| Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
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| Relator: | JOÃO ABRUNHOSA | ||
| Descritores: | DESOBEDIÊNCIA REPRODUÇÃO DE PEÇAS PROCESSUAIS OU DE DOCUMENTOS INCORPORADOS EM PROCESSO CEDH CAUSA DE EXCLUSÃO DA ILICITUDE | ||
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| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 01/26/2022 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Texto Parcial: | N | ||
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| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | PROCEDENTE | ||
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| Sumário: | I - A Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), de que Portugal é Estado Contratante, sendo direito convencional, tem valor infra-constitucional, mas supra-legal; II – A interpretação da Convenção Europeia dos Direitos do Homem pela jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) das normas da Convenção deve ser considerada como integrando a própria CEDH; III – Nos termos dessa jurisprudência, quando uma determinada conduta preencha os restantes elementos do tipo da desobediência, prevista no art.º 88º do CPP, ela só deve ser penalmente sancionada se se provar um prejuízo concreto para a investigação e/ou para a presunção de inocência e houver uma necessidade social imperiosa dessa condenação. | ||
| Decisão Texto Parcial: |  | ||
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| Decisão Texto Integral: | Nos presentes autos de recurso, acordam, em conferência, os Juízes da 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: No Juízo Local Criminal de Lisboa, por sentença de 22/06/2022, com a em que são Arg.[1] A, B, C, D, E, F e G, com os restantes sinais dos autos, foi decidido o seguinte: “… Pelo exposto, tudo visto e ponderado, julgo procedente a pronúncia e, consequentemente: a) Condeno o arguido A, pela prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de desobediência simples, previsto e punido pelo artigo 88.º, n.º 2, alínea b) e n.º 4, do Código de Processo Penal, e pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, com referência aos artigos 35º e 71º, n.º 2 da Lei 27/2007, de 30.07, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à razão diária de €25 (vinte e cinco euros), o que perfaz um total de €3.000 (três mil euros). b) Condeno a arguida F, pela prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de desobediência simples, previsto e punido pelo artigo 88.º, n.º 2, alínea b) e n.º 4, do Código de Processo Penal, e pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, com referência aos artigos 35º e 71º, n.º 2 da Lei 27/2007, de 30.07, na pena de 100 (cem) dias de multa, à razão diária de €20 (vinte euros), o que perfaz um total de €2.000 (dois mil euros). c) Condeno a arguida E, pela prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de desobediência simples, previsto e punido pelo artigo 88.º, n.º 2, alínea b) e n.º 4, do Código de Processo Penal, e pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, com referência aos artigos 35º e 71º, n.º 2 da Lei 27/2007, de 30.07, na pena de 100 (cem) dias de multa, à razão diária de €20 (vinte euros), o que perfaz um total de €2.000 (dois mil euros). d) Condeno a arguida B, pela prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de desobediência simples, previsto e punido pelo artigo 88.º, n.º 2, alínea b) e n.º 4, do Código de Processo Penal, e pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, com referência aos artigos 35º e 71º, n.º 2 da Lei 27/2007, de 30.07, na pena de 100 (cem) dias de multa, à razão diária de €17 (dezassete euros), o que perfaz um total de €1.700 (mil e setecentos euros). e) Condeno a arguida D, pela prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de desobediência simples, previsto e punido pelo artigo 88.º, n.º 2, alínea b) e n.º 4, do Código de Processo Penal, e pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, com referência aos artigos 35º e 71º, n.º 2 da Lei 27/2007, de 30.07, na pena de 100 (cem) dias de multa, à razão diária de €17 (dezassete euros), o que perfaz um total de €1.700 (mil e setecentos euros). f) Condeno a arguida G, pela prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de desobediência simples, previsto e punido pelo artigo 88.º, n.º 2, alínea b) e n.º 4, do Código de Processo Penal, e pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, com referência aos artigos 35º e 71º, n.º 2 da Lei 27/2007, de 30.07, na pena de 100 (cem) dias de multa, à razão diária de €17 (dezassete euros), o que perfaz um total de €1.700 (mil e setecentos euros). g) Condeno o arguido C, pela prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de desobediência simples, previsto e punido pelo artigo 88.º, n.º 2, alínea b) e n.º 4, do Código de Processo Penal, e pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, com referência aos artigos 35º e 71º, n.º 2 da Lei 27/2007, de 30.07, na pena de 100 (cem) dias de multa, à razão diária de €17 (dezassete euros), o que perfaz um total de €1.700 (mil e setecentos euros). h) Condeno os arguidos no pagamento das custas processuais, fixando a taxa de justiça em quatro unidades de conta e nos demais encargos com o processo. …”. * Não se conformando, os Arg. interpuseram recurso da referida decisão, com os fundamentos constantes da motivação, com as seguintes conclusões: “… 1.ª O Tribunal a quo fez intervir de forma manifestamente errónea e tingida de parca concretização nas operações valorativas que basearam a motivação da decisão sobre a matéria de facto, máximas de experiência que não se mostram fundadas em experiências verdadeiras ou reais, mas antes em pré-juízos, argumentos e estereótipos, misturando, ainda, matéria de direito com matéria de facto, o que, em consequência, não poderá conferir à sua argumentação certeza absoluta ou caráter válido, muito menos para os fins condenatórios agora fixados e recorridos, resultando disso a nulidade da decisão condenatória ora recorrida; 2.ª As máximas de experiência utilizadas pelo Tribunal a quo no Julgamento da matéria de facto configuram argumentação monológica, que não é por isso suficientemente crítica ou mesmo autocrítica, constituindo autónoma elaboração do julgador, introduzindo na sentença o uso de generalizações de sentido comum, que devem ser criticamente apreciadas em sede recursiva, uma vez que não devem ser utilizadas, porque contrariadas pela ciência jurídica e contraditadas por evidências empíricas específicas e, ainda, por provas disponíveis no caso concreto; 3.ª Não é conforme às máximas da experiência, em sede de motivação da decisão proferida sobre a matéria de facto, equiparar o conhecimento que o julgador detém e deve deter do articulado da lei interna ao próprio invocado conhecimento dos Recorrentes desse mesmo articulado, olvidando-se que os jornalistas apreenderam necessariamente o sentido social desvalioso das suas condutas, valorando-as paralelamente e na esfera do conhecimento do leigo, se comparados, naturalmente, com o julgador penal, e não enquanto jornalistas; 4.ª Atuam em erro sobre a ilicitude das suas ações, os jornalistas convencidos de que a elaboração e publicação de peças televisivas eram toleradas pela ordem jurídica nacional, que inclui, necessariamente, a ordem jurídica internacional, e, ainda, em erro sobre a validade das normas penais que sustentaram a sua pronúncia no processo, exatamente por suporem, mesmo que, por hipótese, erroneamente, que tais normas eram violadoras da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (adiante CEDH), conforme anteriores condenações do Estado Português junto do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), e que, sendo tais Decisões do domínio público, devem ser tidas em conta na factualidade provada; 5.ª A CEDH vincula o Estado Português na ordem jurídica internacional e, na hierarquia das fontes de direito interno, tem uma posição intermédia entre a lei constitucional e as leis ordinárias/internas, estando subordinada hierarquicamente à Constituição e tendo valor supralegal, pelo que a CEDH deve ser aplicada pelos tribunais portugueses mesmo que contrarie leis ordinárias/internas, não se apresentando como juridicamente válido que se afaste a aplicação da figura do erro sobre a ilicitude, com o único argumento de que os jornalistas conheciam as estatuições proibitivas internas previstas no artigo 88.º do CPP; 6.ª Resultando dos elementos probatórios juntos aos autos que os jornalistas conheciam também – o que também se mostra reconhecido na sentença recorrida, embora sem se ter fixado positivamente qualquer matéria de facto com esse sentido – as estatuições internacionais previstas no artigo 10.º da CEDH, e, bem assim, a interpretação constante delas levada a cabo pelo TEDH, em casos quase idênticos ao dos autos, também por conteúdos de informação exibidos pela antena de televisão SIC, tendo, em consequência, agido em consonância com estas, deve tal matéria ser considerada positivamente na decisão proferida sobre a matéria de facto; 7.ª Os Acórdãos do TEDH, enquanto interpretam as disposições da CEDH, adquirem uma autoridade própria que se exerce sobre todos os Estados contratantes, tratando-se da instância encarregue de interpretar a Convenção, e, como tal, qualificada para fixar o sentido e o conteúdo das noções ali inscritas, inferindo-se do disposto no nº 1 do artigo 32º da CEDH que os tribunais nacionais ao aplicá-la devem fazê-lo de acordo com a interpretação dada pelo tribunal, até porque as decisões do TEDH servem não apenas para julgar os casos que lhe são confiados, mas para clarificar, salvaguardar e desenvolver as normas da CEDH contribuindo para o respeito pelos Estados dos compromissos assumidos na sua qualidade de Partes Contratantes; 8.ª A interpretação da CEDH que deveria ter sido feita pelo Tribunal a quo – e não o foi, como patenteia a decisão recorrida - devia ser entendida como integrando o corpo daquela, como se de uma interpretação «autêntica» se tratasse, impondo-se a todos, exatamente porque não são os acórdãos do TEDH que têm autoridade sobre os Estados membros não parte no litígio, mas a CEDH ela própria tal como foi interpretada pelo TEDH, pelo que deveriam ter sido desaplicadas no caso dos autos as normas constantes do artigo 88.º do CPP; 9.ª Deve ser julgada como provada a matéria de facto atinente a/ao: (1) Os Recorrentes agiram todos na convicção de que, face ao conteúdo e visados da peça jornalística que elaboraram, editaram, autorizaram e emitiram, a sua conduta não era contraria à lei; (2) Os Recorrentes agiram todos na convicção de que, face ao conteúdo e visados da peça jornalística que elaboraram, editaram, autorizaram e emitiram, o seu direito à liberdade de expressão e informação prevalecia sobre a proibição legal de reprodução de peças processuais ou de documentos incorporados no processo e de publicação, por qualquer meio, de conversações ou comunicações intercetadas no âmbito de um processo; (3) Teor dos acórdãos das 10.º e 4.ª Secções do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, de 28/06/2011 e 22/03/2016, respetivamente, proferidos em procedimentos de queixas propostas pela jornalista da antena de televisão SIC, SC__, contra o Estado Português, por violação do artigo 10.º da CEDH, juntos aos autos; por, designadamente, resultar a prova de tal matéria, ademais, do facto de constarem do processo todos os elementos de prova que servem de base àquela requerida fixação (art.º 431.º alínea a) do CPP), 10.ª A sentença condenatória proferida nos autos, sendo proferida no domínio dos direitos de liberdade de expressão e de informação, não demonstra a necessidade dessa mesma condenação, nos termos do artigo 10.º, n.º 2 da CEDH, que enumera as restrições necessárias demonstráveis, e fá-lo na circunstância surpreendente de terem já sido antes proferidas duas reiteradas condenações do Estado Português, transitadas em julgado, estando nelas em causa a análise do regime jurídico vertido no artigo 88.º do CPP, que o TEDH levou a cabo nos correspondentes procedimentos de queixa, no que toca à reprodução pelos jornalistas de peças processuais ou de tomadas de som relativas a atos processuais; 11.ª A condenação dos jornalistas com base na reprodução de peças processuais ou registos de imagens ou tomadas de som de atos processuais, viola o direito de liberdade de expressão e de informação, quando: (1) os trabalhos jornalísticos levantam questões de interesse geral; (2) a utilização das peças processuais ou dos registos de imagens ou tomadas de som de atos processuais assegura a credibilidade da informação transmitida, atestando a sua veracidade e autenticidade; (3) os bens jurídicos contemplados pela norma do artigo 88.º do CPP não se enquadram nas restrições previstas no n.º 2 do artigo 10.º da CEDH; e, (4) é necessário que o Estado Membro alegue e prove prejuízos concretos para o inquérito penal ou a ocorrência de violação do princípio da presunção de inocência, sem os quais a ingerência dos estados membros na atividade jornalística não corresponderá à proteção de 12.ª O tribunal a quo deveria ter concluído que agiram todos os Recorrentes em erro sobre elementos de direito do tipo de crime de que vêm acusados e pronunciados, assim como em erro sobre as invocadas proibições constantes do artigo 88.º do CPP, cujo conhecimento, face àquilo que se extrai da pronúncia julgada precedente pela sentença recorrida, e conclusões que delas se extraem, seria razoavelmente indispensável para que os Recorrentes pudessem ter tomado consciência da ilicitude dos factos que lhe são imputados, devendo, em suma, relativamente a todos os Recorrentes, ser excluído o dolo relativamente a cada uma das suas condutas, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 16.º, n.º 1 do CP; 13.ª É lícito aos jornalistas utilizar e trabalhar jornalisticamente registos de imagens e tomadas de sons relativos a interrogatório e inquirições realizados na fase de um inquérito criminal, bem como parte de interceções telefónicas desse processo, sendo tais elementos processuais, e as peças jornalísticas onde os mesmos foram inseridos e editorialmente trabalhados, o mero mote da discussão pública de aspetos de interesse comunitário; 14.ª Está em causa nos presentes autos a necessidade de reconhecimento de uma situação típica de exclusão da ilicitude dos factos convocados nos autos, por terem os mesmos sido praticados no exercício do direito de liberdade de expressão e de informação, nos termos do disposto no artigo 31.º, n.ºs 1 e 2 alínea b) do Código Penal, exclusão de ilicitude essa ditada pela própria ordem jurídica considerada na sua totalidade, o que inclui, naturalmente, a ordem jurídica internacional, que vincula o Estado Português, pelo menos face às normas vertidas no articulado da CEDH, e à jurisprudência produzida pelo TEDH para as interpretar e densificar, tudo nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 8.º, n.ºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa; 15.ª A norma e aplicação concretas nos autos do disposto no artigo 88.º, n.º 2 b) do CPP, para além de se revelarem excessivas, violam o princípio constitucional da proporcionalidade, e, ainda, os princípios da necessidade de incriminação (art. 18.º da CRP), da culpa (art. 1.º e 25.º da CRP) e os direitos de liberdade de expressão e de informação e liberdade de imprensa e dos meios de comunicação social, previstos, respetivamente, nos artigos 37.º e 38.º da CRP e 10.º da CEDH, quando em causa a conduta de jornalistas que: (1) divulgam peça processual ou documento contido em processo criminal não abrangido pelo segredo de justiça; (2) relativamente ao qual existe a possibilidade de divulgação da sua ocorrência bem como do seu teor (seja qual for o suporte utilizado); (3) implicando, tal publicidade, que a existência do processo e do seu conteúdo essencial sejam já do conhecimento público e tenham sido tratados e falados profusamente na imprensa; (4) possibilitando a divulgação dessa peça ou documento uma maior credibilização dos factos noticiados e um maior esclarecimento público; (5) permitindo também que se acabem com especulações à volta do mesmo, do seu objecto e dos seus protagonistas; (6) e, ainda, inexistindo perigo para a recolha de provas; (7) ou violação em concreto do princípio da presunção de inocência; 16.