Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
| Processo: |
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| Relator: | CRISTINA ALMEIDA E SOUSA | ||
| Descritores: | VIOLÊNCIA DOMÉSTICA | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 06/18/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Texto Parcial: | N | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | NÃO PROVIDO | ||
| Sumário: | I - Um acto isolado só preencherá o tipo incriminador da violência doméstica se e quando, pela sua especial gravidade e potencialidade lesiva (desvalor da acção e do resultado), se revelar como uma forma de tratamento desumano, cruel ou degradante da vítima, a tal ponto grave, que da sua prática resulte a violação do bem jurídico tutelado com a incriminação, nos mesmos moldes em que tal resultado ocorreria por via da reiteração dos maus tratos. II - Os actos de chamar à sua então companheira AA “vagabunda, que eu quero-te fora de casa”, ao mesmo tempo que lhe tentava tirar o filho bebé do colo, após o que passados alguns minutos, mesmo depois da intervenção do irmão da ofendida desferiu um murro na sua face, fazendo-a cair no chão com o filho bebé ao colo e continuando a chamar-lhe «vagabunda» e dizendo-lhe que a queria fora de casa, são suficientemente violentos e atentatórios de direitos fundamentais da ofendida, à integridade física, à sua reputação e bom nome, à liberdade de acção e decisão, tendo uma tónica de humilhação e subjugação que, além de corresponderem ao conceito de maus tratos físicos e psicológicos, por terem sido praticados de forma livre e deliberada, afrontam a dignidade da ofendida e, por conseguinte, preenchem, de pleno, os elementos constitutivos do tipo incriminador da violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º nº 1 al. a) e nº 2 al. b) do CP. | ||
| Decisão Texto Parcial: | |||
| Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: I – RELATÓRIO Por sentença proferida em 6 de Fevereiro de 2025, no processo comum singular nº 559/22.1PISNT do Juízo Local Criminal de Sintra - Juiz 4, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste foi decidido julgar a acusação pública parcialmente procedente por parcialmente provada, o pedido de reparação interposto pelo Ministério Público em favor da ofendida, AA, contra o arguido, demandado, procedente por provado, nos termos sobreditos e, consequentemente: A) Absolver o arguido, BB da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa á integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143º, 145º, nº 1 alínea a) e nº 2, por referência ao artigo 132º, nº 2, alínea c), todos do Código Penal, por que se mostrava acusado. B) Condenar o arguido, BB pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica agravado, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, alínea b) e 2, alínea a), do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão suspensa, na sua execução, nos termos do disposto no artigo 50º, do Código Penal, pelo período de 3 (três) anos e 6 (seis) meses, sujeitando tal suspensão a regime de prova, nos termos do disposto nos artigos 53º e 54º, ambos do Código Penal impondo, igualmente, ao arguido, nos termos do disposto no artigo 54º, nº 3, do Código Penal, as obrigações aí mencionadas, a saber: 1) Responder a convocatórias do magistrado responsável pela execução e do técnico de reinserção social; 2) Receber visitas do técnico de reinserção social e comunicar-lhe ou colocar à sua disposição informações e documentos comprovativos dos seus meios de subsistência; 3) Informar o técnico de reinserção social sobre alterações de residência e de emprego, bem como sobre qualquer deslocação superior a oito dias e sobre a data do previsível regresso; e 4) Obter autorização prévia do magistrado responsável pela execução para se deslocar C) Condenar o arguido, demandado, BB, nos termos do disposto no artigo 82º-A, do C. P. Penal, em conjugação com o disposto no artigo 21º, da Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro, a pagar á ofendida, AA, a título de indemnização por danos não patrimoniais, a quantia de €5000 (cinco mil euros), acrescida de juros legais. O arguido interpôs recurso desta sentença, tendo, para o efeito, formulado as seguintes conclusões: 1 - O presente recurso tem como objecto toda a matéria de direito da Sentença proferida nos presentes autos e que condenou o arguido pela prática, na forma consumada, de 1 (um) crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo artigo 152.° n.º 1, alíneas b), e n.º 2 alínea a) do C.P na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão suspensa na sua execução nos termos do disposto no artigo 50º do C.P pelo mesmo período, sujeitando tal suspensão a regime de prova impondo ainda igualmente ao arguido, nos termos do disposto no artigo 54º, nº 3, do Código Penal, as obrigações aí mencionadas. 2 - O presente recurso circunscreve-se à apreciação por este Venerando Tribunal quanto à: Errada qualificação jurídica dos factos dados como provados na Sentença que se recorre; Medida da pena concretamente aplicada ao arguido; Condenação do arguido no pagamento da quantia de 5.000,00 (cinco mil euros) acrescida de juros legais, a título de indemnização, a pagar à ofendida por danos não patrimoniais; 3 - O arguido não concorda com o facto de ter sido condenado no âmbito dos presentes autos pela prática de um crime de violência doméstica agravado, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, alínea b) e 2, alínea a), do Código Penal, já que os factos dados como provados não são suficientes e aptos a serem subsumidos à prática do crime pelo qual o arguido foi condenado. 4 - Não é suficiente qualquer ofensa à saúde física, psíquica, emocional ou moral da ofendida, para o preenchimento do tipo legal do crime de violência doméstica 5 - A conduta típica do crime de violência doméstica inclui, para além da agressão física (mais ou menos violenta, reiterada ou não), a agressão verbal, a agressão emocional (p. ex., coagindo a vítima a praticar atos contra a sua vontade), a agressão sexual, a agressão económica (p. ex., impedindo-a de gerir os seus proventos) e a agressão às liberdades (de decisão, de ação, de movimentação, etc.), as quais, analisadas no contexto específico em que são produzidas e face ao tipo de relacionamento concreto estabelecido entre o agressor e a vítima, indiciam uma situação de maus tratos, ou seja, um tratamento cruel, degradante ou desumano da vítima. 6 - O que o que importa no crime de violência doméstica é que os factos, isolados ou reiterados, apreciados à luz da intimidade do lar e da repercussão que eles possam ter na possibilidade de vida em comum, coloquem a pessoa ofendida numa situação que se deva considerar de vítima, mais ou menos permanente, de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade, dentro do ambiente conjugal. 7 - No caso dos autos, a conduta do arguido nunca poderia configurar um crime previsto e punível pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e nº 2 al. a) mas antes, tão e só um crime previsto e punível pelo artigo 143.º, n.º 1, ambos do Código Penal. 8 - Ora, da factualidade dada como provada não resultam condutas que se possam integrar no tipo de ilícito em análise, - Crime de Violência Doméstica- Ou seja, do único episódio factual provado, não resulta, minimamente, que tenha ocorrido qualquer acto que revele atentado à dignidade humana. 9 - A factualidade dada como provada na Sentença não satisfaz o tipo de violência doméstica por não revelar o especial desvalor de acção ou a particular danosidade do facto que sustentam a especificidade do crime de violência doméstica. 