decisões de contratação.
28. Assim aconteceu com sociedades com a natureza de "traders", caso da ... e da ..., controladas por pessoas próximas de GG e que, seguindo o acordado entre o mesmo e AA, se impunham perante os fornecedores, afirmando que apenas poderiam realizar os fornecimentos se estes passassem pelas referidas intermediárias ... ou ..., detendo estas uma exclusividade de fornecimentos para determinadas áreas, assim implicando distorção das regras da concorrência.
29. Através dos esquemas acima narrados, GG, com a colaboração de AA e com repartição de vantagens indevidas por outros dirigentes do ..., conseguiu que as sociedades por si controladas viessem a conseguir contratos de fornecimento à ..., tendo a faturação das principais sociedades controladas pelo primeiro arguido ao ... atingido, no período entre ... e ..., o volume total de cerca de 660 milhões de euros.
30. A influência e capacidade de decisão do ora Recorrente dentro da ... foi ainda exportada, mais uma vez através da ação do arguido GG, para a área da negociação dos direitos de transmissão televisiva de jogos de futebol abrangendo vários clubes de futebol, através de um contrato entre a sociedade ..., de TT, e a ... no sentido de a primeira prestar alegados serviços de assistência no contato e negociação com vários clubes de futebol tendo em vista a referida transmissão de direitos televisivos, contrato que previa o pagamento à primeira de um montante de 20 milhões de euros.
31. Foi ainda imputado e ficou indiciado que AA e GG recorreram também à montagem de contratos e de faturação forjada para justificar transferências de fundos das sociedades nacionais e das sociedades dos ... para outras sociedades neste mesmo território, caso da ... e da ..., entidades que se indicia serem controladas por AA, ainda que através do seu genro DD.
32. A indiciação produzida ao longo do inquérito, cujo processado foi integralmente apresentado à Defesa dos arguidos, foi vertida na imputação e esta foi reconhecida como indiciada em sede de decisão de aplicação de medidas de coação, conduzindo assim a que o arguido AA tenha sido indiciado como autor, quer à data da aplicação inicial das medidas quer no presente, da prática dos crimes de corrupção activa e passiva no sector privado, na forma agravada, p. e p. nos arts. 8.0 e 9.0 da Lei 20/2008, de 21 de Abril, na redação introduzida pela Lei 30/2015, de 22 de Abril, bem com de crimes de branqueamento de capitais e de falsificação de documentos.
33. A decisão recorrida respeita a obrigação legal específica de fundamentação da decisão que aplica medidas de coação diferentes do termo de identidade e residência, conforme previsto no art. 194.0-6 do Cod. Processo Penal, devendo entender-se que o mesmo preceito apenas sanciona com a nulidade os casos de ausência total de qualquer dos parâmetros de fundamentação exigidos no mesmo dispositivo.
34. No presente caso, a alegada nulidade por falta de fundamentação não foi previamente invocada perante a primeira instância, mas sim diretamente alegada em sede de recurso, não que se exija a arguição no próprio acto, mas sim a invocação prévia perante a primeira instância, como forma de respeitar o princípio do aproveitamento e da reparação dos actos jurídicos.
35. A decisão recorrida começa por recuperar as circunstâncias e as decisões que determinaram a detenção fora de flagrante delito dos arguidos, para os submeter a primeiro interrogatório judicial, culminando essa primeira parte com a validação das detenções realizadas, incluindo quanto à apresentação judicial dos arguidos detidos.
36. De seguida, a decisão recorrida, enuncia os factos concretamente imputados aos arguidos, fazendo cópia dos factos narrados pelo Ministério Público aquando da apresentação judicial dos mesmos arguidos, o que se estende entre folhas 12109 e folhas 12202 dos autos, após o que, num longo parágrafo constante de folhas 12202, enuncia os indícios que foram analisados, concluindo pela indiciação dos factos imputados aos arguidos.
37. A decisão recorrida transcreve a promoção do Ministério Público relativa à apreciação dos indícios e aplicação de medidas de coação, folhas 12225 e seguintes, bem como analisa as respostas apresentadas pelas Defesas dos arguidos, manifestando a concordância com a promoção do Ministério Público, para a qual remete, o que reafirma no final da decisão, conforme passagem constante de folhas 12271.
38. A decisão procede ainda à apreciação específica dos factos indiciados quanto à relação entre os arguidos GG e AA, folhas 12259 e folhas 12266 e seguintes, reconhecendo que foi devido à intervenção de AA que as sociedades controladas pelo arguido GG, ora recorrente, foram colocados no centro dos negócios com a ..., em múltiplas oportunidades.
39. Por fim, a decisão procede à análise dos perigos de fuga, de perturbação da recolha e conservação da prova e da continuação da atividade criminosa, quer sob um ponto de vista abstrato quer concretamente, relativamente a cada um dos arguidos, conforme folhas 12260 e seguintes, reconhecendo que existe um vasto conjunto de prova, designadamente pessoal, que importa ainda recolher, e reconhecendo a verificação dos perigos elencados pelo Ministério Público, passagem de folhas 12271.
40. A definição das medidas de coação aplicadas é feita pela decisão recorrida a partir de folhas 12272 dos autos, decidindo num sentido divergente da posição assumida pelo Ministério Público, uma vez que foram aplicadas medidas idênticas para os arguidos AA e GG e não a medida de prisão preventiva quanto a este último, tal como havia sido promovido.
41. Entende o ora Recorrente que a fundamentação da indiciação deveria ter indicado os indícios que foram considerados para que cada facto tivesse sido considerado indiciado, mas não é essa a exigência da Lei, uma vez que o que o art. 194.0-6 b) do Cod. Processo Penal estipula é que sejam enunciados os elementos do processo que indiciam os factos imputados, não havendo qualquer exigência relativamente a cada um dos factos imputados, pelo que se deve considerar que a decisão recorrida respeitou as exigências de fundamentação previstas nas alíneas a) e b) do no 6 do art. 194.0 do Cod. Processo Penal.
42. A decisão recorrida faz ainda referência expressa, na passagem de folhas 12267, página 200 da acta onde se insere a decisão, às vantagens indevidas atribuída diretamente por GG à pessoa de AA, ora recorrente, com expressa menção à "disponibilização de casas, de cozinheiros, de cartões para uso de senhoras das relações de AA, ou, ainda, para forjar facturas, a beneficio do genro de AA ou do pai deste, a tudo se predispôs, até para comprar um carro para uma das Senhoras, por forma a que AA nunca se expusesse.
43. Relativamente à qualificação jurídica dos factos imputados é evidente que a mesma consta da fundamentação da decisão recorrida, até porque, quanto à mesma, a motivação expressa largas considerações jurídicas, conclusões dos parágrafos 22. e seguintes, revelando que percebeu a integração jurídica realizada e que expressa relativamente à mesma a sua discordância, o que não poderia fazer se a mesma não constasse da decisão.
44. A análise da verificação dos perigos que são pressupostos da aplicação das medidas de coação consta da passagem de folhas 12260 e seguintes da decisão recorrida, página 193 e seguintes do auto onde se insere, a que se soma a adesão expressamente feita à promoção apresentada pelo Ministério Público quanto à aplicação de medidas de coação, promoção que foi feita constar da própria decisão recorrida e para a qual se remete, conforme folhas 12271 (página 204 do auto onde se insere a decisão recorrida), pelo que se mostra respeitada a exigência de fundamentação prevista na alínea d) do art. 194.0-6 do Cod. Processo Penal.
45. Assim, por exemplo, no que se refere ao perigo de continuação dos esquemas negociais corruptos com a ..., refere expressamente a decisão recorrida que foi o arguido AA quem "colocou GG no centro do coração dos negócios da ... em múltiplas oportunidades, como o próprio GG o reconhece, sendo por isso evidentes os perigos, não só de se liberalizarem os contactos de todos estes Senhores constantes da indiciação, entre si, como também de se lhes permitir uma liberdade ambulatória que lhes permita exactamente forjar explicações ou, no limite, eximirem-se à acção da justiça”
46. A técnica de fundamentação das decisões através da remissão para a promoção que as antecede não significa que foi dispensada a avaliação crítica e autónoma dos indícios recolhidos e dos factos indiciados, sendo uma técnica com plena conformidade com as exigências da Constituição da República.
47. Sobre o preenchimento dos ilícitos imputados, o ora Recorrente, AA, volta a distorcer os factos com que foi confrontado e até mesmo as suas declarações em interrogatório, para procurar fazer crer que as atribuições patrimoniais que lhe foram proporcionadas por GG se inserem numa lógica de normalidade e de quem procura estar nas "boas graças" do ora Recorrente conforme se expressa na conclusão do parágrafo 15. da motivação.
48. Foram imputados e exibidos indícios ao arguido ora Recorrente relativos a actos concretos de pressão sobre as decisões de contratação a produzir dentro do ..., como aconteceu com a atribuição da exploração de uma loja ... a uma sociedade detida pela actual companheira de GG e controlada de facto por este último, bem como quanto à decisão de venda de imóveis e até à necessidade de manter oculto 0 nome GG, por 0 mesmo não ser do agrado do principal acionista da ..., o referido II o arguido foi confrontado com o teor das suas conversas com CC, gravadas nas sessões 337, do alvo ..., e 2360, do alvo ....
49. O teor confuso e vazio de sentido da conclusão 28. da motivação, expressa a dificuldade do ora Recorrente, AA, para explicar a sua intervenção junto de CC no sentido de pressionar para as vendas de imóveis a favor de sociedades de GG, sendo evidente que a ocultação do nome do mesmo seria conseguida pela venda a sociedades onde o mesmo não figurava formalmente como sócio.
50. Os factos imputados a AA e considerados indiciados são expressos nessa dupla componente, por um lado influência direta e obtenção de vantagens indevidas pessoais, por outro lado, influência por via da supervisão técnica dos procedimentos quanto a fornecedores (expressão usada na conclusão 15 da motivação), para depois beneficiar da repartição de ganhos gerados pelas empresas controladas por GG com os seus fornecimentos e negócios (no imobiliário e na compra de direitos televisivos dos clubes de futebol) facilitados com a ....
51. Esquece o arguido ora Recorrente que o crime de corrupção privada, tal como previsto nos arts. 8.0 e 9.0 da Lei 20/2008, de 21 de Abril, na redação introduzida pela Lei 30/2015, de 22 de Abril, não se preenche apenas com a obtenção de vantagens indevidas para o próprio agente privado corrompido, mas também com a atribuição dessas vantagens a terceiros, por designação do próprio agente corrompido, tal como aconteceu nos presentes autos quanto às pessoas de YB, genro do arguido, e do pai do mesmo, JJ.
52. A intervenção do arguido AA na ..., detentora da ..., que foi beneficiária de contratações pela ... e que teve que assumir um papel de intermediação no fornecimento de produtos da ..., é ilustrativa do sentido de impunidade com que o arguido iniciou a sua colaboração com GG como fornecedor de referência do grupo ... em Portugal, nos anos de 2015 e ....
53. Não existe incongruência na imputação simultânea de crimes de corrupção privada pelo lado activo e pelo lado passivo relativamente à mesma pessoa de AA, uma vez que se indicia que a estratégia dos arguidos passava quer pela viciação direta das decisões de contratação da ..., quer pelo estabelecer de um comprometimento da parte dos responsáveis que subscreviam, de facto, as decisões de contratação, pelo que lhes eram também feitas atribuições indevidas.
54. Assim aconteceu, entre outros, com a "compra", através da atribuição de vantagens indevidas, do comprometimento do já referido CC, que desempenhava as funções de Presidente Executivo do ..., como forma de o impedir de vir a discutir os critérios de venda aplicados.
55. Relativamente aos crimes de branqueamento imputados ao arguido AA, verifica-se, conforme acima exposto, a indiciação dos ilícitos prévios de corrupção privada, que geram os geram os ganhos ilícitos que foram sujeitos a manobras de ocultação e de justificação, procurando afastar tais produtos ilícitos da pessoa do arguido ora Recorrente.
56. Tais manobras de branqueamento encontram-se narradas nos factos imputados e que foram considerados indiciados, na parte em que se referem as sociedades constituídas nos ... exclusivamente para servirem de veículo para a recepção de fundos que resultam dos ganhos gerados pela prática dos crimes de corrupção imputados.
57. Tais ganhos foram transferidos a coberto de contratos de prestação de serviços e faturas forjados exclusivamente para esse efeito, bem como da alegada distribuição de dividendos, tendo como destino a entrada na esfera de disponibilidade do arguido AA, agora Recorrente, ocultando, no entanto, a sua participação nas referidas entidades veículo e dando-lhe uma aparência de legalidade.
58. O arguido GG confirmou no seu interrogatório, em consonância com o que consta dos autos, que o acima referido JJ é apenas beneficiário formal de estruturas societárias nos ... onde foram recebidas dezenas de milhões de euros com origem em ganhos obtidos por negócios proporcionados com o ....
59. Ao contrário do que afirma o recorrente, indicia-se fortemente que os fundos pagos para contas em nome das entidades ... e ... não podem ser afastados da pessoa de AA, tanto mais que o seu nome aparece referido como sendo aquele "amigo" que tudo resolve dentro do ... — sessões 93294 do alvo ... e 1057 do alvo ....
60. Em execução de um esquema de repartição de ganhos acordado entre os arguidos AA e GG foi iniciado um circuito de faturação por parte da entidade ... em direção às sociedades ... e ..., o qual era controlado através da arguida NN - os arguidos foram confrontados com mails resultantes das interceções telefónicas, caso das sessões 42354, 42356, 113746, 164689, 164694 e 181445, do alvo ....
61. Ficou indiciado que, de forma a justificar o circuito de fundos para a ..., foram forjados contratos relativos a comissões a que a mesma teria direito sobre negócios desenvolvidos pela ..., os quais deram origem à produção de facturas da ... à ..., tendo sido identificadas, em ..., pelo menos três faturas, no montante total de USD 650.000,00, e mais uma fatura de USD 525.000,00, em ..., dando origem a vários pagamentos para a esfera da ..., mais uma vez indiciariamente representativos da repartição de ganhos para a esfera do arguido AA.
62. O mesmo tipo de pagamentos veio a ocorrer em 2018 e ... entre a ... e a ..., tendo sido produzidas faturas em nome da segunda e dirigidas à primeira no montante de, pelo menos, USD 3.750.000,00 em 2018 e mais USD 5.410.517,37, em ..., mais uma vez indiciando-se representarem a repartição de ganhos para a esfera de AA.
63. Por outro lado, em resultado do acordo entre AA e GG para a repartição dos ganhos gerados com os contratos com a ..., foram produzidas faturas em nome das sociedades ... e ... e dirigidas às referidas sociedades nacionais ... e RR, justificando os subsequentes pagamentos, que atingiram o montante total de cerca de 16 milhões de euros, entre ... e ..., sem que existissem quaisquer serviços ou fornecimentos subjacentes.
64. Entendemos assim, por tudo o acima exposto, que também os crimes de branqueamento e de falsificação de documentos, relativos a fluxos financeiros e a documentos contratuais, relativos às entidades ... e ..., que foram imputados a AA, se devem considerar fortemente indiciados, bem como a participação do arguido AA, agora recorrente, nos mesmos.
65. Aliás, quanto aos crimes de falsificação, o ora Recorrente não coloca sequer em causa a sua verificação, mas apenas procura colocar em causa que tal falsificação tivesse ocorrido também no seu interesse, o que, no entanto, resulta indiciado pela circunstância de as sociedades instrumentais serem detidas apenas fiduciariamente por terceiros, nomeadamente por JJ, sendo 0 arguido AA um dos beneficiários efectivos das mesmas, bem como da repartição de ganhos entre este e o arguido GG, pelo que, a produção desses documentos forjados, foi, de facto por determinação ou conhecimento deste e, claramente, também no seu interesse.
66. Como fundamentação para a aplicação das medidas de coacção inicialmente impostas ao Recorrente, entendeu a decisão recorrida verificarem-se os perigos de continuação da actividade criminosa, perturbação do inquérito e de fuga.
67. Relativamente ao perigo de fuga, a decisão recorrida explicitou que "AA não é só um homem rico, não sabemos nem isso é importante de momento, se é ou não a 19 afortuna de ..., o certo é que para os padrões do homem comum, do homem médio, que se rege pelas regras da experiencia comum e da normalidade do acontecer, um homem que viaja em jacto privado, tem casas em várias geografias, onde dispõe de contas bancárias e até um regime especial do ponto de vista fiscal, como ele referiu a "forfait" ou seja, na ... não se paga impostos de um ponto de vista progressivo consoante os rendimentos, negoceia-se com a ... um montante a pagar anualmente mesmo que aí não se viva sempre.”
68. Concluiu assim a decisão recorrida que AA possui capacidade e propósito de centrar a sua vida onde melhor possa colher proveitos, o que significaria, à data dos interrogatórios, a existência do risco de "escolher residir, num qualquer paraíso aonde possa obviar a Interpol ou a Europol"
69. Quanto ao perigo de continuação da atividade criminosa, explicita a decisão recorrida que "AA tem capacidade para, servindo-se de todas as fidelidades que granjeou ao longo das últimas décadas na ..., onde ao contrário do que dizem as fontes abertas, nas quais se refere que já não detém qualquer comparticipação social naquela multinacional, o próprio diz que tem 22% do capital societário, pode com facilidade conformar explicações e continuar a sua actividade de facilitação de oportunidades de negócios a GG ou a outros "Testas de Ferro " deste que se apresentem a substituir a posição".
70. Note-se que, na data da decisão recorrida, não estava evidenciada qual a reação da ... e do seu principal acionista, II, sobre os factos em causa no presente inquérito, sendo, pelo contrário, evidente uma capacidade de ação, que permanecia intocada, por parte de AA, relativamente aos quadros da ... e aos seus procedimentos de contratação.
71. Sobre o perigo de perturbação da recolha e da conservação da prova, a decisão recorrida ponderou que o mesmo se “concretiza na verificação de factos que nos permitam indiciar que os arguidos tem capacidade e podem prejudicar, a actividade de recolha da prova e a eficácia probatória da prova indiciária já adquirida”
72. Tal concretização foi julgada indiciada pela verificação da relação de dependência dos vários responsáveis da ... face à pessoa de AA e face à indiciada prática de deslocalização de negócios e de montagem de contratos justificativos dos circuitos financeiros, prática que, a repetir-se, seria suscetível de colocar em causa a prova já recolhida e de afetar a espontaneidade dos depoimentos a recolher nos autos, reconhecendo a decisão que toda essa prova pessoal se mostrava por recolher.
73. Indiciando-se que já existia, há vários anos, a clara oposição do sócio maioritário da ..., o referido II, à contratação de sociedades controladas pelo arguido GG, certo é que o arguido AA, agora recorrente, não se coibiu de, em conjunto com aquele, engendrarem formas de as mesmas sociedades serem contratadas pelo ..., incluindo mediante a atribuição de vantagens ilegítimas.
74. Note-se ainda que o arguido, ora Recorrente, era "o cérbero" de toda a parte técnica da ... e está completamente a par das necessidades deste Grupo de empresas que, obviamente, não desapareceram ou diminuíram, conhecendo ainda os seus fornecedores, nas diversas geografias onde o Grupo actua.
75. Só em fase adiantada do interrogatório é que o arguido foi reconhecendo saber que as empresas que lhe foram sendo elencadas eram do arguido GG e que já o sabia quando a ... celebrou contratos com as mesmas, referindo que o seu objectivo sempre foi apenas de "o ajudar".
76. Assim, à data dos interrogatórios dos arguidos e em face dos perigos identificados, verificados em simultâneo e potenciando-se reciprocamente e face ao estado da investigação à data da decisão em recurso, impunha-se a aplicação ao recorrente das medidas de coacção que lhe foram impostas e não quaisquer outras menos gravosas, nomeadamente, as propostas pelo recorrente, por, nessa data, não prevenirem de forma adequada os perigos identificados e a intensidade dos mesmos.
77. Na data da decisão sob recurso, a medida de coação de obrigação de permanência na habitação justificava-se porque, por um lado, ainda não eram conhecidos os desenvolvimentos que estavam a ocorrer na ..., nem qual iria ser a efectiva colaboração desta com a investigação e ainda à face à necessidade de garantir a eficácia da recolha de prova pessoal relativamente a pessoas com ligações próximas ao Recorrente, não se revelando então suficiente a mera proibição de contatos.
78. A alteração dessas circunstâncias, designadamente pela constituição da ... como assistente nos autos e pelas alterações de responsáveis internamente desencadeadas na ..., bem como por se ter iniciado a recolha de prova pessoal, com evidentes resultados em sede da confirmação dos factos e da alteração de contratos de fornecimento à ..., levou a que, à luz de um princípio de adequação e de menor constrangimento, fosse considerada suficiente a aplicação de medidas compatíveis com a liberdade de circulação do arguido, ora vigentes.”
4. Subidos os autos a este Tribunal o Exmº. Sr. Procurador Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de o recurso dever ser rejeitado, nos termos do artigo 420.º/1 alínea a) CPPenal, dada a sua manifesta improcedência, louvando-se na resposta apresentada em 1.ª instância.
5. Cumprido o artigo. 417.º/2 do CPP o arguido nada veio a acrescentar.
6. No exame preliminar a relatora deixou exarado o entendimento de que nada obstava ao conhecimento do recurso, que, por sua vez, havia sido admitido com o regime de subida adequado.
7. Seguiram-se os vistos legais.
8. Foram os autos submetidos à conferência e dos correspondentes trabalhos resultou o presente acórdão.
*
II. Fundamentação
1. Tendo presente que o objecto dos recursos é balizado pelas conclusões da motivação apresentada pelo recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas - a não ser que sejam de conhecimento oficioso - e, que nos recursos se apreciam questões e não razões, bem como, não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido, então, as questões suscitadas nos presentes autos são:
- a nulidade do despacho recorrido;
- a inexistência de fortes indícios do cometimento dos crimes imputados;
- inexistência de perigo de continuação da actividade criminosa;
- inexistência de perigo de perturbação do inquérito;
- inexistência de perigo de fuga.
Defendeu o arguido no recurso que a entender-se que existe residualmente o aludido perigo de fuga, o mesmo se encontraria acautelado com a mera a imposição da obrigação de não se ausentar para o estrangeiro, conjugada com a proibição de contactos - sendo excessiva a imposição ao arguido da medida de coacção de obrigação de permanência na habitação – admitindo, contudo, a titulo subsidiário, a prestação de caução por depósito, que cumulada com a aplicada proibição de contactos, teria a virtualidade de obviar aos perigos que se pretendem prevenir.
2. Enquadramento do recurso.
Para melhor se entender o âmbito do recurso interposto cumpre salientar o seguinte:
2.1. No dia ...-...-2023 o arguido ora recorrente, foi submetido a 1.º Interrogatório judicial de arguido detido, concluído a ...-...-2023.
2.2. Do auto de Primeiro Interrogatório Judicial de Arguido Detido consta o seguinte:
“(…)
Quando eram 14 horas e 13 minutos, pelo Mm.º Juiz foi reiniciada a diligência, tendo o arguido, AA, dito pretender prestar declarações, as quais ficaram registadas através do sistema de gravação áudio em uso neste Tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 14:14:15 horas e o seu termo pelas 18:19:16 horas.
No decorrer das suas declarações foi confrontado com um contrato fiduciário de fls. 240 a 254 e, bem assim, fls. 102, 103 e 239, do Apenso C (7.º volume), remessa 44 e fls. 271 e 272 do Apenso C (8.º volume), fls. 219, 11 a 21 do Apenso L.
Mais foi confrontado com o alvo ..., a sessão 18928, o alvo ..., as sessões 00337 e 00748, com o alvo ..., a sessão 27719 e, bem assim, o alvo ..., a sessão 77340.
(…)
Quando eram 09 horas e 29 minutos, pelo Mm.º Juiz foi reiniciada a diligência, tendo o arguido, AA, dito pretender prestar declarações, as quais ficaram registadas através do sistema de gravação áudio em uso neste Tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 09:29:08 horas e o seu termo pelas 14:19:16 horas.
No decorrer das suas declarações foi confrontado, com o alvo ..., as sessões 162582, 162806 e 31926, alvo ..., a sessão 31926, alvo ..., a sessão 25342, o alvo ..., a sessão 02360, o alvo ..., a sessão 01057 e, bem assim, o alvo ..., a sessão 04624.
Ainda no decorrer das suas declarações foi solicitado pela defesa que se contactasse via telefónica com o Ilustre Advogado, UU, no sentido de serem prestados documentos essenciais à defesa do arguido, não tendo sido possível lograr o contacto com o mesmo, tendo pelo Mm.º Juiz dito que, a defesa do arguido terá que diligenciar para lograr o contacto e após deverá informar o Tribunal.
(…)
Aquando do início da diligência, pelo Ilustre Mandatário do arguido, Dr. VV, foi pedida a palavra, tendo o Mm.º Juiz dado a palavra, tendo informado o Tribunal de que conseguiu lograr o contacto com o Ilustre Advogado UU, estando a aguardar o envio dos documentos, mais requereu que fossem juntos aos autos três documentos.
***
Logo após, pelo Mm.º Juiz foi proferido despacho, nos termos do qual, rubricou e ordenou a sua junção aos autos.
**
Lidas as suas declarações e verificada a qualidade da gravação áudio efetuada, e achando tudo o que do auto consta conforme, o arguido assina com o seu mandatário.