ª A aplicação ao caso dos autos do disposto no art. 88.º, n.º 4 do CPP, do modo como foi interpretado tal dispositivo para os efeitos condenatórios da sentença recorrida, sofre de inconstitucionalidade normativa, constituindo uma incriminação que pune o mero exercício de uma profissão e, assim, restringe de forma inadmissível a liberdade de expressão e de informação que assiste aos jornalistas, pondo em causa o princípio da mínima intervenção do direito penal, porque: (1) viola o art. 18.º, n.º 2 da CRP, por se tratar de incriminação consagrada sob a forma de crime de perigo abstrato; (2) viola o art. 18.º, n.º 3 da CRP, pois esta lei restritiva de direitos, liberdades e garantias não apresenta caráter geral e abstrato, restringido o âmbito de aplicação desta incriminação à comunicação social; (3) a publicação ou divulgação pela comunicação social de escutas telefónicas obtidas no âmbito de um processo não implica de per si, a violação de direitos fundamentais dos escutados; 17.ª No caso dos autos, é de restringir proporcionalmente o direito à honra, ao bom nome e à privacidade de figuras públicas, por a divulgação dos interrogatórios não extravasar as garantias que a protecção constitucional a esse direito pretende garantir, não havendo prova de que tenha a investigação ficado prejudicada com tal actuação e estando em causa questões de relevante interesse público atentos os crimes e as personalidades envolvidas sob investigação, pelo que mal andaria uma sociedade democrática em que, desconsiderando-se qualquer outro interesse - havendo interesse público e não tendo ficado desprotegidos os interesses que com a proibição se pretende evitar - estaria proibida por si a divulgação/difusão/publicação em causa, prejudicando de forma violenta esse interesse superior (o interesse público) que existisse; 18.ª O conhecimento concreto da forma de reagir dos arguidos aquando do confronto com os factos imputados (humilde e calma ou arrogante e agressiva) no âmbito dos aludidos interrogatórios, do teor das suas declarações (se coerentes ou inverosímeis) e da forma como foram tratados pelo respectivo Magistrado interveniente (com subserviência ou com autoritarismo ou com mero normal respeito), efectivamente apenas era alcançável mediante a visualização/audição de tais interrogatórios, sendo que, em termos liberdade de edição jornalística, qualquer transcrição ou reprodução que fosse efectuada não permitiria ao cidadão afastar a dúvida de a mesma ser exata, o pensamento imediato do homem médio “será que foi mesmo assim” não deixaria de estar presente, pelo que a utilização de tais imagens/sons não foi manifestamente um acrescento despiciendo motivado exclusivamente pela obtenção de maiores audiências/acessos, se tal não terá deixado de estar subjacente, como é evidente, não foi gratuita tal opção; 19.ª A difusão/teledifusão dos interrogatórios dos arguidos no Processo “Operação Marquês”, prestados respetivamente em 27.05.2015 e 18.01.2017, porque de harmonia com o disposto no art.º 31º, n.º 1, do Código de Processo Penal, são factos não puníveis, por a sua ilicitude ser excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade, de acordo com o preceituado no n.º 2, alínea b), desse mesmo preceito, não sendo, portanto, “ilícito o facto praticado(…) no exercício de um direito”, concluindo-se, assim, pela exclusão in casu dessa ilicitude; 20.ª O tribunal a quo, ao ter interpretado e aplicado o direito ao caso dos autos de modo desconforme ao defendido nas conclusões supra, violou os seguintes preceitos legais: (1) artigos 16.º, n.º 1, 17.º, n.º 1, 31.º, n.ºs 1 e 2, alínea b) e 348.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal; (2) artigos 88.º, n.º 2, alínea b) e n.º 4 e 374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal; (3) artigos 1.º, 18.º, n.ºs 2 e 3, 25.º, 37.º e 38.º da Constituição da República Portuguesa; e, (4) artigos 1.º, 10.º, n.ºs 1 e 2, 32.º, n.º 1 e 46.º, n.º 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. TERMOS EM QUE, se requer a Vs. Ex.ªs: Se dignem julgar procedente o presente recurso e, em consequência, se dignem proferir decisão revogatória da sentença ora recorrida, substituindo-se a mesma por acórdão que absolva integralmente os Recorrentes da prática dos crimes pelos quais vêm condenados, O que tudo se requer, com as legais consequências. …”. * A Exm.ª Magistrada do MP[2] respondeu ao recurso, concluindo da seguinte forma: “… 1. Apesar de os Recorrentes invocarem a nulidade da sentença por falta de fundamentação, da leitura da sentença verifica-se que nela se elencam todos os elementos indicados no n.º 2 do art. 374.º do Código de Processo Penal, isto é, os factos provados e não provados e se enunciam os meios de prova determinantes da convicção do Tribunal a quo, que aí foram analisados criticamente, sendo perfeitamente perceptível e possível ao homem médio alcançar o percurso lógico que levou o julgador a formar a sua convicção. 2. Defendem os Recorrentes que os pontos 1 e 2 dos factos não provados deviam ter sido dados como provados, assim como «que os arguidos conheciam o art. 10.º da CEDH e o teor dos acórdãos das 10.º e 4.ª Secções do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem». 3. Contudo, andou bem o Tribunal a quo, ao não dar tais factos como provados, pois, caso o tivesse feito, os mesmos estariam, desde logo, em oposição com a factualidade dada como assente e com a fundamentação da matéria de facto e de direito contida na sentença, o que levaria o Tribunal a quo a incorrer na nulidade prevista na al. b) do n.º 2 do art. 410.º do Código de Processo Penal. 4. Quanto ao facto de os Recorrentes conhecerem o art. 10.º da CEDH e a jurisprudência do TEDH, e de tal “facto” não constar do elenco dos factos dados provados, diremos que o Tribunal recorrido, quanto aos factos a apurar, não se encontra obrigado a pronunciar sobre todas as questões circunstanciais, mas apenas sobre as questões essenciais e com relevância para a decisão referidas no artigo 368.º, n.º 2 do Código de Processo Penal – sendo certo que, apesar disso, o Tribunal recorrido, na sua sentença, teve em consideração tal circunstância, apenas não tendo concluído da forma pretendida pelos Recorrentes. 5. Invocam os Recorrentes o desconhecimento da proibição penal e o erro sobre a ilicitude. 6. Contudo, o Tribunal a quo entendeu que, em face das declarações dos próprios Recorrentes, não era credível que tivessem agido na convicção de que o seu comportamento não violava a proibição prevista no artigo 88.º do Código de Processo Penal, pois conheciam a proibição. 7. Também não colheu a tese de que agiram apenas por considerarem que a sua conduta estaria justificada à luz dos interesses em causa, com base no entendimento de Acórdãos do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, pois «à semelhança da jurisprudência comum interna, apenas constituem direitos e deveres inter partes, efeitos que os arguidos não podem desconhecer», sendo que, admitir-se o contrário «é acreditar na ideia de que os arguidos agiram convencidos de que aqueles acórdãos teriam descriminalizado parcialmente o art.º 88º do Código processo Penal, versão que, seguindo as mais elementares regras do senso comum, tendo em conta as habilitações e a experiencia profissional dos arguidos não podia convencer o tribunal». 8. Defendem os Recorrentes que a sua conduta não é punível, nos termos do disposto no art. 31.º, n.º 2, al. b) do Código Penal, por terem praticado os factos no exercício do direito de liberdade de expressão e de informação. 9. Contudo, para se invocar a causa de exclusão de ilicitude de exercício de um direito é necessário que o agente demonstre que não tinha outra possibilidade que não agir da forma como agiu, ainda que violando determinada norma. 10. E o que resulta da prova produzida foi o contrário, pois o pedido de autorização às autoridades era possível e a transmissão dos interrogatórios não era indispensável para satisfazer o interesse público – na verdade, sempre poderiam os Recorrentes ter adoptado outro comportamento para satisfazer o interesse público, em concreto, podiam ter resumido o conteúdo dos interrogatórios, ou mesmo, ter tornado públicas todas as imagens e vozes, por exemplo distorcendo as mesmas. 11. Defendem os Recorrentes que o art. 88.º, n.º 2, al. b) e n.º 4 do Código de Processo Penal, são inconstitucionais. 12. Quanto à al. b), do n.º 2, do art. 88.º do Código de Processo Penal, ao contrário daquilo que os Recorrentes defendem, tal norma, promove a liberdade de imprensa, dentro dos limites que são compreensíveis, pois não proíbe toda e qualquer reprodução e transmissão de actos processuais, apenas a condiciona a uma autorização da autoridade judiciária que preside à fase do processo no momento da publicação. 13. Estas restrições destinam-se ao estritamente necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, designadamente o direito a uma correcta e serena administração da justiça, os direitos de personalidade daqueles que tenham necessidade de participar em processos criminais, o direito à palavra, o direito à imagem e o direito de defesa. 14. Assim, para além de se mostrar necessário salvaguardar direitos pessoais previstos no art. 26.º da CRP (tais como, o direito à palavra e à imagem), in casu, como bem assinala o Ac. 90/2011 do TC, mantém-se presente um outro campo de valoração conflitual, aparentemente apenas centrado na protecção dos direitos fundamentais dos intervenientes no processo, mas que, se justifica, também, na relação com a boa administração da justiça: sendo obrigatória a gravação dos interrogatórios dos arguidos, para que possam ser tomados em consideração em momentos posteriores do processado com o maior rigor possível, a gravação áudio visual visa garantir a percepção da globalidade das condições em que as declarações dos arguidos foram prestadas valorizando todos os elementos que permitam avaliar a sua credibilidade. 15. No caso dos autos, a generalidade das gravações divulgadas pelos Recorrentes foi captada numa fase do inquérito em que a gravação era obrigatória. 16. Ora, sendo a palavra registada por razões de funcionamento da administração da justiça, e não podendo quem depõe eximir-se a tal gravação, tem-se por justificada a especial tutela traduzida na restrição imposta à comunicação social quanto à sua divulgação. Ou seja, uma vez que a gravação é legalmente determinada por razões processuais, é merecedor de especial protecção aquele que sujeita a sua palavra a registo, sem que a tal se possa recusar. 17. Acresce que, na fase processual em que as imagens e o som em causa nestes autos foram difundidos, tal circunstância é susceptível de influenciar o decurso e o resultado, quer da instrução, quer do julgamento – condicionando e alterando os comportamentos dos sujeitos processuais. 18. Quanto ao número 4 do art. 88.º do Código de Processo Penal, decorre da mera leitura da sentença que, o modo como o Tribunal recorrido o interpretou não fere a Constituição, pois «não pune o mero exercício» da profissão de jornalista, ao referir que «a restrição que resulta deste artigo é bastante limitada, não pondo em causa o princípio geral da publicidade do processo, nomeadamente a possibilidade de a ele terem acesso os jornalistas – quando aquele não se encontre em segredo de justiça – e de darem conhecimento público da ocorrência dos respetivos actos processuais e do seu próprio conteúdo» pelo que «não se vislumbra qualquer desproporção entre a proibição em causa e os fins visados, sendo ela correspondente ao mínimo necessário para harmonizar os diferentes interesses em vista». 19. Invocam os Recorrentes a violação dos arts. 1.º, 32.º, n.º 1 e 46.º, n.º 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e que, por conseguinte, o artigo 88.º do Código de Processo Penal deveria ter sido desaplicado pelo Tribunal a quo. 20. Da mera leitura dos artigos referidos, resulta que, os primeiros dois não foram violados e que o último nem sequer é aplicável ao caso dos presentes autos, pois refere-se a um momento posterior, em que, no caso sujeito à apreciação do TEDH, é declarada a violação da Convenção e, consequentemente obriga o Estado a adoptar as medidas necessárias a reparar as consequências da condenação. 21. Assim sendo, também neste ponto, teve o Tribunal recorrido, em consideração a CEDH e a jurisprudência do TEDH, ao contrário do referido pelos Recorrentes, apenas não tendo concluído nos termos pretendidos pelos Recorrentes. Termos em que, e, em suma, deve o recurso a que ora se responde ser julgado totalmente improcedente e, em consequência, manter-se a decisão proferida. …”. * Neste tribunal, a Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, para além do mais, nos seguintes termos: “... O Ministério Público junto da 1ª instância respondeu ao recurso, defendendo a sua improcedência. Acompanhamos a sua posição e argumentação pela adequação jurídica, clareza e síntese. Porque bem identifica e se pronuncia acerca de todas as questões a dirimir, desnecessário se tornava o aditamento de outras considerações. Não obstante, salienta-se e acrescenta-se que a reportagem televisiva denominada “Grande Reportagem-Operação Marquês” foi transmitida no jornal da noite, em edição simultânea na SIC e na SIC Notícias nos dias 16, 17 e 18 de abril de 2018. Respeitam os factos dados como provados na sentença recorrida, além do mais, à reprodução de peças processuais extraídas do processo .../...8TELSB na reportagem “Grande Reportagem-Operação Marquês”, transmitida na SIS e SIC Notícias. Foram reproduzidos trechos dos interrogatórios do arguido I realizados nos dias 27.5.2015 e 13.3.2017 – alínea i) da matéria de facto provada. Foram difundidos trechos de interceções telefónicas aos arguidos I e J, dos interrogatórios realizados ao arguido I, nos dias 27.5.2015 e 23.11.2014, do interrogatório ao arguido J de 22.11.2014, do interrogatório ao arguido L de 13.1.2015 e do interrogatório da arguida Inês do Rosário de 15.04.2015 – alínea j, da matéria de facto provada. Foram difundidos trechos dos interrogatórios aos arguidos M a 24.2.2017 e I a 13.3.2017, do depoimento da testemunha N a 7.7.2016, dos interrogatórios aos arguidos O a 5.1.2017 e P a 23.4.2015 – alínea K, da matéria de facto provada. Foi reproduzida a interceção telefónica de 11.4.2014 ao arguido I e ao arguido Q – alínea l), da matéria de facto provada. Foram reproduzidas diversas peças processuais, designadamente as escutas de 19.12.2013 aos arguidos I, R e J, excertos dos interrogatórios à arguida R de 15.3.2017, a S de 20.1.2015, excertos dos interrogatórios judiciais aos arguidos I e J a 22.11.2014 e 23.11.2014 e parte do interrogatório à arguida T – alínea m), da matéria de facto provada. Os arguidos difundiram o som e imagem das referidas peças processuais sem autorização dos arguidos e testemunhas cujos depoimentos e interceções telefónicas foram divulgados sem autorização dos Magistrados titulares do inquérito .../...8TELSB, estando cientes de tal – alínea t), da matéria de facto provada. Os arguidos sabiam que não obstante o processo .../...8TELSB já não estar em segredo de justiça, nas datas da divulgação da reportagem, a lei proíbe a divulgação/reprodução do registo de imagens ou tomada de som relativas à prática de atos processuais, salvo se estivessem autorizados pela autoridade judiciária competente e a tal os visados não se tivessem oposto; agiram em execução de acordo prévio e em conjugação de esforços – alíneas u) e v), da matéria de facto provada. Nas datas da transmissão da reportagem, 16, 17 e 18 de abril de 2018 já tinha sido deduzida a acusação, a 11 de outubro de 2017, no processo .../...8TELSB, vulgo “Operação Marquês”, mas ainda não tinha sido proferido o despacho de pronúncia, que só o foi a 9 de abril de 2021. Data esta do conhecimento público, já que a sua leitura foi alvo de transmissão televisiva em direto. Os arguidos foram condenados pela prática do crime de desobediência p. e p. pelo art. 88º, n.