10 - Com efeito, dos factos dados como provados, não resulta de forma alguma que a conduta do arguido tenha assumido elevada gravidade, brutalidade ou tenha sido fortemente intensa. Para além disso, dos factos dados como provados da sentença, considerando que se tratou de uma situação isolada, não resulta a existência de qualquer prevalência ou domínio do arguido sobre a aqui vítima AA. 11 - O único facto dado como provado na Sentença terá ocorrido no interior da residência do arguido e da vítima, apenas tendo sido “casualmente” presenciado pela Testemunha CC que pese embora seja … é vizinho do arguido e demonstrou, na forma como depôs, a sua animosidade para com o arguido, o que, erradamente, não foi relevado pelo tribunal ad quo, sendo certo que este é o único meio de prova que conduz à condenação do arguido. 12 - Acresce que a circunstância da única testemunha ter mencionado que noutra ocasião já havia acorrido a uma situação entre o arguido e a vítima, conforme mencionado na Sentença, não pode contribuir para fundamentar a formulação de que os factos são integradores do crime de violência doméstica, uma vez que dessa alegada ocorrência não resultou qualquer acusação nem a testemunha, nessa ocasião, presenciou, qualquer conduta levada a cabo pelo arguido, porquanto o mesmo já não se encontrava no local. 13 - Inexistem outras testemunhas que tenham contribuído para o esclarecimento dos factos, sendo certo que a vítima para além de ter recusado, validamente, prestar declarações, demonstrou através de requerimentos juntos aos autos que não pretenderia vir em sede de julgamento a prestar declarações revelando com tal conduta, indubitavelmente, não pretender a condenação do arguido. 14 - A ofendida e o arguido para além de manterem o relacionamento amoroso que já os unia desde 2015 ainda vieram a formalizar tal união, contraindo matrimonio no ... aos .../.../2023, data posterior à dos factos em apreço nos autos, o que é demonstrativo de que mesmo a terem ocorrido os factos dados como provados na Sentença, os mesmos não inviabilizaram de forma alguma a manutenção da vida em comunhão do arguido com a ofendida. 15 - Assim, é de concluir que a conduta do arguido, embora em tese, possa ser penalmente relevante, surge no contexto de um episódio esporádico, de curtíssima duração, não representando um potencial de agressão que, tivesse superado ou transcendido a proteção oferecida pelo crime de ofensa à integridade física simples, ou seja, na medida em que não espelham uma situação de maus tratos da qual resulte ou seja suscetível de resultar sérios riscos para a integridade física da ofendida AA. 16 - Assim, o arguido não deveria ter sido condenado pela prática do crime de violência doméstica agravada, p. e p. pelo art.º 152.º, n.º 1, al. b) e nº 2 al. a) do CP, mas sim por um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art.º 143.º do CP., sendo certo que, atenta a posição assumida pela ofendida no decurso de todo o processo, sendo comunicada ao arguido a alteração substancial dos factos ou da qualificação jurídica, sempre a mesma poderia desistir do procedimento criminal contra o arguido, sendo por força de tal circunstancia, o arguido absolvido da pratica dos factos com as necessárias consequências legais. 17 - Ainda que por mera hipótese de raciocino este Venerando Tribunal da Relação decida manter a condenação do arguido pela prática de um crime de violência doméstica agravada, p. e p. pelo art.º 152.º, n.º 1, al. b) e nº 2 al. a) do CP, a pena que concretamente foi aplicada ao arguido - pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão suspensa na sua execução nos termos do disposto no artigo 50º do C.P pelo mesmo período, sujeitando tal suspensão a regime de prova impondo ainda igualmente ao arguido, nos termos do disposto no artigo 54º, nº 3, do Código Penal, as obrigações aí mencionadas- sempre será manifestamente desproporcionada e desadequada ao caso dos autos. 18 - O Tribunal recorrido não teve em consideração o facto de nada constar no certificado de registo criminal do arguido. 19-Considerou ainda como circunstância agravante, o facto de o arguido não demonstrar qualquer tipo de arrependimento, sendo certo que tal circunstância assentou seguramente no facto de o arguido se ter remetido ao silêncio em sede de Audiência de Julgamento, sendo este um direito que lhe assiste e que não o pode nem deve prejudicar. 20 - No caso dos autos o tribunal ad quo violou as regras da experiência comum e o quantum fixado na aplicação da concreta medida da pena já que a mesma é desproporcionada em comparação com o que, para casos semelhantes, vem sendo decidido, nesta matéria. 21 - Caso este Venerando Tribunal da Relação venha a considerar que com a sua conduta o arguido incorreu em responsabilidade pela prática de um crime de violência doméstica agravada, sempre se terá de ter em conta na ponderação da medida da pena que, por um lado a conduta do arguido foi isolada, não teve consequências manifestamente nefastas ao nível de lesões para a ofendida e a própria ofendida e o arguido mantiveram a comunhão de vida, tendo inclusivamente contraindo matrimonio em data posterior à pratica dos factos, que conduziram à condenação do arguido. 22 - Assim, considerando o ilícito praticado pelo arguido, os interesses protegidos pela incriminação de tais condutas e a inexistência de qualquer acto que espelhe elevada gravidade na conduta, a aplicação de pena inferior aquela que foi aplicada ao arguido satisfará as exigências da punição, 23 - No que concerne ao regime de prova, o mesmo se manifesta desnecessário tendo em conta a paz e harmonia existente entre a ofendida e o arguido inexistindo noticia de que tenham ocorridos factos posteriores aos que deram origem à condenação, que sublinhe-se remontam ao ano de 2018. 24 - Não se justifica a imposição ao arguido para que este coloque à disposição informações e documentos comprovativos dos seus meios de subsistência, de comunicar alterações de residência e de emprego e de obter autorização previa do Magistrado responsável pela execução para se deslocar ao estrangeiro. 25 - Sendo tais obrigações desproporcionais à conduta do arguido e restritivas dos seus direitos liberdades e garantias. 26 - No que concerne ao quantum da pena aplicada pelo Tribunal a quo ao arguido, houve, com o devido respeito, violação do disposto nos artigos 40.º, 50.º, 70.º e 71.º do Código Penal. 27 - Desta forma, deveria Tribunal a quo a ter condenado o arguido, condena-lo numa pena mais harmoniosa, proporcional e justa, face às circunstâncias acima expostas, de acordo com o disposto nos artigos, 40.° 50.°, 70.° e 71.º do Código Penal, pena essa que não deverá ultrapassar o limite mínimo legalmente previsto para o tipo de crime, suspendendo-a pelo mesmo período sem a sujeição a regime de prova ou qualquer outra obrigação, por tal se revelar adequado e suficiente às finalidades da punição, à protecção dos bens jurídicos ofendidos e à reintegração do agente na Sociedade. 28 - O arguido não concorda com a condenação no pagamento de indemnização a pagar à ofendida, no montante de €5.000 (cinco mil euros), acrescida de juros legais. 29 - O arguido, que não devia ter sido condenado pela prática do crime de violência doméstica agravado, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, alínea b) e 2, alínea a), do Código Penal, e consequentemente não poderia ser condenado nos termos e para os efeitos do artigo 82ºA do C.P.P em conjugação com o artigo 21º da Lei 112/2009 de 16 de Setembro, uma vez que tais normas pressupõem a condenação pela prática do crime de violência doméstica. 30 - A condenação nos termos do artigo 82º A do C.P.P pressupõe que o arbitramento de uma qualquer quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos apenas poderá ser arbitrada quando particulares exigências de protecção da vitima o imponham e a ofendida a ela não se oponha, o que não ocorreu nestes autos, única e exclusivamente pelo facto de a ofendida não pretender em momento algum prestar declarações 31 - A condenação no pagamento de uma indemnização por danos não patrimoniais nos termos do artigo 82 A do C.P.P não opera de forma automática mesmo havendo condenação. Será sempre necessário que relativamente à ofendida existam particulares exigências de protecção. 