(…)”
2.3. Ainda no mesmo auto, a ...-...-20, o Mmo Juiz de Instrução lavrou o despacho que a seguir se transcreve, nas partes relevantes e atinentes ao ora recorrente:
“(…)
Do despacho de apresentação elaborado pelo MP e sopesando as declarações prestadas pelos arguidos, quer quanto às suas condições pessoais e económicas e, bem assim quanto aos factos constantes do despacho de apresentação, cotejadas aqueloutras com os meios de prova apresentados inicialmente para interrogatório, considero fortemente indiciados os seguintes factos:
(…)
FACTOS IMPUTADOS A AA
1 – O arguido AA mantém uma relação de amizade com GG pelo menos desde o final da década de ..., tempo em que AA mantinha atividade em Portugal, primeiro na área da exploração de máquinas de venda de produtos e depois com a criação de uma empresa de telecomunicações, a ..., que veio a vender, utilizando os ganhos para constituir a ..., em ..., no ano de ..., tendo como outro sócio II.
2 – Com a crescente influência do arguido AA dentro do ..., onde veio a atingir a detenção de uma participação social de cerca de 30% e a exercer funções de administração e após a aquisição da ... (em ...) e da ... (em 2015) pela ..., o arguido AA estabeleceu uma estratégia com o arguido GG no sentido de este vir a montar um conjunto de empresas que pudessem vir a fornecer mercadorias e serviços para o grupo ..., encarregando-se o AA de fazer com que as decisões de contratação da ... recaíssem sobre essas sociedades controladas pelo GG.
3 - Tal estratégia foi implementada a partir do ano de ..., abrangendo todas as empresas do ..., não só em Portugal, como em vários outros países da ... e nos ... e na ..., e foi dirigida quer ao fornecimento de equipamentos de telecomunicações e da prestação de serviços, quer ao nível da venda de mobiliário para escritórios e lojas, quer mesmo ao nível das decisões de venda de imóveis por parte do ....
4 – A capacidade de AA condicionar as decisões da ... foi utilizada não só no sentido da atribuição direta pela ... de contratos de fornecimento a sociedades controladas por GG, como também para fazer atribuir a entidades controladas pelo mesmo GG o papel de “traders” que eram impostas a outros fornecedores da ..., caso da ... e da ..., de forma a sacarem uma percentagem sobre esses negócios, criando assim uma rede de intermediários que era desnecessária para a contratação de fornecimentos à ....
5 – AA, para além de abusar dos poderes que lhe eram reconhecidos como acionista de referência e ... de algumas das sociedades do ..., possibilitou a GG uma rede de contatos dentro dos quadros decisores da ..., suportada em pessoas da sua confiança, como o genro do próprio AA, identificado como DD, que tinha o cargo de responsável por compras na ..., e como LL e MM, com capacidade de decisão de contratação de fornecimentos, ao nível do ... em países como a ... e os ... e mesmo em ..., para além de outros dirigentes da ... em Portugal, caso de CC e de BB, acordando os dois primeiros arguidos que fossem realizados pagamentos e atribuídas vantagens a todos estes últimos, a troco de decisões de contratação favoráveis para as sociedades controladas por GG.
6 – Os ganhos possibilitados por via dessa contratação facilitada e privilegiada com a ... foram gerados de forma geograficamente dispersa, incluindo outros países Europeus, caso da ... e da ..., como na ... e nos ..., tendo sido acordado entre GG e AA uma forma de repartição dos mesmos, através da criação de estruturas societárias domiciliadas nos ..., nas quais começaram por ser concentrados os ganhos obtidos.
7 – O esquema inicialmente montado pelos arguidos GG e AA conduziu a que as sociedades controladas em Portugal pelo arguido GG viessem a realizar fornecimentos diretos ao ..., mas viessem também a produzir faturas dirigidas a sociedades constituídas em ..., nos ... e na ..., fornecedoras diretas da ... nesses países, de forma a fazer concentrar os ganhos nas sociedades constituídas em Portugal.
8 – A partir dessas sociedades nacionais controladas por GG, o esquema acordado com AA, passava pela realização de pagamentos pelas mesmas, com suporte em faturação forjada, para entidades controladas por AA nos ... (...), bem como pela prévia distribuição de dividendos dessas sociedades para com entidades de GG nos mesmos ..., a que se seguiam transferências para as entidades de AA nesse mesmo território.
9 – Assim, em data já posterior a ..., AA adquiriu o controlo de duas entidades domiciliadas em ..., nos ..., designadas de ... e de ..., com contas bancárias abertas junto do ... e junto do ..., entre outras.
10 – De forma a ocultar a sua participação nessas entidades, AA fez colocar como detentores de participações nas mesmas pessoas que detinham o papel de meros fiduciários e que lhe eram próximas, caso de JJ, pai de DD, por sua vez casado com a sua filha WW.
11 - Já no ano de 2015, o arguido AA passou a deter, ainda que de forma oculta, participação numa entidade adquirida por GG nos ..., a designada ..., entidade através da qual veio o mesmo GG veio reclamar, perante a OI, o pagamento de uma comissão relacionada com a aquisição da ... pela ..., tendo os arguidos feito constar como detentores das ações da mesma entidade as pessoas de XX (51%), de NN (9%) e de um colaborador do GG, de nome YY (31%), todos, no entanto, como meros fiduciários da pessoa dos arguidos GG e AA.
12 – No ano seguinte, ..., os arguidos GG e AA vieram a constituir, também nos ..., uma outra entidade, a ..., embora a participação de ambos tivesse sido ocultada por detrás dos nomes de um referido XX (que formalmente detinha 60%), fiduciário de GG, e de NN (que formalmente detinha 2%) e de ZZ (que formalmente detinha 38%), ambos fiduciários de AA.
13 – A constituição de estruturas societárias partilhadas entre GG e AA veio também a ocorrer em Portugal, primeiro através da ... (anteriormente designada de OO), na qual o arguido GG começou por recorrer a seus familiares (seu irmão AAA e sua filha BBB) para ocultar os reais detentores das participações, ainda durante o ano de ....
14 - Já no ano de ..., no âmbito da mesma estratégia de constituição de estruturas societárias partilhadas entre GG e AA, foi constituída no ... a entidade ..., a qual veio a ser capitalizada até que, já em ..., passou a figurar como única sócia da sociedade nacional ....
15 – Nessa entidade ..., os arguidos AA e GG fizeram ocultar, a partir de ..., as suas participações, recorrendo ao nome da arguida NN, filha do GG, que fizeram figurar como sendo mera detentora fiduciária de uma percentagem de 60% do capital social, sendo o restante capital detido em nome de entidades registadas em ..., caso da ... e da ....
16 - O arguido GG, em conluio com o arguido AA, fez faturar em nome da ..., como se a mesma tivesse a sua direção efetiva na ..., fornecimentos a entidades do ..., que atingiram o montante de cerca de 157 milhões de euros, entre os anos de ... e de ..., o que permitiu que a ... viesse a distribuir à sua única sócia (desde ...), a ..., entre 2018 e ..., dividendos no total de 7,5 milhões de euros, que, por sua vez, a ... distribuiu aos seus sócios, acima identificados, num total de 7,2 milhões de euros, que acabaram por cair na esfera dos reais beneficiários, GG e AA. 17 – Acresce ainda que em execução do acordado entre AA e GG, foram colocados na ... alegados contratos de desenvolvimento de produtos fornecidos ao ... por parte da multinacional ..., levando uma entidade representante deste último Grupo, no caso a ..., com filiais em ... e nos ..., a fazer pagamentos à ..., num montante total de cerca de 50 milhões de euros, entre ... e ....
18 – Tal contratação de sociedades controladas por GG por parte das sociedades ... e dos ... foi conseguida por contatos estabelecidos, através de AA, e vantagens atribuídas a um quadro da ..., identificado como FF (colocado como sócio da ...), suscitando a suspeita de que a contratação das sociedades de GG tenha sido colocada como condição para a ... ser um fornecedor do ....
19 - A fim de manter a intermediação nos fornecimentos da ..., o arguido GG, conforme o acordado com AA, proporcionou ao referido FF, para além de fundos colocados na ..., num montante próximo de 1,5 milhão de euros, ainda as seguintes vantagens:
- venda de um imóvel sito em ..., sendo vendedora a ..., em ...-...-2019, pelo preço de € 350.000,00, pago de forma fracionada em diversos anos;
- pagamentos de viagens, designadamente através da agência ..., pagas pela ...;
- aquisição em conjunto com a ... do imóvel da ... sito na ...;
- constituição e pagamentos a uma outra sociedade em Portugal, detida unicamente por FF, a designada ..., que recebeu pagamentos da ... e da ... no montante de cerca de 2, 3 milhões de euros.
20 – Por essa via, GG, com o apoio de AA, conseguiu que outras sociedades por si controladas e de igual forma colocadas na ... fossem também recebedoras de pagamentos das sociedades ..., com base em alegado contrato de gestão e supervisão de atividades desenvolvidas pela ..., no caso da ..., representada por ..., com base no qual foram produzidas facturas de prestação de serviços.
21 - Assim aconteceu com a sociedade nacional ... que veio produzir facturas às entidades ..., recebendo pagamentos das mesmas, num montante de cerca de 60 milhões de euros, no mesmo período entre ... e ....
22 – Assim aconteceu ainda com a sociedade ... que veio produzir facturas às entidades ..., recebendo pagamentos das mesmas, num montante de cerca de 56 milhões de euros, no mesmo período entre ... e ....
23 - Ainda no âmbito da estratégia de obter vantagens por via de outros fornecedores do ..., os arguidos GG e AA levaram a ... a aceitar que as aquisições feitas ao fornecedor ..., bem como ao fornecedor ..., fossem intermediadas pela RR.
24 - Assim, pese embora alguns dos fornecimentos à ... por parte da ... e da ... fossem diretamente negociados por representantes da primeira, caso de BB, as aquisições a esses fornecedores eram feitas em nome da ..., sendo esta depois que faturava a venda dos mesmos produtos às sociedades do ...
.25 - Tais colaboradores da ..., caso do referido BB, aceitavam realizar tais contratos através das intermediárias controladas pelo arguido GG, apesar de poderem contratar diretamente e em melhores condições com as sociedades fornecedoras, em face das indicações transmitidas pelo arguido e pelo AA e em troca do recebimento de compensações indevidas.
26 - No caso do BB tais vantagens indevidas foram, além do mais, concretizadas, no âmbito do acordado entre GG e AA, através de faturação que o mesmo produzia, em nome da sua sociedade ..., para a sociedade ..., registada nos ... e controlada de facto por GG, com o valor mensal de € 10.000,00, sem que tivesse subjacente qualquer fornecimento ou prestação de serviços.
27 – Em execução do esquema de repartição de ganhos acordado entre os arguidos AA e GG foi iniciado um circuito de faturação por parte da entidade ... em direção às sociedades ... e ..., o qual era controlado através da arguida NN, que se concertava com a entidade que dirigia a contabilidade, nos ..., a ..., sobre a forma como essas faturas eram emitidas.
28 – Assim, por exemplo, em ..., a ... fez pagamentos para a esfera da ... no montante de USD 2.208.500,00, representando uma repartição dos ganhos gerados com o referido esquema para a esfera de AA.
29 – Por outro lado, de forma a justificar o circuito de fundos para a ... foram forjados contratos relativos a comissões a que a mesma teria direito sobre negócios desenvolvidos pela ..., os quais deram origem à produção de facturas da ... à ..., tendo sido identificadas, em ..., pelo menos três faturas, no montante total de USD 650.000,00, e mais uma fatura de USD 525.000,00, em ..., dando origem a vários pagamentos para a esfera da ..., representativos da repartição de ganhos para a esfera do arguido AA.
30 – Tal circuito de faturação repetiu-se em ..., com a emissão de uma fatura pela ..., dirigida à ... no montante de USD 1.000.000,00, em ... desse ano, com os pagamentos subsequentes, mais uma vez representativos da repartição de ganhos para a esfera do arguido AA.
31 - O mesmo tipo de pagamentos veio a ocorrer em 2018 e ... entre a ... e a ..., tendo sido produzidas faturas em nome da segunda e dirigidas à primeira no montante de, pelo menos, USD 3.750.000,00 em 2018 e mais USD 5.410.517,37, em ..., representando a repartição de ganhos para a esfera de AA.
32 – Por outro lado, em resultado do acordo entre AA e GG para a repartição dos ganhos gerados com os contratos com a ..., foram produzidas faturas em nome das sociedades ... e ... e dirigidas às sociedades nacionais ... e RR, justificando os subsequentes pagamentos, que atingiram o montante total de cerca de 16 milhões de euros, entre ... e ..., sem que existissem quaisquer serviços ou fornecimentos subjacentes.
33 – Ainda como forma de distribuição dos ganhos alcançados nas sociedades controladas por GG e AA, o primeiro veio a determinar a aquisição, em nome da ..., na data de ...-...-2016, de um imóvel sito em ..., na ..., pelo preço de € 360.000,00, apenas destinado a proporcionar a residência à pessoa de CCC, com quem AA mantinha um relacionamento pessoal, tendo mesmo o referido imóvel chegado a ser transacionado para a esfera da referida CCC, sem que tenha sido pago qualquer preço, em ... – tal imóvel voltou à esfera da ... em ....
34 – O mesmo veio a acontecer, em ..., com a aquisição de um imóvel em ..., mais propriamente na ..., em ..., feita em nome da entidade ..., com registo no ... e controlada pelo GG, com o custo total de € 1.726.820,00, apenas destinado a disponibilizar o mesmo a AA, sob a cobertura de um contrato de arrendamento feito em nome da sociedade francesa ....
35 – Ainda no âmbito da compensação pelas intervenções de AA, indicia-se que GG disponibilizou as suas empresas e suportou custos com obras na casa de AA sita em ..., que decorreram no ano de ..., quer em sede de construção de uma garagem quer quanto a equipamentos de ginásio, para a piscina e de decoração, bem como obras relacionadas com a instalação de ar condicionado numa casa em ... de AA, também no ano de ....
36 – AA concertou-se ainda com GG quanto a vantagens a atribuir a outros responsáveis no estrangeiro da ..., que participaram nas decisões de contratação a favor das sociedades de GG, tal tendo sido o caso de LL, que foi presidente da ... até final de ... e tinha anteriormente exercido as mesmas funções na ..., tendo sido atribuída ao mesmo participação na sociedade ..., entidade fornecedora de fibra óptica para a ..., para além de lhe terem sido feitos pagamentos, para uma sociedade do mesmo de nome ..., num montante total de 1,2 milhões de USD, em ..., com origem em conta da ....
37 – O mesmo tipo de vantagens foi concedido, por acordo entre AA e GG, relativamente ao identificado DDD, que desempenhava funções de … e depois de designado “...” no grupo ....
38 - Com efeito, na data de ...-...-2019, por indicação de GG, em acordo com AA, a sociedade ... celebrou escritura de venda a MM de um imóvel sito na ..., em ..., pelo preço declarado de € 620.000,00, sem que, no entanto, tenha recebido do mesmo MM qualquer pagamento, representando assim, uma atribuição indevida ao mesmo colaborador da ..., feita em função da contratação de fornecimentos pelas entidades controladas pelo arguido.
39 - Acresce que, já posteriormente, GG, ainda em acordo com AA, instruiu a ... para a realização de um alegado empréstimo de € 2.000.000,00 a favor do mesmo MM, a pretexto da aquisição de um imóvel pelo mesmo em ..., sem que se tenha identificado qualquer pagamento de reporto dessa entrega de fundos, o que representa, mais uma vez, a remuneração indevida da decisão de contração pela ... de fornecimentos pelas entidades controladas pelo arguido.
40 - Por outro lado, ainda em resultado da estratégia definida com AA, o arguido GG aceitou que MM, através de duas sociedades portuguesas, a ... e a ..., viesse a produzir faturas dirigidas a sociedades controladas pelo arguido GG, assim acontecendo quanto à ... que veio a emitir faturas dirigidas e pagas pela ..., com registo na ..., no montante de € 42.000,00, no ano de ..., sem que tenha existido qualquer efetiva prestação de serviços ou fornecimento associado.
41 - A influência de AA, em conluio com GG, sobre o processo decisório da ..., em Portugal, estendeu-se às decisões de alienação de imóveis por parte de entidades do ..., incluindo por via de contatos mantidos com CC (CEO da ...), o que conduziu à realização da venda de imóveis em condições prejudiciais para aquele Grupo e geradoras de vantagens para GG e para AA e as suas sociedades.
42 - Com efeito, por via dessa influência na decisão de contratar as vendas de imóveis, o grupo ... foi levado a celebrar contratos de promessa de venda, em 2018, com a sociedade ..., controlada pelo arguido GG, figurando como promitentes vendedoras as seguintes sociedades relativamente aos seguintes imóveis:
g) Vendas pela ...:
- imóvel sito na ..., pelo preço de € 2.000.000,00;
- imóvel sito na ..., pelo preço de € 2.100.000,00
- imóvel sito na ..., pelo preço de € 3.700.000,00
h) Vendas pela ...:
- imóvel sito na ..., pelo preço de € 4.000.000,00
- imóvel sito na ..., pelo preço de € 3.800.000,00
- imóvel sito na ..., pelo preço de € 2.100.000,00.
43 - Já no ano de ..., a ..., desta feita através da sociedade ..., que figurou como promitente adquirente, relativamente ao imóvel sito na …, em …, pelo preço de € 7.000.000,00.
44 - Pese embora tais promessas de venda tenham sido feitas por preços superiores aos que constavam do registo contabilístico de activos nas entidades vendedoras, as mesmas aceitaram proceder aos referidos contratos e a conferir a possibilidade de negociação pela promitente adquirente dos mesmos imóveis com terceiros, havendo tradição dos imóveis, apenas com o recebimento de um sinal inicial, pese embora tenha decorrido cerca de um ano até à escritura definitiva.
45 - Relativamente ao imóvel sito na ..., veio a ser celebrada escritura definitiva de venda pela ... à ... no dia ...-...-2019, pelo preço de € 2.000.000,00, tendo a promitente adquirente pago, na data do contrato promessa, em ..., um sinal de € 410.000,00, voltando o imóvel a ser vendido a duas outras entidades controladas por GG, no caso a ... e a ..., a ...-...-2020, pelo preço de € 2.900.000,00, mas já após a realização de obras.
46 - Relativamente ao imóvel sito na Rua …, a escritura de venda veio a ser celebrada a 16-12-2019, pelo preço de € 2.100.000,00, tendo antes sido entregue um sinal, também em Agosto de 2018, no montante de € 490.000,00, indiciando-se que AA e GG pretendem ficar para si próprios com frações após obras no mesmo imóvel, tendo o mesmo sido revendido a uma outra sociedade de GG, a ..., pelo preço de € 3.444.000,00, já na data de ...-...-2022.
47 - Relativamente ao imóvel sito na ..., escritura de venda veio a ser celebrada a ...-...-2019, pelo preço de € 3.700.000,00, tendo antes sido entregue um sinal, em ..., no montante de € 740.000,00, com fundos feitos transferir para a esfera da sociedade adquirente, a ..., com origem na RR.
48 - Relativamente ao imóvel sito na ..., a escritura de venda veio a ser celebrada a ...-...-2019, pelo preço de € 4.000.000,00, tendo antes sido entregue um sinal, pago em ..., no montante de € 400.000,00, por mobilização de fundos da ... para a adquirente ....
49 - Porém, logo a ...-...-2019, cerca de um mês depois da compra, a ... vendeu o mesmo imóvel a terceiros, no caso ao ..., pelo preço de € 7.300.000,00, obtendo assim, a sociedade do arguido GG uma mais valia de € 3.300.000,00, tendo aliás usado o produto dessa venda para realizar o pagamento dos demais imóveis acima indicados.
50 - Relativamente ao imóvel sito na ..., a escritura de venda veio a ser celebrada a ...-...-2020, pelo preço de € 3.800.000,00, em conjunto aliás com a venda do imóvel sito na ..., tendo antes sido pago um sinal, comum à compra dos dois imóveis, no montante de € 1.100.000,00, pago a ...-...-2018.
51 - O imóvel sito na ... veio a ser vendido pela ... a terceiros, no caso a ..., na data de ...-...-2021, pelo preço de € 6.000.000,00, obtendo a entidade vendedora uma mais valia de € 2.200.000,00.
52 - O imóvel da ..., adquirido em conjunto com o da ..., teve escritura de venda à ... na referida data de ...-...-2020, pelo preço de € 2.100.000,00, mas foi vendido a terceiros, no caso à sociedade ..., pelo preço de € 3.600.000,00, na data de ...-...-2021, tendo assim a ... obtido uma mais valia de € 1.500.000,00.
53 - Relativamente ao imóvel adquirido em nome da ..., sito na …, conhecido como “...”, a mesma foi negociada entre EEE pela ... e FFF, pela ..., mas após a aquisição em nome desta, que terá ocorrido até ao final
de ..., pelo preço de € 7.000.000,00, o arguido GG decidiu que o imóvel fosse, de novo, vendido à ..., o que veio a ocorrer a ...-...-2020, pelo preço declarado de € 7.500.000,00.
54 - A referida contratação de venda de imóveis, bem como a demais contração pela ... relativa a fornecedores, foi conseguida, para além das indicações transmitidas por AA, através da atribuição de vantagens indevidas ao referido CC, que desempenhava as funções de Presidente Executivo do ..., tendo passado depois a acumular idênticas funções em todo o ... e na ....
55 - Com efeito, seguindo o acordado com AA, o arguido GG aceitou que o referido CC viesse a determinar a produção de faturas, em nome da sociedade …, por si controlada, e que foram dirigidas e pagas pelas entidades ... e ..., as quais atingiram, no ano de 2018, o montante de € 380.000,00, sem que às mesmas correspondesse qualquer fornecimento ou serviço prestado.
56 - Aliás, já previamente à constituição da ..., mais propriamente entre ..., o arguido GG, em acordo com AA, havia determinado a realização de pagamentos, com origem na ..., para a esfera pessoal de CC num montante total de € 110.000,00.
57 - Acresce que, em combinação com o CC, o arguido GG, com acordo de AA, fez adquirir em nome da ..., em ..., uma moradia sita em ..., na ..., pelo preço de € 1.000.000,00, para de seguida, no início de ..., a vender ao mesmo CC pelo preço declarado de € 1.050.000,00, do qual este último pagou apenas, por ocasião da transação, o montante de € 200.000,00.
58 - GG obteve ainda a colaboração de AA para montar estruturas destinadas à angariação de fornecedores para o ... nos ..., onde contaram com o apoio de um Diretor local, ..., tendo recorrido, desde ..., à constituição ou à aquisição de participações em sociedades nos ... e na ... para o efeito, caso das seguintes:
a) Na ...:
- ..., detida em partes iguais em nome de GGG e de FFF, este figurando como gerente;
- ..., que passou a ficar com o negócio de “trading” com o ... a partir de finais de ...;
- ..., com um objeto declarado de prestação de serviços de consultoria, tendo sido utilizada para receber faturas da ..., no valor total identificado de € 192.000,00, em ... e ..., sem que esta sociedade nacional tenha efetivamente prestado qualquer serviço;
- ..., tendo como sócios a ..., representada por FFF, e HHH;
- ..., conexa com a sociedade nacional ..., constituída na ..., com os mesmos sócios minoritários desta última e controlada através do FFF;
- ..., sociedade com gestão a cargo de FFF, que passou a figurar como fornecedora do ..., já no presente ano de ....
b) Nos ... :
- ..., utilizada para receber faturas e fazer pagamentos à ...
, onde fez figurar como CEO o colaborador III e como CFO o JJJ;
- ..., tendo com ... o LL e como CFO JJJ;
- ..., detida formalmente através da ... e da ..., mas adquirida e detida através da ....
59 - Enquanto “traders” para fazer fornecimentos à ..., os colaboradores de GG na ... e na ..., seguindo o acordado entre GG e AA, procuravam garantir os preços pretendidos pela ..., mas impunham-se perante os fornecedores, afirmando que apenas poderiam realizar os fornecimentos se estes passassem pelas intermediárias ... ou ..., detendo estas uma exclusividade de fornecimentos para determinadas áreas, assim implicando distorção das regras da concorrência.
60 - Os ganhos gerados na ... e na ... foram feitos encaminhar pelo arguido GG para as sociedades constituídas nos ..., caso da ..., entrando tais ganhos dentro da repartição acordada e acima narrada com AA.
61 - No que se reporta às sociedades dos ..., a entidade ... foi adquirida em ..., à ..., sendo a aquisição feita em nome da sociedade nacional ..., sendo esta detida pela ..., dentro da estratégia acordada entre AA e GG.
62 - Para propiciar os negócios da ... com o ..., o arguido GG colocou à frente da mesma o referido LL e para ocultar a sua participação na ... deu instruções para a mesma passar a ser detida, ainda que parcialmente, através do fundo ... e de uma nova sociedade a constituir nos ..., com detenção efetiva repartida entre o arguido GG, o AA e o ....
63 - Através dos esquemas acima narrados, GG, com a colaboração de AA e com repartição de vantagens indevidas por outros dirigentes do ..., conseguiu que as sociedades por si controladas viessem a conseguir contratos de fornecimento à ..., tendo a faturação das principais sociedades controladas pelo primeiro arguido ao ... atingido, no período entre ... e ..., o volume total de cerca de 660 milhões de euros, assim repartido:
- RR faturou 268,9 milhões de euros;
- ... faturou 157,6 milhões de euros
- ... faturou 65,7 milhões de euros
- ... faturou 31,9 milhões de euros
- ... faturou 16,4 milhões de euros
- Demais sociedades acima referidas, faturaram 19,1 milhões de euros.
64 - O arguido AA assumiu a posição formal de residente fiscal em Portugal desde ...-...-2020, por efeito da alteração de morada em sede de Cartão de Cidadão, onde passou a constar como residente em ..., indiciando-se, no entanto, que a sua residência de facto e para efeitos fiscais é na ....