º 2, alínea b) e n.º 4, do C.P.P., e pelo art. 348º, n.º 1, alínea a), do C. Penal, com referência aos arts. 35º e 71º, n.º 2, da Lei 27/2007, de 30.07. Tem, pois, de atender-se a este enquadramento jurídico-penal da sentença condenatória recorrida e à circunstância do processo “Operação Marquês” já não coberto pelo segredo de justiça. Mesmo cessado o segredo de justiça, o art. 88º, nº 2, b) e nº 4, do C.P.P. proíbe, sob pena de desobediência simples, “A transmissão ou registo de imagens ou a tomada de som relativas à prática de qualquer ato processual, nomeadamente da audiência, salvo se a autoridade judiciária referida na alínea anterior, por despacho, a autorizar; não pode, porém, ser autorizada a transmissão ou registo de imagens ou tomada de som relativas a pessoas que a tal se opuser” - alínea b), e “não é permitida …, a publicação por qualquer meio, de conversações ou comunicações interceptatas no âmbito de um processo, salvo se não estiverem sujeitas a segredo de justiça e os intervenientes expressamente consentirem na publicação” – nº 4. É, pois, necessária a verificação cumulativa, no caso da alínea b), do nº 2 - a obtenção da autorização expressa da autoridade judiciária que presidir à fase processual no momento da publicação e que pessoa visada não se oponha. No caso do nº 4 é necessário que os intervenientes visados consintam expressamente na publicação. Ora os arguidos recorrentes não requereram a autorização à autoridade judiciária competente, não tendo, por isso, esta sido sequer levada a pronunciar-se, nem foi obtida a não oposição ou o consentimento expresso das pessoas visadas. E não se diga que este artigo 88º, nº 2, b) e nº 4, do C.P.P. está ferido inconstitucionalidade e viola o disposto no art. 10º, da CEDH, como defendem os recorrentes. A propósito do art. 88º, do C.P.P. escreve Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição, Universidade Católica Editora, pág. 258 “Este artigo também concretiza o direito constitucional português e direito internacional dos direitos humanos vinculativo para o Estado português (artigo 206º da CRP e artigo 6º, § 1º, da CEDH). Trata-se de um outro importante aspecto, do ponto de vista histórico, da publicidade externa do processo penal: a liberdade dos meios de comunicação social noticiarem a actividade da justiça”. Como sabiamente refere a Exmª Senhora Conselheira Maria do Carmo Silva Dias, no Comentário Judiciário do Código Processo Penal, tomo 1, edições Almedina 2019, pág. 953, “Esta visão, no sentido de conferir a maior latitude de atuação possível aos órgãos de informação/comunicação, mas salvaguardando limites que não podem ser ultrapassados {que se prendem com a efetiva garantia dos direitos de defesa do arguido, incluindo presunção de inocência, com o assegurar de direitos fundamentais de qualquer sujeito ou interessado que seja afetado e com a segurança também da pretensão punitiva do Estado, além da própria defesa da imparcialidade e isenção do tribunal, designadamente, quando o processo chega á fase de julgamento} é própria de um Estado de direito democrático, sendo perfeitamente atual, mostrando perante o público a quem se dirige, ser a forma mais adequada de alcançar a verdade do processo, que é atingida através um julgamento equitativo e justo (fair trial), permitindo um exercício responsável do jornalismo, que assim contribui para um debate esclarecido e para uma cultura de tolerância, com o respeito dos direitos de todos”. Acrescenta a fls. 955 e 956 “a publicidade do processo externa e mediata que implica, nos termos definidos pela lei, além do mais, os direitos de narração dos atos processuais, ou a reprodução dos seus termos, pelos meios de comunicação social (art.º 86º/6/b), de forma melhor particularizada no art.º 88º, exige que sejam respeitados determinados limites, o que significa que se estabelecem determinadas proibições, especialmente: … (art.º 88º/2/b) a transmissão ou registo de imagens ou de tomada de som relativas à prática de qualquer ato processual (nomeadamente a audiência) sem autorização, por despacho, da autoridade judiciária que presidir à fase do processo no momento da publicação ou que sejam relativos a pessoa que a tal se opuser; … a publicação, por qualquer meio, de conversações ou comunicações telefónicas intercetadas no âmbito de um processo, quando estiverem em segredo de justiça ou os intervenientes não consentirem na publicação (art.º 88º/4)”. António Henriques Gaspar, Código de Processo Penal anotado, 2ª edição Almedina, pág. 27, refere “A exasperação da publicidade do processo para além dos limites do razoável e da necessidade de informação e a transformação da justiça em espetáculo (o circo «mediático-judiciário»), com os trial by tv, afectam necessariamente os direitos à presunção de inocência e a um julgamento justo e equitativo”. O invocado art. 10º, da CEDH, com a epígrafe “Liberdade de expressão” dispõe: “1. Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideias sem que possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas e sem considerações de fronteiras. O presente artigo não impede que os Estados submetam as empresas de radiodifusão, de cinematografia ou de televisão a um regime de autorização prévia. 2. O exercício desta liberdades, porquanto implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a protecção da saúde ou da moral, a protecção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial”. As restrições em apreço constantes do art. 88º, respeitam a formalidades e restrições previstas no aludido art. 10º, nº 2 da CEDH, tendo, em nosso entender, sido a feita a adequada e rigorosa interpretação e aplicação destes artigos na sentença recorrida. Não nos restam dúvidas que as divulgações mesmo que fragmentadas de áudios gravados e ou de imagens dos interrogatórios dos arguidos, do depoimentos de testemunhas e das interceções telefónicas, sem o controle da autoridade judiciária e a não oposição e o consentimento dos visados, nas condições em que o foram e na fase processual em que se encontrava o processo “Operação Marquês”, introduziram fatores de perturbação na garantia de um julgamento justo e equitativo, que o Estado tem o dever de assegurar, e violaram, em primeira linha, o princípio da presunção de inocência do arguidos, bem como o direito à imagem e o direito à proteção de dados pessoais. Aliás, diga-se, os arguidos e testemunhas nunca puderam opor-se à gravação dos seus interrogatórios e depoimentos, efetuadas por imposição legal, no âmbito do processo crime e constantes do suporte magnético, de que os recorrentes se “apoderaram”, e que, sem mais, decidiram divulgar, alegando o interesse público, tal como quanto às interceções telefónicas. Especial proteção foi dada, pelo estatuído no art. 88º, do C.P.P., às palavras e às imagens, constantes nos registos dos interrogatórios e dos depoimentos e nas conversações telefónicas intercetadas. Os recorrentes não atenderam a tal proteção especial, alegando ter atuado ao abrigo do direito à liberdade de expressão e do direito à informação. Direitos estes maiores e constitucionalmente garantidos é verdade, mas não absolutos, que no caso concreto foram excedidos. Acresce que, o acórdão do TC nº 90/2011, de 15 de fevereiro, in DR, II série, de 28 de março de 2011 já se pronunciou sobre a constitucionalidade do art. 88º, nº 2, b), do C.P.P. que não julgou inconstitucional “a norma do art. 88º, nº 2, b), do C.P.Penal, quando interpretada no sentido de que proíbe sem limite de tempo, que a comunicação social transmita a gravação do som da audiência de julgamento, contido no suporte magnético do próprio tribunal, sem que tenha havida autorização da autoridade judiciária que preside à fase do processo no momento da divulgação”. A sentença recorrida não restringiu a liberdade de expressão e de informação dos recorrentes, que sempre podiam ter ilustrado e instruído a reportagem de outra forma. Seria menos impactante para os telespectadores e teria provavelmente inferiores níveis de audiências, mas respeitava as limitações legais, respeitava os direitos conflituantes dos arguidos e testemunhas no processo “Operação Marquês”, sobretudo numa fase processual em que ainda nem tinha sido proferido o despacho de pronúncia. Em conclusão, temos de concluir que o conteúdo do programa, tal como foi transmitido, nos canais SIC e SIC Notícias padece de excesso e é desproporcional no confronto dos direitos dos recorrentes com os direitos dos arguidos do processo “Operação Marquês”. Não merece censura a sentença recorrida. Pelo exposto e louvando-nos ainda na resposta da Exmª Magistrada do Ministério Público na 1ª instância, emite-se parecer no sentido da manutenção da sentença recorrida e pugna-se pela improcedência do recurso. ...”. * A este parecer respondeu o Arg. A, nos seguintes termos: “... Salvo o devido respeito, e melhor entendimento, no Parecer ora notificado, o Exmo. Sr. Procurador-geral Adjunto junto desse TR labora no mero campo das conjeturas, relativamente à matéria que pretendeu salientar e acrescentar àquela que já se mostra vertida na resposta ao recurso apresentada pelo MP junto do tribunal de 1.ª instância. Com efeito, não figura do elenco dos factos dados como provados na sentença recorrida, E, portanto, não podendo suportar a conclusão de que foram ultrapassados os limites dos direitos de liberdade de expressão e de informação de que beneficia o Recorrente: a) Que os direitos de defesa dos Arguidos do caso “Operação Marquês”, incluindo o direito à presunção de inocência, tenham sido negativamente colocados em crise por força da atividade profissional prosseguida pelos Recorrente(ida)s e respetivos conteúdos elaborados e publicados, analisados nos autos; b) Que, por via desses mesmos conteúdos e publicações, tenha sido negativamente afetada a segurança e pretensão punitiva do Estrado Português, além da própria defesa da imparcialidade e isenção das autoridades judiciárias que presidiram e presidem às várias fases do processo-crime vulgarmente conhecimento por “Operação Marquês”; e c) Que, em suma, esses mesmos conteúdos e publicações levaram e levam à falta de um julgamento equitativo e justo do caso “Operação Marquês”, nomeadamente por consistirem em instrumentos de exasperação da publicidade do processo, para além dos limites do razoável e da necessidade, transformando a justiça, em consequência, em espetáculo. Por outro lado, Estranha-se, e não se aceita, a conclusão agora avançada no Parecer notificado de que “As restrições em apreço constantes do art. 88º, respeitam a formalidades e restrições previstas no aludido art. 10º, nº 2 da CEDH, tendo, em nosso entender, sido a feita a adequada e rigorosa interpretação e aplicação destes artigos na sentença recorrida.”. E diz-se que não se aceita, evidentemente porque é o próprio TEDH que reiteradamente vem declarando que o artigo 10 § 2 da Convenção deixa pouco espaço para restrições à liberdade de expressão em assuntos de interesse geral![3] De resto, quanto a tal “interesse geral”, é o Parecer ora notificado totalmente omisso na apreciação de tal questão, principal e palmar… Mas, surpreendentemente, e na senda da sentença recorrida, já não é omisso tal Parecer no que concerne à declarada intenção de controlo judiciário do trabalho dos jornalistas, num caso como o presente, quando conclui em singelo – invocando, mais uma vez, matéria de facto que não se mostra jugada como provada nos autos – que a divulgação dos áudios gravados ou das imagens dos interrogatórios do processo “Operação Marquês”, nomeadamente, introduziram fatores de perturbação na garantia de um julgamento justo e equitativo, violando, em primeiralinha,o princípio da presunção de inocência dos arguidos, bem como o direito à imagem e o direito à proteção de dados pessoais! E esquece-se também o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto, que o TEDH, reiteradamente vem declarando que, para além da substância das ideias e informações expressas, o artigo 10.º da CEDH protege também o seu modo de expressão. Consequentemente, não cabe ao TEDH, nem tampouco aos tribunais internos dos Estados-Membros da Convenção, tomar o lugar da imprensa/televisão/informação na decisão sobre qual técnica de reportagem os jornalistas devem adotar[4], Destarte, não faz também qualquer sentido concluir-se, como conclui o Parecer agora sindicado, no sentido de que a decisão recorrida não restringiu a liberdade de expressão e de informação dos Recorrentes, pois, invocadamente – mas sem se precisar como -, poderiam ter ilustrado e instruído a reportagem de outra forma… … do mesmo modo que, por fim, impugna-se a asserção final contida no parecer, quando refere que o conteúdo do programa padece de excesso e é desproporcional no confronto dos direitos dos Recorrentes com os direitos do Arguidos do processo “Operação Marquês”, Quando, por outro lado, nem sequer é certo que o “conteúdo do programa” em análise nos autos corresponda apenas à reprodução “fragmentada” do conteúdo de peças processuais daqueles autos criminais. Bem pelo contrário, transcende-as, e muito, não fora a aplicação ao caso de critérios editoriais, não constituindo as reportagens em apreço meros sumários gráficos ou áudio daquelas peças processuais, contando, isso sim, com lógica e cronologia, a história de um dos mais importantes processos-crime da história da Democracia portuguesa. Finalmente, Os Acórdãos do TEDH, enquanto interpretam as disposições da CEDH, adquirem uma autoridade própria que se exerce sobre todos os Estados contratantes, tratando-se da instância encarregue de interpretar a Convenção, e, como tal, qualificada para fixar o sentido e o conteúdo das noções ali inscritas, inferindo-se do disposto no nº 1 do artigo 32º da CEDH que os tribunais nacionais ao aplicá-la devem fazê-lo de acordo com a interpretação dada pelo tribunal, até porque as decisões do TEDH servem não apenas para julgar os casos que lhe são confiados, mas para clarificar, salvaguardar e desenvolver as normas da CEDH contribuindo para o respeito pelos Estados dos compromissos assumidos na sua qualidade de Partes Contratantes. Assim, a interpretação da CEDH que deveria ter sido feita pelo Tribunal a quo – e não o foi, como patenteia o Parecer agora notificado - devia ser entendida como integrando o corpo daquela, como se de uma interpretação «autêntica» se tratasse, impondo-se a todos, exatamente porque não são os acórdãos do TEDH que têm autoridade sobre os Estados membros não parte no litígio, mas a CEDH ela própria tal como foi interpretada pelo TEDH, pelo que deveriam ter sido desaplicadas no caso dos autos as normas constantes do artigo 88.º do CPP. Até porque, a sentença condenatória proferida nos autos, sendo proferida no domínio dos direitos de liberdade de expressão e de informação, não demonstra a necessidade dessa mesma condenação, nos termos do artigo 10.º, n.º 2 da CEDH, que enumera as restrições necessárias demonstráveis, e fá-lo na circunstância surpreendente de terem já sido antes proferidas duas reiteradas condenações do Estado Português, transitadas em julgado, estando nelas em causa a análise do regime jurídico vertido no artigo 88.º do CPP, que o TEDH levou a cabo nos correspondentes procedimentos de queixa, no que toca à reprodução pelos jornalistas de peças processuais ou de tomadas de som relativas a atos processuais. É assim que, a condenação dos jornalistas com base na reprodução de peças processuais ou registos de imagens ou tomadas de som de atos processuais, viola o direito de liberdade de expressão e de informação, quando: (1) os trabalhos jornalísticos levantam questões de interesse geral; (2) a utilização das peças processuais ou dos registos de imagens ou tomadas de som de atos processuais assegura a credibilidade da informação transmitida, atestando a sua veracidade e autenticidade; (3) os bens jurídicos contemplados pela norma do artigo 88.