32 - Ora, no caso dos presentes autos resulta evidente que a ofendida não se encontra nas referidas condições e tanto assim é que estreitou a relação conjugal que mantem com o arguido, através do casamento e com a sua postura no decurso de todo o processo manifestou não pretender a condenação do arguido. 33 - Acresce que, a circunstância de o arguido ter sido condenado ao pagamento à ofendida de indemnização sempre acarretará sérios prejuízos na economia familiar e nenhum benefício trará à ofendida uma vez que o pagamento de tal quantia será, por força das circunstâncias, efectuado, também, com recurso a proveitos financeiros comuns do casal. 34 - Mas mesmo que assim não se entendesse sempre teria o arguido de discordar do “quantum” indemnizatório atribuído por a quantia arbitrada pelo Tribunal ad quo ser desproporcionada em relação à factualidade dada como provada. Nestes termos e nos melhores de direito, deve; A) O presente recurso ser julgado procedente por provado e a sentença recorrida revogada e substituída por outra que absolva o arguido da prática do crime de violência doméstica agravado p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, alínea b) e 2, alínea a), do Código Penal, com as respectivas consequências legais; B) Caso assim não se entenda, sempre deverá o quantum da pena aplicada ao arguido ser reduzido para os limites mínimos aplicados ao crime em apreço. C) Deverá ainda o arguido ser absolvido da condenação em indemnização arbitrada a título de danos não patrimoniais, D) Caso assim não se entenda, deverá ser reduzido o quantum indemnizatório em valor não superior a € 1.500,00 (mil e quinhentos euros) Com o douto suprimento de V. Exas., e nos termos expostos, deve ser dado provimento ao presente recurso, assim se fazendo JUSTIÇA! Admitido o recurso, o Mº.Pº. apresentou resposta, na qual concluiu: A. O arguido BB foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo artigo 152.°, n.ºs 1, alínea b) e 2, alínea a), do Código Penal na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período e subordinada a regime de prova. B. Da factualidade dada como provada resulta que o arguido assumiu vários comportamentos para com a ofendida – quer seja através de agressão física, quer através de agressões verbais e que visavam apenas um fim – ofender a ofendida, sua companheira, no seu bom-nome e reputação, bem como na sua integridade física. C. Ainda que tenha sido dado como provado apenas um acto de agressão física – um murro desferido contra a sua face – entendemos que o mesmo assume especial gravidade e danosidade, não só por tal acto ter sido precedido de injúrias várias à ofendida, mas pela força exercida pelo arguido sobre aquela, de tal modo que a mesma caiu ao solo. D. A conduta do arguido assume, ainda, maior gravidade quando considerado que aquando da agressão a ofendida segurava no colo, o filho bebé, que acabou por cair ao solo com a mesma, facto que, não obstante ser do conhecimento do arguido não o inibiu de praticar os factos aqui em apreço. E. Assim, dúvidas inexistem que a conduta do arguido preenche os elementos objectivos e subjectivos do crime de violência doméstica. F. O referido ilícito é punível com pena de prisão de dois a cinco anos (cf. artigo 152º, nº 1, alínea b) e nº 2, alínea a), do Código Penal). G. A medida da pena a aplicar deverá resultar da medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos no caso concreto, ou seja, da tutela das expectativas da comunidade na manutenção e reforço da norma violada – prevenção geral positiva ou de integração –, conjugada com a necessidade de prevenção especial positiva ou de socialização, destinada a evitar que, no futuro, o agente cometa novos crimes, que reincida, sendo que as apontadas finalidades deverão operar dentro do limite inultrapassável ditado pela culpa. H. In casu, considerados os factos dados como provados e todas as circunstâncias atenuantes e agravantes (devidamente explanadas na sentença recorrida), e globalmente, a culpa do arguido, não nos merece censura a determinação da pena concreta aplicada ao arguido, porquanto, a mesma não é excessiva, nem branda. I. A pena aplicada ao arguido é justa, equilibrada e mostra-se devidamente sustentada com os argumentos aduzidos em tal decisão e nos critérios estabelecidos do 71.º, do Código Penal, para determinação da medida da pena. J. Por outro lado, considerando o sofrimento causado à ofendida, os sentimentos de humilhação emocional e o sofrimento físico com as agressões (física e verbal) de que foi vítima, condutas que colocaram em crise a sua dignidade humana, o Ministério Público não discorda do valor arbitrado à ofendida (5.000,00 €), nos termos do artigo 82.º-A, do Código de Processo Penal, que se entende ser justo e adequado à reparação do prejuízo sofrido. K. Pelo exposto, a sentença recorrida não merece qualquer censura, não padece de qualquer vício (mormente, aqueles que vêm invocados na peça processual a que se responde), achando-se em absoluta conformidade com a lei. Termos em que deve ser negado provimento ao recurso apresentado pelo arguido, mantendo-se a sentença condenatória recorrida nos seus precisos termos, pois que assim Vossas Excelências farão, como sempre, a tão costumada JUSTIÇA! Remetido o processo a este Tribunal, na vista a que se refere o art. 416º do CPP, o Exmo. Sr. Procurador Geral da República Adjunto emitiu parecer, nos seguintes termos: Acompanhamos a resposta da Digna Magistrada do Ministério Público na primeira instância, considerando-se que a douta sentença recorrida não violou nenhuma norma legal, pelo que deve o recurso apresentado ser julgado improcedente e, consequentemente, a decisão recorrida confirmada e mantida nos seus precisos termos. Nestes termos e convocando tudo o que foi dito pela Magistrada do Ministério Público, emitimos parecer no sentido da improcedência do recurso interposto. Cumprido o disposto no art. 417º nº 2 do CPP, não houve resposta. Colhidos os vistos e realizada a conferência, nos termos e para os efeitos previstos nos arts. 418º e 419º nº 3 al. c) do CPP, cumpre então, decidir. II – FUNDAMENTAÇÃO 2.1. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DOS RECURSOS E IDENTIFICAÇÃO DAS QUESTÕES A DECIDIR: De acordo com o preceituado nos arts. 402º; 403º e 412º nº 1 do CPP, o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação. Além destas, o tribunal está obrigado a decidir todas as questões de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afectem o recorrente, nos termos dos arts. 379º nº 2 e 410º nº 3 do CPP e dos vícios previstos no art. 410º nº 2 do CPP, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito (Acórdão do Plenário das Secções do STJ nº 7/95 de 19.10.1995, in Diário da República, I.ª Série-A, de 28.12.1995 e o AUJ nº 10/2005, de 20.10.2005, DR, Série I-A, de 07.12.2005). Umas e outras definem, pois, o objecto do recurso e os limites dos poderes de apreciação e decisão do Tribunal Superior (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do CPP, à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, 2011, págs. 1059-1061). Das disposições conjugadas dos arts. 368º e 369º por remissão do art. 424º nº 2, todos do Código do Processo Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso pela seguinte ordem: Em primeiro lugar, das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão; Em segundo lugar, das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pela impugnação alargada, se deduzida, nos termos do art. 412º do CPP, a que se seguem os vícios enumerados no art. 410º nº 2 do mesmo diploma; Finalmente, as questões relativas à matéria de Direito. Seguindo esta ordem lógica e as conclusões do recurso, as questões a decidir são as seguintes: Se houve erro de direito no enquadramento jurídico-penal dos factos e, portanto, o arguido deverá ser absolvido do crime de violência doméstica previsto e punível pelo art. 152º nº 1 alínea b) e 2 alínea a) do Código Penal; Caso assim não se entenda, se houve excesso na fixação da pena devendo a mesma ser reduzida ao seu mínimo legal; Se o arguido deverá ser absolvido do pagamento da compensação fixada ao abrigo do disposto no art. 82º A do CPP; Caso assim não se entenda, se tal compensação deverá ser reduzida para a importância de € 1.500,00. 