65 - O arguido GG disponibilizou ainda a terceiros, a troco de vantagem pessoal, a sua capacidade de influência sobre o ..., contando com a colaboração de AA, designadamente associando-se a TT para a negociação dos direitos de transmissão televisiva de jogos de futebol abrangendo vários clubes de futebol.
66 - Com efeito, em ..., foi celebrado um contrato entre a ..., de TT, e a ... no sentido de a primeira prestar serviços de assistência no contato e negociação com vários clubes de futebol tendo em vista a referida transmissão de direitos televisivos, contrato que previa o pagamento à primeira de um montante de 20 milhões de euros.
67 - Na realidade, tais acordos entre os clubes e a ... já haviam decorrido, tendo o arguido GG desenvolvido contatos, através de AA, para a aquisição pela ... dos direitos televisivos e formas do pagamento aos clubes envolvidos.
68 - GG, em conluio com AA, e TT acordaram então em repartir os ganhos gerados com esses negócios de venda de direitos televisivos, para o que, de forma a justificar pagamentos para a esfera do primeiro, decidiram produzir um alegado contrato de prestação de serviços por via do qual a ... se compromete a pagar à ..., representada por GG, um montante de 5 milhões de euros contra a prestação pela segunda de ajuda no âmbito dos contatos e negociações a estabelecer com a ....
69 - Este último contrato permitiu justificar o pagamento pela ..., a partir de conta no MG, a favor da ..., para conta no ..., da quantia total de € 2.337.500,00, entre ... e ..., quantia que o arguido GG embolsou e repartiu depois com o arguido AA, através das sociedades partilhadas entre os dois, já acima referidas e as que se passam a narrar.
70 – AA e GG recorreram ainda à montagem de contratos e de faturação forjada para justificar transferências de fundos das sociedades nacionais e das sociedades dos ... para outras sociedades neste mesmo território, caso da ... e da ..., entidades que se indicia serem controladas por AA.
71 - Assim, os mesmos arguidos forjaram um contrato de prestação de serviços à ... por parte da ..., como se esta prestasse serviços de consultoria e intermediação tecnológica, que, no entanto, não tem correspondência real, tendo apenas servido para justificar transferências de fundos da ... para a ..., ficando assim na esfera do AA.
72 - Do mesmo modo os arguidos GG e AA forjaram um alegado acordo de consultoria e angariação de clientes, com efeitos desde ..., entre a …, representada por …, e a ..., representada por JJ (pai do genro de AA, que é DD, sendo este responsável por compras na ...), por via do qual esta última se compromete a angariar clientes para a primeira, contra o pagamento de uma comissão de 20% sobre os ganhos obtidos pela mesma ... com esses alegados clientes angariados.
73 - Com base nesse alegado contrato, os arguidos GG e AA fizeram produzir faturas em nome da ... e destinadas à ..., as quais foram pagas para uma conta junto do ..., no ..., caso de uma fatura no montante de € 2.500.000,00 emitida a ...-...-2020 e paga a partir de conta da ... junto do ....
74 - O arguido AA agiu, no decurso dos factos acima narrados e relacionados com os contratos com a ... e seus fornecedores, com o propósito de obter vantagens pessoais e para as sociedades por si controladas através do controlo e viciação do processo de decisão dentro do ..., desrespeitando e induzindo a violação por outros colaboradores do Grupo das regras a que estavam obrigados, abusando da capacidade de condicionar as decisões de contratação proferidas dentro do mesmo grupo para impor a intermediação de sociedades controladas por GG aos fornecedores daquele grupo, sabendo e pretendendo distorcer as regras da concorrência, incluindo através da atribuição de vantagens indevidas a si próprio e a terceiros.
75 - O arguido AA determinou ainda a produção de documentos forjados, quer em sede contratual quer de faturação, bem como quanto à detenção de participações sociais, designadamente nas sociedades detidas nos ....
A indiciação acha-se sustentada em toda a prova indiciária constante do processo, designadamente a contida nos volumes 1 a 26 do processado principal, bem como nas declarações prestadas pelos arguidos em sede de interrogatórios e, bem assim, no teor constante da lista de Apensos que ora faz fls. 11729 a 11736 e, designadamente os Apensos Bancários contidos nas caixas 3 a 10, constantes da remessa electrónica cotada pelo DCIAP a fls. 11737 e, bem assim, do teor dos autos de busca e apreensão efectuados às residências dos arguidos e revista nas suas pessoas, bem como, nos autos de intercepção telefónica juntos no decorrer dos interrogatórios e auto de busca consentida, efectuada no …, ….
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Os factos enunciados pelo Ministério Público agora complementados em sede indiciária, consubstanciam, no entender do JIC, fortes indícios da prática dos crimes constantes e respectivamente imputados no despacho de apresentação, com as ressalvas agora constantes da promoção do estatuto coactivo feita a final dos interrogatórios e que aqui se dá por reproduzida.
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Quanto aos fortes indícios diremos e citando o Acórdão de 20 de Setembro de 2008, relatado pelo, então, Excelentíssimo Desembargador Gabriel Catarino: “Constituem-se em vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações, suficientes e bastantes para convencer da existência de um facto jurídico-penalmente relevante e de que deve ser imputável a alguém determinado, devendo ou podendo ser previsível que, num juízo de prognose solidamente estruturado escorado, a manterem-se em julgamento, ocorrerão fundadas e sérias probabilidades de conduzir a uma condenação do arguido pelos factos típicos que lhe são imputados.
Na indiciação em fase de inquérito, ou seja numa fase em que os elementos colectados ainda não foram objecto de contraditório, o grau de convencimento do juiz e de ponderação de imputação casual de determinado agir a um concreto sujeito está dependente das regras da experiência e do sentido lógico representativo com que uma dada realidade percepcionada se prefigura ao discernimento e compreensibilidade do julgador.
O juiz pode, nesta fase, socorrer-se das inferências permitidas por um conjunto de elementos que soem ocorrer em situações ou casos similares, observando sempre que as máximas de experiências atinam com factores de aleatoriedade que podem conduzir a juízos erróneos ou de defeituosa avaliação.”
Segundo Luís Osório no seu Comentário ao CPP, IV, pág. 411 refere que “ devem considerar-se indícios suficientes aqueles que fazem nascer em quem os aprecia, a convicção de que o réu poderá vir a ser condenado”
A este propósito, cita-se ainda no Acórdão do Tribunal da Relação nº 128/11.1TELSB-J.L1 de 11.04.2013 de acordo com o qual:
“É pressuposto da aplicação da medida de coacção de prisão preventiva a existência de fortes indícios da prática do crime.
No entendimento de Germano Marques da Silva, que por inteiro se subscreve, “A indiciação do crime necessária para a aplicação de uma medida de coacção significa “probatio levior”, isto é, a convicção da existência dos pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou medida de segurança criminais, mas em grau inferior à que é necessária para a condenação. (....) não pode exigir-se uma comprovação categórica da existência dos referidos pressupostos, mas tão-só, face ao estado dos autos, a convicção de que o arguido virá a ser condenado pela prática de determinado crime.
Noutro passo:
embora não seja ainda de exigir a comprovação categórica, sem qualquer dúvida razoável, é pelo menos necessário que face aos elementos de prova disponíveis seja possível formar a convicção sobre a maior probabilidade de condenação do que de absolvição”[Curso de Processo Penal, II, 2a ed., pág. 240]. (…)
(…) O Prof. Germano Marques da Silva, por sua vez, e como já referido, obra cit., pág. 240, diz também que “(...) no momento da aplicação de uma medida de coacção ou de garantia patrimonial, que pode ocorrer ainda na fase de inquérito ou da instrução, fases em que o material probatório não é ainda completo, não pode exigir- se uma comprovação categórica da existência dos referidos pressupostos, mas tão-só, face ao estado dos autos, a convicção objectivável com os elementos recolhidos nos autos de que o arguido virá a se condenado pela prática de determinado crime.
Nos casos em que a lei exige fortes indícios a exigência é naturalmente maior, embora não seja ainda de exigir a comprovação categórica, sem qualquer dúvida razoável, é pelo menos necessário que face aos elementos de prova disponíveis seja possível formar a convicção sobre a maior probabilidade de condenação do que de absolvição”.
Vital Moreira e Gomes Canotilho, a fis. 185 da Constituição da República Portuguesa (anotada), 1993, por sua vez, dizem também que “quando a lei fala em fortes indícios pretende exigir uma indiciação reforçada, filiada no conceito de provas sérias”.
Do mesmo modo, fortes indícios, ou indícios suficientes, na definição dada pelo art° 283°, n° 2, do CPP, existem sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.” (fim de cit.)
Conforme resulta do descritivo da narração do despacho de apresentação e que aliás corresponde aos indícios já recolhidos e aos quais o MP faz apelo, não se pode olvidar que a presente indiciação, imputa aos arguidos a prática dos factos em co-autoria e, deste modo, subscrevendo o Acórdão da Relação de Lisboa proferido no âmbito do processo 7383/2008-3 (consultável em fonte aberta in www.dgsi.pt) importa, ainda que sinteticamente, fazer uma breve referência sobre a figura da co-autoria.
“As incriminações constantes da parte especial do Código Penal, salvo quanto aos crimes de comparticipação necessária, descrevem os comportamentos proibidos como se eles fossem integralmente realizados por um único agente.
Se o juiz apenas aplicasse essas normas não poderia, por certo, punir pela prática de cada um desses crimes o agente que, nomeadamente, não tivesse chegado a consumar o crime, aquele que apenas tivesse prestado auxílio ao seu cometimento, quem tivesse omitido o comportamento que lhe era imposto ou o que tivesse, em colaboração com outro ou outros e por acordo com eles, realizado apenas uma parte da conduta típica, praticando os restantes os demais actos necessários à consumação do crime.
Neste último caso, o da co-autoria (3º segmento do Artº 26º do Código Penal), nenhum dos agentes teria, só por si, praticado os actos descritos na norma incriminadora. Nenhum deles poderia, por isso, ser punido.
Isto não é assim porque o nosso legislador incluiu, na parte geral do Código Penal, disposições que constituem verdadeiras cláusulas de extensão da tipicidade, ou seja, que alargam cada uma daquelas previsões da parte especial de forma a permitir a punição, nomeadamente, da tentativa (artigos 22º e 23º), da cumplicidade (artigo 27º), da omissão (artigo 10º) e da co-autoria (artigo 26º).
Se o agente praticar todos os actos previstos na norma incriminadora não se torna necessária qualquer extensão da tipicidade. A sua conduta realiza, só por si, todos os elementos descritos na norma da parte especial do Código.
Assim, quando se deduz uma acusação, se pronuncia ou se condena um arguido pela prática de um crime em co-autoria torna-se necessário descrever a contribuição de cada um dos coautores. Cada parte do conjunto é imputada ao outro ou outros que a não realizaram pessoalmente porque eles actuaram por acordo, assumindo todos o domínio funcional do facto. Porque a narração foi feita desta forma, pode então concluir-se, no plano normativo e não no da matéria de facto, que todos praticaram aquele crime em co-autoria.
Esta forma de comparticipação não se traduz, portanto, ao contrário do que uma deficiente técnica utilizada na elaboração de muitas peças processuais poderia fazer crer, na realização conjunta de tudo por todos, o que, muitas vezes, se não é impossível ter acontecido, desvirtua por completo a realidade.
Se cada um, só por si, praticou todos os actos típicos, deve ser punido como autor imediato. Se se limitou a praticar parte das condutas descritas no tipo e se outros, por acordo, realizaram as restantes, todos devem ser punidos como co-autores.”
Prosseguindo o referido Acórdão, relativamente ao preenchimento do disposto na alínea b) do n.º 3 do artigo 283.º do CPP, em situações de co-autoria, e para fundamentar o juízo aqui cabido que é de indiciação, em sede de verificação da existência de fortes indícios do cometimento dos crimes imputados no despacho de apresentação há que fazer apelo a outro excerto do mesmo aresto aonde se propugna em moldes que espelham, igualmente, a nossa opinião:
“Para narrar, ainda que de forma sintética, os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, como impõe a alínea b) do n.º 3 do artigo 283º do Código de Processo Penal, tem o Ministério Público e o assistente, num caso de co-autoria, que descrever, com mais ou menos individualização, a participação de cada agente e de imputar a todos uma actuação conjunta que dá execução a um acordo, expresso ou tácito.
Não quer isto dizer que, se tal não for feito, o acto praticado padeça da nulidade prevista no corpo do n.º 3 do citado artigo 283º do Código de Processo Penal.
Tal só aconteceria, a nosso ver, se a acusação omitisse qualquer narração dos factos imputados, o que não é, manifestamente, o que acontece nestes autos.”
Ora, se para a co-autoria não é indispensável que cada um dos agentes intervenha, como se disse, em todos os actos a praticar para a obtenção do resultado, bastando que a actuação de cada um seja elemento componente do todo, pois como se vêm salientando em outras decisões proferidas pelos nossos tribunais, nos casos de associação criminosa também não se exige que cada associado intervenha em cada um dos actos decididos pelo grupo ou participe em todos os crimes praticados pelos outros associados.
A questão ora em apreço, reconduz-se ao conceito de co-autoria e à amplitude desta modalidade de comparticipação no facto criminoso.
A propósito do conceito de co-autoria importa ainda referir que:
Como se escreveu em anotação ao art. 26º do CP de Leal Henriques e Simas Santos, “ (…) Há co-autoria material quando, embora não tenha havido acordo prévio expresso, as circunstâncias em que os arguidos actuaram indiciam um acordo tácito, assente na existência da consciência e vontade de colaboração, aferidas aquelas à luz das regras da experiência comum.
Com efeito, para incorrer na co-autoria de um crime precedido de um plano, quando nele participaram vários agentes, não é necessário que todos eles tenham tido intervenção na elaboração desse plano. Basta que vários agentes participem na execução de actos que integrem a conduta criminosa, não sendo, contudo, necessário que intervenha em todos eles, desde que actue conjugadamente e em comunhão de esforços, no sentido de alcançar o objectivo criminoso…. (…)”.
Também Faria Costa in “Formas do crime, Jornadas de Direito Criminal, O Novo Código Penal Português e Legislação Complementar”, pág. 170:…..escreveu: “Para definir uma decisão conjunta parece bastar a existência da consciência e vontade de colaboração de várias pessoas na realização de um tipo legal de crime juntamente com outros… (.)”
A este propósito cita-se ainda o Acórdão nº 0140948 de 13-03.02 do TRL, 2.,Recurso nº JTRP00034186, de acordo com o qual:
 “(…)Há co-autoria material quando, embora não tendo havido acordo prévio expresso, as circunstâncias em que os arguidos actuaram indiciam um acordo tácito, assente na existência da consciência e vontade de colaboração, aferidas, à luz das regras da experiência comum. Da co-autoria há que distinguir a mera actuação paralela, que ocorre quando diversos agentes praticaram, sem prévio acordo, actos concorrentes para um resultado criminoso, distinção de todo o interesse uma vez que na comparticipa. (…)”.
Acresce que, é também co-autor de um crime, todo aquele que deu causa ou participou na sua concepção e na delineação do respectivo plano, mesmo que não chegue a tomar parte directa nos seus actos de execução. Neste sentido, veja-se Ac. STJ de 14.11.1984, in BMJ 341/202.
Nestes termos e, considerando o conceito de comparticipação acima referido, é evidente que se indicia que os aqui apresentados comparticiparam na prática dos referidos crimes, como co-autores, nos precisos termos em que se acham indiciados no despacho de apresentação.
Assim, configuram-se fortemente indiciados os seguintes crimes:
Quanto ao crime de branqueamento de capitais
O crime de branqueamento vem descrito no Artº. 368º A do Código Penal, estatuindo, actualmente, o seu nº. 2 uma punição para “quem converter, transferir, auxiliar ou facilitar alguma operação de conversão ou transferência de vantagens, obtidas por si ou por terceiro, directa ou indirectamente, com o fim de dissimular a sua origem ilícita, ou de evitar que o autor ou participante dessas infracções seja criminalmente perseguido ou submetido a uma reacção criminal”
O nº.3 do mesmo Artº estatui que, na mesma pena “incorre quem ocultar ou dissimular a verdadeira natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou titularidade das vantagens ou, os direitos a ela relativos.
E, esclarece o nº. 1 do mesmo preceito legal que se consideram vantagens:
- Os bens provenientes da prática, sob qualquer forma de comparticipação, dos factos ilícitos, entre outros, os puníveis com pena de prisão de duração mínima superior a seis meses ou de duração máxima superior a cinco anos;
- Assim como os bens que com eles se obtenham;
O tipo objectivo consiste em acções de conversão, transferência ou dissimulação de valores e/ou bens de origem criminosa, conferindo-lhes um aspecto legal, ou dito de outro modo, utilização de processos que mascaram, ocultam a origem e propriedade dos capitais e/ou bens resultantes de actividades criminosas, com o intuito de transformá-los em bens ou produtos aparentemente lícitos.
Já quanto ao bem jurídico tutelado pelo crime de branqueamento de capitais são conhecidas as divergências doutrinais, que têm oscilado entre o prolongamento do bem jurídico tutelado pelo crime precedente até à tutela do Estado de Direito Democrático, à protecção do mercado e da concorrência e à salvaguarda da realização da Justiça – veja-se quanto a uma sistematização das diferentes teses a obra de José Manuel Palma Herrera, “Los Delitos de Blanqueo de Capitales”, editora Edersa, ano 2000, páginas 237 e seguintes.
Contudo, não podemos hoje defender, face à evidente autonomia do crime de branqueamento relativamente à criminalidade precedente, conforme nº 4 do acima citado Art. 368º-A do Cod. Penal, introduzido pela Lei 11/04, de 27 de Março, que a punição do branqueamento seja apenas uma extensão da perseguição movida sobre o ilícito que gerou os fundos.
O legislador do regime actualmente vigente tomou claramente posição na querela doutrinária de saber se o facto precedente deveria constituir um simples ilícito típico ou se se deveria exigir que preenchesse o conceito de crime em sentido técnico, entendido como um ilícito típico culposo e punível, consagrando aquela primeira solução e afirmando a autonomia do crime de branqueamento de vantagens de origem ilícita – veja-se o artigo de Pedro Caeiro “A Decisão Quadro do Conselho de 26 de Junho de 2001 e a relação entre a punição do branqueamento e o facto precedente”, incluído na obra “Liber Discipulorum para Figueiredo Dias”, Coimbra Editora, ..., página 1102 e seguintes.
Ainda atendendo às opções do mesmo legislador, constatamos a inserção do tipo penal de branqueamento de vantagens ilícitas, Art. 368º-A do Cod. Penal, no âmbito do capítulo dedicado aos “crimes contra a realização da justiça”.
Mais se verifica que o legislador optou por uma construção do crime de branqueamento que deixa de fora os actos de deter ou de utilizar produtos do crime, deixando tais formas de actuar para o tipo penal da receptação, Art. 231º do Cod. Penal, este sim, construído como um crime contra direitos patrimoniais.
Entendemos assim, o crime de branqueamento, tal como concebido pelo legislador nacional e, neste sentido, defendido por Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal que refere, em suma, que “visa tutelar a realização da justiça, na sua particular vertente da perseguição e do confisco pelos tribunais dos proventos da actividade criminosa”, procurando sancionar a introdução na economia legítima, com uma justificação forjada, de produtos provenientes da actividade criminosa.
E, como ainda referido pelo mesmo autor – “o legislador Português teve o cuidado de colocar em alternativa quer as modalidades da acção criminosa quer as modalidades da intenção e assim incluir quer o agente do crime precedente que converte/transfere ele próprio o dinheiro quer o terceiro que converte/transfere o dinheiro ou que apenas auxilia a operação de conversão/transferência de bens”.
Ex-abbundanti ainda citamos o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa nº 119/11.2TELSB-A.L1 de 04/06/2013:
(…) basta que haja suspeitas da prática do crime de branqueamento e de quem é ou são os seus agentes.
Suspeita ou indício é uma circunstância que tem conexão verosímil com o facto incerto de que se pretende a prova e tudo aquilo que, sem fornecer uma prova imediata, torna possível chegar ao facto cuja existência se indaga, ao facto que é objecto de prova.
Ou, como prefere Paulo Pinto Albuquerque (“Comentário do Código de Processo Penal”, 2ª Edição actualizada, UCE, 332), “são razões que sustentam e revelam uma convicção sobre a probabilidade, mesmo mínima, de verificação de um facto”, razões essas que, ligando, a circunstância indiciadora e o facto a provar, são constituídas “por uma inferência lógica baseada numa máxima de experiência ou numa lei cientifica”. (…)
(…) É imperioso ter presente que o branqueamento está umbilicalmente ligado à criminalidade organizada e é com “organizações que se especializaram no branqueamento e que vendem os seus serviços aos cartéis colombianos, às máfias do leste europeu, etc .que a investigação tem de lidar. (vide Vitalino Canas, in “O crime de branqueamento: regime de prevenção e de repressão”. Almedina, 2004,
(…) Como é sabido, o processo de dissimulação que é inerente ao branqueamento comporta uma fase que, habitualmente, se designa por “colocação” (em que se procura introduzir bens, geralmente dinheiro, num ponto do circuito financeiro e económico legal, normalmente um banco ou uma instituição de investimento) a que se segue a “camuflagem” (em que se efectuam operações sucessivas de transformação ou de transferência do dinheiro, de modo a tornar difícil detectar-lhe a origem e o rasto; são, por exemplo, feitas sucessivas transferências para outras contas, de outras pessoas, frequentemente em outros países, de tal modo que a partir de certo ponto é praticamente impossível identificar a origem) e culmina na “integração” (os bens, o dinheiro já branqueado é utilizado em actividades negócios lícitos). (…)
Quanto ao crime de falsificação:
O preenchimento do tipo pressupõe a verificação cumulativa das seguintes circunstâncias: que o agente use documento fabricado por outra pessoa onde constem falsamente factos juridicamente relevantes, que tais condutas sejam abarcadas pelo dolo do agente, por qualquer das formas previstas no artigo 14º do Código Penal e que tais comportamentos sejam levados a cabo com a intenção de causar prejuízo patrimonial ou de alcançar, para si ou para terceiro uma vantagem ilícita ou injusta.
Quanto ao crime de corrupção
Nos termos do art. 2º, al. d), da Lei 20/2008, de 21/04, para os efeitos desta Lei considera-se trabalhador do sector privado a pessoa que exerce funções, incluindo as de direcção ou fiscalização, em regime de contrato individual de trabalho, de prestação de serviços ou a qualquer outro título, mesmo que provisória ou temporariamente, mediante remuneração ou a título gratuito, ao serviço de uma entidade do sector privado.
O art. 8.º e 9º do mesmo diploma tipifica o crime de corrupção passiva no sector privado nos seguintes termos:
8º nº1 - O trabalhador do sector privado que, por si ou, mediante o seu consentimento ou ratificação, por interposta pessoa, solicitar ou aceitar, para si ou para terceiro, sem que lhe seja devida, vantagem patrimonial ou não patrimonial, ou a sua promessa, para um qualquer acto ou omissão que constitua uma violação dos seus deveres funcionais é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa.
9º nº 1 - Quem por si ou, mediante o seu consentimento ou ratificação, por interposta pessoa der ou prometer a pessoa prevista no artigo anterior, ou a terceiro com conhecimento daquela, vantagem patrimonial ou não patrimonial, que lhe não seja devida, para prosseguir o fim aí indicado é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa.
O legislador considerou apta a cometer o crime qualquer pessoa que exerça funções para uma empresa do sector privado. Dessa forma, transparece a sua preocupação em tutelar a lealdade nas relações privadas, independentemente do vínculo à empresa, do contrato bem como de haver ou não remuneração.
Quanto ao crime de corrupção nos termos do artº 372º e 374º não resistimos a estribarmo-nos no entendimento sancionado pelo TRL no Acórdão proferido no NUIPC 504/04.6JFLSB.L1-5 de 15.11.2011, do TRL onde se propugna:
“IIIº O bem jurídico protegido no crime de corrupção é a legalidade da actuação dos agentes públicos, a quem está interdito mercadejar com o cargo;
IVº Com a alteração ao art.372, do Código Penal, introduzida pela Lei nº108/01, de 28Nov., foi eliminada a referência à “contrapartida” do acto em face da vantagem solicitada ou aceite pelo funcionário, com o que o legislador pretendeu afastar a indispensabilidade do sinalagma entre a conduta do funcionário e a do corruptor; Vº Para que se verifique a consumação do crime não se mostra necessário que o acto seja praticado, não se exige a proporcionalidade entre o valor do suborno e o valor ou importância do acto e não é elemento essencial a existência de um acordo expresso para a adopção de uma conduta já perfeitamente determinada de forma precisa em todos os seus aspectos, até porque é também incriminada a corrupção subsequente, em que o funcionário no momento da prática do acto não perspectivava pedir ou aceitar uma vantagem, nem esta lhe tinha sido oferecida, pelo que afastada está também a concepção que reporta o suborno a critérios de causalidade adequada;
VIº Aquele preceito incriminador continua a exigir a demonstração de uma qualquer relação entre o contributo do corruptor (a vantagem) e o do funcionário, a prática de um acto conexionado, implícita ou explicitamente, com as suas funções (já praticado ou a praticar);
VIIº O crime de corrupção passiva está consumado, desde logo, com o conhecimento pelo interlocutor ou destinatário da manifestação de vontade de aceitação da vantagem pelo funcionário e o de corrupção activa, com o conhecimento pelo funcionário destinatário da manifestação de vontade de oferta/promessa da vantagem, isto quer o funcionário aceda ou não à pretensão do corruptor;
VIIIº Estando suficientemente indiciado que o funcionário recebeu vantagens patrimoniais, traduzidas no pagamento de despesas respeitantes a deslocações e alojamento no estrangeiro, como compensação do fornecimento por ele de informações sobre actividades de determinado serviço público, justifica-se a pronúncia pelo crime de corrupção passiva para acto ilícito.”