º do CPP não se enquadram nas restrições previstas no n.º 2 do artigo 10.º da CEDH; e, (4) é necessário que o Estado Membro alegue e prove prejuízos concretos para o inquérito penal ou a ocorrência de violação do princípio da presunção de inocência, sem os quais a ingerência dos estados-membros na atividade jornalística não corresponderá à proteção de “bens sociais imperiosos”; E é, portanto, lícito aos jornalistas utilizar e trabalhar jornalisticamente registos de imagens e tomadas de sons relativos a interrogatório e inquirições realizados na fase de um inquérito criminal, bem como parte de interceções telefónicas desse processo, sendo tais elementos processuais, e as peças jornalísticas onde os mesmos foram inseridos e editorialmente trabalhados, o mero mote da discussão pública de aspetos de interesse comunitário. Em consequência, no caso dos autos, é de restringir proporcionalmente o direito à honra, ao bom nome e à privacidade de figuras públicas, por a divulgação dos interrogatórios não extravasar as garantias que a protecção constitucional a esse direito pretende garantir, não havendo prova de que tenha a investigação ficado prejudicada com tal actuação e estando em causa questões de relevante interesse público atentos os crimes e as personalidades envolvidas sob investigação, pelo que mal andaria uma sociedade democrática em que, desconsiderando-se qualquer outro interesse – havendo interesse público e não tendo ficado desprotegidos os interesses que com a proibição se pretende evitar - estaria proibida por si a divulgação/difusão/publicação em causa, prejudicando de forma violenta esse interesse superior (o interesse público) que existisse. Também porque o conhecimento concreto da forma de reagir dos arguidos aquando do confronto com os factos imputados (humilde e calma ou arrogante e agressiva) no âmbito dos aludidos interrogatórios, do teor das suas declarações (se coerentes ou inverosímeis) e da forma como foram tratados pelo respectivo Magistrado interveniente (com subserviência ou com autoritarismo ou com mero normal respeito), efectivamente apenas era alcançável mediante a visualização/audição de tais interrogatórios, sendo que, em termos liberdade de edição jornalística, qualquer transcrição ou reprodução que fosse efectuada não permitiria ao cidadão afastar a dúvida de a mesma ser exata, o pensamento imediato do homem médio “será que foi mesmo assim “não deixaria de estar presente, pelo que utilização de tais imagens/sons não foi manifestamente um acrescento despiciendo motivado exclusivamente pela obtenção de maiores audiências/acessos, se tal não terá deixado de estar subjacente, como é evidente, não foi gratuita tal opção. ...”. * A sentença (ou acórdão) proferida em processo penal integra três partes distintas: o relatório, a fundamentação e o dispositivo. A fundamentação abrange a enumeração dos factos provados e não provados relevantes para a decisão e que o tribunal podia e devia investigar; expõe os motivos de facto e de direito que fundamentam a mesma decisão e indica, procedendo ao seu exame crítico e explanando o processo de formação da sua convicção, as provas que serviram para fundamentar a decisão do tribunal. Tais provas terão de ser produzidas de acordo com os princípios fundamentais aplicáveis, ou seja, os princípios da verdade material; da livre apreciação da prova e “in dubio pro reo”. Tendo a prova sido produzida em sede de audiência de julgamento, está ainda sujeita aos princípios da publicidade, da oralidade e da imediação. O tribunal recorrido fixou da seguinte forma a matéria de facto: “…1. Factos Provados Da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento resultou assente a seguinte factualidade, com interesse para a decisão da causa: a) A SIC – Sociedade Independente de Comunicação, SA, é um operador televisivo e tem sede na Estrada da Outurela, 119, Carnaxide, Oeiras. b) O arguido A é Director de Informação da SIC e da SIC Notícias. c) Os arguidos B, C e D são jornalistas exercendo essas funções na SIC. d) A arguida E é coordenadora do “Jornal da Noite” da SIC incumbindo-lhe fazer o alinhamento das diversas peças a teledifundir naquele programa tendo prévio conhecimento daquelas. e) A arguida F é responsável pelo programa “Grande Reportagem”. f) A arguida G é editora de sociedade da SIC e da SIC Notícias e tutela institucionalmente os jornalistas B, C e D. g) Nos dias 16, 17 e 18 de Abril de 2018, foi transmitido no “Jornal da Noite”, em emissão simultânea na SIC e na SIC Notícias uma reportagem denominada “Grande Reportagem-Operação Marquês” dividida em quatro partes cujo conteúdo consiste, em grande parte, na reprodução de peças processuais do NUIPC .../...8TELSB, vulgo “Operação Marquês”. h) No dia 16 de Abril de 2018 foi transmitido episódio “I – O Confronto”. i) Aí foram reproduzidos trechos dos interrogatórios do arguido I no NUIPC .../...8TELSB que tiveram lugar nos dias 27.5.2015 e 13.3.2017. j) No dia 17 de Abril de 2018 foi transmitido o episódio “A conta 006 às ordens de Sócrates” tendo sido difundidos trechos das intercepções telefónicas de 27.9.2013, 12.10.2013, 28.10.2013, 2.11.2013, 5.11.2013, 5.12.2013, 10.12.2013, 19.12.2013, 17.4.2014, 12.5.2014, 30.5.2014, 2.11.2014, 30.5.2014, 24.5.2015 a I e J; do interrogatório de I, recolhidos a 27.5.2015 e 23.11.2014; do interrogatório judicial a J recolhido a 22.11.2014; do interrogatório a L, recolhido a 13.1.2015; do interrogatório de Inês do Rosário recolhido a 15.4.2015. k) No dia 17.4.2018 e 18.4.2018 foi passado o episódio denominado ““Oui Monsieur” O Saco Azul do Marquês” que contém excertos de diversos interrogatórios, designadamente o recolhido a 24.2.2017 a M; I, recolhido a 13.3.2017; depoimento da testemunha N a 7.7.2016; ao arguido U a 24.2.2017; ao arguido Q a 18.1.2017; ao aí arguido O a 5.1.2017 e ao aí arguido P, recolhido a 23.4.2015. l) E ainda interceção telefónica de 11.4.2014 a I e Q. m) No dia 18.4.2018 foi passado o episódio “ O amigo do Senhorio” tendo sido, mais uma vez, reproduzidas diversas peças processuais do NUIPC .../...8TELSB, designadamente escutas de 19.12.2013 a I, R e J; excerto do interrogatório recolhido a R no dia 15.3.2017; excerto do interrogatório recolhido ao aí arguido S a 20.1.2015; excertos dos interrogatórios judiciais de 22.11.2014 e 23.11.2014, a I e J; e parte do interrogatório a T. n) A emissão da reportagem acima descrita foi do conhecimento de todos os arguidos que conjuntamente, decidiram que as referidas peças processuais seriam teledifundidas no canal televisivo SIC/ SIC Notícias. o) A reportagem em causa é da autoria dos arguidos B, C e D. p) O arguido A dirigiu e supervisionou a elaboração da reportagem. q) A arguida F participou na elaboração da reportagem, delineando com os jornalistas referidos, o conteúdo e estrutura do programa e procedeu à sua análise com vista ao aperfeiçoamento do produto final. r) A arguida G supervisionou a elaboração da reportagem. s) A arguida E também supervisionou a realização da reportagem, fazendo propostas sobre o seu conteúdo. t) Os arguidos difundiram o som e imagem das referidas peças processuais sem autorização dos arguidos e testemunhas cujos depoimentos e intercepções telefónica foram divulgados e sem autorização dos Magistrados titulares do inquérito .../...8TELSB, estando cientes de tal. u) Os arguidos sabiam que, não obstante o NUIPC .../...8TELSB já não estar sujeito a segredo de justiça na data da divulgação das peças em causa, a lei proíbe a divulgação/reprodução do registo de imagens ou tomadas de som relativas à prática de actos processuais, salvo se estivessem autorizados pela autoridade judiciária competente e a tal os visados não se tivessem oposto. v) Os arguidos agiram em execução de acordo prévio e em conjugação de esforços. w) Atuaram voluntariamente, bem sabendo que o seu comportamento é proibido por lei. x) A é casado, tem quatro filhos, dois em regime de guarda partilhada, um exclusivamente a seu cargo e um autónomo, exerce as funções do diretor de informação, aufere mensalmente €6000, reside em casa adquirida com recurso ao crédito bancário, suportando prestação de €1100 mensais, presta alimentos aos filhos no valor de €1000 e suporta mensalidade relativa a frequência de estabelecimento escolar de outro filho no valor de €450. y) B é divorciada, reside com uma filha estudante de 21 anos, suporta as propinas da frequência universitária da filha no valor de €90 mensais, vive em casa adquirida com recurso ao crédito bancário, pagando uma prestação mensal de €400, exerce a profissão de jornalista, aufere €2300 mensais. z) C é casado, jornalista de profissão, aufere mensalmente €2300, tem dois filhos de 15 e 11 anos, o agregado familiar reside em casa adquirida com recurso ao crédito bancário, pelo qual paga €650 mensais. aa) D é casada, tem uma filha de 5 meses é jornalista de profissão, aufere mensalmente €2350, reside em casa arrendada pelo montante de €1200 mensais, a filha está aos cuidados de uma ama a quem paga €886 mensais, suporta prestação de renting automóvel no valor de €250. bb) E é casada, tem dois filhos de 7 e 10 anos, que frequentam o estabelecimento de ensino privado, pelo qual paga €1000 mensais, reside em casa própria adquirida com recurso ao crédito bancário, pelo qual paga €850 mensais, é jornalista de profissão e aufere mensalmente €3430. cc) F é solteira, vive sozinha, é jornalista de profissão, aufere mensalmente €3000, vive em casa adquirida com recurso ao crédito bancário pela qual paga €800. dd) G é jornalista de profissão, aufere mensalmente 1200€/€1300, vive em casa própria sem encargos. ee) Do certificado de registo criminal dos arguidos não constam registos da prática de crimes. * 2. Factos não provados Não se provou que: A. Os arguidos agiram todos na convicção de que, face ao conteúdo e visados da peça jornalística que elaboraram, editaram, autorizaram e emitiram, a sua conduta não era contraria à lei; B. Os arguidos agiram todos na convicção de que, face ao conteúdo e visados da peça jornalística que elaboraram, editaram, autorizaram e emitiram, o seu direito à liberdade de expressão e informação prevalecia sobre a proibição legal de reprodução de peças processuais ou de documentos incorporados no processo e de publicação, por qualquer meio, de conversações ou comunicações intercetadas no âmbito de um processo. Não resultaram provados outros factos com relevância para a causa, sendo certo que não foi considerada matéria conclusiva, de direito ou sem qualquer relevância para a decisão da causa …”. * Como dissemos, o art.º 374º/2 do CPP[5] determina que, na sentença, ao relatório se segue a fundamentação que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal. A redacção deste preceito inculca a ideia, que a obediência a regras de bom senso, clareza e precisão apoiam, de que a fundamentação da decisão se repartirá pela enumeração dos factos provados, depois dos não provados e, seguidamente, pela exposição dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão com o exame crítico das provas. Necessário e imprescindível é que o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência se possa controlar a razoabilidade da convicção sobre o julgamento do facto provado ou não provado. No cumprimento desse dever, o tribunal recorrido fundamentou a sua decisão de facto da seguinte forma: “… Como dispõe o art.º 127.º do Código de Processo Penal, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente. O julgador tem a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos submetidos a julgamento com base no juízo de que se fundamenta no mérito objetivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, tal como ele foi exposto e adquirido representativamente no processo. Quanto à factualidade controvertida, o tribunal alicerçou a convicção na totalidade da prova produzida, conjugada e apreciada à luz das regras da experiência. No caso dos autos e concretamente quanto a factualidade objetiva [alíneas a) a n)], a convicção o Tribunal formou-se a partir das declarações dos arguidos, conjugadas com o teor da certidão de fls. 114 a 122, documentos de fls. 4 a 12 162 a 167 e conteúdo dos cd’s de folhas 18, 23, 24 e 106. Na verdade, todos os arguidos, de forma unânime, serena e espontânea, reconheceram a prática dos factos nos exatos termos descritos no despacho de acusação, designadamente, as funções exercidas por cada um na operadora televisiva e a intervenção no trabalho jornalístico em causa. Provados (por reconhecimento dos próprios) todos os actos objetivamente praticados, a exclusão da consignação da confissão integral e sem reservas, adveio da circunstância de os arguidos terem alegado estar convencidos de que este comportamento, estaria excluído do âmbito do art.º 88º do CPP, ou estaria justificado, face à interpretação do TEDH vertida a jurisprudência daquela instituição sobre o tema, designadamente pelo teor de dois acórdãos, respetivamente de 2011 e 2016, pelo interesse dos conteúdos e porque não identificaram prejuízos concretos, prevalecendo o direito à informação sobre a proibição legal contida na norma incriminadora. Todos justificaram esta (alegada) convicção no facto de serem conhecedores daquela jurisprudência do TEDH que, no seu entender, versando sobre situação semelhante, considerou ser uma violação do artigo 10º, n.º 2 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, o entendimento de que o jornalista pratica crime de desobediência nestas circunstâncias, quando, versando a sua reportagem sobre matéria de interesse público, não se demonstre a ocorrência de perigo concreto para o inquérito criminal e violação objetiva do princípio da presunção de inocência. Quanto a este ponto, não se ignora nem se rejeita a dimensão nacional do objeto desta reportagem (trata-se de um ex-primeiro-ministro e outras vinte e sete figuras públicas acusadas da prática de crimes de corrupção fraude fiscal e branqueamento de capitais), todavia, a tese que os arguidos procuraram veicular foi a de que estariam convencidos que, pela qualidade dos visados e pelo conteúdo da reportagem, a proibição contida no artigo 88º do Código processo Penal, da qual todos se afirmaram conhecedores, não tinha aplicação, e não tinha aplicação, face ao teor daquela jurisprudência do TEDH. Conexo com este argumento, verbalizaram também que, ainda que assim não fosse, estavam convencidos de que poderiam publicar estes conteúdos, porque, no confronto entre, por um lado, o seu direito à informação e o interesse publico dos conteúdos, e por outro, a proibição legal subjacente à norma incriminadora, prevalecia o primeiro, estando justificado o comportamento. Todavia, apesar do esforço, percetível até nas expressões faciais veiculadas em audiência, para convencer o Tribunal de era esta a postura interna de todos no momento em que decidiram elaborar, coordenar, editar e dirigir este trabalho jornalístico, todos evidenciaram ao longo das respetivas declarações, estar conscientes de que violavam uma disposição legal, sendo conhecedores da vigência do art.º 88º do CP no ordenamento jurídico nacional, nos exatos termos em que vem previsto. Com efeito, não obstante, terem todos afirmado reiteradamente estar convencidos de que, pela dimensão nacional do conteúdo e visados da peça jornalística, dissertando sobre o interesse publico deste trabalho e sobre o que definiram por ausência de prejuízos, todos eram conhecedores da proibição legal, nos precisos termos em que vem redigida. Note-se que a postura interna do agente, sendo insuscetível de prova direta, se apura com base na conjugação dos factos provados e demais comportamentos precedentes ou subsequentes conexos com a prática dos factos, com os juízos de experiência comum. Neste segmento, relevou para formar a convicção do Tribunal o facto de os arguidos esclarecerem que este trabalho jornalístico foi alvo de reflexão demorada, correspondente ao período da sua preparação (cerca de quatro meses); de afirmarem ser conhecedores da proibição legal do art.