2. 2. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO Os factos provados e não provados fixados na sentença recorrida são os seguintes: 1. No dia ... de ... de 2018, pelas 06h50m, na residência familiar, o arguido BB disse à AA “vagabunda, que eu quero-te fora de casa”, ao mesmo tempo que lhe tentava tirar o filho bebé do colo. 2. Nesse momento, o irmão do arguido entrou na divisão e afastou o arguido da vítima. 3. Minutos depois, o arguido voltou a ir na direção da AA e desferiu um murro na sua face, fazendo-a cair no chão com o filho bebé ao colo. 4. Nesse momento, o … CC, que estava no local, foi em auxílio da AA e levou-a para o exterior. 5. O arguido, enquanto a AA estava no exterior, estava na janela a gritar: a. “vagabunda...hoje você vai sair de casa e não aparece com a polícia que não tenho medo deles não, já estive preso e não tenho medo deles. Se aparecer em casa vou comer você”; b. “não quero você em casa, vai embora”. 6. Com a prática das condutas descritas, o arguido fez com que AA, sua companheira, se sentisse ansiosa e com medo que o arguido a intimidasse, a humilhasse, lhe batesse ou mesmo a matasse. 7. Ao actuar da forma descrita contra a sua companheira, o arguido agiu com o propósito de molestar a saúde física e psíquica dela, de afectar a sua liberdade de decisão, de a humilhar e desconsiderar, com desprezo pela sua dignidade pessoal, o que conseguiu, ao actuar da forma acima descrita, bem sabendo que tinha para com ela um especial dever de respeito e de a tratar com dignidade. 8. O arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal, e tinha capacidade e liberdade para se determinar de acordo com esse conhecimento. 9. O arguido e AA são casados desde .../.../2023. 10. O arguido não tem antecedentes criminais registados, conforme certificado de registo criminal, actualizado, de fls. 278, dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido. 11. O arguido é casado e é …. * Estes os factos provados e nada mais, nomeadamente, alegado, de relevante para a decisão da causa, resultou provado. * Discutida a causa, de relevante para a decisão da mesma, não resultaram provados os seguintes factos: a- Que o arguido e AA iniciaram uma relação de namoro em ... de 2015, no .... b- Que em 2017, o arguido veio residir para Portugal. c- Que a ... de ... de 2018, AA veio para Portugal com os seus dois filhos, de outros relacionamentos: a. DD, nascido a ... de ... de 2008; e b. EE, nascido a ... de ... de 2010. d- Que desde ... de ... de 2018 que o arguido e a AA passaram a residir juntos, como se casados fossem, em comunhão de mesa, leito e habitação. e - Que o casal fixou residência na .... f- Que com o casal residiam os dois filhos da AA. g- Que o arguido e a AA tiveram um filho em comum, FF, nascido a ... de ... de 2018, que faleceu a ... de ... de 2022. h- Que desde ... de ... de 2018, por várias vezes, em datas não concretamente apuradas, na residência familiar, o arguido discutiu com a AA e arremessou contra ela o comando da televisão. i- Que desde ... de ... de 2018, por várias vezes, em datas não concretamente apuradas, na residência familiar, o arguido discutiu com a AA e disse-lhe: a. “se descobrir que me traíste, eu mato-te”; b. “és uma puta”. j- Que bem como disse aos filhos da AA “a vossa mãe não presta”. k- Que no dia ... de ... de 2018, pelas 21h00, na residência familiar, o arguido iniciou uma discussão com AA e, em ato contínuo, desferiu vários murros na sua boca, face e cabeça, bem como lhe apertou o pescoço com as mãos. l- Que como consequência do acto praticado pelo arguido, a AA sentiu dores e sofreu as seguintes lesões: a. Traumatismo torácico com dor ligeira na região esternal; b. Traumatismo craniano, com hematoma parietal esquerdo com cerca de 5 cm de diâmetro; c. Hematoma do lábio superior. m- Que no dia ... de ... de 2022, pelas 22h00, na residência familiar, o arguido começou a discutir com a AA, por motivo de ciúmes. n- Que no decurso da discussão o arguido disse-lhe “eu quero que você me diga a verdade, estás a trair-me? Sua vagabunda, não prestas sua safada”. o- Que em ato contínuo, o arguido desferiu um pontapé na AA, atingindo-a na zona da cintura, do lado esquerdo, provocando a sua queda no chão. p- Que nesse momento, o filho da AA, DD, foi em seu auxílio e tentou afastar o arguido e o arguido desferiu um murro no rosto do jovem, atingindo-o no olho esquerdo. q- Que como consequência do ato praticado pelo arguido, a AA sentiu dores e sofreu equimose e hematoma no braço esquerdo. r- Que como consequência do ato praticado pelo arguido, o DD sentiu dores e sofreu eritema e edema na região interciliar com dor à apalpação periorbitaria superior. s- Que o arguido sabia que DD tinha 14 anos de idade e era, por isso, especialmente vulnerável e indefeso, ainda assim quis bater-lhe da forma descrita com vista a ofender o seu corpo e a sua saúde, o que conseguiu. 2.3. APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO Quanto à subsunção dos factos ao crime de violência doméstica. De harmonia com a definição constante do art. 3º al. b) da Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica foi adoptada em Istambul, a 11 de Maio de 2011, aprovada pelo Governo português a 16 de Novembro de 2012, ratificada pela Assembleia da República a 21 de Janeiro de 2013 e entrou em vigor em Portugal a 1 de Agosto de 2014 (Convenção de Istambul), a violência doméstica refere-se a actos «de violência física, sexual, psicológica ou económica que ocorrem no seio da família ou do lar ou entre os actuais ou ex-cônjuges ou parceiros, quer o infractor partilhe ou tenha partilhado, ou não, o mesmo domicílio que a vítima». O art. 152º do CP, na sua actual redacção, materializa-se objectivamente na prática de maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais. Os maus-tratos físicos consistem em actos que se traduzem em qualquer forma de violência física, designadamente e, por regra, em ofensas corporais, enquanto que os maus tratos psíquicos correspondem a condutas que ofendem a integridade moral ou o sentimento de dignidade, incluindo humilhações, provocações, quer estas se reconduzam a actos, gestos, palavras, expressões, escritos, etc., puníveis, em si mesmas, como crimes de injúria e difamação, ou ameaça, sequestro ou coacção, quer não. Por isso mesmo, no tipo está incluída uma vasta gama de condutas, desde comportamentos que isolada e objectivamente analisados são apenas ética e socialmente censuráveis, mas acabam por assumir relevância jurídico-penal, como modos de execução do crime de violência doméstica, até comportamentos que, em si mesmo considerados, correspondem a outros tipos de ilícito penal, como sejam, os crimes de ofensa à integridade física, nas suas diferentes modalidades (arts.143º e 145º nº1), de ameaça simples ou agravada (art. 153º), difamação e injúrias, simples ou qualificadas (arts. 180º 181º e 183º), coacção (arts. 154º e 155º), sequestro simples (art. 158º nº1), coacção sexual (art. 163º), violação (art. 164º) e importunação sexual (art. 170º), mas que, por efeito da sua subsunção a uma única norma incriminadora, deixam de ter relevância jurídico-penal autónoma e ganham uma nova dimensão normativa, justamente, a do crime de violência doméstica (Teresa Féria, in Ousar Vencer a Violência sobre as Mulheres na Família - Guia de Boas Práticas Judiciais Capítulo I Sobre O Crime De Maus-Tratos Conjugal, editado em NOVOS, pela Associação Portuguesa de Mulher Juristas, e publicado in www.AMJP.pt.; Projecto de Recomendação e de Exposição de Motivos, do Comité Restrito de Peritos Sobre a Violência na Sociedade Moderna, BMJ 335-5; Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código Penal”, 2.