Quanto ao crime de fraude fiscal
Nos termos do disposto no art. 103º do RGIT, 1 constituem fraude fiscal, punível com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias, as condutas ilegítimas tipificadas no presente artigo que visem a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias.
Nos termos desta disposição legal, a fraude fiscal pode ter lugar por :
– al. a) : ocultação ou alteração de factos ou valores que devam constar dos livros de contabilidade ou escrituração, ou das declarações apresentadas ou prestadas a fim de que a administração fiscal especificamente fiscalize, determine, avalie ou controle a matéria colectável;
- al. b) : ocultação de factos ou valores não declarados e que devam ser revelados à administração tributária;
- al. c) celebração de negócio simulado, quer quanto ao valor, quer quanto à natureza, quer por interposição, omissão ou substituição de pessoas.
O art.º 104-º, n.º 3, agrava a conduta e a dosimetria penal.
Indiciam-se ainda crimes de falsas declarações.
Perante a prova indiciária apresentada e coligida, supra referida, forçoso é enunciar um conjunto de considerações:
A prova não pressupõe, como vem afirmando a melhor jurisprudência (cf. v.g. Ac. da Relação de Coimbra no Processo n.º 2447/99), uma certeza absoluta, lógico-matemática ou apodíctica, nem se basta, por outro lado, com a mera probabilidade de verificação de um facto.
Na verdade, a prova pressupõe:
a) O alto grau de probabilidade de verificação do facto, suficiente para as necessidades práticas da vida (cf. Manuel de Andrade, "Noções Elementares de Processo Civil" p. 191; Antunes Varela, "Manual de Processo Civil", p. 421);
b) O grau de certeza que as pessoas mais exigentes da vida reclamariam para dar como verificado o facto respectivo (Anselmo de Castro, "Direito Processual Civil Declaratório, III", p. 345);
c) A consciência de um elevado grau de probabilidade - convicção – assente no raciocínio lógico do juiz e não em meras impressões (Castro Mendes, "Do Conceito de Prova em Processo Civil" p. 306 e 325);
d) Na convicção – objectivável, raciocinada (baseada na intuição e na reflexão e motiváveis - para além de toda a dúvida razoável, não qualquer dúvida, mas apenas a dúvida fundada em razões adequadas (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I," p. 205).
Divide-se actualmente a doutrina entre duas posições sobre o que são indícios suficientes:
a) A que entende que o juiz deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos, forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que tenha cometido o crime do que não o tenha feito e que, portanto, a lei não impõe a mesma convicção requerida pelo julgamento, bastando-se com um juízo de indiciação (Prof. Germano Marques da Silva);
a) A que parece equiparar a convicção de quem acusa ou pronúncia com a convicção de quem julga e condena (Dr. Carlos Adérito Teixeira).
Perfilhamos a primeira das opções.
O JIC signatário socorre-se ainda no juízo indiciário a efectuar para dilucidação do requerimento de abertura de instrução, do entendimento jurisprudencial propugnado no Ac. TRL de 25/06/2015, no NUIPC 3443/11.0TDLSB.L1-9 relator Desembargador Dr. Fernando Estrela, onde se diz:
“I - Os meios de prova directos não são os únicos a poderem ser utilizados pelo julgador. Existem os meios de prova indirecta, que são os procedimentos lógicos, para prova indirecta, de conhecimento ou dedução de um facto desconhecido a partir de um(ou vários) factos conhecidos, ou seja as presunções.
II - As presunções pressupõem a existência de um facto conhecido (base das presunções) cuja prova incumbe à parte que a presunção favorece e pode ser feita por meios probatórios gerais; provado esse facto, intervém a Lei (no caso de presunções legais) ou o julgador (no caso de presunções judiciais) a concluir dele a existência de outro facto (presumido), servindo-se o julgador, para esse fim, de regras deduzidas da experiência da vida
Ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode utilizar o juiz a experiência da vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra da experiência ou, se se quiser, vale-se de uma prova de primeira aparência. (…).” Fim de citação.
E do Acórdão do STJ, aí citado, de 11/10/08 – Proc. 07P3240, relator Conselheiro Simas Santos, in www.dgsi.pt:
“4 - Como tem sido jurisprudência deste Tribunal, é admissível a prova por presunção, o sistema probatório alicerça-se em grande parte no raciocínio indutivo de um facto desconhecido para um facto conhecido; toda a prova indirecta se faz valer através desta espécie de presunções.”
Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17 de Março de 2004, in www.dgsi.pt, “os meios de prova directos não são os únicos a poderem ser utilizados pelo julgador. Existem os meios de prova indirecta, que são os procedimentos lógicos, para prova indirecta, de conhecimento ou dedução de um facto desconhecido a partir de um (ou vários) factos conhecidos, ou seja as presunções. As presunções, cuja definição se encontra no artigo 349º do Código Civil, são também válidas em processo penal, importando, neste domínio as presunções naturais que são, não mais que o produto das regras de experiência: o juiz valendo-se de um certo facto e das regras da experiência, conclui que esse facto denuncia a existência de outro facto. O juiz utiliza a experiência da vida, da qual resulta que um facto é consequência de outro, ou seja, procede mediante uma presunção natural. Na passagem do facto conhecido para a aquisição do facto desconhecidos, têm de intervir procedimentos lógicos e intelectuais que permitam, com fundamento, segundo as regras da experiência que determinado facto anteriormente desconhecido, é a natural consequência, ou resulta com probabilidade próxima da certeza de outro facto conhecido.
A propósito de provas indirectas, é imperioso citar o Exmo. Conselheiro Santos Cabral:
“Na prova indiciária, mais do que em qualquer outra, intervêm a inteligência e a lógica do juiz. A prova indiciária pressupõe um facto, demonstrado através de uma prova directa, ao qual se associa uma regra de ciência, uma máxima de experiência ou uma regra de sentido comum. Este facto indiciante permite a elaboração de um facto-consequência em virtude de uma ligação racional e lógica (…).
Aliás é importante que se refira que a prova indiciária, ou o funcionamento da lógica e das presunções, bem como das máximas da experiência, é transversal a toda a teoria da prova, começando pela averiguação do elemento subjectivo de crime, que só deste modo pode ser alcançado, até à própria creditação da prova directa constante do testemunho (…)” p. 1 de “Prova indiciária e as novas formas de criminalidade”, in www.cej.pt.
Não faz a nossa lei processual penal qualquer referência a requisitos especiais em sede de demonstração dos requisitos da prova indiciária. P. 16, cap. III
Verificados os respectivos requisitos pode-se afirmar que o desenrolar da prova indiciária pressupõe três momentos distintos: a demonstração do facto base ou indício que, num segundo momento, faz despoletar no raciocínio do julgador uma regra da experiência, ou da ciência, que permite, num terceiro momento, inferir outro facto que será o facto sob julgamento.” Fls. 23, cap. V.” fim de citação.
E também do entendimento vertido no Ac. TRL primeiramente citado, quando aí se diz:
“Aqui chegados, e antes de prosseguir, crê-se ser de recordar o princípio que em Processo Criminal vigora no que respeita à apreciação da prova, e que é o da sua livre apreciação pelo julgador, princípio que encontra consagração no art. 127º do Cód. Processo Penal, onde exactamente se dispõe que, e salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente – este Tribunal, in casu.
O que não prejudica, como é absolutamente evidente, a exigência de que a condenação de qualquer pessoa pela prática de qualquer crime exija que a convicção positiva do julgador assente numa certeza alicerçada por sua vez em elementos probatórios concretos e seguros o bastante que afastem quaisquer dúvidas sobre essa mesma convicção. Isto é, assentando embora qualquer decisão do julgador penal na sua livre convicção, o processo de formação dessa mesma convicção é em si mesmo vinculado e sujeito a regras – não se trata de livre arbítrio ou valoração puramente subjectiva, antes se realizando de acordo com critérios lógicos e objectivos que determinam uma convicção racional, objectivável e motivável.
Mas isso também não pode, no entanto, significar que seja totalmente objectiva, já que não pode nunca dissociar-se nunca da pessoa do juiz que a aprecia e na qual “desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis - v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova - e mesmo puramente emocionais” (cfr. Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, pág. 205).
Já o Prof. Alberto dos Reis ensinava a este propósito que “o que está na base do conceito é o princípio da libertação do juiz das regras severas e inexoráveis da prova legal, sem que, entretanto, se queira atribuir-lhe o poder arbitrário de julgar os factos sem prova ou contra as provas. ...O sistema da prova livre não exclui, e antes pressupõe, a observância das regras da experiência e dos critérios da lógica...” (“Código de Processo Civil Anotado – Volume III”, pág. 245).
Neste mesmo sentido, defende o Prof. Cavaleiro de Ferreira que o julgador é livre ao apreciar as provas, embora tal apreciação seja vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório (“Curso de Processo Penal, Vol. II”, págs. 297 e segs.).
Mais, o juízo sobre a valoração da prova tem diferentes níveis. Num primeiro aspecto trata-se da credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova e depende substancialmente da imediação e aqui intervêm elementos não racionalmente explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova). Num segundo nível referente à valoração da prova intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios e agora já as inferências não dependem substancialmente da imediação, mas hão-de basear-se nas regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência (cfr. Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal, Vol. II”, págs. 111 e seg.).
Relativamente ao facto do Tribunal a quo considerar como válidas parcialmente depoimentos e declarações cabe no exercício de um direito/dever, a saber, do art.º 127.º do C.P.Penal: " o juiz não tem que aceitar ou recusar cada um dos depoimentos na globalidade, cabendo-lhe a difícil tarefa de dilucidar em cada um deles o que lhe merece crédito. - Ac. Rel. Porto, de 2009-06-17 (Rec. n° 229/06.8TAMBR.P1, rel. Borges Martins, in www.dgsi.pt).
As provas para sustentar a alteração dos factos são todos os documentos juntos aos autos, quer ainda os depoimentos de AC, KKK, RL – este último depoimento muito importante no sentido de sustentação desta nossa decisão - IA (parcialmente) e deduções lógicas e raciocínios que fomos fazendo e/ou subscrevendo.
Por outro lado, no que respeita aos documentos constantes dos autos os mesmos não têm de ser mostrados/exibidos em audiência, como é jurisprudência pacífica (valendo a argumentação para os factos imputados aos arguidos):
“ I - As provas constituídas por documentos juntos aos autos são provas que, forçosamente, estão presentes na audiência e submetidas ao contraditório, sem necessidade de serem lidas na mesma audiência, já que as partes têm conhecimento do seu conteúdo.
II - Embora a leitura de depoimento prestado por deprecada perante o juiz, na forma legal, possa ser lido na audiência de julgamento, nada obriga a que o seja.” (Ac. STJ de 23 de Março de 1994, proc. 46218/3.ª);
“A prova documental junta ao processo não carece de ser lida em audiência, embora o possa ser, por ser do conhecimento das partes e poder ser objecto de contraditório.” (Ac. STJ de 9 de Novembro de 1994; proc. 46600/ /3.ª);
“Não são inconstitucionais os normativos do art. 355.° do CPP, interpretados no sentido de que os documentos juntos aos autos não são de leitura obrigatória na audiência de julgamento, considerando-se nesta produzidos e examinados, desde que se trate de caso em que a leitura não seja proibida.”(Ac. do Trib. Constitucional n.° 87/99, de 10 de Fevereiro, proc. n.° 444/98; DR, II série, de 1 de Julho de 1999)”.
Sobre a intenção criminosa dos arguidos chamamos á colação que a prova sobre o elemento subjectivo de um crime nem sempre é de apreensão directa.
No que diz respeito à intenção criminosa terá de atender-se que: “ os actos interiores (ou “factos internos” como lhes chama Cavaleiro de Ferreira), que respeitam à vida psíquica, a maior parte das vezes não se provam directamente, mas por ilação de indícios ou factos exteriores (Germano Marques da Silva, Curso de Proc. Penal, II, pag101)”.
De facto, conforme jurisprudência do STJ “os elementos subjectivos do crime pertencem à vida íntima e interior do agente. Contudo, é possível captar a sua existência através e mediante a factualidade material que os possa inferir ou permitir divisar, ainda que por meio de presunções ligadas ao princípio da normalidade ou às regras da experiência comum”(Ac. STJ de 25/09/97 no Processo nº 479/97, citado por Leal Henriques e Simas Santos in Código Penal Anotado I Vol. ... p. 224).
Como refere o Acórdão do S.T.J. de 17-03-2004, proc.º03P2612,Relator: HENRIQUES GASPAR in www.dgsi.pt:
“Para avaliar da racionalidade e da não arbitrariedade (ou impressionismo) da convicção sobre os factos, há que apreciar, de um lado, a fundamentação da decisão quanto à matéria de facto (os fundamentos da convicção), e de outro, a natureza das provas produzidas e dos meios, modos ou processos intelectuais, utilizados e inferidos das regras da experiência comum para a obtenção de determinada conclusão.
Relevantes neste ponto, para além dos meios de prova directos, são os procedimentos lógicos para prova indirecta, de conhecimento ou dedução de um facto desconhecido a partir de um facto conhecido: as presunções.
A noção de presunção (noção geral, prestável como definição do meio ou processo lógico de aquisição de factos, e por isso válida também, no processo penal) consta do artigo 349º do Código Civil: «presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido».
Importam, neste âmbito, as chamadas presunções naturais ou hominis, que permitem ao juiz retirar de um facto conhecido ilações para adquirir um facto desconhecido.
As presunções naturais são, afinal, o produto das regras de experiência; o juiz, valendo se de um certo facto e das regras da experiência, conclui que esse facto denuncia a existência de outro facto. «Ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode o juiz utilizar a experiência da vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra da experiência [...] ou de uma prova de primeira aparência». (cfr, v. g., Vaz Serra, "Direito Probatório Material", BMJ, nº 112 , pág, 190).
Em formulação doutrinariamente bem marcada e soldada pelo tempo, as presunções devem ser «graves, precisas e concordantes». «São graves, quando as relações do facto desconhecido com o facto conhecido são tais, que a existência de um estabelece, por indução necessária, a existência do outro. São precisas, quando as induções, resultando do facto conhecido, tendem a estabelecer, directa e particularmente, o facto desconhecido e contestado. São concordantes, quando, tendo todas uma origem comum ou diferente, tendem, pelo conjunto e harmonia, a firmar o facto que se quer provar» (cfr. Carlos Maluf, "As Presunções na Teoria da Prova", in "Revista da Faculdade de Direito", Universidade de São Paulo, volume LXXIX, pág. 207).
A presunção permite, deste modo, que perante os factos (ou um facto preciso) conhecidos, se adquira ou se admita a realidade de um facto não demonstrado, na convicção, determinada pelas regras da experiência, de que normal e tipicamente (id quod plerumque accidit) certos factos são a consequência de outros. No valor da credibilidade do id quod, e na força da conexão causal entre dois acontecimentos, está o fundamento racional da presunção, e na medida desse valor está o rigor da presunção.
A consequência tem de ser credível; se o facto base ou pressuposto não é seguro, ou a relação entre o indício e o facto adquirido é demasiado longínqua, existe um vício de raciocínio que inutiliza a presunção (cfr. Vaz Serra, ibidem).
Deste modo, na passagem do facto conhecido para a aquisição (ou para a prova) do facto desconhecido, têm de intervir, pois, juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinada facto, não anteriormente conhecido nem directamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido.
A presunção intervém, assim, quando as máximas da experiência da vida e das coisas, baseadas também nos conhecimentos retirados da observação empírica dos factos, permitem afirmar que certo facto é a consequência típica de outro ou outros.
A ilação derivada de uma presunção natural não pode, porém, formular-se sem exigências de relativa segurança, especialmente em matéria de prova em processo penal em que é necessária a comprovação da existência dos factos para além de toda a dúvida razoável.
Há-de, pois, existir e ser revelado um percurso intelectual, lógico, sem soluções de continuidade, e sem uma relação demasiado longínqua entre o facto conhecido e o facto adquirido. A existência de espaços vazios no percurso lógico de congruência segundo as regras de experiência, determina um corte na continuidade do raciocínio, e retira o juízo do domínio da presunção, remetendo-o para o campo já da mera possibilidade física mais ou menos arbitrária ou dominada pelas impressões.
A compreensão e a possibilidade de acompanhamento do percurso lógico e intelectual seguido na fundamentação de uma decisão sobre a matéria de facto, quando respeite a factos que só podem ter sido deduzidos ou adquiridos segundo as regras próprias das presunções naturais, constitui um elemento relevante para o exercício da competência de verificação da (in)existência dos vícios do artigo 410º, nº 2, do CPP, especialmente do erro notório na apreciação da prova, referido na alínea c). - cfr., v. g., o acórdão deste STJ, de 7 de Janeiro de 2004, proc.3213/03.
(…)
A prova de determinados factos que não são directamente apreensíveis in natura, no plano da observação imediata, física e sensorial, só pode ser obtida por aproximações empíricas, permitidas pelas deduções decorrentes de factos ou comportamentos individuais, aceitáveis ou pressupostos pela normalidade de consequências que está suposta pelas regras da experiência e do fluir normal dos acontecimentos e relações.” Fim de citação.
A este respeito sobre meios de prova directa e indirecta e na dilucidação da matéria aqui em presença ainda que em sede indiciária, socorre-se o JIC signatário do douto entendimento expresso pelo Conselheiro Santos Cabral a respeito das questões de prova indirecta, neste tipo de fenomenologia criminal.
Das medidas de coacção:
O MP a final da diligência dos interrogatórios dos arguidos veio apresentar a sua proposta de estatuto coactivo que se pediu licença para transpor e que é do seguinte teor:
«Os factos imputados aos arguidos nos presentes autos integram a montagem de um conjunto de entidades relativamente às quais, no seu conjunto, se reconhece o desenvolvimento de atividade, ainda que com desconformidade sobre o faturado, mas em que se verificam dois grandes vícios com relevância criminal:
- a angariação de negócios através de uma rede de compromissos nas sociedades clientes, a qual é conseguida e alimentada pela atribuição de vantagens indevidas;
- a deslocalização fictícia dos domicílios fiscais, das pessoas físicas e morais envolvidas, através da adulteração das declarações relativas à conexão territorial das atividades desenvolvidas, com a finalidade, alcançada, da obtenção de benefícios indevidos em sede de taxas e de tratamento fiscal aplicáveis.
Acresce a esses factos o recurso a práticas de produção de facturas de conveniência, apenas destinadas a permitir a circulação de fundos entre contas de diferentes entidades e a justificar o recebimento de pagamentos a título de comissões que se mostram indevidas face às regras da concorrência, por representarem a exigência de um preço para permitir o acesso a um mercado.
Tal é o caso da faturação produzida por algumas das sociedades suspeitas e dirigida ao grupo designado de ..., conforme adiante melhor se especificará, a qual se evidencia representar uma forma de cobrança de comissões relativamente a produtos com origem no ... para que este possa manter a sua posição de fornecedor internacional do ....
Tais recebimentos a título de comissões, porque não se mostram associados a um custo efetivo, potenciam a constituição de uma tesouraria autónoma, geradora de fundos que circulam entre entidades e que permitem, por sua vez, a atribuição de vantagens indevidas a colaboradores de outras sociedades, de forma a permitir a angariação de novos negócios, num círculo vicioso de contratos apenas conseguidos pela via de pagamentos indevidos.
Tais pagamentos para a angariação de contratos e a circulação dos ganhos gerados por essa prática, quer do lado ativo quer do lado passivo, mostram-se depois dispersos geograficamente, num desígnio de ocultação e de facilitação da integração dos ganhos, com a montagem de estruturas instrumentais, que são operadores económicos fictícios, convenientemente localizados em países de reduzida exigência contabilística e de transparência, caso dos ... e do ....
Foram imputados papeis distintos aos arguidos sujeitos a interrogatório nestes circuitos de contratação, de faturação, de operações financeiras e de contabilização.
Aos arguidos NN e FFF foram imputados papeis de colaboração necessária e essencial, mas segmentada, seja geográfica, seja tematicamente, com reconhecida ausência do domínio integral dos referidos circuitos.
De forma diferente, aos arguidos AA e GG foi imputado o conhecimento e controlo dos referidos circuitos na sua integralidade, abrangendo geografias tão distintas como os ... e a ... e temas tão diversos como a identificação das pessoas a comprometer, como a forma de lhes fazer atribuições indevidas, como os negócios a conquistar, como a escolha dos tipos e localização das estruturas instrumentais e como os modelos de circulação dos fundos.
Alguns temas, como os relativos à utilização da entidade ..., perpassam por todos os arguidos, seja quanto à detenção efetiva das participações sociais, arguidos GG e AA, seja quanto à facilitação da ocultação dessas participações e dos ganhos indevidos obtidos, arguida NN, seja quanto à contabilização e definição dos circuitos de produção de faturas, caso do arguido FFF.
(…)
No que se reporta ao arguido AA, o mesmo nega, ao longo do seu interrogatório, por três vezes, como na cena bíblica, o conhecimento e a real relação com aqueles que lhe são próximos.
Em primeiro lugar, o arguido AA negou a amizade com o arguido GG, remetendo-o apenas para um conhecimento comercial, para depois cair no ridículo de o ouvirmos considerar GG como se fosse um irmão quando lhe perguntaram se podiam confiar no mesmo.
Em segundo lugar, o arguido AA nega a relação com o próprio genro, YB, com quem diz estar apenas duas ou três vezes no ano, talvez antecipando o que viria a seguir, da boca do arguido GG, no sentido de que o mesmo DD era recebedor direto de várias dezenas de milhões de euros de pagamentos indevidos relacionados com a atribuição de negócios com viciação das regras a que devia obedecer como dirigente do ....
No entanto, em várias conversas ouvidas entre DD e GG é feita referência a reuniões com AA, ocorridas em ... e em Portugal, por exemplo, para além de, por ironia, o próprio DD ter estado instalado na casa de AA, em Portugal, na véspera das buscas realizadas.
Em terceiro lugar, o arguido AA nega a existência de relacionamento com JJ, pai do seu genro DD, tentando passar a imagem de o mesmo ser um personagem néscio e distante. Tal imagem de inatividade relativamente a JJ é, em parte, confirmada por GG.
No entanto, o mesmo GG confirmou, em consonância com o que consta dos autos que o referido JJ é o beneficiário formal de estruturas societárias nos ... onde foram recebidas dezenas de milhões de euros com origem em ganhos proporcionados por negócios proporcionados com o ....
Em sede de regras de experiência comum, não é aceitável que um acionista de referência da ..., como era AA, passe ao lado de pagamentos proporcionados pelo seu Grupo para a esfera formal de uma pessoa com quem tem relações familiares por afinidade.
Entendemos assim, que os fundos pagos para contas em nome das entidades ... e ... não podem ser afastados da pessoa de AA, tando mais que o seu nome aparece referido como sendo aquele “amigo” que tudo resolve dentro do ... – sessões 93294 do alvo ... e 1057 do alvo ....
Foi aliás claramente audível a intervenção de AA na resolução de questões suscitadas pela decisão de venda de imóveis a sociedades controladas por GG, bem como a sua intervenção na decisão de atribuição da exploração de uma loja a uma pessoa do relacionamento pessoal de GG – sessões 337 do alvo ... e 2360 do alvo ....
Nem se diga que, nesse período, AA não era já dirigente nem colaborador da ..., mas sim um mero acionista, porquanto foi também audível o nível da sua intervenção quanto à orientação de fornecedores daquele Grupo, bem como foi confirmada pelo arguido GG a sua intervenção em negócios em todas as filiais do mesmo grupo, mesmo ao nível da ....
Não estamos assim, perante um acionista com uma mera relação de capital com a sociedade, mas sim perante um ... de facto, com capacidade de intervenção ao nível do processo decisório.
Por esse motivo, as contrapartidas recebidas por parte de AA, sejam as diretas, relativas à disponibilidade de imóveis (...) e as relativas ao gozo de um cartão de crédito e ao benefício de obras na sua casa em Portugal (em valores muito para além de faturas emitidas), seja as indiretas, por via de vantagens atribuídas a terceiros, na sua esfera familiar, são claramente associadas à sua intervenção em favor de interesses de GG no processo decisório de contratação no seio da ....
Entendemos indiciado que os imóveis envolvidos nessas atribuições de vantagens abrangem:
- um andar sito em ..., adquirido por uma das empresas de GG e que chegou a ser transmitido a CCC;
- um imóvel em ..., adquirido em nome da sociedade ..., também controlada pelo arguido GG, que nunca viu o mesmo imóvel, uma vez que o mesmo foi entregue para uso de KK, pessoa do relacionamento pessoal de AA, sessões 162582 e 162806 do alvo ...;
- o direito a um apartamento sito no prédio adquirido por uma das empresas de GG à ... e sito na ..., em …, sessão 67056, do alvo ....
Acresce que o próprio crime de corrupção privada prevê que a vantagem indevida poderá ser atribuída ao próprio agente ou a terceiros, no caso por via de pessoas da esfera pessoal do arguido AA, enquanto agente passivo da corrupção.
Entendemos assim, indiciariamente preenchido o crime imputado ao arguido AA de corrupção privada passiva na forma agravada.
Tal colaboração indevida e remunerada de AA com o Grupo de empresas controlado por GG estende-se à apresentação e montagem de negócios com outros quadros da ... e de outros fornecedores, caso da ... e da ..., sempre através da atribuição de vantagens indevidas, caso de LL e de LLL, que foram aliás visitas da casa de AA em Portugal, bem como de FF, a quem, além do mais, são proporcionados ganhos com a aquisição de imóveis da ... em … – participação e negócios oferecidos à ....