º 88º do CPP e da exceção contida no próprio dispositivo (a publicação de peças ou actos processuais nestas condições, é permitida desde que autorizada pelo magistrado e não haja oposição dos visados), e todos esclareceram que a autorização nunca foi solicitada, nem sequer ponderada ou discutida em concreto tal hipótese, por ser previsível que seria recusada. Mas mais, todos afirmaram que, independentemente da hipotética autorização, a reportagem iria ser publicada! Esta postura evidencia claramente a consciência dos arguidos da proibição legal da sua conduta e é incompatível com o alegado erro sobre a ilicitude. Acresce que todos os arguidos são jornalistas de profissão, licenciados e laboram com temas jurídicos há vários anos, pelo que a mesma ligeireza que os leva a serem conhecedores do conteúdo de acórdãos do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem que versam sobre temas conexos com atividade profissional que desenvolvem, necessariamente também os leva a serem conhecedores dos limites da jurisdição desse tribunal. Ou seja, não é minimamente credível que os arguidos tenham agido na convicção de que o seu comportamento não violada a proibição do artigo 88º do Código processo Penal ou estaria justificado a luz dos interesses em causa, com base no entendimento de acórdãos do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que à semelhança da jurisprudência comum interna, apenas constituem direitos e deveres inter partes, efeitos que os arguidos não podem desconhecer. Admitir-se o contrário, é acreditar na ideia de que os arguidos agiram convencidos de que aqueles acórdãos teriam descriminalizado parcialmente o art.º 88º do Código processo Penal, versão que, seguindo as mais elementares regras do senso comum, tendo em conta as habilitações e a experiência profissional dos arguidos não podia convencer o tribunal. Em suma, do conjunto de fatores e evidências apontados, o tribunal ficou convencido de que os arguidos, quando decidiram realizar e emitir este trabalho jornalístico, não o fizeram por estar convencidos de que não era proibido face à (sua) interpretação da jurisprudência do TEDH, fizeram-no conscientes da proibição legal da sua conduta, querendo desobedecer a lei. Em conclusão, face ao conjunto de argumentos expendidos, aos factos que todos assumiram ter praticado, à duração da investigação e preparação prévia do trabalho jornalístico e sobretudo ao enfase que todos deram ao interesse destes conteúdos, afirmando perentoriamente que, independentemente do entendimento, nunca hesitaram na sua elaboração e publicação, o Tribunal ficou convencido de que todos estavam conscientes de que violavam a proibição do art.º 88º do CPP. Relativamente às condições socioeconómicas dos arguidos, o tribunal ponderou as declarações produzidas pelos mesmos, que se revelaram verosímeis atendendo à forma espontânea e clara com que foram produzidas. No que respeita aos antecedentes criminais, o tribunal valorou os certificados do registo criminal constante dos autos. Os factos não provados foram como tal decididos por estarem em oposição com a factualidade assente. …”. * É pacífica a jurisprudência do STJ[6] no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação[7], sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso. Da leitura dessas conclusões e tendo em conta as questões de conhecimento oficioso, afigura-se-nos que as únicas questões fundamentais a decidir no presente recurso são as seguintes: I – Falta de fundamentação, relativamente aos elementos subjectivos do tipo pelo qual os Arg. vêm condenados; II - Impugnação da matéria de facto; III – Tipificação das condutas dos Arg.; IV – Inconstitucionalidade do art.º 88º do CPP. * Cumpre decidir. I – Entendem os Recorrentes que a decisão recorrida não está suficientemente fundamentada, quanto aos factos dados como provados aos elementos subjectivos do tipo pelo qual os Arg. vêm condenados. A falta de fundamentação da sentença constitui uma nulidade (art.ºs 374º/2 e 379º/1-a) do CPP), mas a deficiência da fundamentação só constitui esta nulidade, quando for de tal forma relevante que impeça o conhecimento da razão para determinado facto ter sido dado como provado ou não provado, ou os raciocínios subjacentes à qualificação jurídica da conduta do Arg., ou à determinação das medidas das penas. Essa nulidade deve ser arguida e conhecida em sede de recurso (art.º 379º/2 do CPP). Na decisão recorrida diz-se, clara e extensamente, que a matéria de facto relativa aos elementos subjectivos do tipo foi dada como provada com base nas próprias declarações dos Arg., que assumiram conhecer o art.º 88º do CPP e que, depois de ponderação demorada, decidiram não pedir autorização para a emissão das peças aqui em causa e ainda afirmaram que as emitiriam, mesmo que tivessem pedido autorização e ela fosse negada. Tanto basta para dar cumprimento à obrigação da fundamentação de facto[8], uma vez que permite controlar a razoabilidade da convicção de facto do tribunal recorrido. E tanto assim é, no presente caso, que os Recorrentes discutem as ilações tiradas pelo tribunal recorrido. Pode não se estar de acordo com essa fundamentação, como é o caso dos Recorrentes, mas isso não implica a existência de falta de fundamentação. Não padece, pois, a decisão recorrida do vício de falta de fundamentação. * II - Entendem os Recorrentes que o tribunal recorrido não devia ter dado como provado que sabiam que a lei proibia a divulgação/reprodução do registo de imagens ou tomadas de som relativas à prática de actos processuais, salvo se estivessem autorizados pela autoridade judiciária competente e a tal os visados não se tivessem oposto, e, portanto, o seu comportamento era proibido por lei, e que devia ter sido dado como provado os seguintes factos: “... (1) Os Recorrentes agiram todos na convicção de que, face ao conteúdo e visados da peça jornalística que elaboraram, editaram, autorizaram e emitiram, a sua conduta não era contraria à lei; (2) Os Recorrentes agiram todos na convicção de que, face ao conteúdo e visados da peça jornalística que elaboraram, editaram, autorizaram e emitiram, o seu direito à liberdade de expressão e informação prevalecia sobre a proibição legal de reprodução de peças processuais ou de documentos incorporados no processo e de publicação, por qualquer meio, de conversações ou comunicações intercetadas no âmbito de um processo; (3) Teor dos acórdãos das 10.º e 4.ª Secções do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, de 28/06/2011 e 22/03/2016, respetivamente, proferidos em procedimentos de queixas propostas pela jornalista da antena de televisão SIC, SC__, contra o Estado Português, por violação do artigo 10.º da CEDH ...”. Neste caso, os Recorrentes entendem que foi mal julgada a matéria de facto, porque as ilações tiradas quanto aos elementos subjectivos do tipo não têm suficiente sustentação. A garantia do duplo grau de jurisdição não subverte o princípio da livre apreciação da prova pelo juiz. Este princípio da livre apreciação da prova está consagrado no art. 127º do CPP nos seguintes termos «... a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente». E embora este Tribunal da Relação tenha poderes de intromissão em aspectos fácticos (art.ºs 428º e 431º/b) do CPP), não pode sindicar a valoração das provas feitas pelo tribunal em termos de o criticar por ter dado prevalência a uma em detrimento de outra, salvo se houver erros de julgamento e as provas produzidas impuserem outras conclusões de facto[9],[10],[11]. A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência - visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto[12]. Na formação da convicção do juiz não intervêm apenas factores racionalmente demonstráveis, referindo-se a relevância que têm para a formação da convicção do julgador «elementos intraduzíveis e subtis», tais como «a mímica e todo o aspecto exterior do depoente» e «as próprias reacções, por vezes quase imperceptíveis, do auditório» que vão agitando o espírito de quem julga (no mesmo sentido Castro Mendes, Direito Processual Civil, 1980, vol. III, pág. 211, para acrescentar depois, a págs. 271, que «existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas podem ser percebidos, apreendidos, interiorizados ou valorizados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção dos julgadores»)[13]. O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique «os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado». E convém referir que quando o tribunal recorrido forma a sua convicção com provas não proibidas por lei, prevalece a convicção do tribunal sobre aquelas que formulem os Recorrentes. Normalmente, os erros de julgamento capazes de conduzir à modificação da matéria de facto pelo tribunal de recurso consistem no seguinte: dar-se como provado um facto com base no depoimento de uma testemunha que nada disse sobre o assunto; dar-se como provado um facto sem que tenha sido produzida qualquer prova sobre o mesmo; dar-se como provado um facto com base no depoimento de testemunha, sem razão de ciência da mesma que permita a referida prova; dar-se como provado um facto com base em prova que se valorou com violação das regras sobre a sua força legal[14]; dar-se como provado um facto com base em depoimento ou declaração, em que a testemunha, o arguido ou o declarante não afirmaram aquilo que na fundamentação se diz que afirmaram[15]; dar-se como provado um facto com base num documento do qual não consta o que se deu como provado; dar-se como provado ou não provado um facto com base em presunção judicial erradamente aplicada. Uma vez que contestam unicamente a prova por presunção judicial, não fizeram as especificações previstas no art.º 410º/3 do CPP. Presunções judiciais são as que, assentando no simples raciocínio de quem julga, decorrem das máximas da experiência, dos juízos correntes de probabilidade, dos princípios da lógica ou dos próprios dados da intuição humana[16] – art.º 349º e 351º do CC[17] (Cf. P. Lima e A. Varela, in "CC Anot.", I Vol., 4ª Ed., p. 312), e o recurso a estas presunções é perfeitamente constitucional[18] e legítima em processo penal[19],[20],[21],[22], podendo, inclusivamente, os Tribunais da Relação, quando tenha sido impugnada a matéria de facto, fazer uso dessas presunções, para dar como provados factos que o não vinham da 1ª instância[23]. O uso de presunções tem regras[24]. Vejamos se as mesmas foram inteiramente respeitadas no presente caso. São os seguintes o factos de base seguros: “... Os arguidos sabiam que, não obstante o NUIPC .../...8TELSB já não estar sujeito a segredo de justiça na data da divulgação das peças em causa, a lei proíbe a divulgação/reprodução do registo de imagens ou tomadas de som relativas à prática de actos processuais, salvo se estivessem autorizados pela autoridade judiciária competente e a tal os visados não se tivessem oposto. ...”. E estes factos são seguros porque resultam directamente das declarações dos Arg.. Mas a verdade é que, dessas declarações também resulta que eram conhecedores da referida jurisprudência do TEDH sobre a matéria. Assim, para além do que seu como provado em w (Atuaram voluntariamente, bem sabendo que o seu comportamento é proibido por lei) existe outra causa provável: a de que, os Arg. estavam convencidos de que a sua conduta poderia estar justificada por aquela jurisprudência, mas tendo conhecimento da proibição legal, se conformaram com a possibilidade de a estarem a violar. Concluímos, por isso, que aqueles factos de base seguros só permitem presumir com suficiente segurança que os Arg. embora estivessem convencidos de que a sua conduta podia estar justificada por aquela jurisprudência do TEDH, tendo conhecimento da proibição legal, se conformaram com a possibilidade de a estarem a violar. Alteraremos, pois, em conformidade, a matéria de facto provada. É, pois, parcialmente procedente, nesta parte, o recurso. * Não vislumbramos na decisão recorrida qualquer dos vícios previstos no art.º 410º/2 do CPP, que são de conhecimento oficioso[25] e têm que resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum[26]. * III - Entendem os Arg. que a ilicitude da sua conduta está excluída, porque constituiu o exercício da liberdade de expressão e de informação, nos termos de jurisprudência do TEDH, que citam. Atenta a matéria de facto provada, dúvidas não há de que a conduta dos Arg., como se afirma na decisão recorrida, preencheu os elementos do tipo pelo qual vêm condenados (desobediência simples, p. e p. pelos art.ºs 88.º/ 2- b)/4, do CPP[27], e pelo artigo 348.º/1- a), do CP). Mas, tendo em conta a alteração do facto provado w), tais crimes foram cometidos com dolo eventual. A Convenção Europeia dos Direitos do Homem, de que Portugal é Estado Contratante, sendo direito convencional, tem valor infra-constitucional, mas supra-legal[28] e “A interpretação pelo TEDH de normas convencionais deve ser considerada como integrando a própria CEDH”[29]. No presente caso contrapõem-se as liberdades de expressão e de informação, a realização da justiça de forma serena e em local próprio (julgamento mediático e parcial, com critérios editoriais, perturbador do ambiente em que seria efectuado o julgamento), o direito à imagem (o Arg. estava numa situação de constrangimento pessoal e físico e não podia esperar que as suas imagens – que seria salvaguardada se a peça jornalística se limitasse a descrever o seu depoimento - e palavras viessem a ser divulgadas publicamente) e o direito à reserva da vida privada (escutas telefónicas). Ora, nos termos da jurisprudência do TEDH sobre o art.º 10º da CEDH, a condenação dos jornalistas nos termos do art.º 88º/2 do CPP só se justifica se se provar um prejuízo concreto para a investigação e/ou para a presunção de inocência[30]. É indiscutível os factos objecto daquele processo tinham grande interesse social, político e mediático, tiveram e têm enorme repercussão pública, uma vez que estavam em causa crimes graves imputados a figuras de grande relevância política e empresarial. Ora, por um lado, não consta dos factos provados qualquer prejuízo concreto para a investigação, que nessa altura já se não encontrava em segredo de justiça. Por outro lado, não só não se provou qualquer prejuízo concreto para a presunção de inocência dos Arg., como à data da prática dos factos, alguns dos Arg. naquele processo tinham já feito várias declarações públicas, dando a sua versão dos factos, pelo que também nós não podemos concluir pela existência concreta desse prejuízo. Acresce que, quando foram divulgadas as referidas peças, o processo se encontrava pendente há cerca de cinco anos e os actos constantes das peças divulgadas tinham ocorrido há, pelo menos, um ano, sendo o caso objecto de frequentes notícias e debates na comunicação social. Naturalmente, estão postos em causa o direito à imagem (reprodução das gravações dos interrogatórios) e o direito à reserva da vida privada (reprodução de escutas telefónicas a comunicações privadas) das pessoas constantes das referidas peças. Mas, estando em causa figuras públicas, nos termos daquela jurisprudência, estes direitos têm que ceder perante as liberdades de expressão e de imprensa. Por último, não se verifica qualquer necessidade social imperiosa na condenação dos Arg., pela violação do disposto no art.º 88º/2 do CPP. Fazendo, pois, a necessária ponderação entre a realização da justiça de forma serena e em local próprio), o direito à imagem, o direito à reserva da vida privada, por um lado, e a liberdade de informação e de expressão, por outro, termos que concluir pela prevalência concreta desta, apesar de considerarmos que os Arg. poderiam e deveriam ter agido de forma diferente e, ainda assim, exercido estes direitos. Na verdade, poderiam, por exemplo, ter requerido autorização para a publicação das peças; sendo esta negada, poderiam ter feito uma informação própria com base nas mesmas, referindo que dispunham das gravações como garantia de veracidade, mas isso será, eventualmente, relevante em sede de responsabilidade civil, porque, atenta a referida jurisprudência do TEDH, não é bastante para a sua responsabilização penal. Está, assim, concretamente excluída a ilicitude penal das condutas dos Arg. (art.