ª edição actualizada, UCE, 465-466; André Lamas Leite, in “A violência relacional íntima: reflexões cruzadas entre o direito penal e a criminologia”, na Revista Julgar, n.º 12 (Especial), 2010, p. 45). Para que tal suceda é imperativo que os factos, isolados ou reiterados, apreciados à luz da tal relação de proximidade e vinculação existencial entre o agente e a vítima, pela sua natureza e pelos efeitos que possam ter na possibilidade da vida em comum, ou de manutenção das relações de diferente natureza de entre as enumeradas no art. 152º do CP, coloquem a pessoa ofendida numa situação que se deva considerar de vítima, mais ou menos permanente, de um tratamento lesivo da sua saúde física e mental, incompatível com a sua dignidade e liberdade, nesse contexto de intimidade. Assim, se na ponderação da «imagem global do facto», a conduta ou as condutas revelarem o “especial desvalor da acção” ou a “particular danosidade social do facto” que fundamentam a especificidade deste crime, ou seja, gravidade ou intensidade suficientes para colocar em crise o bem jurídico protegido com a incriminação da violência doméstica, será aplicável o citado art. 152º do CP. Se da imagem global dos factos não resultar este quadro de maus tratos, nos moldes e com os contornos acima referidos, que justifiquem aquela especial tutela e punição agravada, a situação integrará a prática de um ou dos vários crimes em causa, os quais reassumem a sua autonomia, à luz de cada um dos tipos legais que os preveem, se e quando praticados sem esta tónica de tratamento cruel, desumano e degradante, ofensivo da personalidade da vítima, considerada na sua globalidade e de afronta intensa ou reiterada à sua dignidade, ao seu bem estar físico, psíquico e emocional e à sua liberdade individual de decisão e acção, animadas do propósito de predomínio e de manutenção de uma relação de abuso de poder e de controlo sobre a mesma. Com efeito, o traço distintivo que permite conferir esta forma específica e reforçada de tutela, mediante a incriminação do art. 152º do CP a condutas que sem essa especial incriminação só seriam social ou moralmente censuráveis ou só seriam enquadráveis como crimes autónomos de ofensas à integridade física simples ou qualificadas, de ameaças simples ou agravadas, de coacção simples, de sequestro simples, de coacção sexual, de violação, de injúria ou de difamação, etc., é a existência de um «estado de agressão permanente que permite concluir pelo exercício de uma relação de domínio ou de poder, proporcionada pelo âmbito familiar ou quase-familiar, deixando a vítima sem defesa numa situação humanamente degradante.» (Plácido Conde Fernandes In “Violência doméstica – novo quadro penal e processual penal” – Revista do CEJ, n.º 8, 1,º semestre, página 307). «Para este efeito (da incriminação pelo tipo legal de violência doméstica), deve entrar em cena a desconsideração pela dignidade pessoal da vítima imanente ao comportamento violento próprio dos maus tratos. Esse desprezo do agressor pela sua dignidade revela um pesado desvalor de ação que agrava a ilicitude material do facto» (Nuno Brandão, in Tutela penal especial reforçada da violência doméstica, Revista Julgar, n.º 12 (Especial), 2010, p. 9 a 24. No mesmo sentido, Acs. da Relação do Porto de 10.09.2014 proc. 648/12.0PIVNG.P1; de 15.12.2016 proc. 192/15.4GBVFR.P1 e de 13.11.2019, proc. 109/19.7GAARC.P1; Ac. da Relação de Évora de 08.01.2013, proc. 113/10.0TAVVC.E1; de 30.06.2015 proc. 1340/14.7TAPTM.E1, de 22.11.2018, proc. 526/16.4 GFSTB.E1 e de 11.07.2019, proc. 627/17.1GDSTB.E1, Acs. da Relação de Lisboa de 07.10.2015, proc. 735/14.0PLSNT-3; 4.10.2016, proc. 311/15.0JAPDL.L1-5; de 7.02.2017, proc. 1816/14.6PFLRS.L1-5; de 01.06.2017, proc. 3/16.0PAPST.L1, de 13.02.2019, proc. 428/17.7PCSNT.L1-3, de 18.09.2019, proc. 1745/17.1PBFUN.L1 e de 08.01.2020, proc. 56/17.7T9OER.L1-3; Acs. da Relação de Coimbra de 17.01.2018, proc. 204/10.8GASRE.C1 e de 07.02.2018, proc. 663/16.5PBCTB.C1, de 20.02.2019, proc. 335/17.3PBCTB.C1, de 18.12.2019, proc. 169/18.8PBCLD.C1 de 05.02.2020, proc. 71/16.8GGCBR.C1, Ac. da Relação do Porto de 13.01.2021, proc. 799/18.8GBPNF.P1, da Relação de Guimarães de 02.05.2023, proc. 212/22.6GBBCL.G1, Ac. do STJ de 15.02.2023, proc. 7528/13.0TDLSB.L3.S1, in http://www.dgsi.pt). Embora até 2007 sempre tenha sido configurado como um crime de estrutura objectiva reiterada, classificado ora como crime habitual, ora como crime permanente, com a alteração introduzida no art. 152º do CP, pela Lei 59/2007 de 4 de Setembro, passou a estar expressamente prevista a possibilidade de consumação do crime, através de um só acto de execução. Segundo a exposição de motivos exarada na proposta de Lei 98/X que esteve na origem da citada Lei 59/2007 de 4 de Setembro, a introdução da ideia de que o tipo violência doméstica não exige a reiteração teve como contrapartida ou condição essencial da admissibilidade de uma única conduta dar lugar à consumação do crime de violência doméstica a sua gravidade. Outra não pode ser a interpretação a fazer do excerto em que o legislador afirmou que «na descrição típica da violência doméstica e dos maus tratos, recorre-se, em alternativa, às ideias de reiteração e intensidade, para esclarecer que não é imprescindível uma continuação criminosa». Esta alteração foi introduzida para dar concretização às grandes linhas orientadoras da revisão assumidas, nessa exposição de motivos: «a revisão procura fortalecer a defesa dos bens jurídicos, sem nunca esquecer que o direito penal constitui a ultima ratio da política criminal do Estado. Assim, de entre as suas principais orientações, destacam-se: (…) o reforço da tutela de pessoas particularmente indefesas, como as crianças, os menores e as vítimas de violência doméstica, maus tratos ou discriminação» (https://app.parlamento.pt/webutils/docs/doc.pdf). A violência doméstica é um fenómeno social muito grave que afronta o desenvolvimento democrático de uma sociedade, com evidente violação do princípio constitucional da igualdade consagrado no art. 13º da CRP e dos direitos humanos das vítimas, a começar pela dignidade inerente à condição humana, e que, por isso, deve merecer uma reposta veemente e eficaz do Direito Penal, na prevenção, combate e repressão deste tipo de criminalidade. Nas suas formas mais violentas e/ou prolongadas, estão-lhe associadas consequências trágicas que se traduzem, no pior dos cenários, no homicídio da vítima, no seu suicídio, ou mesmo no homicídio do agressor e, fora dele, em geral, na incapacitação irreversível ou quase irreversível da generalidade das vítimas, por efeito dos gravíssimos danos físicos e emocionais que muitas vezes degeneram em hipertensão arterial, doenças cardíacas, transtornos da ansiedade, distúrbios do sono e alimentação, acidente vascular encefálico, paralisia facial, depressões crónicas, síndrome de stress pós traumático e outros efeitos semelhantes que lhes degradam ou retiram a saúde e as competências pessoais, profissionais e de relacionamento social o que, reflexamente, envolve, portanto, elevados custos sociais. Um acto isolado só preencherá o tipo incriminador da violência doméstica se e quando, pela sua especial gravidade e potencialidade lesiva (desvalor da acção e do resultado), se revelar como uma forma de tratamento desumano, cruel ou degradante da vítima, a tal ponto grave, que da sua prática resulte a violação do bem jurídico tutelado com a incriminação, nos mesmos moldes em que tal resultado ocorreria por via da reiteração dos maus tratos. «Nem toda a ofensa que ocorre na unidade familiar é um crime de violência doméstica, pela simples razão de os maus tratos pressuporem um atentado à integridade física ou psíquica da vítima que seja especialmente gravoso e censurável. O crime de violência doméstica não tutela bagatelas penais. Não nos devemos esquecer que há outros tipos legais de crime que podem tutelar outras situações, caso não se esteja efetivamente na presença de maus tratos físicos ou psíquicos que lesam o bem jurídico tutelado, pois nem toda a agressão pode ser qualificada como maus tratos. Impõe-se ponderar cada situação isoladamente e à luz do princípio da proporcionalidade nos termos do art.18.