Relativamente à participação de AA na sociedade nacional ..., entendemos indiciado ter a mesma se iniciado em ..., quando foi montada a estrutura da ..., no ..., tendo a mesma subsistido, pelo menos, até ..., conforme documentos recebidos na esfera de NN, que era a fiduciária do primeiro arguido para encobrir a sua posição social – documentos do apenso C, volume 7 já acima referidos.
Note-se que a ... foi utilizada como emissora de faturas dirigidas à entidade ..., precisamente até ..., indiciando-se tratar-se de meras comissões cobradas sobre o volume de vendas do ..., via ..., à ....
A alteração desses procedimentos de faturação e a eventual venda das participações de AA na ... ocorrem aliás em data posterior a conversa mantida e interceptada entre AA e CC na qual este último alerta o primeiro sobre a existência de reparos dos auditores face à possível existência de partes relacionadas entre a ... e a ... – sessão 337, do alvo ..., já acima referida.
Aproveita a AA a circunstância de não haver evidência de ter tido ganhos diretos com a distribuição de dividendos feita pela ... e se indiciar mesmo que, inicialmente, a sua participação na referida entidade, em ..., se teria ficado a dever ao facto de querer ajudar os sócios operacionais da ..., os identificados MMM e NNN.
Indicia-se, no entanto, que a posterior utilização da ... para a produção de faturas à ..., no âmbito do designado “Projeto ...”, teve a colaboração e o proveito de AA.
Com efeito, estamos perante um volume de faturação dirigida à ..., entre ... e ..., que ultrapassou, no total, os 160 milhões de Euros, tendo sido iniciado com faturação em nome da ..., até ..., e depois com a produção de faturas em nome das sociedades ... e ..., todas controladas pelo arguido GG.
Indicia-se que essa faturação, pese embora suportada em alegados contratos de manutenção e garantia, celebrados entre a dita ... e as referidas sociedades nacionais, não tem correspondência com a realidade, sendo as faturas e seus pagamentos verdadeiros pagamentos de comissões exigidas à ... para poder manter a sua qualidade de fornecedor (através da ...) à ....
Com efeito, mostra-se que os montantes relativos a esses pagamentos da ... não são utilizados para satisfazer o pagamento de custos, mas sim para repartir entre empresas da área da construção civil ligadas à esfera de GG, caso da ..., e para fazer circular por várias contas até serem transferidos para as contas nos ..., em nome das entidade ... e ..., de onde circulavam depois para as contas das entidades ... e ..., estas, como acima vimos, controladas formalmente por familiares de AA.
Entendemos assim, por tudo o acima exposto, que também os crimes de branqueamento e de falsificação, relativos a fluxos financeiros e a documentos contratuais, relativos às entidades ... e ..., que foram imputados a AA, se devem considerar indiciados, bem como a participação do arguido nos mesmos.
(…)
Exposta a nossa leitura da prova indiciária resultante dos autos e das declarações produzidas pelos arguidos, vejamos como se refletem os factos na verificação dos perigos que importa acautelar para efeito de aplicação de medidas de coação, nos termos dos arts 193.º e 204.º do Cod. Processo Penal.
(…)
Relativamente ao arguido AA, entendemos que o perigo de perturbação do inquérito é elevado.
Com efeito, só em fase adiantada do interrogatório é que o arguido foi reconhecendo saber que as empresas que lhe foram sendo elencadas eram do arguido GG e que já o sabia quando a ... celebrou contratos com as mesmas, referindo que o seu objectivo sempre foi apenas de “o ajudar”.
O arguido AA negou ter qualquer relação com as sociedades ... e ..., apesar de as mesmas terem sido claramente associadas à pessoa do seu genro DD e de se evidenciar que receberam, entre 2018 e ..., pelo menos 56 milhões de Euros do arguido GG, como pagamento de vantagens, em troca da celebração e manutenção de contractos de fornecimento com o ....
Acresce ainda que, embora AA não ocupe formalmente qualquer cargo no ..., resulta da prova constante dos autos, das declarações dos demais arguidos e mesmo das suas próprias declarações, que tem enorme capacidade de determinação das diversas administrações das empresas que constituem o Grupo – mesmo face às movimentações em curso na ... e em resultado da lealdade dos que foram por si designados.
Essa capacidade de determinação e influência no seio da ... constitui um claro perigo de perturbação do inquérito, uma vez que se indicia que o arguido AA poderá determinar a destruição de documentos no universo ... que ainda não tenham sido apreendidos e condicionar os seus colaboradores nas declarações ainda a prestar no âmbito do inquérito.
O perigo de continuação da actividade criminosa, por seu turno, embora exista, parece agora estar mais mitigado em face das movimentações efetuadas dentro do ..., com o afastamento de muitos dos intervenientes em investigação e com a apertada vigilância que a contratação passará a ter, nomeadamente, por parte do sócio maioritário, II.
Ainda assim, mesmo indiciando-se que já existia, há vários anos, a oposição desse sócio maioritário à contratação de sociedades controladas pelo arguido GG, certo é que o arguido AA não se coibiu de, em conjunto com aquele, engendrarem formas de as mesmas sociedades serem contratadas pelo ..., incluindo mediante a atribuição de vantagens ilegítimas.
Entendemos assim, que o perigo de continuação da atividade criminosa, embora mais mitigado, pelas razões apontadas, não deixa de subsistir.
No que concerne ao perigo de fuga, temos que considerar as circunstâncias de o arguido AA ter na sua disponibilidade um helicóptero (na sua própria casa e na mesma morada onde pernoita o piloto do mesmo) e um avião particular, pelo que são vários os meios à sua disposição para encetar uma fuga.
A esses meios de transporte, acrescem os imensos recursos financeiros de que dispõe e o facto de dispor de residências em diversas geografias, nomeadamente, na ... (onde reside) e nas ....
Por outro lado, embora afirme ter renunciado à cidadania francesa, é, neste momento, desconhecido da investigação se o mesmo dispõe de passaporte que não seja português, desde logo atenta a facilidade com que alguns locais, por exemplo nas ..., oferecem cidadania em troca de um pagamento/investimento pouco avultado para os padrões do arguido, veja-se o caso de … onde a cidadania custa certa de USD 125.000,00.
Por outro lado, embora o arguido AA tenha cidadania portuguesa e casa em Portugal, a sua afinidade e vínculo com o País afigura-se ser emocional, não sendo determinante para quem viveu praticamente a vida toda no estrangeiro, onde ainda reside.
Em face dos perigos de fuga, de continuação da atividade criminosa e para a aquisição da prova, verificados em simultâneo e potenciando-se reciprocamente, entendemos que não é, neste momento, suficiente a aplicação de uma medida de coacção não privativa da liberdade, ainda que não executada em ambiente prisional, mas sim na habitação do arguido em território nacional.
Entendemos, no entanto, que, em momento subsequente, uma vez prestada uma medida de caução, por depósito bancário, em quantia proporcional aos montantes envolvidos nos autos, a contingência de poder vir a perder esse montante (razão pela qual se entende ser apenas eficaz a modalidade de caução por depósito), poderá ter uma eficácia equivalente à da obrigação de permanência na habitação.
Assim, considerando os princípios da adequação, proporcionalidade e necessidade, entendemos, que, para além do TIR já prestado, deverá o arguido AA aguardar as fases ulteriores do processo sujeito, por ora, às medidas de coacção de:
- obrigação de permanência na habitação com sujeição a vigilância electrónica;
- proibição de contactos com os demais arguidos e, bem assim, com todos os colaboradores de todas empresas conexas com o arguido GG e do ... (mesmo os que foram, entretanto, suspensos de funções), por se afigurar que tais medidas são as únicas adequadas às necessidades que o caso requer;
- possibilidade de substituição da medida de obrigação de permanência na habitação pela prestação de caução, mediante depósito bancário, em montante não inferior a € 10.000.000,00 (dez milhões de euros), montante que se enquadra nos dividendos que o arguido diz auferir anualmente (a medida de obrigação de permanência na habitação cessará na mesma data em que for julgada validamente prestada a caução por depósito bancário).
Medidas a aplicar com base nos artigos 191.º, 192.º, 193.º, 194.º, 196.º, 200.º, n.º 1, al. d), 201.º, n.ºs 1 e 2 e 204º, als. a) a c), e 206.º do Código de Processo Penal).
(…)»
Os arguidos apresentaram a sua posição a respeito do estatuto coactivo que respectivamente lhes foi proposto e que consta da acta gravada e cujo teores aqui se dão por reproduzidos, salientando-se, resumidamente os seguintes aspectos:
Os arguidos colocam em causa a deficiente enumeração dos ilícitos imputados e os correspondentes factos pertinentes, a sua qualificação jurídica e as consequentes e eventuais diferenças de estalão penal, bem como a circunstancia do MP não referir explicitamente se os factos foram cometidos em autoria ou em cumplicidade.
Pelo nosso lado entendemos que a narração dos factos não consente outra conclusão indiciária que não seja de que os mesmos foram indiciariamente cometidos, em vários casos, em co-autoria, o que declaramos, como pressuposto do nosso raciocínio.
(…)
A Defesa de AA questiona a ocorrência de crimes de corrupção ou de quaisquer outros e, no tocante às medidas de coacção, refere que as mesmas são excessivas, por inexistirem os perigos que são invocados, concluindo que uma proibição de contactos, uma proibição de ausência para o estrangeiro, no máximo uma caução, cumulativamente fixadas, serão suficientes, proporcionais e adequadas para prevenir os invocados, que não reconhecidos, perigos.
(…)
Sem embargo e ex-abbundanti, consignando-se expressamente que o juízo indiciário e de aplicação de medidas de coacção, nesta sede efectuado, tem apenas por base todos os elementos de prova apresentados aos arguidos, como da acta do interrogatório consta e nos exactos termos subsumidos à consideração do JIC pelo MP, quando submeteu estes arguidos a interrogatório judicial, bem como tendo presente as declarações que os arguidos entenderam prestar nesta sede quanto às suas condições pessoais e económicas e bem assim sopesadas as declarações prestadas por todos já que decidiram falar acerca dos factos constantes da apresentação, importará ter presente a ocorrência ou não dos mencionados perigos.
Na verdade, se é direito do arguido no hodierno e reputado avançado direito processual penal vigente, na redacção dada ao CPP pela Lei 48/07 de 29/08, considerada a declaração de rectificação n.º100-A/2007 e a rectificação da rectificação nº 105/2007, o arguido nada declarar, não pode deixar de ser sopesada com o articulado constitucional atinente, menos certo não é que, resolvendo o arguido declarar o que tiver por conveniente, ao JIC é exigível analisar criticamente e no uso dos seus poderes de cognição, a substancia e credibilidade do que sucintamente disse e da sua concatenação com os restantes elementos dos autos.
A pronuncia dos arguidos, sobre os factos, se não os desfavorece até por imposição constitucional também pode não os favorecer, pois como bem se salientou no acórdão do TRL, proferido no processo 188/11.5TELSB, o artigo 20° da CRP, propugna que todos tem direito a que numa causa que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo.
A densificação do processo equitativo é feita como ensinam os profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira pela própria constituição em sede penal — art° 32 CRP, ou seja garantias de defesa, presunção de inocência, julgamento em curto prazo, compatível com garantias de defesa, direito à escolha de defensor e à assistência de advogado, reserva de juiz quanto à instrução do processo, observância do principio do contraditório, direito à intervenção no processo, etc.
No art° 32° do CRP, concentram-se os mais importantes princípios materiais do processo penal, sendo o seu n° 1 - o processo criminal assegura todas as garantias de defesa incluindo o recurso - a condensação de todas as normas que constam nos demais números.
Como bem se salienta naquele aresto "como ensinam os mestres citados este preceito introdutório serve também de cláusula geral englobadora de todas as garantias que, embora não explicitadas nos números seguintes, hajam de decorrer do princípio da protecção global e completa dos direitos de defesa do arguido em processo criminal. Em «todas as garantias de defesa» engloba-se indubitavelmente todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação (ob. cit., pág. 516).
Ora, entre estas garantias de defesa conta-se o direito ao silêncio (arts. 61°, n° 1, d), 141°, n° 4, a), e 343º, n° 1, todos do C. Processo Penal), que se traduz na faculdade que assiste ao arguido de não responder a perguntas feitas sobre os factos que lhe são imputados e sobre o conteúdo das declarações que sobre eles prestar portanto, no direito de não colaborar com as autoridades para a descoberta da verdade, sem que o respectivo exercício possa redundar em prejuízo seu isto é, possa ser interpretado como conformação com o facto, como presunção de culpa.
No âmbito do primeiro interrogatório judicial de arguido detido, onde rege o art. 141º, n° 4, a), do C. Processo Penal, conjugado com o art. 61º, n° 1, do mesmo código, o arguido pode recusar prestar declarações sobre os factos indiciados que para tanto, lhe devem ser comunicados, e também não tem o dever de responder sobre o conteúdo das declarações que entenda fazer, sem que tal comportamento possa ser valorado em prejuízo seu. Mas como nota o Prof. Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal, 11, 3° Edição, pág. 185), é, porém, evidente que se o arguido não esclarece os factos que lhe são imputados, ilidindo as provas que dos autos constem, serão apenas estas que serão apreciadas, o que significa que, se o exercício do direito ao silêncio, até porque do exercício de um direito se trata, não o pode prejudicar, o que pode suceder é que também o não beneficie." Fim de citação.
E cremos que é precisamente este o alcance da afirmação que ora fazemos.
O que fazemos é apenas a síntese de um percurso lógico que, em si mesmo, nos parece correctamente formulado.
O que aqui foi ponderado foi a natureza altamente complexa dos factos indiciados e a circunstância de os arguidos terem exercido o direito a prestar declarações e portanto, de terem feito constar dos autos a sua versão dos acontecimentos e com ela, dessa forma, se comprometendo, para daí inferir que, o total comprometimento para si resultante daquele exercício, iria facilitar a intensificação da continuação da pressuposta actividade criminosa.
Daqui resulta que, objectivamente, o exercício do direito não prejudicou os arguidos.
O que acontece, é que também não os beneficia, no concreto aspecto processual, ante as vicissitudes presentes, quer nos elementos até agora apurados, quer nas circunstancias de facto em presença.
Há que saber quem são e que papel têm nestes factos os integrantes do grupo ou seja os indicados no despacho de apresentação e outros.
Por isso, ao olhos do JIC signatário, surgiram reforçados os indícios que se foram sucessivamente recolhendo com os meios de obtenção de prova recolhidos ao longo do inquérito e que vêm de ser: autos de diligência externa, intercepções telefónicas e demais meios de prova supra citados.
O JIC signatário, como vem salientando em outros autos, está a tentar coordenar-se com os Tribunais Superiores e que são, na oportunidade, os Veneráveis Desembargadores em conferência ou não dos Tribunais da Relação dos diferentes distritos judiciais.
E por isso aplicando o raciocínio expendido neste acórdão aquilo que se apurou quanto á actividade dos arguidos e outros suspeitos que foi dada a conhecer neste interrogatório ao JIC forçoso é reconhecer que existem indícios de que os mesmos pela actividade que vêm desenvolvendo e a possibilidade de que não lhes seja coartada a sua liberdade ambulatória nada há nos autos que inculque que não a prosseguiriam ou, em alternativa, se tentariam eximir às consequências, ausentando-se.
Pensamos estar coordenados com os entendimentos sancionados pelos Preclaros Veneráveis Desembargadores do TRL na avaliação ínsita naquele acórdão a que nos arrimámos para considerar que, no silogismo que fizemos no despacho, não fomos além nem ficámos aquém do que nos era exigível conhecer.
Renova-se pois, também, neste tocante do perigo de fuga toda a argumentação expendida, a considerar conjuntamente com a ora aduzida pelo MP, pois a tal nada opomos.
(…)
No tocante a AA, remetemos para a posição do MP que corroboramos em sede de apreciação dos perigos, esclarecendo que, conforme resulta da análise conjugada e critica dos meios de prova indiciaria e das declarações produzidas por ambos os arguidos, a perplexidade sobre uma pessoa que refere conhecer outra e interagir com ela no quadro de proporcionar directa, ou indirectamente, contratos na esfera do ..., ao longo de anos, tendo-se o cuidado de salientar que o conhecimento de vários detalhes desses contactos e contratos não podem chegar à esfera do conhecimento do sócio maioritário da ..., II, para vir dizer que a sua relação com essa pessoa não é de amizade, mas sim de uma pessoa conhecida, com a qual se interage em negócios, sendo exuberantemente desmentida tal asserção por intercepções telefónicas, onde diz, explicitamente, que ele e GG são mais do que irmãos, a perplexidade é apenas nossa.
Na verdade não percute o nosso espirito que a negação de amizade apenas tenha tido como fito salvaguardar a estabilidade matrimonial de AA, que pudemos surpreender abalada, já que a Senhora Dona OOO, no dizer de GG, até lhe controla o telefone e lhe coloca detectives a seguir, sendo a sua vida em casa um inferno.
Há aqui é uma necessidade de afastar o máximo possível responsabilidades.
Não há nenhuma convicção de vida patriarcal na avaliação que fizemos, nem sequer paroquial.
Estes senhores estão intimamente ligados e é verdade, como disseram, que se ajudam mutuamente, mesmo que essas ajudas não beneficiem só GG, quando acede a bons negócios no universo ..., mas também beneficiam o genro e o sogro de AA, pessoa esta a que o dito sogro indiciariamente se refere em contactos telefónicos com um terceiro conhecedor da interligação como sendo “o nosso amigo”.
O Pai de DD não é um analfabeto funcional, um “parvenu”, é um … com clinicas mas, que gosta de ter e fazer chegar a outras esferas milhões, e para isso é preciso haver alguém que faça facturas e proporcione contratos mesmo, que as facturas, por vezes, não tenham adesão à realidade e, nos casos mais gritantes, se denominem consultadoria.
Nestes autos, ao longo de cinco anos encontramos “N” casos de consultoria, alguns consistentes em simples telefonemas ou “ConfCalls” de meia dúzia de minutos que valem milhões, ou casas ainda por pagar sem que ninguém com isso se preocupe, porque dinheiro é coisa que aqui não falta.
O AA colocou GG no centro do coração dos negócios da ... em múltiplas oportunidades, como o próprio GG o reconhece, sendo por isso evidentes os perigos, não só de se liberalizarem os contactos de todos estes Senhores constantes da indiciação, entre si, como também de se lhes permitir uma liberdade ambulatória que lhes permita exactamente forjar explicações ou, no limite, eximirem-se à acção da justiça.
AA não é só um homem rico, não sabemos nem isso é importante de momento, se é ou não a 19.ª fortuna de ..., o certo é que para os padrões do homem comum, do homem médio, que se rege pelas regras da experiencia comum e da normalidade do acontecer, um homem que viaja em jacto privado, tem casas em várias geografias, onde dispõe de contas bancárias e até um regime especial do ponto de vista fiscal como ele referiu à “forfait” ou seja, na ... não se paga impostos de um ponto de vista progressivo consoante os rendimentos, negoceia-se com a ... um montante a pagar anualmente mesmo que aí não se viva sempre.
Logo, se AA tiver que escolher, neste momento, aonde escolheria residir, num qualquer paraíso aonde possa obviar à Interpol ou à Europol ou em Portugal?!
Além deste perigo de fuga o Senhor AA tem capacidade para, servindo-se de todas as fidelidades que granjeou ao longo das ultimas décadas na ..., onde ao contrário do que dizem as fontes abertas, nas quais se refere que já não detem (sic) qualquer comparticipação social naquela multinacional, o próprio diz que tem 22% do capital societário, pode com facilidade conformar explicações e continuar a sua actividade de facilitação de oportunidades de negócios a GG ou a outros “Testas de Ferro” deste que se apresentem a substituir a posição.
Há ainda em todos os casos um evidente perigo de perturbação do decurso do inquérito.
No tocante aos perigos de perturbação no decurso do inquérito para aquisição, conservação ou veracidade da prova.
Destarte, o perigo de perturbação do inquérito como fundamento para a admissibilidade de aplicação de uma qualquer medida de coacção, à excepção do termo de identidade e residência, concretiza-se na verificação de factos que nos permitam indiciar que os arguidos têm capacidade e podem prejudicar, a actividade de recolha da prova e a eficácia probatória da prova indiciária já adquirida.
A este propósito exemplifica a doutrina as seguintes situações susceptíveis de evidenciar perigo de perturbação do inquérito: combinação com os outros arguidos de uma determinada versão para os factos, simulando novos factos ou falsos álibis, atemorização ou suborno das testemunhas, fazer desaparecer documentos probatórios ou até produzir documentos falsos — conforme afirma o Prof. Germano Marques da Silva no seu “Curso de Processo Penal”, volume II, 3.ª edição, ..., página 267.
O perigo de perturbação do inquérito é maior nas fases preliminares do processo e diminui com o decurso do tempo e com a realização das diligências probatórias mais importantes, o que aliás se compreende pela própria dinâmica processual e de solidificação da prova — veja-se, neste sentido, o acórdão do TEDH no caso Clooth v. Bélgica, citado por Paulo Pinto de Albuquerque, em “Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2.ª edição, pág. 576.
Por outro lado, a protecção da prova é dirigida não só à prova já recolhida nos autos, mas também à prova a recolher.
Com efeito, visa-se não só salvaguardar o material probatório já recolhido nos autos, de forma a evitar que possa ser inquinado pelo arguido, mas também aquele que se espera vir a adquirir, através da realização de diligências futuras e em curso, de forma a evitar que o arguido possa frustrar os resultados visados com essa obtenção.
Como se refere no acórdão do Tribunal da Relação do Porto, processo 0410450, datado de 17-03-2004, disponível em www.dgsi.pt,“ estando em investigação uma actividade que se desdobra por diversas pessoas e com ramificações e pontos de contacto em vários locais, incluindo no estrangeiro, havendo certamente elementos ainda por explorar e verificar, e sendo que, como já decorre dos elementos carreados para os autos, a arguida é figura de relevo em toda a engrenagem, é naturalmente de recear que, em liberdade, conhecendo bem, como conhece, os meandros da actividade desenvolvida e os elementos que possam ser decisivos para a sua aclaração, tente dificultar o esclarecimentos dos factos e a aquisição de provas ainda não exploradas”.
Quanto às medidas de coacção estribamo-nos no entendimento propugnado no Acórdão da Relação de Lisboa de 11.04.2013 proc. 128/11.1TELSB-.J.1,1, que diz: "Fernando Gonçalves e Manuel João Alves, in "A Prisão Preventiva e as Restantes Medidas de Coacção", pág. 87, dizem que "as medidas de coacção são meios processuais penais limitadores da liberdade pessoal, de natureza meramente cautelar, aplicáveis a arguidos sobre os quais recaiam fortes indícios da prática de um crime".
Por outro lado, também dispõe o art° 191°, n° 1, de (PP que "a liberdade das pessoas só pode ser limitada, total ou parcialmente, em função de exigências processuais de natureza cautelar, pelas medidas de coacção e de garantia patrimonial previstas na lei".
É a consagração do Princípio da Legalidade.
Porém, o art° 193º, do CPP, por sua vez, consagrando os Princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade, já preceitua no seu n° 1 que "as medidas de coacção e de garantia patrimonial a aplicar em concreto devem ser necessárias e adequadas às exigências cautelares que o caso requer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas ".
No que à prisão preventiva diz respeito, o n° 2 também dispõe que "a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação só podem ser aplicadas quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coacção ".
Resulta ainda do art° 204°, do CPP, prevendo este os chamados requisitos gerais de aplicação das medidas de coacção, que “nenhuma medida de coacção, excepção da prevista no art° 196°, pode ser aplicada se em concreto se não verificar, no momento da aplicação da medida:
a)Fuga ou perigo de fuga;
b)Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo
e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou
c)Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas”
Quanto à hipótese de aplicação da "prisão preventiva", por sua vez, dispõe o art° 202°, n° al. a), do CPP que, "se considerar inadequadas ou insuficientes, no caso, as medidas referidas nos artigos anteriores, o juiz pode impor ao arguido a prisão preventiva quando houver fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 5 anos (..)"
Contudo, e como se referiu, para que se opte pela prisão preventiva como medida de coacção é necessário que se verifique, cumulativamente com qualquer um dos pressupostos constantes do referido art° 202°, também, e pelo menos, uma das condições ou requisitos descritas no citado art° 204º.
Temos assim que, a prisão preventiva, enquanto medida de coacção, só poderá ser aplicada quando todas as outras se mostrarem inadequadas ou insuficientes, tendo a mesma, como diz (sic) Tolda Pinto, in 'A Tramitação Processual Penal", .2a ed., um carácter residual ou subsidiário, o que resulta, aliás, do princípio constitucional consagrado no are 28°, da CRP.
"O recurso aos meios de coacção deve orientar-se pelos princípios da sua necessidade e menor intervenção possível (...) e é no âmbito da prisão preventiva (enquanto meio de coacção mais gravoso) que se afirmam com particular intensidade aqueles princípios, especialmente o da necessidade", refere ainda aquele autor.
Também Germano Marques da Silva, in "Curso de Processo Penal", 2a ed., II vol., pág. 250, diz que "não pode nunca esquecer-se o princípio constitucional da presunção de inocência que impõe que as medidas de coacção e de garantia patrimonial sejam na maior medida possível compatíveis com o estatuto processual de inocência inerente a fase em que se encontram os arguidos a quem são aplicadas e por isso que, ainda que legitimadas pelo fira, devam ser aplicadas as menos gravosas, desde que adequadas".