º 31º/1 do CP). É, pois, procedente, também nesta parte, o recurso. * IV - Entendem os Arg. que o art.º 88º do CPP é inconstitucional, mas a sua apreciação está prejudicada, atenta a conclusão a que chegámos na questão anterior. * A alteração do facto provado w), da qual resulta que os Arg. agiram com dolo eventual e não com dolo directo, poderia ter implicações nas medidas das penas, mas os Arg. não puseram em causa as mesmas, pelo que nos está vedada a sua reapreciação. * Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis, julgamos parcialmente provido o recurso e, consequentemente, decidimos: a) Alterar a matéria de facto dada com provada em w), passando este facto provado a ter o seguinte conteúdo: “Actuaram voluntariamente, e, embora estivessem convencidos de que a sua conduta podia estar justificada por aquela jurisprudência do TEDH, tendo conhecimento da proibição legal, conformaram-se com a possibilidade de a estarem a violar”; b) Absolver os Arg. dos crimes pelos quais vinham condenados. * Sem custas. Notifique. D.N.. * Lisboa, 26-01-2023, João Abrunhosa Filipa Costa Lourenço Maria Gomes Bernardo Perquilhas [1] Arguido/a/s. [2] Ministério Público. [3] Cfr., a mero título de exemplo, parágrafo 40. do Ac. TEDH de 22 de março de 2016, junto aos autos – Caso SC__ c. Portugal. [4] Idem, parágrafo 46. [5] Código de Processo Penal. [6] Supremo Tribunal de Justiça. [7] “Cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007; proferido no proc. nº 1378/07, disponível in Sumários do Supremo Tribunal de Justiça; www.stj.pt. “O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação – art. 412.º, n.º 1, do CPP –, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, questões que o relator enuncia no exame preliminar – art. 417.º, n.º 6, do CPP –, a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes. Cfr. ainda Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.1999, CJ VII-I-247 e de 20-12-2006, processo 06P3661 em www.dgsi.pt) no sentido de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas [Ressalvando especificidades atinentes à impugnação da matéria de facto, na esteira do doutrinado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-02-2005, quando afirma que :“a redacção do n.º 3 do art. 412.º do CPP, por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem para dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que «versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda, sob pena de rejeição» (...), já o n.º 3 se limita a prescrever que «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (...), sem impor que tal aconteça nas conclusões.” -proc 04P4716, em www.dgsi.pt; no mesmo sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-06-2005, proc 05P1577,] (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal e Acórdão do Plenário das secções criminais do STJ de 19.10.95, publicado no DR Iª série A, de 28.12.95).” (com a devida vénia, reproduzimos a nota 1 do acórdão da RC de 21/01/2009, relatado por Gabriel Catarino, no proc. 45/05.4TAFIG.C2, in www.dgsi.pt). [8] Relativamente à fundamentação de facto, cf. a jurisprudência plasmada no Ac. STJ de 17/11/1999, relatado por Martins Ramires, in CJSTJ, III, p. 200 e ss., do qual citamos: “O entendimento do STJ sobre o cumprimento deste preceito encontra-se sedimentado: trata-se de exposição tanto quanto possível completa, mas concisa, dos motivos de facto e indicação das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal, sem necessidade de esgotar todas as induções ou critérios de valoração das provas e contraprovas, mas permitindo verificar que a decisão seguiu um processo lógico e racional na apreciação da prova, não sendo ilógica, arbitrária contraditória ou violadora das regras da experiência comum ... .”. Também neste sentido, ver Maria do Carmo Silva Dias, in “Particularidades da Prova em Processo Penal. Algumas Questões Ligadas à Prova Pericial”, Revista do CEJ, 2º Semestre de 2005, pp. 178 e ss., bem como a doutrina e a jurisprudência constitucional citadas. No mesmo sentido, cf. Sérgio Gonçalves Poças, in “Da sentença penal – Fundamentação de facto”, revista “Julgar”, n.º 3, Coimbra Editora, p. 21 e ss.. Ver ainda José I. M. Rainho, in “Decisão da matéria de facto – exame crítico das provas”, Revista do CEJ, 1º Semestre de 2006, pp. 145 e ss. donde citamos: “Em que consiste portanto a especificação dos fundamentos que foram decisivos para a formação da convicção? Consiste simplesmente na indicação das razões fundamentais, retiradas a partir das provas segundo a análise que delas fez o julgador, que levaram o tribunal a assumir como real certo facto. Ou, se se quiser, consiste em dizer por que motivo ou razão as provas produzidas se revelam credíveis e decisivas ou não credíveis ou não decisivas. No primeiro caso o tribunal explica por que julgou provado o facto; no segundo explica por que não julgou provado o facto. … a motivação não tem porque ser extensa, de modo a significar tudo o que foi probatoriamente percepcionado pelo julgador. Pelo contrário, deve ser concisa, como é próprio do que é instrumental, conquanto não possa deixar de ser completa.”. Ver, também, o acórdão do Tribunal Constitucional de 17/01/2007, in DR, 2ª Série, n.º 39, de 23/02/2007, que decidiu, além do mais, “Não julgar inconstitucional a norma dos artigos 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de que não é sempre necessária menção específica na sentença do conteúdo dos depoimentos da arguida e das testemunhas de defesa.”. Cf. o acórdão da RE de 13/05/2014, relatado por Clemente Lima, no proc. 368/12.6GBLLE.E1, in www.dgsi.pt, que sintetiza os fins da fundamentação nos seguintes termos: “… Importa que a fundamentação da sentença (i) contribua para a sua eficácia, pela via da persuasão dos respectivos destinatários e da comunidade jurídica em geral, (ii) consinta às partes e aos tribunais de recurso, fazer reexame do processo lógico ou racional subjacente à decisão, e (iii) constitua um verdadeiro factor de legitimação do poder jurisdicional, contribuindo para a congruência entre o exercício desse poder e a base sobre a qual repousa: o dever de dizer o direito no caso concreto (iuris dicere), nessa medida se configurando como garantia do respeito pelos princípios da legalidade, da independência do juiz e da imparcialidade das suas decisões. …”. Sobre o tema é indispensável a consulta da obra “A fundamentação da sentença no sistema penal português …”, de José António Mouraz Lopes, Ed. Almedina, 2011. [9] Importa considerar que, como se afirma no Ac. do STJ de 17/02/2005, relatado por Simas Santos, in www.dgsi.pt, processo 04P4324, “1 - O recurso em matéria de facto para a Relação não constitui um novo julgamento em que toda a prova documentada é reapreciada pelo Tribunal Superior que, como se não tivesse havido o julgamento em 1.ª Instância, estabeleceria os factos provados e não provados e assim indirectamente validaria ou a factualidade anteriormente assente, mas é antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, que são expressamente indicados pelo recorrente, com referência expressa e específica aos meios de prova que impõem decisão diferente, quanto aos pontos de facto concretamente indicados, ou com referência à regra de direito respeitante à prova que teria sido violada, com indicação do sentido em que foi aplicada e qual o sentido com que devia ter sido aplicada. 2 - Se o recorrente aceita que o teor expresso dos depoimentos prestados permite que a 1.ª Instância tenha estabelecido a factualidade apurada da forma como o fez e questiona tão só a credibilidade que, no seu entender, (não) deveria ter-lhes sido concedida, sem indicar elementos objectivos que imponham a sua posição, a sua pretensão fracassa pois a credibilidade dos depoimentos, quando estribadas elementos subjectivos e não objectivos é um sector especialmente dependente da imediação do Tribunal, dado que só o contacto directo com os depoentes situados na audiência de julgamento, perante os outros intervenientes é que permite formar uma convicção que não pode ser reproduzidas na documentação da prova e logo reexaminada em recurso. 3 - Se apesar de se esforçar, a 1.ª Instância não consegue estabelecer o motivo que levou o arguido a agir, mas estão presentes todos os elementos do respectivo tipo legal de crime, nenhuma dúvida se pode levantar sobre a culpabilidade do agente. …”. E no Ac. do STJ de 12/06/2008, relatado por Raul Borges, in www.dgsi.pt, processo 07P4375, de cujo sumário citamos: “I - A partir da reforma de 1998 passou a ser possível impugnar (para a Relação) a matéria de facto de duas formas: a já existente revista (então cognominada de ampliada ou alargada) com invocação dos vícios decisórios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, com a possibilidade de sindicar as anomalias ou disfunções emergentes do texto da decisão, e uma outra, mais ampla e abrangente – porque não confinada ao texto da decisão –, com base nos elementos de documentação da prova produzida em julgamento, permitindo um efectivo grau de recurso em matéria de facto, mas impondo-se na sua adopção a observância de certas formalidades. II - No primeiro caso estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas als. a), b) e c) do n.º 2 do art. 410.º do CPP, cuja indagação, como resulta do preceito, apenas se poderá fazer através da leitura do texto da decisão recorrida, circunscrevendo-se a apreciação da matéria de facto ao que consta desse texto, por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum, sem possibilidade de apelo a outros elementos estranhos ao texto, mesmo que constem do processo. Nesta forma de impugnação os vícios da decisão têm de emergir, resultar do próprio texto, o que significa que os mesmos têm de ser intrínsecos à própria decisão como peça autónoma. III - No segundo caso, a apreciação já não se restringe ao texto da decisão, mas à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre a partir de balizas fornecidas pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus imposto pelos n.ºs 3 e 4 do art. 412.º do CPP, tendo em vista o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento e visando a modificação da matéria de facto, nos termos do art. 431.º, al. b), do mesmo diploma. IV - A alteração do art. 412.º do CPP operada em 1998 visou tornar admissível o recurso para a Relação da matéria de facto fixada pelo colectivo, dando seguimento à consagração do direito ao recurso resultante do aditamento da parte final do art. 32.º, n.º 1, da CRP na revisão da Lei Constitucional n.º 1/97, vindo a ser “confirmada” pelo acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 10/2005, de 20-10-2005 (in DR, I Série-A, de 07-12-2005), que estabeleceu: «Após as alterações ao Código de Processo Penal, introduzidas pela Lei n.º 59/98, de 25/08, em matéria de recursos, é admissível recurso para o Tribunal da Relação da matéria de facto fixada pelo tribunal colectivo». V - Esta possibilidade de sindicância de matéria de facto, não sendo tão restrita como a operada através da análise dos vícios decisórios – que se circunscreve ao texto da decisão em reapreciação –, por se debruçar sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre, no entanto, quatro tipos de limitações: - desde logo, uma limitação decorrente da necessidade de observância, por parte do recorrente, de requisitos formais da motivação de recurso face à imposta delimitação precisa e concretizada dos pontos da matéria de facto controvertidos, que o recorrente considera incorrectamente julgados, com especificação das provas e referência ao conteúdo concreto dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorrectamente e que impõem decisão diversa da recorrida, com o que se opera a delimitação do âmbito do recurso; - já ao nível do poder cognitivo do tribunal de recurso, temos a limitação decorrente da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações e/ou, ainda, das transcrições; - por outro lado, há limites à pretendida reponderação de facto, já que a Relação não fará um segundo/novo julgamento, pois o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em 2.ª instância; a actividade da Relação cingir-se-á a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso, e apenas na medida do que resultar do filtro da documentação; - a jusante impor-se-á um último limite, que tem a ver com o facto de a reapreciação só poder determinar alteração à matéria de facto se se concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão. …”. [10] Neste sentido, cf. ainda o Ac. do STJ de 25/03/1998, in BMJ 475/502, com anotação de que neste sentido se vinham orientando a doutrina e a jurisprudência. [11] Neste sentido, ver também o Ac. RL, de 10/10/2007, relatado por Carlos Almeida, in www.dgsi.pt, processo 8428/2007-3, de cujo sumário citamos: “…XVII – No caso, embora a prova produzida e examinada na audiência permitisse, eventualmente, uma decisão em sentido diferente, ela não impunha decisão diversa da proferida, razão pela qual o recurso não pode ter provimento.”. [12] No mesmo sentido, cf. o Ac. do STJ de 20/11/2008, relatado por Santos Carvalho, in www.dgsi.pt, processo 08P3269, de cujo sumário citamos: “I - O STJ tem reafirmado que o recurso da matéria de facto perante a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1.ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes é um remédio jurídico destinado a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros. II - Conhecendo-se pela fundamentação da sentença o caminho lógico que, segundo a 1ª instância, levou à condenação do recorrente, deveria este ter-se limitado a sindicar os pontos de facto que nesse percurso foram erradamente avaliados, com a indicação das provas que impunham uma decisão diversa e com referência aos respectivos suportes técnicos. …”. [13] Neste sentido, veja-se o acórdão da RG de 16/05/2016, relatado por João Lee Ferreira, no proc. 732/11.8JABRG.G1, com o seguinte sumário: “I) Na apreciação do depoimento das testemunhas e das declarações dos arguidos atribui-se relevância aos aspectos verbais, mas também se pode considerar a desenvoltura do depoimento, a comunicação gestual, o refazer do itinerário cognitivo, os olhares para os advogados e as partes, antes, durante e depois da resposta, os gestos, movimentos e toda uma série de circunstâncias insusceptíveis de captação por um registo áudio. Todos estes indicadores são importantes e podem ser reveladores do desconforto da mentira e da efabulação. II) A função do julgador consiste em determinar como os factos se passaram, raciocinando sempre entre os limites de racionalidade e da experiência comum. III) Exista ou não univocidade no teor dos depoimentos e declarações, o convencimento da entidade imparcial a quem compete julgar depende, assim, de uma conjugação de elementos tão diversos como a espontaneidade das respostas, a coerência e pormenorização do discurso, a emoção exteriorizada ou a consistência do depoimento pela compatibilidade com a demais prova relevante.”. [14] Neste sentido, ver o acórdão da RP de 04/02/2016, relatado por Antero Luís, no proc. 23/14.2PCOER.L1-9, in www.dgsi.pt. [15] Veja-se, a este propósito, o acórdão da RC de 25/10/2017, relatado por Inácio Monteiro, no proc. 444/14.0JACBR.C1, in www.dgsi.pt, de cujo sumário citamos: “I - A reapreciação da prova, por erro de julgamento, é ouvir as pessoas nas passagens concretas do seu depoimento, em que no entender do recorrente está inquinado, para saber se disseram ou não o que se mostra vertido na decisão da matéria de facto e não se destina a apurar uma interpretação diferente do tribunal a quo....”