º, n.º 2 da CRP. Deste modo, para que um ato isolado possa, eventualmente, preencher o tipo incriminador do art.152.º, tem necessariamente de ser gravoso» (Carlos Casimiro Nunes e Maria Raquel Mota, «O crime de violência doméstica: a alínea b) do n.º 1 do artigo 152.º do Código Penal», Revista do Ministério Público, n.º 122, 2010. pp. 133-175, pág. 164. No mesmo sentido, Ricardo Jorge Bragança de Matos, «Dos Maus-tratos a Cônjuge à Violência Doméstica: Um Passo à Frente na Tutela da Vítima?», Revista do Ministério Público, n.º 107, 2006. pp. 89-120, p. 101; Verena Schneeberger, Violência Doméstica e Concurso Homogéneo, Dissertação com vista à obtenção do grau de Mestre em Direito, ... e da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Abril de 2016, págs. 33 a 38, https://run.unl.pt/bitstream/10362/19151/1/Schneeberger_2016.pdf ). Esta é a única interpretação que se coaduna com a natureza fragmentária e de ultima ratio do Direito Penal, bem como com os propósitos de reforço da tutela da vítima e de intensificação da protecção do bem jurídico visado com a incriminação contida no art. 152º do CP, por comparação com os bens jurídicos já tutelados pelos outros crimes da parte especial do CP cujos modos de execução e consumação também correspondem a maus tratos físicos, a maus tratos psíquicos e a ofensas sexuais e, por fim, a que melhor se ajusta à descrição sociológica do chamado ciclo da violência doméstica, o qual se desdobra em três fases – a do aumento da tensão, a do ataque violento e a da lua de mel – as quais, segundo a literatura disponível, se repetem sucessivamente, ao longo de meses ou anos, imprimindo à interacção entre o agressor e a vítima padrões de comportamento de abuso e de submissão, seguindo uma tendência gradual de cada vez menor duração das fases que antecedem e das fases que sucedem às do apogeu do mau trato físico e/ou psicológico e de cada vez maior intensidade destas últimas. Por isso, que a regra continua a ser a de que o crime de violência doméstica é um crime de estrutura objectiva plúrima, reiterada e pluriofensiva e só excepcionalmente, uma única conduta será suficiente, pela especial severidade da ofensa à dignidade da vítima que seja apta a causar, para consumar um crime de violência doméstica. Garantidamente, que uma discussão como a que vem descrita na matéria de facto exarada na sentença recorrida tem este carácter de desconsideração pela personalidade, pela saúde e pela dignidade do outro, de humilhação e predomínio que justifica a incriminação da violência doméstica. Com efeito, os actos de chamar à sua então companheira AA “vagabunda, que eu quero-te fora de casa”, ao mesmo tempo que lhe tentava tirar o filho bebé do colo, após o que passados alguns minutos, mesmo depois da intervenção do irmão da ofendida desferiu um murro na sua face, fazendo-a cair no chão com o filho bebé ao colo e continuando a chamar-lhe «vagabunda» e dizendo-lhe que a queria fora de casa, são suficientemente violentos e atentatórios de direitos fundamentais da ofendida, à integridade física, à sua reputação e bom nome, à liberdade de acção e decisão, tendo uma tónica de humilhação e subjugação que, além de corresponderem ao conceito de maus tratos físicos e psicológicos, por terem sido praticados de forma livre e deliberada, afrontam a dignidade da ofendida e, por conseguinte, preenchem, de pleno, os elementos constitutivos do tipo incriminador da violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º nº 1 al. a) e nº 2 al. b) do CP. O enquadramento jurídico-penal da matéria de facto provada feito na sentença recorrida foi feito de forma correcta e não será alterado. Quanto à pena. Dos fins das penas anunciados no art. 40º do Código Penal e do princípio da proporcionalidade consagrado no art. 18º nº 2 da Constituição da República Portuguesa (na sua tripla vertente, necessidade da pena, adequação e proporcionalidade em sentido estrito e nas suas manifestações de proibição do excesso e de proibição de protecção deficiente), as linhas orientadoras em matéria de escolha e determinação concreta da pena são as seguintes: As penas servem finalidades exclusivas de prevenção geral e especial; A pena concreta tem como limite máximo inultrapassável, a medida da culpa; A medida da culpa constituí o fundamento ético da pena; Tendo por referência esse limite máximo inultrapassável da culpa, a pena concreta é fixada dentro de uma moldura de prevenção geral positiva ou de integração, cujos limites mínimo e máximo são, respectivamente, o ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e as exigências mínimas de defesa da ordem jurídica penal, correspondendo às exigências básicas e irrenunciáveis de restabelecimento dos níveis de confiança por parte da sociedade, na validade da norma incriminadora violada; Dentro desta moldura de prevenção geral positiva ou de integração, a dosimetria concreta da pena terá de resultar do que se mostrar necessário e ajustado às exigências de prevenção especial, em regra, positiva ou de socialização, ou em casos excepcionais, negativa, de intimidação ou de segurança individual (Figueiredo Dias, in Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, págs. 65-111 e na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 3, Abril - Dezembro 1993, páginas 186 e 187. No mesmo sentido, Anabela Miranda Rodrigues, O Modelo de Prevenção na Determinação da Medida Concreta da Pena, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, nº 2, Abril/Junho de 2002, pág. 147 e ss., Claus Roxin, Culpabilidad y Prevención en Derecho Penal, p. 113; Eduardo Correia, BMJ nº 149, p. 72 e Taipa de Carvalho, Condicionalidade Sócio-Cultural do Direito Penal, p. 96 e ss.). É função da pena salvaguardar a reposição e a integridade dos bens jurídicos violados com a prática dos crimes, introduzir um efeito de confiança, no seio da comunidade, acerca da validade e eficácia das correspondentes normas jurídicas incriminadoras e produzir um efeito dissuasor da criminalidade, nos cidadãos em geral, induzindo-lhes a aprendizagem da fidelidade ao direito. Também é função da pena assegurar, no âmbito da prevenção especial, em regra, positiva ou de socialização, a reintegração do agente na sociedade, excepcionalmente negativa ou de intimidação, prevenindo a reincidência. «A protecção de bens jurídicos implica a utilização da pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos (prevenção geral negativa), incentivar a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos (prevenção geral positiva). A protecção de bens jurídicos significa ainda prevenção especial como dissuasão do próprio delinquente potencial» (Fernanda Palma, in “As Alterações Reformadoras da Parte Geral do Código Penal na Revisão de 1995: Desmantelamento, Reforço e Paralisia da Sociedade Punitiva”, nas “Jornadas sobre a Revisão do Código Penal”, edição 1998, AAFDL, pág. 25). No que respeita à decisão sobre a pena, mormente à sua medida, começa por lembrar-se que os recursos não são novos julgamentos da causa, mas tão só remédios