Depois, e como também resulta do texto da lei, para a aplicação da prisão preventiva exige-se ainda que fortes sejam os indícios da prática de crime doloso punível com prisão de máximo superior a 5 anos.
Leal Henriques e Simas Santos, "Código de Processo Penal Anotado", vol. 1, 3a ed., pág. 1970, nas suas anotações ao referido art° 202°, dizem que o mesmo “(...) inculca a ideia da necessidade de que a suspeita sobre a autoria ou participação no crime tenha uma base de sustentação segura. Isto é: não basta que essa suspeita assente (..) em factos de relevo que laçam acreditar que eles são idóneos e bastantes para imputar ao arguido essa responsabilidade (...)”
E pelos elementos recolhidos nos autos rectius, os que o JIC pode aqui conhecer que são os atrás mencionados, de acordo com as legis adis em vigor, e tanto quanto são do seu conhecimento, considerou o signatário, que há elementos que levam à necessidade de prevenir essa concatenação de versões, não só, pela natureza dos ilícitos em causa, como dos cuidados que dos elementos de prova recolhidos e aqui presentes para este primeiro interrogatório é patente que os intervenientes têm no que tange à actividade desenvolvida.
Relativamente ao perigo de perturbação do inquérito, que igualmente entendemos verificar-se, aproveitamos para salientar alguns aspectos já aludidos pelo M.° P.°, no âmbito de outros autos que, tal como os presentes, também acompanhamos jurisdicionalmente e aos quais nos arrimamos.
Destarte, o perigo de perturbação do inquérito como fundamento para a admissibilidade de aplicação de uma qualquer medida de coacção, à excepção do termo de identidade e residência, concretiza-se na verificação de factos que nos permitam indiciar que o arguido tem capacidade e pode prejudicar, de forma desconexa com a necessidade da sua Defesa, a actividade de recolha da prova e a eficácia probatória da prova indiciaria já adquirida.
Com efeito, há que distinguir esta actuação do arguido, dolosamente contaminadora da investigação, daquelas outras condutas que, no âmbito do exercício do direito de defesa, representam uma postura activa na recolha da prova e na identificação de novos factos, sendo que só aquela e não esta última é susceptível de legitimar a aplicação de uma medida de coacção.
A este propósito exemplifica a doutrina as seguintes situações susceptíveis de evidenciar perigo de perturbação do inquérito: combinação com os outros arguidos de uma determinada versão para os factos, simulando novos factos ou falsos álibis, atemorização ou suborno das testemunhas, fazer desaparecer documentos probatórios ou até produzir documentos falsos — conforme afirma o Prof. Germano Marques da Silva no seu "Curso de Processo Penal", volume II, 3.3 edição, ..., página 267.
O perigo de perturbação do inquérito é maior nas fases preliminares do processo e diminui com o decurso do tempo e com a realização das diligências probatórias mais importantes, o que aliás se compreende pela própria dinâmica processual e de solidificação da prova — veja-se, neste sentido, o acórdão do TEDH no caso Clooth v. Bélgica, citado por Paulo Pinto de Albuquerque, em "Comentário do Código de Processo Penal á luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2.a edição, pág. 576.
Por outro lado, a protecção da prova é dirigida não só à prova já recolhida nos autos, mas também à prova a recolher.
Com efeito, visa-se não só salvaguardar o material probatório já recolhido nos autos, de forma a evitar que possa ser inquinado pelo arguido, mas também aquele que se espera vir a adquirir, através da realização de diligências futuras e em curso, de forma a evitar que o arguido possa frustrar os resultados visados com essa obtenção.
Como se refere no acórdão do Tribunal da Relação do Porto, processo 0410450, datado de 17-03-2004, disponível em www.dosi.pt," estando em investigação uma actividade que se desdobra por diversas pessoas e com ramificações e pontos de contacto em vários locais, incluindo no estrangeiro, havendo certamente elementos ainda por explorar e verificar, e sendo que, como já decorre dos elementos carreados para os autos, a arguida é figura de relevo em toda a engrenagem, é naturalmente de recear que, em liberdade, conhecendo bem, como conhece, os meandros da actividade desenvolvida e os elementos que possam ser decisivos para a sua aclaração, tente dificultar o esclarecimentos dos factos e a aquisição de provas ainda não exploradas".
Da narração facilmente se alcança que há outros comparticipantes.
Do mesmo passo, a colocação em liberdade dos arguidos referenciados pelo MP, concorreria fortemente para serem dificultadas as diligencias conducentes à aquisição de provas, sua conservação e veracidade, permitindo até a concatenação de versões, com respeito aos intervenientes cuja responsabilidade e grau de participação estão a ser objecto de investigação, já que o inquérito ainda não está encerrado.
Ora tudo isto se verifica em relação a todos os arguidos pois não é verdade que já não há qualquer risco para se recolher prova e que o essencial da prova já está adquirido.
(…)
No quadro do princípio do pedido, ainda vigente, no reputado avançado direito processual Português, o JIC pensa ser esta uma forte possibilidade de existência de tal perigo, até por tudo o que os arguidos declararam em que há flagrantes divergências quanto ao papel de cada um e quanto à existência de terceiros comparticipantes cuja identidade, se eximiram a concretamente particularizar, e que convém não em sede de perigos necessários, como disse o M. P. mas em sede de fundamentos necessários, para a aplicação desta medida de coacção, dever prevenir-se da existência de tais perigos, assegurando à magistratura autónoma do M. P. que prossegue critérios de legalidade e objectividade, e ao O.P.C. investigador dos autos, em quem ela delegou investigação e que dela está legal e funcionalmente dependente, a possibilidade de concatenar todos os elementos sem que os arguidos possam interferir.
A necessidade de prevenir estes perigos, adequada e proporcionalmente, não se compadece, assim se entende e se faz consignar, com obrigações de apresentação, afastamento ou de proibições de ausência do território nacional ou sequer com cauções isolada ou cumulativamente com aquelas nos casos apontados pelo MP, a saber, nos casos dos Senhores AA e GG.
Todavia, ainda assim e perante a colaboração que GG se predispôs nestes dias de interrogatório a prestar, entendemos que não há razões para distinguir entre o estatuto coactivo detentivo de um e de outro.
É por isso que consideramos adequada, proporcional e suficiente a garantir os perigos invocados pelo MP e que consideramos, com as ressalvas ora aportadas, reconhecidos que iremos determinar que os arguidos AA e GG fiquem sujeitos, cumulativamente, às seguintes medidas de coacção:
- TIR;
- Proibição de contactos entre si e com todos os cidadãos e empresas mencionados no despacho de apresentação, do qual têm conhecimento;
- Obrigação de Permanência na Habitação,
Tudo nos termos e ao amparo nas disposições conjugadas nos art.ºs 191.º, n.º1, 192.º, n.º1, 193.º, n.º1 e 2, 194.º, n.º3, 196.º, 201.º, n.º 1 e 2, e bem assim o artigo 204.º, al. a), b) e c), todos do Código de Processo Penal.
Não se cuida de prender para investigar, outrossim, se pretende prevenir que quem está a ser investigado, possa interferir no desenvolvimento cabal da decisão. Foi este o raciocínio que agora ainda mais detalhadamente se vem explicar que está na base, da consideração como reconhecidos dos perigos de perturbação do inquérito e da continuação da actividade criminosa, claramente densificado, pois perante os meios de prova oferecidos, há no quadro dos indícios apurados e no raciocínio sobre eles passível de ser à luz das regras da experiencia comum e da normalidade do acontecer feito, pelo menos na óptica do JIC signatário fundados indícios de que há também perigo da continuação da actividade criminosa,
Os arguidos mencionados na promoção, agora conhecedores dos factos já apurados e das dosimetrias penais que lhes correspondem, a serem mantidos com o estatuto processual decorrente do TIR e seguindo-se mais uma vez, ao que se crê, a preclara jurisprudência dos Tribunais Superiores maximé (sic) do TRL, indicia-se que têm todas as condições para se eximir à acção da justiça atenta a gravidade dos factos agora fortemente indiciados, o que inculca que agora conhecedores da gravidade da sua situação se poderão eximir à acção da justiça, até porque na sua maioria são estrangeiros com fortes ligações aos seus países de origem e com nenhumas ligações no país que os acolheu.
O JIC signatário socorre-se do eloquente acórdão proferido para o TRL pela 5a secção criminal do venerável Tribunal da Relação de Lisboa no NUIPC 188/11.5TELSB, que se desconhece se ainda se encontra inédito, lançado sobre recurso interposto de decisão do signatário neste TCIC aonde se profere "já sabemos que a fuga ou o perigo de fuga têm que se verificar, em concreto, do momento da aplicação da medida de coacção.
Fuga em concreto não existiu ...
Relativamente ao perigo de fuga como se intui da própria denominação legal, o que está em causa é uma probabilidade razoável de verificação do evento que se pretende acautelar ( a fuga) e consequente subtracção do agente á acção da justiça. Enquanto probabilidade, a prova do perigo de fuga não será normalmente feita por via directa...
...Assim se é verdade que a gravidade da moldura penal do crime indiciado não pode em si mesma indiciar o perigo de fuga o que em caso concreto há que verificar é se o agente dispõe ou não de meios e condições que lhe permitem subtrair-se á acção da justiça quando puder e quando quiser.
Naturalmente que nenhum dos arguidos nas declarações que prestou em primeiro interrogatório admitiu a possibilidade de sair do pais. E também não lhes foi comunicada, como meio de prova uma qualquer escuta telefónica da qual conste a admissão de intenção de fuga ou que ela tenha sido abordada. Muito menos lhes foram comunicados meios de prova demonstrativos de terem já adquirido viagens para um qualquer destino no exterior ou da prática de actos concretos praticados no exterior com vista ao seu futuro estabelecimento." (...)
O JIC signatário, como vem salientando em outros autos, está a tentar coordenar-se com os tribunais de cima que são os tribunais superiores e que são, na oportunidade, os veneráveis Desembargadores em conferência ou não dos Tribunais da Relação dos diferentes distritos judiciais.
E por isso aplicando o raciocínio expendido neste acórdão aquilo que se apurou quanto á actividade dos arguidos que foi dada a conhecer neste interrogatório ao JIC forçoso é reconhecer que existem indícios de que os mesmos pela actividade que vêm desenvolvendo e a possibilidade de que não lhes seja coartada a sua liberdade ambulatória nada há nos autos que inculque que não a prosseguiriam ou, em alternativa, se tentariam eximir às consequências.
Pensamos estar coordenados com os entendimentos sancionados pelos Preclaros Veneráveis Desembargadores do TRL na avaliação incita naquele acórdão a que nos arrimámos para considerar que, no silogismo que fizemos no despacho, não fomos além nem ficámos aquém do que nos era exigível conhecer.
Renova-se pois, neste tocante do perigo de fuga toda a argumentação expendida, a considerar conjuntamente com a ora aduzida pelo MP, pois a tal nada opomos, antes aqui o corroboramos e damos por reproduzia.
Tais perigos não são eficazmente prevenidos sem a aplicação da medida de coacção mais gravosa, única que se considera adequada, proporcional e suficiente nos termos doutamente promovidos no tocante aos arguidos e que aqui se dão igualmente por reproduzidos.
Assim, concorda-se parcialmente com a avaliação e alegação do MP quanto aos perigos que invoca e às medidas de coacção que considera adequadas, proporcionais e suficientes, a preveni-los, até em rigorosa aplicação do n° 2 do art.° 194° do CPP ainda vigente, pelo que se dá aqui por reproduzida tal promoção nesse tocante, aguardando os arguidos os ulteriores termos do processo com sujeição às medidas de coacção propostas, com as seguintes alterações, a saber:
Os arguidos AA e GG fiquem sujeitos cumulativamente às seguintes medidas de coacção:
- TIR;
- Proibição de contactos entre si e com todos os cidadãos e empresas mencionados no despacho de apresentação, do qual têm conhecimento, com exceção respetivamente de GGG e PPP e no tocante a CCC, com relação a AA;
- Obrigação de Permanência na Habitação,
Tudo nos termos e ao amparo nas disposições conjugadas nos art.ºs 191.º, n.º1, 192.º, n.º1, 193.º, n.º1 e 2, 194.º, n.º3, 196.º, 201.º, n.ºs 1 e 2, e bem assim o artigo 204.º, al. a), b) e c), todos do Código de Processo Penal.
(…)
A remissão supra operada para a douta promoção do MP é-o no quadro admitido pelo próprio Tribunal Constitucional (vide Ac. De TC de 30-072003, proferido no P° 485/03, publicado no DR de II série de 04-02-2004 e pela própria Relação de Lisboa, vide Ac. TRL de 13-10-2004, proferido no P° 5558/04-3) e agora pelo Ac. do TC de 391/15, de 16.11.2015.
Tal remissão é feita não por falta de avaliação e ponderação própria da questão mas por simples economia processual.
Comunique ao OPC da área de residência dos arguidos, não só as apresentações respectivamente impostas a NN e FFF e bem assim, para que seja providenciada adequada vigilância ao cumprimento da obrigação de permanência na habitação de AA e de GG.
Comunique ao SEF e à entidade gestora do helicóptero que o arguido AA tem à sua disposição em ... no sentido deste ser removido para local próprio.
Restitua os arguidos NN e FFF, à liberdade.
Solicite ao OPC da residência dos arguidos AA e GG que confirme a chegada às suas residências, por via telemática.
Notifique.”
2.4. No dia ...-...-2023, pelo Mm.º JIC foi proferido o despacho que a seguir se transcreve nas partes relevantes, atinentes ao ora recorrente :
“Por despacho judicial proferido em .../.../2023, em acto seguido ao primeiro interrogatório judicial de arguido detido, que integra fls. 12094 a 122773, foi determinado que os arguidos AA e GG aguardassem os ulteriores termos do processo sujeitos à aplicação cumulativa das seguintes medidas de coacção:
- TIR;
- Proibição de contactos entre si e com todos os cidadãos e empresas mencionados no despacho de apresentação, do qual têm conhecimento, com excepção de GGG, de NN e de PPP, no que respeita ao arguido GG, e com excepção de CCC, no que respeita ao arguido AA;
- Obrigação de Permanência na Habitação.
Por se ter considerado mostrar-se a aplicação cumulativa destas medidas de coacção necessária, adequada e proporcional aos perigos de fuga, de perturbação do decurso do inquérito e de continuação da actividade criminosa, que se pretendiam acautelar.
Posteriormente, por decisão de fls. 13170 (primeiro segmento), foi também excepcionada a proibição de contactos com QQQ, no que respeita ao arguido GG.
Por promoção que integra fls. 14844 a 14853, o Ministério Público pronunciou-se no sentido de:
- relativamente ao arguido AA, por o perigo de continuação da actividade criminosa se mostrar mitigado, a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação dever ser substituída pela aplicação cumulativa das seguintes medidas de coacção:
(i.) prestação de caução, por depósito bancário, em montante não inferior a € 10.000.000,00 (dez milhões de euros);
(ii.) proibição de contactos com os demais arguidos e, bem assim, com todos os colaboradores de todas as empresas conexas com o arguido GG e do grupo ... (mesmo os que foram, entretanto, suspensos de funções), referidos na imputação;
(iii.) – proibição de ausência para o estrangeiro sem prévia autorização.
(…)
No que respeita ao arguido AA, concordamos, na íntegra, com os fundamentos de facto e de direito enunciados pelo Ministério Público a fls. 14845 a 14848, que, por uma questão de economia processual aqui damos por integralmente reproduzidos, sendo patente, pelos motivos que o Ministério Público aí aponta, que, relativamente a este arguido, o perigo de continuação da actividade criminosa se encontra mitigado, pelo que no uso da faculdade prevista no art. 212.º, n.º 3 do Cód. Processo Penal, e por considerarmos verificar-se uma atenuação das exigências cautelares que determinaram a aplicação da medida de coacção de obrigação de permanência na habitação, se decide substituir este medida pela aplicação cumulativa das seguintes medidas de coacção:
(i) – prestação de caução, por depósito bancário, no montante de € 10.000.000,00 (dez milhões de euros), por considerarmos ser esta quantia proporcional aos montantes envolvidos nos autos e à condição sócio-económica do arguido;
(ii.) – proibição de contactos com os demais arguidos e, bem assim, com todos os colaboradores de todas as empresas conexas com o arguido GG e do grupo ... (mesmo os que foram, entretanto, suspensos de funções), referidos na imputação (com excepção de CCC)
(iii.) – proibição de ausência para o estrangeiro sem prévia autorização.
O que se determina em conformidade com os princípios constantes dos artigos 191.º, 192.º, 193.º, 195.º, 196.º, 200.º, n.º 1, al. d), 201.º, n.ºs 1 e 2, 204.º, n.º 1, als. a), b) e c) e 206.º do Código de processo Penal.
Apenas cessando a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação, a que o arguido se encontra sujeito, na data em que for julgada validamente prestada a referida caução.
Notifique.”
2.5. No dia ...-...-2023 o ora recorrente prestou caução no valor de € 10.000.000,00, através de DUC (ref. citius 192491).
2.6. Embora não se tenha constatado a prolação de despacho declarando cessada a medida de coação de OPH , certo é que a ...-...-2023 foi proferido despacho autorizando o arguido, ora recorrente a deslocar-se a ... (cf. ref. citius 8612134), fixando-se o regresso a Portugal para o dia ... de ... de 2023, o que, naturalmente, pressupõe a cessação da dita medida de coacção, encontrando-se o arguido actualmente, em liberdade e sujeito às medidas coactivas determinadas no mencionado despacho de ...-...-2023.
3. Apreciando.
3.1. Em face do teor do despacho do Mmº JIC de ...-...-2023 e do pagamento, efectivo da caução aí fixada por parte do recorrente, há que julgar, a inutilidade superveniente do pedido por este formulado, de “ser julgado procedente e, em consequência, ser revogado o despacho recorrido que determinou a sujeição do arguido à medida de coação de obrigação de permanência na habitação, mantendo-se a proibição de contactos já imposta, cumulada, caso se entenda necessário, pela prestação de caução por depósito”.
3.2. A Nulidade da decisão recorrida.
Entende o arguido que,
- para efeitos de aplicação de medidas de coacção, com excepção do TIR, o artigo 194.º/6 alínea b) CPPenal exige a enunciação dos elementos do processo que indiciam os factos imputados;
- a mera enunciação nominativa dos elementos do processo (volumes, apensos, interceções telefónicas e autos de busca) não dá qualquer informação — a exigida pelo referido artigo 194.º - sobre em que elementos do processo o despacho a quo se fundou;
- a indiciação do recorrente e a avaliação da sua conduta são textualmente mera reprodução do alegado pelo MP, inexistindo valoração própria dos indícios de crime pelo JIC, pelo que, o despacho a quo é nulo, cominação taxada pelos artigos 97.º/5 e 194.º/ 6, corpo, CPPenal - nulidade que é atendível nesta sede, nos termos do artigo 410.º/3 Código de Processo Penal.
Subsidiariamente,
- o artigo 194.º/6 CPPenal interpretado no sentido de que a nulidade do despacho judicial de aplicação das medidas de coação, por falta de fundamentação, fica sanada se não for arguida até ao final da diligência em que se procedeu à notificação do mesmo, redunda em norma materialmente inconstitucional, por violação dos artigos 1.º, 2.º, 3.º/ 3, 16.º/ 1 e 2, 18.º/1, 2 e 3, 20.º/ 1 e 4 e 32.º da CRP e 6.º/2 da CEDH;
- o artigo 194.º/6 CPPenal interpretado conjuntamente com os artigos 119.º, a contrario e 120.º/ 1 e 3 alínea a) CPPenal, no sentido de que a nulidade do despacho judicial de aplicação das medidas de coação, por falta de fundamentação, fica sanada se não for arguida até ao final da diligência em que se procedeu à notificação do mesmo, redunda em norma materialmente inconstitucional, por violação dos artigos 1.º, 2.º, 3.º/ 3, 16.º/1 e 2, 18.º/ 1, 2 e 3, 20.º/ 1 e 4 e 32.º da CRP e 6.º/2 da CEDH;
- o artigo 410.º/3 CPPenal interpretado no sentido de que a nulidade do despacho judicial de aplicação das medidas de coação, por falta de fundamentação, não pode ser arguida no recurso interposto dessa mesma decisão judicial, redunda em norma materialmente inconstitucional, por violação dos artigos 1.º, 2.º, 3.º/ 3, 16.º/ 1 e 2, 18.º/1, 2 e 3, 20.º/ 1 e 4 e 32.º da CRP e 6.º/2 da CEDH;
- o artigo 410.º/3 CPPenal interpretado conjuntamente com os artigos 119.º, a contrario e 120.º/1 e 3, alínea a) CPPenal, no sentido de que a nulidade do despacho de aplicação das medidas de coação, por falta de fundamentação, não pode ser arguida no recurso interposto dessa mesma decisão judicial, redunda em norma materialmente inconstitucional, por violação dos artigos 1.º, 2.º, 3.º/ 3, 16.º/ 1 e 2, 18.º/ 1, 2 e 3, 20.º/ 1 e 4 e 32.º da CRP e 6.º/2 da CEDH;
- o artigo 379.º/2 CPPenal interpretado conjuntamente com o artigo 4.º e com o artigo 194.º/6 CPPenal, bem como com os artigos 119.º, a contrario e 120.º/ 1 e 3 alínea a) CPPenal, no sentido de que o regime de arguição de nulidade da sentença em recurso não pode ser aplicado, por analogia, à arguição de nulidade do despacho de aplicação de medidas de coação por falta de fundamentação, redunda em norma materialmente inconstitucional, por violação dos artigos 1.º, 2.º, 3.º/ 3, 16.º/1 e 2, 18.º/1, 2 e 3, 20.º/1 e 4 e 32.º da CRP e 6.º/2 da CEDH.
Diz o arguido que na contemplação da narrativa descrita pelo JIC concluiu que ele, arguido, «(...) agiu, no decurso dos factos acima narrados e relacionados com os contratos com a ... e seus fornecedores, com o propósito de obter vantagens pessoais e para as sociedades por si controladas através do controlo e viciação do processo de decisão dentro do ..., desrespeitando e induzindo a violação por outros colaboradores do Grupo das regras a que estavam obrigados, abusando da capacidade de condicionar as decisões de contratação proferidas dentro do mesmo grupo para impor a intermediação de sociedades controladas por GG aos fornecedores daquele grupo, sabendo e pretendendo distorcer as regras da concorrência, incluindo através da atribuição de vantagens indevidas a si próprio e a terceiros» e que tal se fundava na prova dos autos — volumes 1 a 26, Apensos listados de fls. 11729 a 11736, designadamente, os Apensos Bancários contidos nas caixas 3 a 10, autos de busca e apreensão, bem como autos de interceção telefónica juntos no decorrer dos interrogatórios e auto de busca no …,….
Mais refere o arguido que não existe qualquer indício de que o JIC tenha tido em conta, ao contrário do que afirma, o interrogatório do recorrente ou que tenha feito uma avaliação própria da indiciação, a que se soma uma apreciação da sua conduta que é copy and paste da efectuada pelo MP - para o que basta ler uma e outra (cf. págs. 7 a 12, MP, e 164 a 169, JIC) – num despacho que, pouco mais de 3 horas sobre o termo da tomada de posição dos intervenientes processuais (cf., no auto de interrogatório, termo da tomada de posição de MP e defesas e início do despacho do JIC), foi, necessariamente, reposição de matéria legitimamente conservada em computador, mesmo quando se reproduzem passos que nada tem que ver com este processo (cf. pág. 154 do auto de interrogatório).
E, defende que estando indiciado por crimes de corrupção ativa, corrupção passiva, branqueamento e falsificação de documentos, estas qualificações, para efeitos de aplicação de medidas de coação, exceptuado o TIR, exigem a «enunciação dos elementos do processo que indiciam os factos imputados», nos termos do artigo 194.º/6 alínea b) CPPenal, sendo imediato e meridiano que a mera enunciação nominativa dos elementos do processo (volumes, apensos, interceções telefónicas e autos de busca) não dá qualquer informação - a exigida pelo referido artigo 194.º - sobre em que elementos do processo o despacho se fundou – a que acresce a ausência de valoração própria dos indícios de crime, como evidencia o facto de a indiciação do recorrente e a avaliação da sua conduta serem textualmente mera reprodução do alegado pelo MP.