. [16] Ou, como se diz no sumário do acórdão da RP de 10/09/2014, relatado por Neto de Moura, no proc. 683/12.6GCSTS.P2, in www.dgsi.pt: “I - Divergência entre depoimentos não são contradições. II - Na prova por presunção parte-se de um facto conhecido (o facto base ou facto indiciante) para afirmar um facto desconhecido (o factum probandum) recorrendo a um juízo de normalidade (de probabilidade) alicerçado em regras da experiência comum que permitem chegar sem necessidade de uma averiguação casuística a um resultado verdadeiro. III - Para a prova dos factos em processo penal é perfeitamente legitimo o recurso à prova indirecta, pois são admissíveis toda as provas não proibidas por lei.”. [17] Código Civil. [18] Sobre a constitucionalidade do recurso a presunções judiciais em processo penal, ver o acórdão do TC n.º 391/2015, de 12/08/2015, relatado por João Cura Mariano, do qual citamos: “…Ora, na prova por utilização de presunção judicial, a qual pode sempre ser infirmada por contraprova, na passagem do facto conhecido para a prova do facto desconhecido, intervêm juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais que permitem fundadamente afirmar, segundo as regras da normalidade, que determinado facto, que não está diretamente provado é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido. Quando o valor da credibilidade do id quod e a consistência da conexão causal entre o que se conhece e o que não se apurou de uma forma direta atinge um determinado grau que permite ao julgador inferir este último elemento, com o grau de probabilidade exigível em processo penal, a presunção de inocência resulta ilidida por uma presunção de significado contrário, pelo que não é possível dizer que a utilização deste meio de prova atenta contra a presunção de inocência ou contra o princípio in dubio pro reo. O que sucede é que a presunção de inocência é superada por uma presunção de sinal oposto prevalecente, não havendo lugar a uma situação de dúvida que deva ser resolvida a favor do Réu. Se, no caso concreto, houve lugar à utilização de presunções sem a necessária credibilidade ou consistência é uma questão que o Tribunal Constitucional não tem competência para avaliar. Mas, no entender do Recorrente, a norma do artigo 127.º do Código de Processo Penal, na interpretação que lhe foi dada pela decisão recorrida, seria ainda inconstitucional, por violação “dos princípios do Estado de direito democrático, da vinculação à Lei e da fundamentação das decisões dos tribunais, consagrados respetivamente nos artigos 2.º, 203.º e 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa”. O que está em causa na questão de constitucionalidade suscitada no presente recurso é, essencialmente, a alegada violação da exigência constitucional de fundamentação das decisões judiciais, consagrada no art. 205.º, n.º 1, da Constituição, o qual determina que "as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei". Como já acima se disse, no ponto 2.2., constitucionalmente é exigível que na fundamentação seja visível uma racionalização dos motivos da decisão, revelando-se às partes e à comunidade o conhecimento das razões que subjazem ao concreto juízo decisório, devendo, para isso, a fundamentação revelar uma aptidão comunicativa na exteriorização das premissas que presidem à sua conclusão, assim como o respetivo juízo de valoração, de modo a transmitir, como condição de inteligibilidade, a intrínseca validade substancial do decidido. Ora, tendo em consideração as características acima apontadas à utilização de presunções judiciais, verifica-se que a prova indireta ou por presunções assenta num processo lógico de inferência que não pode ser entendido como uma operação puramente subjetiva, emocional e imotivável, mas sim como uma valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita ao julgador objetivar a apreciação dos factos e proceder a uma efetiva motivação da decisão. Daí que a utilização de presunções judiciais não seja incompatível com o dever de fundamentação das decisões judiciais, antes exigindo uma explicação mais rigorosa que seja claramente explicitadora do processo lógico que lhe é inerente. Se no caso concreto o rigor exigível foi ou não observado já é uma questão que excede as competências do Tribunal Constitucional. Por estas razões se conclui que a interpretação da norma constante do artigo 127.º do Código de Processo Penal, na interpretação de que a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador permite o recurso a presunções judiciais em processo penal não viola qualquer parâmetro constitucional. …”. [19] Cf. neste sentido Ac. do STJ de 11/11/2004, relatado por Simas Santos, in www.gde.mj.pt, processo 04P3182, do qual citamos: “… O juízo valorativo do tribunal tanto pode assentar em prova directa do facto, como em prova indiciária da qual se infere o facto probando, não estando excluída a possibilidade do julgador, face à credibilidade que a prova lhe mereça e as circunstancias do caso, valorar preferencialmente a prova indiciária, podendo esta só por si conduzir à sua convicção. Por isso que, em sede de apreciação, não dispensa a prova testemunhal um tratamento cognitivo por parte de restantes meios de prova, sendo que a mesma, tal qual a prova indiciária de qualquer natureza, pode ser objecto de formulação de deduções ou induções correcção de raciocínio mediante a utilização das regras da experiência. Desde logo, é legítimo o recurso a tais presunções, uma vez que são admissíveis em processo penal as provas que não forem proibidas por lei (art. 125.º do CPP) e o art. 349.º do C. Civil prescreve que presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido, sendo admitidas as presunções judiciais nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal (art. 351.º). Depois, as presunções simples ou naturais (as aqui em causa) são simples meios de convicção, pois que se encontram na base de qualquer juízo. O sistema probatório alicerça-se em grande parte no raciocínio indutivo de um facto conhecido para um facto desconhecido; toda a prova indirecta se faz valer através desta espécie de presunções. As presunções simples ou naturais são, assim, meios lógicos de apreciação das provas, são meios de convicção. Cedem perante a simples dúvida sobre a sua exactidão no caso concreto (cfr. Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, I, 333 e segs.). O que vale por dizer que as presunções naturais não violam o princípio in dubio pro reo. Este princípio é que constitui o limite daquelas. No caso, o próprio recorrente aceita que a decisão recorrida não ficou em estado de dúvida, mas entende que deveria ter ficado, o que como vimos é agora insindicável pelo Tribunal de Revista.”. [20] Ainda no mesmo sentido, cf. Ac RC de 06/03/1996, relatado por Santos Cabral, in CJ, II, pp. 44 e ss. Ac RC de 09/02/2000, relatado por Santos Cabral, in CJ, I, pp. 51 e ss.;, e Ac. RC de 11/05/2005, relatado por Oliveira Mendes, in www.dgsi.pt, processo 1056/05, do qual citamos: “I – Na ausência de prova directa nada impede que o tribunal deduza racionalmente a verdade dos factos a partir da prova indiciária (prova artificial ou por concurso de circunstâncias). II – No entanto, a prova indiciária deverá obedecer, em princípio, aos seguintes requisitos: - Existência de uma pluralidade de dados indiciários plenamente provados ou absolutamente credíveis; - Racionalidade da inferência obtida, de maneia que o facto “consequência” resulte de forma natural e lógica dos factos-base, segundo um processo dedutivo, baseado na lógica e nas regras da experiência (recto critério humano e correcto raciocínio).”. [21] Neste sentido, ver também o acórdão da RC de 28/10/2009, Processo 31/01, relatado por Jorge Jacob, no processo 31/01, in JusNet 6710/2009, donde citamos: “…Esta afirmação não colide, no entanto, com a validade da prova obtida através de presunção judicial. Não oferece dúvida que são admissíveis em processo penal as provas que não sejam proibidas por lei (art. 125º), aí incluídas as presunções judiciais, que são as ilações que o julgador retira de factos conhecidos para firmar outros factos, desconhecidos (art. 349º do Código Civil), sem que daí resulte prejuízo para o princípio da livre apreciação da prova. Não sendo meio de prova proibido por lei, pode o julgador, à luz das regras da experiência e da sua livre convicção, retirar dos factos conhecidos as ilações que se ofereçam como evidentes ou como razoáveis e firmá-las como factos provados. De resto, este é um mecanismo recorrente na formação da convicção. Basta pensar na prova da intenção criminosa. A intenção, enquanto elemento volitivo do dolo (enquanto decisão pela conduta, suposto serem conhecidos pelo agente os elementos do tipo legal de crime), na medida em que traduz um acontecimento da vida psicológica, da vivência interna, não é facto directamente percepcionável pelos sentidos do espectador, havendo que inferi-la a partir da exteriorização da conduta. Só por recurso à presunção judicial, diluída naquilo que em processo penal se designa por "livre convicção", é possível determiná-la, através de outros factos susceptíveis de percepção directa e das máximas da experiência, extraindo-se como conclusão o facto presumido, que assim se pode ter como provado. Desde que as máximas da experiência (a chamada "experiência comum", assente na razoabilidade e na normalidade das situações da vida), não sejam postas em causa, desde que através de um raciocínio lógico e motivável seja possível compreender a opção do julgador, nada obsta ao funcionamento da presunção judicial como meio de prova, observadas que sejam as necessárias cautelas: - Desde logo, é necessário que haja uma relação directa e segura, claramente perceptível, sem necessidade de elaboradas conjecturas, entre o facto que serve de base à presunção e o facto que por presunção se atinge (sendo inadmissíveis "saltos" lógicos ou premissas indemonstradas para o estabelecimento dessa relação); - Por outro lado, há-de exigir-se que a presunção conduza a um facto real, que se desconhece, mas que assim se firma (por exemplo, a autoria - desconhecida - de um facto conhecido, sendo conhecidas também circunstâncias que permitem fazer funcionar a presunção, sem que concomitantemente se verifiquem circunstâncias de facto ou sejam de admitir hipóteses consistentes que permitam pôr em causa o resultado assim atingido); - Por fim, a presunção não poderá colidir com o princípio in dubio pro reo (é esse, aliás, o sentido da restrição referida na parte final do exemplo que antecede). …”. [22] No sentido de que o recurso à presunção judicial em processo penal não põe em causa o princípio da presunção da inocência consagrado no art.º 32º da CRP, cf. Jorge Miranda e Rui Medeiros, in “CRP Anotada”, tomo I, Coimbra Editora, 2005, a págs. 356 e 357. [23] Neste sentido, cf. o acórdão do STJ de 14/07/2016, relatado por Tomé Gomes, no proc. 377/09.2TBACB.L1.S1, in www.dgsi.pt, de cujo sumário citamos: “I. As presunções judiciais não se reconduzem a um meio de prova propriamente dito, consistindo antes em ilações que o julgador extrai a partir de factos conhecidos para dar como provados factos desconhecidos, nos termos definidos no artigo 349.º do CC; tais presunções judiciais são admitidas nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal, conforme o disposto no artigo 351.º do mesmo Código. II. Essas presunções são um meio frequente de provar os factos de natureza psicológica, já que estes, em regra, não são passíveis de demonstração direta, mas antes por via de circunstâncias e comportamentos exteriores que, à luz da experiência comum, indiciem condutas e atitudes, de índole cognitiva, afetiva ou volitiva, dos agentes visados. III. Face à competência alargada da Relação em sede de reapreciação da decisão de facto, em conformidade com o preceituado no n.º 1 do artigo 662.º do CPC, é lícito à 2.ª instância, com base mormente na prova gravada, reequacionar a avaliação probatória feita pela 1.ª instância no domínio das presunções judiciais, nos termos do n.º 4 do artigo 607.º, aplicável por via do artigo 663.º, n.º 2, do mesmo Código. IV. No que respeita à sindicância, em sede de revista, sobre o uso de presunções judiciais pelas instâncias, tem-se admitido que o STJ só pode sindicar o uso de tais presunções pela Relação se este uso ofender qualquer norma legal, se padecer de evidente ilogicidade ou se partir de factos não provados. …” (sublinhado nosso). [24] Quanto às condições em que operam as presunções, ver os seguintes acórdãos: - do STJ de 07/01/2004, relatado por Henriques Gaspar, in www.gde.mj.pt, processo 03P3213, in www.dgsi.pt, donde citamos: “…Importam, neste âmbito, as chamadas presunções naturais ou hominis, que permitem ao juiz retirar de um facto conhecido ilações para adquirir um facto desconhecido. As presunções naturais são, afinal, o produto das regras de experiência; o juiz, valendo-se de um certo facto e das regras da experiência, conclui que esse facto denuncia a existência de outro facto. «Ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode o juiz utilizar a experiência da vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra da experiência [ou de uma prova de primeira aparência». (cfr, v. g., Vaz Serra, "Direito Probatório Material", BMJ, n° 112 pág, 190). Em formulação doutrinariamente bem marcada e soldada pelo tempo, as presunções devem ser «graves, precisas e concordantes». «São graves, quando as relações do facto desconhecido com o facto conhecido são tais, que a existência de um estabelece, por indução necessária, a existência do outro. São precisas, quando as induções, resultando do facto conhecido, tendem a estabelecer, directa e particularmente, o facto desconhecido e contestado. São concordantes, quando, tendo todas uma origem comum ou diferente, tendem, pelo conjunto e harmonia, a firmar o facto que se quer provar» (cfr. Carlos Maluf, "As Presunções na Teoria da Prova", in "Revista da Faculdade de Direito", Universidade de São Paulo, volume LXXIX, pág. 207). A presunção permite, deste modo, que perante os factos (ou um facto preciso) conhecidos, se adquira ou se admita a realidade de um facto não demonstrado, na convicção, determinada pelas regras da experiência, de que normal e tipicamente (id quod plerum que accidit) certos factos são a consequência de outros. No valor da credibilidade do id quod, e na força da conexão causal entre dois acontecimentos, está o fundamento racional da presunção, e na medida desse valor está o rigor da presunção. A consequência tem de ser credível; se o facto base ou pressuposto não é seguro, ou a relação entre o indício e o facto adquirido é demasiado longínqua, existe um vício de raciocínio que inutiliza a presunção (cfr. Vaz Serra, ibidem). Deste modo, na passagem do facto conhecido para a aquisição (ou para a prova) do facto desconhecido, têm de intervir, pois, juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinada facto, não anteriormente conhecido nem directamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido. A presunção intervém, assim, quando as máximas da experiência da vida e das coisas, baseadas também nos conhecimentos retirados da observação empírica dos factos, permitem afirmar que certo facto é a consequência típica de outro ou outros. A ilação derivada de uma presunção natural não pode, porém, formular-se sem exigências de relativa segurança, especialmente em matéria de prova em processo penal em que é necessária a comprovação da existência dos factos para além de toda a dúvida razoável. Há-de, pois, existir e ser revelado um percurso intelectual, lógico, sem soluções de continuidade, e sem uma relação demasiado longínqua entre o facto conhecido e o facto adquirido. A existência de espaços vazios no percurso lógico de congruência experimental típica determina um corte na continuidade do raciocínio, e retira o juízo do domínio da presunção, remetendo-o para o campo já da mera possibilidade física mais ou menos arbitrária ou dominada pelas impressões. A compreensão e a possibilidade de acompanhamento do percurso lógico e intelectual seguido na fundamentação de uma decisão sobre a matéria de facto, quando respeite a factos que só podem ter sido deduzidos ou adquiridos segundo as regras próprias das presunções naturais, constitui um elemento relevante para o exercício da competência de verificação da (in)existência dos vícios do artigo 410º, n°2, do CPP, especialmente do erro notório na apreciação da prova, referido na alínea b). …”; - da RP de 14/01/2015, relatado por Eduarda Lobo, no proc. 502/12.6PJPRT.P1, in www.dgsi.pt, com o seguinte sumário (sublinhado nosso): “I- Na formação da convicção judicial intervêm provas e presunções. As primeiras são instrumentos de verificação direta dos factos ocorridos, e as segundas permitem estabelecer a ligação entre o que temos por adquirido e aquilo que as regras da experiência nos ensinam poder inferir. II -Na avaliação da prova indiciária há que ter presente três princípios: a) o princípio da causalidade, segundo o qual a todo o efeito precede uma causa determinada, ou seja, quando nos encontramos face a um efeito podemos presumir a presença da sua causa normal; b) o princípio da oportunidade, segundo o qual a análise das características próprias do facto permitirá excluir normalmente a presença de um certo número de causas pelo que a investigação fica reduzida a uma só causa que poderá considerar-se normalmente como a única produtora do efeito; c) o princípio da normalidade, de acordo com o qual só quando a presunção abstrata se converte em concreta, após o sopesar das contraprovas em sentido contrário e da respetiva valoração judicial, se converterá o conhecimento provável em conhecimento certo ou pleno. III- Se não for possível formular um juízo de certeza, mas de mera probabilidade, por subsistir mais do que uma causa provável, sem que os indícios existentes permitam excluir todas as restantes, depois de analisados à luz dos referidos princípios, então valerá o princípio da presunção de inocência, já que para a condenação se exige um juízo de certeza e não de mera probabilidade.”