jurídicos. Assim, também em matéria de penas, o recurso mantém o arquétipo de remédio jurídico. A actividade jurisdicional de escolha e determinação concreta da pena não corresponde a uma ciência exacta, sendo certo que além de uma certa margem de prudente arbítrio na fixação concreta da pena, também em matéria de aplicação da pena o recurso mantém a sua natureza de remédio jurídico, não envolvendo um novo julgamento. O tribunal de recurso só alterará a pena aplicada, se as operações de escolha da sua espécie e de determinação da sua medida concreta, levadas a cabo pelo Tribunal de primeira instância revelarem incorrecções no processo de interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais vigentes em matéria de aplicação de reacções criminais. Não decide como se o fizesse ex novo, como se não existisse uma decisão condenatória prévia. E sendo assim, é preciso ter sempre em atenção que o Tribunal recorrido mantém incólume a sua margem de actuação e de livre apreciação, sendo como é uma componente essencial do acto de julgar. A sindicabilidade da medida concreta da pena em via de recurso, abrange, pois, exclusivamente, a determinação da pena que desrespeite os princípios gerais previstos nos arts. 40º e 71º do CP, as operações de determinação impostas por lei, a indicação e consideração dos factores de medida da pena, mas já não abrange «a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exato de pena, exceto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada» (Figueiredo Dias, DPP, As Consequências Jurídicas do Crime 1993, §254, p. 197). «A intervenção dos tribunais de 2ª instância na apreciação das penas fixadas, ou mantidas, pela 1ª instância deve ser parcimoniosa e cingir-se à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, à questão do limite da moldura da culpa, bem como a situação económica do agente, mas já não deve sindicar a determinação, dentro daqueles parâmetros da medida concreta da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, a desproporção da quantificação efectuada, ou o afastamento relevante das medidas das penas que vêm sendo fixadas pelos tribunais de recurso para casos similares» (Ac. da Relação de Lisboa de 11.12.2019, proc. 4695/15.2T9PRT.L1-9. No mesmo sentido, Acs. da Relação do Porto de 13.10.2021, proc. 5/18.5GAOVR.P1, da Relação de Lisboa de 07.02.2023, proc. 1938/18.4SKLSB.L1-5 e de 17.10.2023, proc. 23/21.6PBCSC.L1-5; da Relação de Évora de 28.03.2023, proc. 182/21.8JAFAR.E1; da Relação de Coimbra 06.03.2024, proc. 8/19.2PTVIS.C1 e de 10.04.2024, proc. 227/22.4GBLSA.C1, todos, in http://www.dgsi.pt). «Daqui resulta que o tribunal de recurso intervém na pena, alterando-a, quando detecta incorrecções ou distorções no processo aplicativo desenvolvido em primeira instância, na interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais que regem a pena. Não decide como se o fizesse ex novo, como se inexistisse uma decisão de primeira instância. O recurso não visa, não pretende e não pode eliminar alguma margem de actuação, de apreciação livre, reconhecida ao tribunal de primeira instância enquanto componente individual do acto de julgar» (Ac. do STJ de 19.05.2021, proc. 10/18.1PELRA.S1. No mesmo sentido Acs. do STJ de 3.11.2021, proc. 206/18.6JELSB.L2.S1, de 27.04.2022, proc. 281/20.3PAPTM.S1, in http://www.dgsi.pt). Quanto à fixação concreta da pena, a sentença recorrida tem a seguinte fundamentação: «(…) Importa ponderar, em desfavor do arguido, a intensidade do dolo, na modalidade mais gravosa de dolo directo. «Ainda, o grau elevado de ilicitude dos factos, atento o seu modo de execução, através de agressões verbais e físicas, bem como de ameaças, na casa de morada de família e na presença de menor, o que revela especial energia criminosa. «O arguido, não ignora essa realidade e, ainda assim, sabendo das consequências nefastas que do seu comportamento advinham para a ofendida, nada fez para inverter esse trilho, antes optou pelo caminho para si mais cómodo. «É, ainda, muito elevado o grau de violação dos deveres impostos ao arguido, porquanto se lhe exige conduta exactamente contrária, de respeito e consideração por quem mantinha consigo uma relação de companheira, ao invés do seu comportamento. «São por demais conhecidas e divulgadas as estatísticas que apontam para uma significativa expressão na sociedade dos maus-tratos infligidos a namorada/ex-namorada, companheira/ex-companheira ou cônjuge/ex-cônjuge, com consequências devastadoras para o equilíbrio e harmonia das vítimas. «E como já foi supra referido, no âmbito do crime da violência doméstica, as exigências de prevenção geral são muito elevadas, por via da ressonância fortemente negativa que adquiriram. «Mais, cumpre atentar que os factos praticados, assumem maior gravidade, porquanto foram praticados, enquanto arguido e ofendida viviam como marido e mulher, sendo que as agressões perpetradas pelo arguido sobre a ofendida tenham incluído agressões verbais, ameaças e agressões físicas. «Ainda como circunstância agravante há que ponderar o facto de o arguido não ter demonstrado qualquer tipo de arrependimento. «Como circunstâncias atenuantes a ponderar, relativamente á conduta do arguido, há que atentar que o mesmo não tem registo de antecedentes criminais, nada mais sendo possível ponderar porquanto não prestou quaisquer declarações, nem quanto á sua situação pessoal e embora tenha sido solicitado o relatório social do arguido a verdade é que o arguido não quis submeter-se a tal solicitação, conforme consta dos autos, pelo que nada se apurou. «Assim, no caso concreto, tendo em conta a gravidade dos factos, as expectativas comunitárias na afirmação do direito que reclama uma reacção forte do sistema formal de administração da justiça, traduzida na aplicação de uma pena capaz de restabelecer a paz jurídica abalada pelo crime e de assegurar a confiança da comunidade na prevalência do direito, tudo ponderado, bem como a pena abstracta aplicável, considera-se por adequado, proporcional e necessário, condenar o arguido pela prática do ilícito criminal típico, ilícito e culposo que se logrou provar, na pena de 3 anos e 6 meses de prisão.» O arguido pretende a redução da pena ao mínimo legal, mas não se vislumbra na matéria de facto provada seja que circunstância concreta, potencialmente integradora de alguma das circunstâncias das enumeradas no art. 71º do CP, a que possa ser atribuído valor antenuante. Muito pelo contrário, o arguido continua a revelar uma postura de distanciamento e total falta de ressonância crítica para a gravidade e censurabilidade do seu comportamento, como o ilustram os argumentos de que entretanto casou com a ofendida em data posterior à dos factos integradores do crime cometido, como se dai resultasse alguma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, e, ainda, o de que a manter-se a compensação por danos não patrimoniais, a mesma será paga com rendimentos da própria ofendida, menosprezando o sofrimento infligido à vítima a quem devia especiais deveres de afecto, protecção e respeito, assim como ao filho de ambos que, não obstante ser um bébé e estar ao colo da ofendida, não constituiu suficiente obstáculo ou impedimento para o cometimento do crime. A ilicitude e o grau de culpa são muito intensos e, por conseguinte, a pena de três anos e seis meses de prisão está ajustada com adequação e proporcionalidade quer à intensidade dolosa, quer também às razões de prevenção geral e especial, considerando a enorme proliferação deste tipo de criminalidade, como a cada ano, revelam os Relatórios Anuais de Segurança Interna, sendo que a violência conjugal é, de longe, a mais prevalecente, a extrema danosidade social associada ao fenómeno da violência doméstica, em resultado dos graves prejuízos para a saúde física e mental das vítimas, anotando-se que desde 2000, ano em que o crime de violência doméstica passou a ser qualificado como crime público, cerca de 700 mulheres foram mortas pelos maridos e parceiros íntimos em contextos de violência doméstica. A pena não será alterada e foi suspensa na execução com a imposição do regime de prova, em estrito cumprimento do disposto no art. 34º B nº 1 da Lei 112/2009 de 16 de Setembro, segundo o qual, «a suspensão da execução da pena de prisão de condenado pela prática de crime de violência doméstica previsto no artigo 152.