Diz o MP que,
- a indiciação produzida ao longo do inquérito, cujo processado foi integralmente apresentado à Defesa dos arguidos, foi vertida na imputação e esta foi reconhecida como indiciada em sede de decisão de aplicação de medidas de coação, conduzindo assim a que o arguido AA tenha sido indiciado como autor, quer à data da aplicação inicial das medidas quer no presente, da prática dos crimes de corrupção activa e passiva no sector privado, na forma agravada, p. e p. nos arts. 8.0 e 9.0 da Lei 20/2008, de 21 de Abril, na redação introduzida pela Lei 30/2015, de 22 de Abril, bem com de crimes de branqueamento de capitais e de falsificação de documentos;
- a decisão recorrida respeita a obrigação legal específica de fundamentação da decisão que aplica medidas de coação diferentes do termo de identidade e residência, conforme previsto no art. 194.0-6 do Cod. Processo Penal, devendo entender-se que o mesmo preceito apenas sanciona com a nulidade os casos de ausência total de qualquer dos parâmetros de fundamentação exigidos no mesmo dispositivo;
- a alegada nulidade por falta de fundamentação não foi previamente invocada perante a primeira instância, mas sim diretamente alegada em sede de recurso, não que se exija a arguição no próprio acto, mas sim a invocação prévia perante a primeira instância, como forma de respeitar o princípio do aproveitamento e da reparação dos actos jurídicos;
- a decisão recorrida começa por recuperar as circunstâncias e as decisões que determinaram a detenção fora de flagrante delito dos arguidos, para os submeter a primeiro interrogatório judicial, culminando essa primeira parte com a validação das detenções realizadas, incluindo quanto à apresentação judicial dos arguidos detidos;
- de seguida, a decisão recorrida, enuncia os factos concretamente imputados aos arguidos, fazendo cópia dos factos narrados pelo Ministério Público aquando da apresentação judicial dos mesmos arguidos, o que se estende entre folhas 12109 e folhas 12202 dos autos, após o que, num longo parágrafo constante de folhas 12202, enuncia os indícios que foram analisados, concluindo pela indiciação dos factos imputados aos arguidos;
- a decisão recorrida transcreve a promoção do Ministério Público relativa à apreciação dos indícios e aplicação de medidas de coação, folhas 12225 e seguintes, bem como analisa as respostas apresentadas pelas Defesas dos arguidos, manifestando a concordância com a promoção do Ministério Público, para a qual remete, o que reafirma no final da decisão, conforme passagem constante de folhas 12271;
- a decisão procede ainda à apreciação específica dos factos indiciados quanto à relação entre os arguidos GG e AA, folhas 12259 e folhas 12266 e seguintes, reconhecendo que foi devido à intervenção de AA que as sociedades controladas pelo arguido GG, ora recorrente, foram colocados no centro dos negócios com a ..., em múltiplas oportunidades;
- por fim, a decisão procede à análise dos perigos de fuga, de perturbação da recolha e conservação da prova e da continuação da atividade criminosa, quer sob um ponto de vista abstrato quer concretamente, relativamente a cada um dos arguidos, conforme folhas 12260 e seguintes, reconhecendo que existe um vasto conjunto de prova, designadamente pessoal, que importa ainda recolher, e reconhecendo a verificação dos perigos elencados pelo Ministério Público, passagem de folhas 12271;
- a definição das medidas de coação aplicadas é feita pela decisão recorrida a partir de folhas 12272 dos autos, decidindo num sentido divergente da posição assumida pelo Ministério Público, uma vez que foram aplicadas medidas idênticas para os arguidos AA e GG e não a medida de prisão preventiva quanto a este último, tal como havia sido promovido;
- entende o ora Recorrente que a fundamentação da indiciação deveria ter indicado os indícios que foram considerados para que cada facto tivesse sido considerado indiciado, mas não é essa a exigência da Lei, uma vez que o que o art. 194.º-6 b) do Cod. Processo Penal estipula é que sejam enunciados os elementos do processo que indiciam os factos imputados, não havendo qualquer exigência relativamente a cada um dos factos imputados, pelo que se deve considerar que a decisão recorrida respeitou as exigências de fundamentação previstas nas alíneas a) e b) do no 6 do art. 194.º do Cod. Processo Penal;
- a decisão recorrida faz ainda referência expressa, na passagem de folhas 12267, página 200 da acta onde se insere a decisão, às vantagens indevidas atribuída diretamente por GG à pessoa de AA, ora recorrente, com expressa menção à "disponibilização de casas, de cozinheiros, de cartões para uso de senhoras das relações de AA, ou, ainda, para forjar facturas, a beneficio do genro de AA ou do pai deste, a tudo se predispôs, até para comprar um carro para uma das Senhoras, por forma a que AA nunca se expusesse;
- relativamente à qualificação jurídica dos factos imputados é evidente que a mesma consta da fundamentação da decisão recorrida, até porque, quanto à mesma, a motivação expressa largas considerações jurídicas, conclusões dos parágrafos 22. e seguintes, revelando que percebeu a integração jurídica realizada e que expressa relativamente à mesma a sua discordância, o que não poderia fazer se a mesma não constasse da decisão;
- a análise da verificação dos perigos que são pressupostos da aplicação das medidas de coação consta da passagem de folhas 12260 e seguintes da decisão recorrida, página 193 e seguintes do auto onde se insere, a que se soma a adesão expressamente feita à promoção apresentada pelo Ministério Público quanto à aplicação de medidas de coação, promoção que foi feita constar da própria decisão recorrida e para a qual se remete, conforme folhas 12271 (página 204 do auto onde se insere a decisão recorrida), pelo que se mostra respeitada a exigência de fundamentação prevista na alínea d) do art. 194.º-6 do Cod. Processo Penal;
- no que se refere ao perigo de continuação dos esquemas negociais corruptos com a ..., refere expressamente a decisão recorrida que foi o arguido AA quem "colocou GG no centro do coração dos negócios da ... em múltiplas oportunidades, como o próprio GG o reconhece, sendo por isso evidentes os perigos, não só de se liberalizarem os contactos de todos estes Senhores constantes da indiciação, entre si, como também de se lhes permitir uma liberdade ambulatória que lhes permita exactamente forjar explicações ou, no limite, eximirem-se à acção da justiça”;
- a técnica de fundamentação das decisões através da remissão para a promoção que as antecede não significa que foi dispensada a avaliação crítica e autónoma dos indícios recolhidos e dos factos indiciados, sendo uma técnica com plena conformidade com as exigências da Constituição da República;
- sobre o preenchimento dos ilícitos imputados, o ora Recorrente, AA, volta a distorcer os factos com que foi confrontado e até mesmo as suas declarações em interrogatório, para procurar fazer crer que as atribuições patrimoniais que lhe foram proporcionadas por GG se inserem numa lógica de normalidade e de quem procura estar nas "boas graças" do ora Recorrente conforme se expressa na conclusão do parágrafo 15. da motivação;
- foram imputados e exibidos indícios ao arguido ora Recorrente relativos a actos concretos de pressão sobre as decisões de contratação a produzir dentro do ..., como aconteceu com a atribuição da exploração de uma loja ... a uma sociedade detida pela actual companheira de GG e controlada de facto por este último, bem como quanto à decisão de venda de imóveis e até à necessidade de manter oculto o nome GG, por o mesmo não ser do agrado do principal acionista da ..., o referido II o arguido foi confrontado com o teor das suas conversas com CC, gravadas nas sessões 337, do alvo ..., e 2360, do alvo ...;
- o teor confuso e vazio de sentido da conclusão 28. da motivação, expressa a dificuldade do ora Recorrente, AA, para explicar a sua intervenção junto de CC no sentido de pressionar para as vendas de imóveis a favor de sociedades de GG, sendo evidente que a ocultação do nome do mesmo seria conseguida pela venda a sociedades onde o mesmo não figurava formalmente como sócio.
Vejamos.
A questão da falta de fundamentação tem uma vertente formal (artigos 97.º/5 e 194.º/6 do CPP) e, uma outra material, esta no que concerne à verificação, ou não, dos pressupostos substantivos e adjectivos de que depende a aplicação das decretadas medidas de coacção – que no caso tem subjacente a afirmada forte indiciação dos factos, susceptíveis de integrar a previsão legal de vários tipos legais de crime.
Vejamos, desde já, a vertente formal, para depois, abordarmos a material, dado que esta está imbricada com a verificação dos requisitos de aplicação das decretadas medidas de coacção.
O dever de fundamentação das decisões judiciais, nos casos e nos termos previstos na lei, é uma exigência e, ao mesmo tempo, uma garantia constitucional integrante do conceito de Estado de direito democrático (artigo 205.º/1 da CRP), com concretização ordinária no direito processual penal, quanto à sentença ou acórdão nos artigos 97.º/1 alíneas a) e c), 2 e 3 e 374.º/2 e, quanto ao despacho, fora dos casos de mero expediente no artigo 97.º/5, todos do CPP.
Num Estado de direito é pela fundamentação que a decisão judicial se legitima e ao mesmo tempo possibilita um efetivo direito ao recurso.
Está em causa nos autos a aplicação de medidas de coacção, matéria regulada pelos artigos 191.º a 211.º CPP.
Como se refere no recente acórdão deste Tribunal, de 27.9.2023 (proc. n.º 196/23.3JAPDL-A.L1-3, www.dgsi.pt, que, pela sua lisura e clareza, aqui recorremos para enquadrar a questão), “estas normas dos artigos 194.º/6 alínea b) e 141.º/4 alínea e) CPPenal contêm uma regulamentação específica em matéria de aplicação de medidas de coacção e de garantia patrimonial e materializam a necessidade de balanceamento entre os fins de natureza e ordem pública inerentes à realização da justiça penal e à procura da verdade material e as garantias do processo justo e equitativo, com especial enfoque para as garantias de defesa do arguido, mais especificamente, o direito ao contraditório, assim como os tais direitos fundamentais de carácter individual destinados a assegurar a liberdade, a privacidade e segurança de todos os intervenientes no processo.
Isto, num contexto histórico e legislativo em que a natureza secreta do processo penal durante a fase do inquérito era o regime regra, o que aconteceu até à entrada em vigor da Lei 48/2007 de 29 de Agosto, só após se tendo convertido em excepção, para o CPP (embora para a Constituição continue a ser a regra, como parece resultar dos termos do artigo 32.º/5 da CRP, ao prever que só há contraditório no julgamento e nos actos instrutórios que a lei determinar. «(…) Isto é, segundo a Constituição em vigor, a lei não tem que determinar os actos instrutórios que não estão subordinados ao princípio do contraditório (e a publicidade interna), mas antes o inverso», no que parece ser a consagração do segredo interno na fase preparatória do processo, como regra, sendo a publicidade interna a determinar pela lei, a excepção - Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal à Luz da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4.ª ed., Lisboa, 2011, p. 262).
O princípio do secretismo do inquérito então vigente postulava a constatação de que uma proibição genérica e absoluta de acesso aos autos, sempre e em quaisquer circunstâncias, envolveria a violação dos princípios do contraditório e do acesso aos tribunais, não se garantindo ao réu todas as garantias de defesa reconhecidas quer pelo artigo 6.º da CEDH, quer pelo artigo 32º nºs 1 e 5 da Constituição Portuguesa (Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 121/97 e 416/... in http://www.tribunalconstitcional.pt), concretamente, na dimensão que assume no processo penal, tanto para a acusação como para a defesa, quanto à possibilidade de tomar conhecimento dos argumentos de facto e de direito aduzidos e dos meios de prova produzidos ou apresentados pela outra parte e aos poderes processuais de os discutir e rebater, com outros argumentos e com outros meios de prova.
“Relativamente aos actos jurisdicionais atinentes à aplicação de medidas de coacção e de garantia patrimonial importa que sejam públicos e que o arguido tenha efectivamente meios de se defender, o que passa pelo conhecimento das provas contra ele carreadas», na medida em que «uma medida de coacção representa sempre a restrição da liberdade do arguido e por isso só na impossibilidade ou em circunstâncias verdadeiramente excepcionais deve ser aplicada sem que antes se tenha dado a possibilidade ao arguido de se defender, ilidindo ou enfraquecendo a prova dos pressupostos que a podem legitimar”, tratando de uma limitação do direito do arguido à informação atentatória dos direitos de defesa consagrados no art. 32º nº 1 da Constituição (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III vol., 2.ª edição, Editorial Verbo, 2000, pág. 101 e II volume da mesma obra, edição de 1993, pág. 223. No mesmo sentido, Menezes, Leitão, O segredo de justiça em processo penal, Estudos Comemorativos do 150.º Aniversário do Tribunal da Boa-Hora, Ministério da Justiça, Lisboa, 1995, págs. 228-229 e Assunção Esteves, A jurisprudência do Tribunal Constitucional relativa ao segredo de justiça, em O Processo Penal em Revisão – Comunicações, Universidade Autónoma de Lisboa, Lisboa, 1998, págs. 123-131).
Ainda assim, «não se trata de afirmar o acesso irrestrito do arguido a todo o inquérito, mas apenas aos específicos elementos probatórios que foram determinantes para a imputação dos factos, para a ordem de detenção e para a proposta de aplicação da medida de coacção de prisão preventiva.”
Vigorando no presente, a regra da publicidade do inquérito, a interpretação que pode e deve retirar-se, quer do teor literal das normas contidas no artigo 141.º/4 alínea e) e no artigo 194.º/6 alínea b), quer da unidade do sistema, nos termos do artigo 9.º do Código Civil, a partir das circunstâncias em que a lei foi elaborada e das condições específicas do tempo em que é aplicada, é a de que, o carácter predominantemente secreto da fase do inquérito não deverá constituir um obstáculo intransponível ao acesso pelo arguido aos elementos de prova sempre que tal acesso se mostre necessário para a eficácia da defesa dos seus direitos nessa fase, designadamente para contraditar – e, sendo caso, impugnar – a necessidade da aplicação de medidas de coacção, nomeadamente a sujeição a prisão preventiva.
Em contrapartida, mesmo nos inquéritos públicos se, em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido ou noutro tipo de audição prévia do arguido para efeitos de aplicação de medida de coacção ou de garantia patrimonial, feita a análise do conteúdo de cada um dos elementos de prova já disponíveis no processo em que se fundamenta a indiciação dos crimes em investigação e face à ponderação, também em concreto, entre o prejuízo que a sua revelação possa causar à investigação e o prejuízo que a sua ocultação possa causar à defesa do arguido, as garantias de defesa do arguido podem ceder perante o interesse da investigação, se se verificarem riscos de comprometimento desta, ou de criação de entraves à descoberta da verdade ou os perigos para a vida, a integridade física ou psíquica ou para a liberdade dos participantes processuais ou das vítimas do crime.
Trata-se, pois, de uma regulamentação específica, expressamente pensada para os actos processuais que envolvem a aplicação de medidas de coacção e de garantia patrimonial, com ou sem segredo de justiça decretado, mas com suficiente flexibilidade para se harmonizar com ele e garantir o tal equilíbrio entre os diversos interesses em potencial confronto.
Em matéria de requisitos formais do despacho que as aplica, na parte que ao caso interessa, a disciplina imediata é a dos artigos 194.º e 97.º CPP.
Dispõe o n.º 4 do artigo 141.º CPP – que tem a epígrafe de 1.º interrogatório judicial de arguido detido - que ”seguidamente, o juiz informa o arguido:
a) dos direitos referidos no artigo 61º/1, explicando-lhos se isso for necessário;
b) de que não exercendo o direito ao silêncio as declarações que prestar poderão ser utilizadas no processo, mesmo que seja julgado na ausência, ou não preste declarações em audiência de julgamento, estando sujeitas à livre apreciação da prova;
c) dos motivos da detenção;
d) dos factos que lhe são concretamente imputados, incluindo, sempre que forem conhecidas, as circunstâncias de tempo, lugar e modo e,
e) dos elementos do processo que indiciam os factos imputados, sempre que a sua comunicação não puser em causa investigação, não dificultar a descoberta da verdade nem criar perigo para a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade dos participantes processuais ou das vítimas do crime,
ficando todas estas informações, à excepção das previstas na alínea a) a constar do auto de interrogatório”.
As alterações a esta norma – ressalvada a última, acerca da valoração das declarações, que ao caso não vem – introduzidas através da Lei 48/2007, aconteceram na sequência de decisões proferidas sobre a matéria, pelo Tribunal Constitucional, como de resto, aconteceu, em relações a muitas outras normas, que passaram a consagrar o entendimento que sobre elas este Tribunal vinha manifestando, ao longo dos tempos.
Com efeito no Ac. 416/... aquele Tribunal havia decidido, “ser inconstitucional aquela norma, quando interpretada no sentido de que, no decurso do interrogatório do arguido detido, a “exposição dos factos que lhe são imputados” pode consistir na formulação de perguntas gerais e abstractas, sem concretização das circunstâncias de tempo, modo e lugar em que correram os factos que integram a prática desses crimes, nem comunicação ao arguido dos elementos de prova que sustentam aquelas imputações e na ausência da apreciação em concreto da existência de inconveniente grave naquela concretização e na comunicação dos específicos elementos probatórios em causa”.
Como da mesma forma decidiu no Ac. 607/2003, ser inconstitucional a mesma norma, na interpretação segundo a qual, “no decurso do interrogatório de arguido detido, a exposição de factos que lhe são imputados e dos motivos das detenção se basta com a indicação genérica ao arguido das infracções penais de que é acusado, da identidade das vítimas como alunos, à data da casa Pia de Lisboa e outras pessoas, mas todas elas menores de 16 anos, estando o tribunal dispensado, por inutilidade, de proceder a maior pormenorização além da que resulta da indicação feita em tais termos, quando o arguido, confrontado com ela, tome a posição de negar globalmente os factos e na ausência de apreciação em concreto da existência de inconvenientes graves naquela concretização”.
Na sequência daquela alteração legislativa, da mesma forma, sofreu alteração o artigo 194.º, desde logo, o seu n.º 3, que dispunha que “o despacho o juiz a aplicar medidas de coacção, é notificado ao arguido e dele constam a enunciação dos motivos de facto da decisão e a advertência das consequências do incumprimento das obrigações impostas”.
Com efeito, hoje, o n.º 6 desta norma contêm a seguinte redacção:
“a fundamentação do despacho que aplicar qualquer medida de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção do termo de identidade e residência, contém, sob pena de nulidade:
a) a descrição dos factos concretamente imputados ao arguido, incluindo, sempre que forem conhecidas, as circunstâncias de tempo, lugar e modo;
b) a enunciação dos elementos do processo que indiciam os factos imputados, sempre que a sua comunicação não puser gravemente em causa a investigação, impossibilitar a descoberta da verdade ou criar perigo para a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade dos participantes processuais ou das vítima do crime;
c) a qualificação jurídica dos factos imputados;
d) a referência aos factos concretos que preenchem os pressupostos de aplicação da medida, incluindo os previstos nos artigos 193º e 204”;
e o nº. 7,
”sem prejuízo do disposto na alínea b) do nº. anterior, não podem ser considerados para fundamentar a aplicação ao arguido de medida de coacção ou garantia patrimonial, à excepção do termo de identidade e residência, quaisquer factos ou elementos do processo que lhe não tenham sido comunicados durante a audição a que se refere o nº. 4”.
“O dever de fundamentação das decisões judiciais é uma garantia integrante do próprio Estado de direito democrático, artigo 2º da Constituição da República, ao menos quanto àquelas que tenham por objecto a solução da causa em juízo", cfr Gomes Canotilho e Vital Moreira, in "Constituição da República Portuguesa Anotada", 3 ed. pág. 798.
Este dever de fundamentação mereceu consagração constitucional no artigo 205.º/1 da CRP, provindo já da revisão de 1982 (artigo 210.º/1, mantido na revisão de 1989, artigo 208.º/1).
De notar que nesta última, que deu lugar à actual redacção do artigo 205.º/1 imprimiu contornos mais precisos ao dever de fundamentação, pois, onde antes se remetia para a lei os "casos" em que a fundamentação era exigível, passou a concretizar-se que ela se impõe em todas as decisões "que não sejam de mero expediente", mantendo-se apenas a remissão para a lei quanto à "forma" que ela deve revestir.
Este aprofundamento do dever de fundamentação das decisões judiciais reforça os direitos dos cidadãos a um processo justo e equitativo, assegurando a melhor ponderação dos juízos que afectam as partes, do mesmo passo que a elas permite um controle mais perfeito da legalidade desses juízos com vista, designadamente, à adopção, com melhor ciência, das estratégias de impugnação que julguem adequadas.
“Ao legislador incumbirá, então, definir a "forma" em que a fundamentação se deve traduzir, sem que, contudo, ele possa esvaziar o sentido útil daquele mandado” - cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional 59/97, www.tribunalconstitucional.pt.
Qualquer que seja essa forma, ela terá sempre que permitir o conhecimento das razões que motivam a decisão.
Mas se a relevância da fundamentação das decisões judiciais é incontestável como garantia integrante do conceito de Estado de direito democrático, ela assume, no domínio do processo penal, uma função estruturante das garantias de defesa dos arguidos, muito embora o texto constitucional não contenha qualquer norma que disponha especificamente sobre a fundamentação das decisões judicias naquele domínio.
O Código de Processo Penal expressa no artigo 97.º/5, o princípio geral que vigora sobre a fundamentação dos actos decisórios: "os actos decisórios são sempre fundamentados devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão".
Consagrado este princípio geral, o mesmo Código não deixou de o reiterar relativamente a actos que afectam ou podem afectar os direitos dos arguidos.
Assim, antes da apontada alteração legislativa, quando o artigo 194.º/3 impunha que do despacho judicial que decrete medidas de coacção e de garantia patrimonial constasse "a enunciação dos motivos de facto da decisão" e num momento em que o CPP era omisso sobre as consequências para a sua inobservância, escrevia já o Prof. Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal, II, 1993, pág. 225), que os requisitos de fundamentação daquele despacho deveriam ser “todos os necessários para convencer da sua legalidade”. “Sobretudo na fase do inquérito, a cuidada fundamentação é absolutamente essencial para garantir o recurso. É que o arguido não tem acesso aos autos do processo e, por isso, para que o recurso possa ter eficácia importa que seja possível que o tribunal que o há-de apreciar possa tomar conhecimento das razões de facto e de direito que justificaram a aplicação da medida pelo tribunal a quo”.
Dispõe o n.º 4 do artigo 27.º da CRP que “toda a pessoa privada da liberdade deve ser informada imediatamente e de forma compreensível das razões da sua prisão ou detenção e dos seus direitos”, preceituando, por sua vez, o n.º 1 do subsequente artigo 28.º que “a detenção será submetida, no prazo máximo de quarenta e oito horas, a apreciação judicial, para restituição à liberdade ou imposição de medida de coacção adequada, devendo o juiz conhecer das causas que a determinaram e comunicá‑las ao detido, interrogá‑lo e dar‑lhe oportunidade de defesa”.
Estes específicos normativos constituem concretização, quanto aos momentos processuais nelas previstos - privação inicial da liberdade e apreciação judicial da detenção - do princípio geral, plasmado no n.º 1 do artigo 32.º, de que “o processo criminal assegura todas as garantias de de­fesa, incluindo o recurso”.
Embora inserido na fase processual do inquérito − na titularidade do MP − o interrogatório judicial de arguido detido é um acto jurisdicional que tem funções eminentemente garantísticas e não de investigação ou de recolha de prova. Trata‑se de um acto subordinado ao princípio do contraditório, em que o ar­guido surge como sujeito processual, e não como objecto da investigação, e em que o juiz de ins­trução deve tentar minorar, na medida do possível, a desigualdade inicial de que par­tem Ministério Público e arguido quanto ao conhecimento dos factos investiga­dos e da prova recolhida.
Nesta perspectiva, surge como crucial a comunicação ao arguido dos factos que lhe são imputados, quer aquando do interrogatório, quer, depois, no despacho de indiciação e de aplicação das medidas de coação.
Estamos, assim, perante um despacho, em relação ao qual o legislador, apesar de tudo, não se bastou com a regra geral, mas estabeleceu um regime específico de fundamentação, que sucessivamente veio aperfeiçoando.
Da mesma forma, disposições paralelas existem na Convenção Euro­peia dos Direitos do Homem, que, no seu artigo 5.º/2 e 4, respectivamente, estipu­lam que “qualquer pessoa presa deve ser informada, no mais breve prazo e em língua que compreenda, das razões da sua prisão e de qualquer acusação formulada contra ela”, e que “qual­quer pessoa privada da sua liberdade por prisão ou detenção tem direito a recorrer a um tribunal, a fim de que este se pronuncie, em curto prazo de tempo, sobre a legali­dade da sua detenção e ordene a sua libertação, se a detenção for ilegal”.
“O direito de saber porque se foi detido é indubitavelmente um dos direitos primordiais do indivíduo”, pois “saber que não se pode ser detido sem conhe­cer as respectivas razões é a primeira condição da segu­rança pessoal, é o teste de que se vive numa so­ciedade democrática e num verdadeiro Estado de Direito”.
Por outro lado, “conhecer os motivos da detenção é também a condição sine qua non de uma verdadeira “igualdade de armas”: para se poder de­fender, para se poder prevalecer das garantias de um processo equitativo, é preciso primeiro saber as razões pelas quais se foi detido”, sob pena de “não apenas ser ne­gado o princípio da presunção de inocência mas tam­bém a faculdade de a pessoa de­tida contestar o bem fundado das suspeitas que pesam sobre ela e de recorrer para um tribunal superior a fim de ser apreciada a legalidade da sua detenção” (cfr. Régis de Gouttes, in Louis-Edmond Petiti et alli, La Convention Européenne des Droits de l’Homme – Commentaire article par article, ed. Economica, ..., 1995, 203‑210).
Por seu turno, Ireneu Cabral Barreto (A Convenção Europeia dos Direitos do Homem Anotada, 2.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, 102‑103), sintetizando a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, recorda que “o detido deve saber a razão de ser da sua privação da liberdade”, conjugando‑se o n.º 2 com o n.º 4 deste artigo 5.º, pois “quem tem o direito de introduzir um recurso sobre as condições da sua privação de liberdade, só poderá utilizar eficazmente este direito se lhe forem comunicados, no mais curto prazo, os factos e as regras jurídicas invo­cadas para o privar dessa liberdade”.
O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem vem inter­pretando o disposto no § 4º do artigo 5.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem no sentido da essencialidade de uma "par­ticipação adequada" do arguido de modo a possibilitar-lhe a organização eficaz da sua defesa.
Embora a obriga­ção de informação prescrita no n.º 2 deste artigo 5.º seja menos estrita que a referida no artigo 6.º/3 alínea a) (relativa à comunicação da acusação), e não seja exigível que, no próprio momento da detenção, seja comunicada uma descrição completa das suspeitas que pesam sobre o detido, os factos comunicados devem, contudo, permi­tir‑lhe con­testar o bem fundado das suspeitas, sendo o grau de exigência de pormeno­rização variável consoante o conheci­mento que a pessoa detida já tenha, devido a ante­riores participações em actos proces­suais, do conteúdo dessas suspeitas.