. [25] Cf. Ac. 7/95 do STJ, de 19/10/1995, relatado por Sá Nogueira, in DR 1ª Série A, de 28/12/1995, que fixou jurisprudência no sentido de que é oficioso o conhecimento, pelo tribunal de recurso, dos vícios indicados no art.º 410.º/2 CPP, nos seguintes termos: “É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito.”. [26] Assim, o acórdão do STJ de 19/12/1990, proc. 413271/3.ª Secção, in BMJ 402, pág. 232, do qual citamos: " I - Como resulta expressis verbis do art. 410.° do C.P.Penal, os vícios nele referidos têm que resultar da própria decisão recorrida, na sua globalidade, mas sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, designadamente declarações ou depoimentos exarados no processo durante o inquérito ou a instrução ou até mesmo no julgamento (...). IV É portanto inoperante alegar o que os declarantes afirmaram no inquérito, na instrução ou no julgamento em motivação de recursos interpostos". No sentido da constitucionalidade deste entendimento, cf. o acórdão do TC n.º 573/98, relatado por Messias Bento, que decidiu, para além do mais, nos seguintes termos: “... (a). não julgar inconstitucionais as normas resultantes da conjugação do artigo 433º do Código de Processo Penal com o corpo do n.º 2 do artigo 410º do mesmo Código, na medida em que limitam os fundamentos do recurso a que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum ...”. [27] Quanto às razões justificativas da criminalização destas condutas, veja-se o comentário de Maria do Carmo Silva Dias, in “Comentário Judiciário do CPP”, Tomo I, Almedina, 2ª ed., 2022, págs. 987/1013, com uma importante resenha doutrinal e jurisprudêncial. [28] Neste sentido, veja-se o acórdão do STJ de 13/04/2005, relatado por Henriques Gaspar, in www.gde.mj.pt, processo 05P745, do qual citamos: “... Embora a solução resultasse já do princípio da prevalência do direito internacional, consagrado no artigo 8º do Constituição, o artigo 229º do Código de Processo Penal afirma expressamente que a extradição (bem como outras formas de cooperação internacional relativamente à administração da justiça penal) é regulada pelos tratados e convenções internacionais, e só na sua falta ou insuficiência intervém o disposto em lei especial. É o que também, dispõe o artigo 3º nº 1 do LCIMP. ...”. Também afirmando a posição infra-constitucional mas supra-legal do direito convencional internacional, ver Mário M. Serrano, in “Extradição – Regime e Praxis”, inserido no Volume I de “Cooperação Internacional Penal – Extradição – Transferência de Pessoas Condenadas”, Centro de Estudos Judiciários, 2000, págs. 27 a 29; Jorge Miranda e Rui Medeiros, in “Constituição Portuguesa Anotada”, vol. I, Coimbra Editora, 2005, págs. 91 a 96; Ireneu Cabral Barreto, in “A Convenção Europeia dos Direitos do Homem Anotada”, Almedina, 6ª ed., 2020, págs. 34/34; Iolanda A.S. Rodrigues de Brito, in “Liberdade de Expressão e Honra das Figuras Públicas”, Almedina, 2010, págs. 103 a 109, nestes dois últimos casos especificamente para a CEDH. [29] António Henriques Gaspar, in “A INFLUÊNCIA DA CEDH NO DIÁLOGO INTERJURISDICIONAL - A PERSPECTIVA NACIONAL OU O OUTRO LADO DO ESPELHO” (Intervenção no Colóquio por ocasião da Comemoração do 30º Aniversario da vigência da CEDH em Portugal – Supremo Tribunal de Justiça, 10 de Novembro de 2008). Mas, como refere o mesmo autor, no mesmo texto “... As relações de mútua influência entre o TEDH e os tribunais nacionais tecem-se dentro de um modelo que não reveste natureza processual, seja hierárquica ou normativa. O sistema convencional de controlo está instituído num quadro de autonomia, sem continuidade processual directa entre as ordens judiciais nacionais e o TEDH; não existe recurso de decisões judiciais internas, nem partilha de decisões no processo com a instância europeia. ... No que respeita, porém, aos tribunais dos Estados que não sejam parte no litígio ou aos tribunais nacionais fora de um caso em que foi proferida a decisão, a relação não está directamente estabelecida. A relação que exista poderá, eventualmente, ser enquadrada numa categoria de diálogo judicial «semi- vertical», no sentido em que os tribunais de qualquer dos Estados membros estão também directamente comprometidos no respeito pelos direitos fundamentais tal como são garantidos pela CEDH, ou seja, com o desenvolvimento e como são interpretados e aplicados pelo TEDH. ... Tomar em consideração a jurisprudência do TEDH, que na interpretação e aplicação da CEDH penetrou todos os sectores do direito, constitui um imperativo intelectual para afirmar e actuar a independência – que será tanto mais saliente quanto melhor for o contexto referencial ao dispor do juiz – e não uma limitação anti-soberanista da independência. A devida consideração da jurisprudência do TEDH não pode ser, no entanto, aceitação acrítica, assumida como dado apodíctico. A consideração implica análise, ponderação, complementaridade, aceitação ou, no limite, divergência, contribuindo para enriquecer o património jurídico comum em diálogo construtivo quando não exista ainda um “consenso europeu” sobre as matérias. Os juízes nacionais devem, assim, ponderar as soluções jurisprudenciais do TEDH sempre que a decisão de um caso deva ou possa passar também por uma análise na perspectiva específica que os direitos fundamentais adicionem. Numa metodologia possível para uma grelha de análise, há matérias que apresentam maior permeabilidade às leituras jurisprudenciais do TEDH. E, por isso, a aconselharem que a jurisprudência da instância europeia seja tida como referência. ... A jurisprudência relativa à liberdade de expressão, especialmente no que diz respeito á liberdade de imprensa, construída na interpretação e aplicação do artigo 10º da CEDH, oferece um fundo de critérios de relevantíssima utilidade para os tribunais nacionais. As decisões internas sobre o exercício da liberdade de expressão e consequências do exercício no plano da ilicitude penal ou civil, não podem, hoje, deixar de passar também pelas construções jurisprudenciais do TEDH, que integram já um “consenso europeu”. ...”. [30] Veja-se, desde logo, o acórdão de 28/06/2011, da 2ª Secção do TEDH, tirado no Processo 28439/2008, e referido pelos Recorrentes, do qual citamos: “... 30. La Cour considère, à l'instar du Gouvernement, que l'ingérence en cause avait pour but, dans l'intérêt d'une bonne administration de la justice, d'éviter toute influence extérieure sur le cours de celle-ci et qu'elle visait en conséquence la garantie de « l'autorité et [de] l'impartialité du pouvoir judiciaire ». La Cour accepte également que la protection de la « réputation et des droits d'autrui » constituait un autre but légitime recherché par les juridictions compétentes. c) « Nécessaire dans une société démocratique » 31. La Cour rappelle que la liberté d'expression constitue l'un des fondements essentiels d'une société démocratique et que les garanties à accorder à la presse revêtent donc une importance particulière (voir, entre autres, les arrêts Worm c. Autriche, 29 août 1997, § 47, Recueil des arrêts et décisions 1997-V, et Fressoz et Roire c. France [GC], no 29183/95, § 45, CEDH 1999-I). 32. Elle rappelle ensuite que la presse joue un rôle éminent dans une société démocratique et que, si elle ne doit pas franchir certaines limites, tenant notamment à la protection de la réputation et des droits d'autrui ainsi qu'à la nécessité d'empêcher la divulgation d'informations confidentielles, il lui incombe néanmoins de communiquer, dans le respect de ses devoirs et de ses responsabilités, des informations et des idées sur toutes les questions d'intérêt général (Tourancheau et July, c. France, no 53886/00, § 65, 24 novembre 2005). 33. En particulier, on ne saurait penser que les questions dont connaissent les tribunaux ne puissent, auparavant ou en même temps, donner lieu à discussion ailleurs, que ce soit dans des revues spécialisées, la grande presse ou le public en général. A la fonction des médias consistant à communiquer de telles informations et idées s'ajoute le droit, pour le public, d'en recevoir. Toutefois, il convient de tenir compte du droit de chacun de bénéficier d'un procès équitable tel que garanti à l'article 6 § 1 de la Convention, ce qui, en matière pénale, comprend le droit à un tribunal impartial (Tourancheau et July, précité, § 66). Comme la Cour l'a déjà souligné, « les journalistes doivent s'en souvenir qui rédigent des articles sur des procédures pénales en cours, car les limites du commentaire admissible peuvent ne pas englober des déclarations qui risqueraient, intentionnellement ou non, de réduire les chances d'une personne de bénéficier d'un procès équitable ou de saper la confiance du public dans le rôle tenu par les tribunaux dans l'administration de la justice pénale » (ibidem, et Worm, précité, § 50). Enfin, il y a lieu de rappeler que toutes les personnes, y compris les journalistes, qui exercent leur liberté d'expression assument des « devoirs et responsabilités » dont l'étendue dépend de la situation (Dupuis et autres c. France, no 1914/02, § 43, CEDH 2007-VII, et Campos Dâmaso c. Portugal, no 17107/05, § 35, 24 avril 2008). 34. La Cour rappelle enfin qu'il lui revient de déterminer si l'ingérence litigieuse correspondait à un « besoin social impérieux », si elle était proportionnée aux buts légitimes poursuivis et si les motifs invoqués par les autorités nationales pour la justifier apparaissent « pertinents et suffisants ». Dans l'exercice de son pouvoir de contrôle, la Cour doit, aux fins de la mise en balance des intérêts concurrents à laquelle elle est tenue de se livrer, prendre également en compte le droit que l'article 6 § 2 de la Convention reconnaît aux individus d'être présumés innocents jusqu'à ce que leur culpabilité ait été légalement établie (Dupuis et autres, précité, § 37). 35. Se penchant sur la situation ici en cause, la Cour souligne d'abord que le contexte dans lequel s'inscrivait le reportage incriminé relevait à l'évidence d'une question d'intérêt général. En effet, la presse se doit d'informer le public sur les procédures judiciaires concernant des faits prétendument commis par un haut fonctionnaire dans le cadre de ses fonctions. Il y va du droit de regard du public sur le fonctionnement du système de justice pénale (Campos Dâmaso, précité, § 34). La Cour rappelle à cet égard que la personne visée par l'accusation de violation du segredo de justiça était le directeur général de la police judiciaire (paragraphe 10 ci-dessus). 36. La Cour observe ensuite que la requérante a été condamnée uniquement pour avoir montré à l'antenne les fac-similés de deux pièces du dossier de procédure. Aux yeux de la Cour, il est important d'observer à cet égard que la réglementation en cause était à l'époque, comme la cour d'appel l'a elle-même souligné (paragraphe 15 ci-dessus), d'application automatique, la procédure dont la requérante faisait le compte rendu se trouvant, au moment du reportage, soumise au segredo de justiça (voir, sur le système portugais en vigueur à l'époque des faits et celui applicable aujourd'hui, Campos Dâmaso, précité, §§ 14-15). Ainsi, lorsque les juridictions internes ont examiné l'affaire, elles n'ont pas vraiment mis en balance l'intérêt que constituait la condamnation de la requérante et celui du droit de cette dernière à la liberté d'expression, se bornant à constater, sans autre précision, que les restrictions prévues au paragraphe 2 de l'article 10 de la Convention s'appliquaient en l'espèce. 37. Les juridictions internes n'ont par ailleurs - pas plus que le Gouvernement dans ses observations - fait valoir aucune raison permettant de considérer que la reproduction à l'antenne des pièces en cause avait porté préjudice à l'enquête. Pareillement, aucun motif de craindre une violation du droit de l'accusé à la présomption d'innocence n'a été avancé par les juridictions internes. La Cour n'a pas, quant à elle, décelé de tels motifs. 38. Dans ces conditions, il est difficile de voir comment les « devoirs et responsabilités » de la requérante pouvaient l'emporter sur l'intérêt d'informer le public. La Cour rappelle à cet égard que le fait de montrer les fac-similés des pièces en cause au cours du reportage dont la requérante était l'auteur servait non seulement l'objet mais aussi la crédibilité des informations communiquées, attestant de leur exactitude et de leur authenticité (Dupuis et autres, précité, § 46). 39. En ce qui concerne enfin la nature et la gravité de la peine infligée - éléments à prendre en considération lorsqu'il s'agit de mesurer la proportionnalité de l'ingérence -, la Cour relève que le montant de l'amende que la requérante a été condamnée à payer, pour modéré qu'il ait été dans son cas, n'enlève en rien l'effet dissuasif de la condamnation quant à l'exercice de la liberté d'expression étant donné la lourdeur de la sanction encourue (Campos Dâmaso, précité, § 39). 40. La Cour constate, dans l'exercice de son pouvoir de contrôle européen (Lehideux et Isorni c. France, 23 septembre 1998, § 51, Recueil 1998-VII), que l'application de la législation pénale en cause qui a été faite en l'espèce a conduit à une ingérence dans les droits de la requérante qui ne correspondait pas à un « besoin social impérieux », les motifs invoqués par les autorités nationales pour la justifier n'apparaissant ni « pertinents » ni « suffisants ». La Cour note, de manière plus large, qu'en cette matière une interdiction de publication générale et absolue visant tout type d'information se concilie difficilement avec le droit à la liberté d'expression (Du Roy et Malaurie c. France, no 34000/96, § 35, CEDH 2000-X). En effet, cette automaticité, fondée sur une infraction dont la dangerosité est présumée, empêche le juge de procéder à la mise en balance des intérêts protégés par l'article 10 de la Convention. 41. Partant, il y a eu violation de cette disposition. ...” (sublinhados nossos). No mesmo sentido, veja-se Ireneu Cabral Barreto, in “A Convenção Europeia dos Direitos do Homem Anotada”, Almedina, 6ª ed., 2020, págs. |