º do Código Penal é sempre subordinada ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, impostos separada ou cumulativamente, ou ao acompanhamento de regime de prova, em qualquer caso se incluindo regras de conduta que protejam a vítima, designadamente o afastamento do condenado da vítima, da sua residência ou local de trabalho e a proibição de contactos, por qualquer meio.» Quanto à compensação por danos não patrimoniais. A Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro que instituiu o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à protecção e à assistência das vítimas destes crimes, estabelece, no artigo 21º, o direito da vítima «a obter uma decisão de indemnização por parte do agente do crime, dentro de um prazo razoável», impondo sempre a aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal, excepto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser. O art. 82º A do CPP, sob a epígrafe de reparação da vítima em casos especiais, refere no seu nº 1, que não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72º e 77º, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de protecção da vítima o imponham. E no n.º 2, que no caso previsto no número anterior, é assegurado o respeito pelo contraditório. O artigo 82º A do CPP consagra a possibilidade de o Tribunal, oficiosamente, fixar uma reparação monetária à vítima de um crime, como efeito penal da condenação. Pressupostos da fixação desta reparação são, para além da existência de uma condenação pela prática de um crime, a existência de danos dele emergentes e a verificação de particulares razões de protecção à vítima. Pese embora, o que está aqui em causa não seja uma indemnização em sentido próprio, porque o tribunal, na aplicação de critérios de equidade dentro dos limites que tiver por provados, terá em conta, na sua medida, menos a natureza e a extensão dos danos e mais as fragilidades do lesado, a verdade é que, com excepção dos crimes previstos na Lei 104/2009 de 14 de Setembro, na redacção introduzida pela Lei 121/2015 de 1 de Setembro e na Lei da Lei 112/2009, de 16.9, com as alterações da Lei 125/2015 de 3 de Setembro, «tratando-se de uma fixação oficiosa de indemnização por danos morais por parte do tribunal, a sua fixação, alicerçada em critérios de equidade, assentará nos factos resultantes da prova produzida na audiência de discussão e julgamento» (Ac. da Relação de Coimbra de 11.05.2016, proc. 94/12.6GAACB.C2, in http://www.dgsi.pt), pelo que se imporá a demonstração de danos causados à vítima (cfr., Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição, p. 245). Mas, nos casos como o presente em que a fixação de uma quantia pecuniária resulta da condenação por crimes de violência doméstica essa reparação é automática e resulta directamente das normas contidas no art. 21º da Lei 112/2009 de 16 de Setembro. «Em caso de condenação por crime de violência doméstica há sempre que arbitrar uma indemnização à vítima, ou porque ela a pediu ou, não o tendo feito e não se tendo oposto ao seu arbitramento, expressamente, por via do disposto no art. 21º da Lei n.º 112/2009, de 16/9» (Ac. da Relação de Coimbra de 28.05.2014, proc. 232/12.9GEACB.C1. No mesmo sentido, Ac. da Relação de Lisboa de 16.09.2015, processo n.º 67/14.4 S2LSB.L1-3; Ac. da Relação de Coimbra de 18.05.2016, processo 232/12.9GEACB.C2, Ac. da Relação de Évora de 04.04.2017, proc. 66/15.9GBABF.E1, Ac. da Relação de Guimarães de 7.03.2016, processo 697/14.4GAVNF.G1, Ac. da Relação de Lisboa de 08.10.2018, processo 853/15.8PJLSB.L1-5, in http://www.dgsi.pt). Esta é a solução que melhor se compagina, quer com o teor literal do art. 21º da Lei 112/2009 citada, no confronto com o texto do art. 82º A do CPP e seguindo o princípio genericamente consagrado no art. 9º do CC, também aplicável em matéria de interpretação de normas do direito penal, de que o legislador soube fazer corresponder o seu pensamento e objectivos visados com a lei que criou ao respectivo texto e consagrou as soluções mais adequadas aos factos que pretende incluir no seu âmbito de provisão ou, em alternativa, o referido art. 21º não teria qualquer sentido útil, pois em nada se distinguiria da previsão legal contida no art. 82º A do CPP. É também a solução que resulta quer da configuração do crime de violência doméstica como um tipo legal de crime cuja consumação pressupõe, necessariamente, uma ou múltiplas ofensas à personalidade da pessoa que tem com o agressor um vínculo relacional próximo, de natureza familiar ou só afectivo, considerada no seu todo, de bem estar físico e psíquico, associada ao valor constitucional da dignidade humana. O bem jurídico tutelado na incriminação pelo art. 152º do CP protege, pois, «a saúde, enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana e da garantia da integridade pessoal contra os tratos cruéis, degradantes ou desumanos, num bem jurídico complexo que abrange a tutela da sua saúde física, psíquica, emocional e moral» (Plácido Conde Fernandes, “Violência Doméstica, Novo Quadro Penal e Processual Penal”, in Jornadas sobre a Revisão do Código Penal, Revista do CEJ, 1.º semestre de 2008, n.º 8, pág. 305. No mesmo sentido, Maria Manuela Valadão e Silveira, Sobre o Crime de Maus Tratos Conjugais, Revista de Direito Penal, vol. I, n.º 2, ano 2002, ed. da UAL, págs. 32-33 e 42; Augusto Silva Dias, Materiais Para o Estudo da Parte Especial do Direito Penal, Crimes Contra a Vida e a Integridade Física, 2.ª edição, AAFDL, 2007, pág. 110). A consideração da reparação prevista no art. 21º da Lei 112/2009 de 16 de Setembro, como uma consequência automática da condenação por crime de violência doméstica é, por fim, a que se compatibiliza com a noção de vítima contida no art. 2º al. a) da Lei 112/2009 como a «pessoa singular que sofreu um dano, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou psíquica, um dano emocional ou moral, ou uma perda material, diretamente causada por ação ou omissão, no âmbito do crime de violência doméstica previsto no artigo 152.º do Código Penal» e com o conceito de vítima especialmente vulnerável consagrado no art. 67º A do CPP. Demonstrada a prática do crime de violência doméstica e não tendo a ofendida declarado não pretender esta compensação, ela resulta como mais uma das manifestações da tutela reforçada das vítimas de violência doméstica visada pela Lei 112/2009 e no que se refere ao respectivo montante, o mesmo não será alterado, porquanto, além da importância dos bens jurídicos postos em crise com a prática do crime, que são outros tantos direitos fundamentais inenrentes à personalidade e dignidade humanas, portanto, com importância suficiente para merecerem a protecção do Direito, há uma componente sancionatória que não pode ser descurada e, no caso, o grau de culpa é muito intenso. Tudo razões por que o presente recurso não merece provimento. III – DECISÃO Termos em que decidem: Negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar integralmente a sentença recorrida. Custas pelo arguido recorrente, fixando a Taxa de Justiça em 4 Ucs – art. 513º do CPP. Notifique. * Tribunal da Relação de Lisboa, 18 de Junho de 2025 * Acórdão elaborado pela primeira signatária em processador de texto que o reviu integralmente (art. 94º nº 2 do CPP), sendo assinado pela própria e pelas Juízas Adjuntas. * Cristina Almeida e Sousa Rui Miguel Teixeira Carlos Alexandre |