Na comunicação dos factos, não se pode partir da presunção da culpabili­dade do arguido, mas antes da presunção da sua inocência, tal como decorre do artigo 32.º/2 da Constituição. Assim, o critério orientador nesta matéria deve ser o seguinte: a comunicação dos fac­tos deve ser feita com a concretização necessária a que um inocente possa ficar ciente dos comportamentos materiais que lhe são imputados e da sua relevância jurí­dico‑criminal, por forma a que lhe seja dada “oportunidade de defesa” (cf. artigo 28.º/1 da Constituição).
No caso sub judice, resulta da parte impressa do auto de interrogatório - o que não vem, sequer, colocado em causa – que o arguido foi informado dos motivos da detenção, dos factos que lhe são concretamente imputados e elementos do processo que os indiciam.
Assim cingir-nos-emos, tão só, quanto ao teor e fundamentação do despacho recorrido, no segmento invocado pelo arguido, atinente com a alínea b) do n.º 6 do artigo 194.º, apesar de o MP na resposta tecer considerações a propósito - sempre no sentido de estarem cumpridas - também as exigências contidas nas alíneas a) e d) - o que o arguido não coloca em causa.
Vejamos a situação da alínea b) do n.º 6 do artigo 194.º - a enunciação dos elementos do processo que indiciam os factos imputados.
Desde já devemos referir que não consta dos autos, maxime da decisão recorrida, qualquer facto/fundamentação, evidenciado estarmos perante a excepção a esta regra, que consta da parte final da norma – “sempre que a sua comunicação não puser gravemente em causa a investigação, impossibilitar a descoberta da verdade ou criar perigo para a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade dos participantes processuais ou das vítima do crime”.
Ainda que versando sobre questão e normas diversas, das aqui em questão, tendo-se decidido “julgar inconstitucionais as normas conjugadas dos artigos 86.º/1 e 89.º/2 CPP, na interpretação delas feita pela decisão recorrida, segundo a qual o juiz de instrução não pode autorizar, em caso algum e fora das situações tipificadas nesta última norma, o advogado do arguido a consultar o processo na fase de inquérito para poder impugnar a medida de coacção de prisão preventiva que foi aplicada ao arguido, por violação das disposições conjugadas dos artigos 20.º/1 e 32.º/1 e 5, da Constituição”, da fundamentação aduzida no acórdão do Tribunal Constitucional 121/97, retira-se a seguinte fundamentação:
relativamente à questão atinente com estes ele­mentos de prova, é constitucionalmente intolerável, que “se considere sempre e em quaisquer circunstâncias interdito esse acesso, com alegação de potencial prejuízo para a investigação, protegida pelo segredo de jus­tiça, sem que se proceda, em concreto, a uma análise do conteúdo desses elementos de prova e à pon­deração, também em concreto, entre, por um lado, o prejuízo que a sua revelação possa causar à investigação e, por outro lado, o prejuízo que a sua ocultação possa causar à defesa do arguido, ponderação a que, no caso, a decisão recorrida não procedeu”. (…)
Compreende-se, por isso, que Germano Marques da Silva, depois de reconhecer os esforços da doutrina - com sucesso muito limitado - para procurar, no que ao arguido respeita, a compressão do segredo no plano interno “em ordem a assegurar-lhe mais possibilidades de defesa" e fazer a verificação de que a impossibilidade de acesso aos autos e o consequente desconhecimento dos elementos de prova recolhidos no decurso do inquérito "constituem grave entrave à defesa, mesmo quando esteja em causa a liberdade do arguido", afirme que o novo Código, na "busca do equilíbrio entre os interesses da eficácia da investigação e a defesa da sociedade contra o crime, por uma parte, e a defesa do arguido por outra", tenha optado "decididamente por aquele, na fase de inquérito" [Do Processo Penal Preliminar, Lisboa, 1990, pág. 460; do mesmo autor, veja-se Curso de Processo Penal, II, Lisboa, 1993, págs. 22 e 24, obra em que se sustenta que, "pelo menos quando esteja em causa a aplicação de medidas de coacção, se deve dar ao arguido a possibilidade de ilidir as provas que, na perspectiva do MP, justificam a aplicação de uma medida, o que necessariamente terá de passar pelo conhecimento por parte da defesa dessas provas (...). As restrições a este princípio devem ser a excepção e não a regra (...)."]
Todavia, a opção do legislador português é das mais restritivas, a ponto de Germano Marques da Silva notar que, se houver recurso do despacho que impõe ao arguido a prisão preventiva ou outra medida de coacção, o mesmo se reveste de carácter "eminentemente formal", na medida em que o arguido "não pode impugnar o fundamento da decisão no que respeita à verificação dos «fortes indícios de prática de crime doloso» [art. 202º, nº 1, al. a)] já que o juiz se limita a referir que se verificam, nem à própria qualificação do crime imputado, para o que era necessário ter acesso ao processo". (…)
Na verdade, importa fazer notar que a possibilidade de o arguido, sujeito a prisão preventiva, conseguir impugnar, através de advogado, a legalidade da aplicação da medida de coacção se poderá tornar eminentemente formal, se não puder ter acesso aos autos para saber quais são os "fortes indícios da pratica do crime", ou quaisquer outros elementos relevantes para a determinação ou manutenção da prisão preventiva. (…)
É, também, seguro que o Ministério Público poderá motivar não só a resposta ao recurso como também responder aos requerimentos destinados a fazer revogar a prisão preventiva, dispondo de livre e incondicionado acesso aos autos. (…)
Nesse caso, vedando a lei, sempre e em qualquer caso, o acesso aos autos haverá violação dos princípios do contraditório e do acesso aos tribunais, não se garantindo ao réu todas as garantias de defesa previstas e asseguradas pelo art. 32.º, n.º 1, da Constituição. Isto só não deverá ser assim se houver razões ponderosas que impeçam, por força de uma avaliação concreta das circunstâncias do caso, a autorização de acesso aos autos, dados os riscos ligados a tal acesso, nomeadamente quanto a actividades probatórias ainda não concluídas respeitantes aos factos ilícitos investigados, não se traduzindo, em tal caso, a recusa de acesso - em despacho fundamentado - em restrição excessiva, dados os diferentes interesses e valores em jogo”. - Curso cit., II, pág. 23, nota 2.
No caso, estamos perante a regra definida na primeira parte da norma, contida no referido artigo 194.º/6 alínea b).
O que a este propósito consta do despacho recorrido, como vimos já e reportado a esta matéria, como impressivamente refere o MP na resposta, é a cópia dos factos, por si, narrados, como indiciariamente imputados, o que se estende entre folhas 12109 e folhas 12202 dos autos, após o que, num longo parágrafo constante de folhas 12202, se enuncia os indícios que foram analisados, concluindo pela indiciação dos factos imputados aos arguidos.
Dito isto, cremos resultar evidente, ostensivo, mesmo, que o que aqui consta, desde logo reportado ao recorrente, em termos de enunciação dos elementos do processo que indiciam os factos imputados, não tem a virtualidade de poder integrar, ainda que de forma imperfeita e insuficiente, a noção contida na aludida norma legal.
O que aqui consta - mais que decisivamente insuficiente em termos de satisfazer a mencionada exigência legal - é, de todo, absoluta e rigorosamente nada.
As apreciações aqui feitas acerca dos factos indiciados termina por referir que “tal se fundava na prova dos autos — volumes 1 a 26, Apensos listados de fls. 11729 a 11736, designadamente, os Apensos Bancários contidos nas caixas 3 a 10, autos de busca e apreensão, bem como autos de interceção telefónica juntos no decorrer dos interrogatórios e auto de busca no…,…”.
Nem se diga que a este propósito, em sede de matéria de facto, se faz a remissão para a promoção do MP, (que não se faz, de resto) sendo certo, contudo, que também ela diz rigorosamente o mesmo. Nada mais.
É evidente que a fundamentação pode ser efectuada por remissão para a promoção do MP se esta contiver todos os elementos exigidos pelo n.º 6 do artigo 194.º CPP. Desde que seja feita de forma clara e inequívoca.
Afirmar, como se faz no despacho recorrido, que estão indiciados os factos ilícitos típicos cuja prática aí se descreve e cuja autoria se imputa a um determinado arguido, é uma avaliação autónoma do juiz que decretou as medidas de coacção.
É claro que estamos perante mais de uma centena de páginas com descrição de factos e não será exagerado afirmar que perante milhares de páginas de elementos de prova – sendo certo que outros arguidos foram constituídos no processo.
Compete e exige-se ao JIC, nesta sede, no uso da sua competência jurisdicional, em sede de inquérito, fazer a apreciação, tendo como base o despacho do MP em que lhe apresenta o arguido detido para 1.º interrogatório, sobre a existência de suficientes ou de fortes, indícios, da prática pelo detido dos factos que lhe são imputados, para afinal concluir, ou não, pela verificação dos pressupostos de que depende a aplicação de uma medida de coacção.
Isto é, em suma, de comprovar a decisão do MP de lhe submeter o arguido detido para interrogatório e para aplicação de medida de coacção.
A questão aqui não está na remissão para o despacho do MP, mas sim em saber se perante a reprodução do que nele consta, a remissão efectuada primeiro pelo MP e depois pelo JIC, não para um documento, não para uma pasta de documentos, não para um apenso – o que já seria, porventura, problemático – mas sim para a prova dos autos — volumes 1 a 26, dos apensos listados de fls. 11729 a 11736, designadamente, os Apensos Bancários contidos nas caixas 3 a 10, autos de busca e apreensão, bem como autos de interceção telefónica juntos no decorrer dos interrogatórios e auto de busca no …,… - em que o destinatário terá de adivinhar o que releva, qual a leitura e interpretação feita pelo JIC, satisfaz a apontada exigência a legal.
Não há dúvida séria nem razoável sobre o facto de não estarmos perante uma remissão especificada e direcionada a um conjunto definido, delimitado e estabilizado de elementos de prova.
Porventura com excepção do auto de busca, se o arguido tivesse estado presente aquando da sua efetivação. Ou das intercepções telefónicas que lhe tivessem sido apresentadas.
É evidente que não se exige aqui uma análise crítica da prova, como acontece aquando da elaboração da sentença.
Mas o que não se pode é afirmar que no caso estão enunciados os elementos de prova que permitiram considerar como fortemente indiciados os factos imputados ao arguido.
A aplicação das medidas de coacção não está motivada nem fundamentada, neste preciso e concreto segmento, de modo a permitir ao arguido, primeiro, suscitar e a este Tribunal, depois, efectuar, a sua efectiva e cabal sindicância em recurso.
E, não se trata de motivação concisa e sintética, ainda assim, completa. Nem de sumária fundamentação. Trata-se de absoluta omissão de fundamentação.
A aduzida “fundamentação” não satisfaz minimamente o pressuposto carácter de suficiência para perfeita e inequívoca tomada de conhecimento por parte do arguido.
Esta forma de enunciação de prova - por remissão para a prova dos autos — volumes, apensos listados, designadamente, apensos bancários, autos de busca e apreensão, bem como autos de interceção telefónica juntos no decorrer dos interrogatórios e auto de busca no …, … - não está, só por si, vedada por lei.
Será em concreto mais ou menos viável, em face das exigências legais, reportadas ao caso concreto e à natureza da decisão.
E, no caso temos como pano de fundo o artigo 194.º, a traduzir um mais, em termos de grau de exigência, em relação à norma de carácter geral contida no artigo 97.º/5.
O dever de fundamentação das decisões judiciais é a forma conseguida pelo legislador de fazer sobrepor a lógica e a verdade decisórias ao capricho e ao arbítrio do seu autor, constituindo, assim, um instrumento de racionalização técnica da actividade decisória do tribunal, com um triplo objectivo: fornecer ao juiz um meio de autocontrole crítico, convencer as partes e garantir ao tribunal superior, em caso de recurso, um melhor juízo sobre a decisão de 1.ª instância. “Esta a função endoprocessual da motivação; mas esta, superando aquela função, é também instrumento para o controle extraprocessual e geral sobre a justiça, controle exercido pelo povo, já que é em seu nome que a justiça é administrada” – artigo 205.º/1 da Constituição, cfr. Michele Taruffo, BFDUC, LV, 1979, 29 e ss.
A fundamentação adequada e suficiente da decisão constitui uma exigência do moderno processo penal e realiza uma dupla finalidade: em projecção exterior (extraprocessual), como condição de legitimação externa da decisão, pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor, e motivos que determinaram a decisão; em outra perspectiva (intraprocessual), a exigência de fundamentação está ordenada à realização da finalidade de reapreciação das decisões dentro do sistema de recursos – para reapreciar uma decisão, o tribunal superior tem de conhecer o modo e o processo de formulação do juízo lógico nela contido e que determinou o sentido da decisão (os fundamentos) formulando depois, sobre tais fundamentos, o seu próprio juízo.
O rigor e a suficiência da fundamentação têm de ser aferidos por critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita exteriorizar as razões da decisão e o processo lógico, racional e intelectual que lhe serviu de suporte.
E, por isso deve ser analisado em concreto, em face da natureza da decisão.
O que pode ser suficiente e adequado numa situação pode não o ser em outra.
A aplicação das medidas de coacção decretadas faz parte da reserva do juiz - artigo 268.º/1 alínea b) CPP.
Importa afastar qualquer equívoco, pelo que é fundamental, ao aplicar uma medida de coacção que JIC o faça por decisão sua e não por se ter deixado “arrastar” pelo requerimento do MP, nesse sentido.
É essencial que a decisão surja aos olhos do cidadão, efetivamente, como uma decisão pessoal do JIC.
No Estado de direito, as aparências também têm o seu valor. Mas o exato cumprimento do dever constitucional de fundamentação não proscreve, em absoluto, a possibilidade de o juiz fundamentar a sua decisão, mediante a remissão ou a reprodução da promoção do MP, a cujo conteúdo dá adesão.
No entanto, a proibição de um tal modo de fundamentar existirá, seguramente, quando ele for suscetível de, legitimamente, criar a dúvida sobre se a decisão é uma decisão pessoal do juiz ou apenas “um seguir” o MP. O juiz deve desempenhar o papel, que é o seu, de garante das liberdades (ac. TC 189/99). Apesar desta argumentação, o TC concluiu (acs. 223/98, 189/99, 147/2000, 396/2003 e 391/2015), pela não inconstitucionalidade da solução normativa que admite a fundamentação por remissão.
Nem se diga que aludida fundamentação por remissão, por atacado, para a prova dos autos, nos termos em que foi efectuada, representou apenas e só uma economia de meios.
Até pode o JIC ter feito a sua avaliação pessoal e crítica das provas e concluir como concluiu. Mas o certo é que tal não resulta, minimamente, do que do despacho recorrido consta e da forma como aí se expressou e fundamentou a tomada de decisão.
E, não pode restar sombra de dúvida que a decisão de aplicação de medidas de coação é uma decisão pessoal do JIC, que não se limitou a, acriticamente, deixar-se “arrastar” pelo requerimento do MP - cfr. neste sentido, acórdão do STJ de 15-04-2021, proc. n.º 19/16.0YGLSB-J.S3, www.dgsi.pt
Mas nem é isso que aqui está em primeira linha em questão.
Apenas no que pode traduzir quanto à falta de enunciação dos vários elementos de prova.
Com efeito tivesse-se, por exemplo dito que em relação à pasta x, ao apenso Y, ao conjunto de facturas, de escrituras públicas, de certidões do registo predial, de extractos bancários, ainda que com um mínimo de referência, em concreto, à sua natureza/conteúdo, pertinente e relevante para o facto, para o conjunto de factos com eles relacionado e, então, o arguido teria ficado, a saber, teria entendido, teria percebido, qual a leitura feita de tal elemento de prova, da sua conexão/relacionação, do raciocínio empreendido pelo JIC, de forma a poder rebatê-lo, se fosse o caso.
Doutra forma, fica uma fundamentação em abstracto que apenas em abstracto pode ser combatida e que apenas em abstracto este tribunal pode apreciar, avaliar e julgar.
Ora, não sendo a função deste Tribunal, a de certificar, formalmente, a decisão recorrida, há que afirmar sem rebuço e sem constrangimento que a remissão feita na decisão recorrida não é uma remissão especificadamente enunciada, como seria suposto e exigido.
A questão é, por conseguinte, a de saber como interpretar a expressão “enunciação dos elementos do processo” constante do artigo 194.º/6 alínea b) CPPenal.
Enunciar significa expor, exprimir, expressar, afirmar, dizer. Não necessariamente, descrever, discriminar, reproduzir. Apenas informar, comunicar, dar a conhecer, aquilo que foi determinante para alicerçar a imputação.
O JIC não está obrigado a informar o arguido do conteúdo integral de todos e cada um dos meios de prova.
O que fez, in casu, foi remeter para a prova dos autos - volumes 1 a 26, dos apensos listados de fls. 11729 a 11736, designadamente, os Apensos Bancários contidos nas caixas 3 a 10.
O que foi feito pode ser enumerar, mas não enunciar.
Do que foi feito, seguramente – e este é que é o ponto – não é possível, a ninguém ficar a saber, a perceber, a entender, a compreender, de todo e muito menos, com a suficiência e clareza exigidas, que meios de prova, que meios de obtenção de prova, de entre as espécies enumeradas, sustentam a afirmação dos fortes indícios.
E, assim, pode-se afirmar, com total segurança, que a decisão recorrida assenta em elementos probatórios que não lhe foram comunicados.
O que nada tem que ver com caracter minucioso, com uma malha fina. Nem, como diz o MP, com a apreciação circunstanciada da prova reportada a cada facto imputado ao arguido. Nem o arguido o defende, admitindo que se faça em relação a um grupo de factos.
Como sempre a virtude, no caso a boa leitura do texto legal, estará no meio, única forma de se dar satisfação ao desiderato do legislador, de assegurar a efectiva garantia de defesa do arguido e do cumprimento e satisfação dos princípios do acusatório e do contraditório, assegurados no artigo 32.º/1 e 5 da Constituição.
Esta forma de “enunciar”, no caso e nas concretas circunstâncias processuais em que se insere, através da remissão para a prova dos autos, não cumpre com o exigido, nem pelo texto, nem pela ratio legis.
Os elementos de prova têm de ser comunicados ao arguido.
O arguido tem que os conhecer, sem o que não pode, obviamente, defender-se.
O arguido tem, por esta norma, o direito a ser informado sobre os elementos de prova – e, o que aqui não vem ao caso, pelo n.º 8 tem o direito a consultar o processo.
E, naturalmente, que não pode ser a natureza e/ou dimensão dos factos ou a diversidade e extensão da prova que pode condicionar o estrito e cabal cumprimento da lei.
Diz o arguido que,
- se trata de uma das questões mais graves de uma certa prática judiciária, na formulação, que se repete, quase sem censura, em sede de recurso, de indiciações/acusações e despachos de pronúncia;
- quer os intervenientes processuais, quer o julgador, quer as instâncias de recurso, para aquilatarem da existência ou suficiência de indícios, têm de ter a inteligência dos factos e das provas ou indícios de prova que os revelam;
- apontar como fundamento de suficiência, para um processo inteiro, como é o caso dos autos - e de milhares de processos - é violar gravemente a mais elementar lealdade processual e impedir que os destinatários e/ou instâncias de controlo, impugnem, aceitem ou controlem a sua legalidade;
- o que faz — no caso a instância de recurso — proceder a um mero controlo formal da decisão recorrida, sem a menor possibilidade de fazer o que lhe compete em sede de indiciação, apreciar, pelas espécies concretas indicadas, a suficiência dos elementos probatórios indiciários para ser formulada a imputação indiciária de factos criminosos.
E cremos firmemente que lhe assiste razão.
A enunciação dos elementos do processo que indiciam os factos, a prova indiciária, não pode ser, seguramente, a prova dos autos — volumes 1 a 26, apensos listados de fls. 11.729 a 11.736, designadamente, apensos bancários contidos nas caixas 3 a 10.
Neste contexto o arguido não beneficiou, muto longe disso, de resto, de uma mínima concretização quanto à identificação das provas que o JIC teve presentes, na afirmação indiciária dos factos que lhe imputa.
Aliás aquele forma de expressão “volumes 1 a 26, apensos listados de fls. 11.729 a 11.736 e apensos bancários nas caixas 3 a 10”, deixa transparecer, mesmo, a ideia de que nada disto, afinal, foi consultado pelo Mmº JIC.
E, assim, não pode deixar de proceder a invocada desconformidade, com a exigência legal, na fundamentação da decisão recorrida, a importar a sua nulidade.
Nem o arguido conhece os elementos do processo que indiciam os factos indiciariamente imputados – apenas tem a noção de que se trata da prova dos autos — volumes 1 a 26, dos apensos listados de fls. 11729 a 11736, designadamente, os Apensos Bancários contidos nas caixas 3 a 10.
Nem o Tribunal de recurso, os conhece e tão pouco, de forma alguma a eles pode ter acesso.
Donde o despacho é inequívoca e incontornavelmente nulo por falta do apontado requisito de fundamentação de facto.
Parece, medianamente, claro, atento o princípio geral, contido no artigo 120.º/1, 2 e 3 alínea a) CPPenal, que a nulidade deve ser arguida antes de o acto terminar ou, se a este não tiver o interessado assistido, nos 10 dias seguintes a contar daquele em que tiver sido notificado.
No caso, o arguido assistiu à prolação do despacho recorrido pelo que deveria ter arguido aí a apontada nulidade.
O que não ocorreu, dado que só o fez em sede de recurso.
Só que, como é sabido, dispõe o artigo 410.º/3 CPP que “o recurso pode ainda ter como fundamento mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso à matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada”.
E refere o Conselheiro Pereira Madeira (Código de Processo Penal Comentado, ...), a este propósito, que “ao instituir este fundamento do recurso, naturalmente que pôs fim pela resposta negativa à questão de saber se seria necessária a arguição prévia da nulidade, antes da interposição do recurso”.
Vem–se entendendo que falta de fundamentação significa a sua absoluta falta e omissão e, já não insuficiente, básica, sumária. Tão pouco, naturalmente deficiente.
Mas atendendo ao grau de exigência, neste caso concreto, do texto legal, não pode deixar de se entender que o que, afinal, consta do despacho recorrido traduz uma absoluta e incontornável falta de satisfação da exigência e do requisito aí previstos.
Ou, no caso, a inobservância, sem margem para dúvida séria, da exigência de enunciação dos elementos do processo que indiciam os factos imputados.
A fundamentação aduzida no despacho não satisfaz, minimamente, as exigências legais.
E, se assim é, coloca-se a questão de saber – na outra vertente da apreciação desta matéria - se e, em que termos, pode o Tribunal de recurso pronunciar-se desde logo sobre a verificação, in casu, da assumida forte indiciação dos factos imputados ao recorrente – questão que ele aqui coloca em causa – e que esta na base da aplicação das medidas de coacção que lhe foram aplicadas.
Não pode, como é bom de ver, dada a íntima conexão, interligação e dependência entre a questão da forte indiciação dos factos, com as restantes, atinentes com a sua qualificação jurídica e com os requisitos de aplicação das medidas de coacção.
E, daí que qualquer outra interpretação que não permitisse a interpretação acabada de fazer, recorde-se sobre um despacho com 208 páginas, proferido ao fim de 3 horas depois de findo o interrogatório, seria gritantemente inconstitucional, como invoca o arguido e, teria o inadmissível efeito de impedir o Tribunal de recurso de exercer - de forma cabal e em consciência, como é suposto - o seu múnus.
O que foi comunicado ao arguido, manifestamente, que não cumpre – muito longe disso – o apontado dever de fundamentação – cuja evolução supra delineada, foi no sentido de trazer um acrescido grau de exigência e rigor.
Carece, pois, o despacho da enunciação – em sentido naturalístico e concreto e não meramente vago e genérico - dos elementos do processo que indiciam os factos imputados.
O que não pode deixar de constituir circunstância essencial à defesa do arguido e, que, como resulta do teor do recurso, lhe não terá permitido assegurar, de forma efectiva e cabal, este seu direito de defesa - em violação da lei ordinária, nos termos apontados e, mesmo, do consagrado no artigo no artigo 28.º/1 da CRP.
E, cuja não satisfação – como vimos já - tendo em conta o necessário compromisso entre interesses que justificam um formalismo rigoroso e os que aconselham uma minimização desse formalismo, subjacente ao regime das nulidades processuais, poderia colocar a questão da sua conformidade constitucional – como o foi, de resto, no passado, em caso de incumprimento de formalidades que, essencialmente, visam tutelar direitos fundamentais dos arguidos, onde se incluiria o caso da falta de fundamentação do despacho de aplicação das medidas de coacção - estando, contudo, hoje, ultrapassada, no sentido de o despacho ser nulo, se faltar algum dos requisitos da sua fundamentação - artigo 194.º/4 do CPP.
Assim e, em conclusão, perante a nulidade do despacho recorrido, nos termos apontados, procedendo esta primeira – em termos de precedência lógica – questão processual, fica prejudicado o conhecimento das restantes matérias suscitadas no recurso.
III. Dispositivo
Nestes termos, acordam os Juízes que compõem este Tribunal, em conceder provimento ao recurso apresentado pelo arguido AA, em função do que se decide,
- anular o despacho recorrido, que deverá ser substituído por um outro, em ordem a suprir a falta de enunciação dos elementos do processo que indiciam os factos imputados.
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Sem tributação, atendendo ao provimento do recurso (artigo 513.º/1, a contrario, do CPP).
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Notifique.
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Lisboa, 25-01-2024
Elaborado e integralmente revisto pela relatora (art.º 94.º n.º2 do C. P. Penal)
Assinado digitalmente pela relatora e pelos Senhores Juízes Desembargadores Adjuntos.
Maria João Ferreira Lopes
Carla Carecho
Antero Luís