Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | JOSÉ CASTRO | ||
Descritores: | INQUÉRITO NULIDADES/IRREGULARIDADES COMPETÊNCIA DO JUIZ DE INSTRUÇÃO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 09/28/2023 | ||
Votação: | MAIORIA COM * VOT VENC | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NÃO PROVIDO | ||
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Sumário: | 1.– A garantia constitucional da tutela jurisdicional conforma-se com diferentes formas de densificação desse direito pelo legislador ordinário, no respeito pela estrutura acusatória do processo, não tendo que ser imediata a intervenção do juiz para acautelar direitos, liberdades e garantias que possam estar em causa em atos da exclusiva competência do Ministério Público. 2.– Não compete ao Juiz de Instrução Criminal sindicar os atos da competência exclusiva do Ministério Público na fase de inquérito, sobretudo se puderem ser jurisdicionalmente sindicados em tempo útil por uma instância jurisdicional, ainda que em fases mais adiantadas do processo (na instrução ou no julgamento). 3.– Exceciona-se o caso de poderem estar em causa direitos, liberdades e garantias cuja intervenção imediata do Juiz de Instrução Criminal se imponha, sob pena das delongas da intervenção jurisdicional em fases mais adiantadas do processo (instrução ou julgamento) esvaziarem de conteúdo a razão de ser do pedido de intervenção jurisdicional, mormente por acarretar um encurtamento inadmissível, um prejuízo insuportável e injustificável das possibilidades de defesa do arguido ou da tutela de interesses fundamentais de outro sujeito ou interveniente processual. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: RELATÓRIO No âmbito do proc. nº 829/22.9JAFUN, então em fase de inquérito no DIAP – 2ª Secção do Funchal, da Procuradoria da República da Comarca da Madeira, o arguido AA…., com sinais identificadores nos autos, requereu ao Ministério Público, em síntese, que, concluídas as diligências cujo conhecimento por si pudesse por em causa a obtenção da prova e a eficácia das mesmas e antes de concluído o inquérito lhe fosse permitido consultar o processo de forma a oferecer provas e a requerer as diligências que se lhe afigurassem necessárias, mais requerendo cópia do relatório de autópsia médico-legal. Em face do requerido, o Ministério Público deferiu a requerida consulta e, do mesmo passo, deduziu acusação contra o arguido pela alegada prática, em autoria material, de um crime de homicídio, na forma consumada, p. e p. pelos artigos 10º, nº 1, 14º, nº 1, 26º e 131º do Código Penal. Por ter sido proferida acusação sem que o arguido pudesse oferecer provas e requerer as diligências que se lhe afigurassem necessárias ainda em fase de inquérito, a 19.05.2023 dirigiu à Mmª Juiz de Instrução Criminal a exercer funções no Juízo de Instrução Criminal do Funchal, do Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, o seguinte requerimento (transcrição): «1º No dia 08/03/2023, o arguido nos termos dos artigos 61º e 89º do CPP requereu consulta do processo de forma "a melhor oferecer provas e requerer as diligencias que lhe afigurarem necessárias". 2º No dia 20/03/2023, o Ministério Público decidiu indeferir o pedido de consulta dos autos atendendo ao crime em investigação e porque se aguardava a realização de diligências cujo conhecimento por parte do requerente poderia pôr em causa a obtenção da prova e a eficácia dessas diligências, acrescentando que a fase de inquérito fôra sujeita a segredo de justiça. 3º No dia 09/05/2023, o arguido apresentou novo requerimento nos termos dos artigos 61º e 69º do CPP, exposição/requerimento que aqui se dá por integralmente reproduzido. 4º O arguido, neste requerimento, alega que atendendo ao tempo decorrido e às diligencias realizadas seria de prever que a fase de inquérito se encontrava praticamente concluída. 5º Mais deu a conhecer que pretendia intervir no inquérito, oferecendo provas e requerendo as diligências que se lhe afigurem necessárias nos termos que lhe são permitidos no artigo 61º al. g) do CPP. 6º Defendeu e alegou que para melhor exercer os seus direitos de defesa nomeadamente ao contraditório era importante conhecer o resultado e as evidencias que a investigação trouxe ao processo, designadamente, conhecer o resultado da autópsia médico legal onde se refere a causa e algumas circunstâncias da morte. 7º O arguido requereu ao Exmo. Senhor Procurador do Ministério Público que concluídas as diligencias cujo conhecimento por parte do requerente poderia pôr em causa a obtenção da prova e a eficácia das mesmas - argumentos que fundamentaram o indeferimento apresentado em 20/03/2023 - e antes de concluído o inquérito lhe fosse permitido consultar o processo de forma a oferecer provas e requerer as diligencias que se lhe afigurarem necessárias. 8º Sem prescindir do requerido, o arguido requereu cópia do relatório da autópsia médico-legal. 9º Constando como data de certificação citius o dia 16/05/2023 o arguido foi notificado que foi deferida a referida consulta nos ternos do disposto no artigo 89º nº 1 do CPP. 10º Na mesma data e na mesma notificação foi notificado da acusação publica. 11º O Ministério Público decidiu deferir a consulta mas encerrou o inquérito deduzindo acusação publica privando o arguido do direito e não permitindo que este oferecesse provas e solicitasse as diligências que se lhe afigurassem necessárias, conforme requereu em 09/05/2023, sem qualquer fundamento, o que constitui uma violação flagrante dos seus direitos de defesa consagrados na Constituição e na Lei Processual Penal, o que se invoca para todos os efeitos legais. 12º Foi deduzida acusação sem que também que fosse proferida decisão quanto à solicitada copia do relatório da autópsia médico-legal, que o arguido pretendia e tinha direito de conhecer de forma a decidir sobre a necessidade, ou não, de solicitar esclarecimentos ou a realização de nova perícia, na fase de inquérito, nos termos dos artigos 158º,61º al. g) e 340º do CPP. 13º O princípio do contraditório representa também o direito que tanto a acusação como a defesa têm de oferecer provas para sustentarem as suas teses processuais e se pronunciarem sobre as alegações ou iniciativas processuais ou os atos tanto de uma como de outra. 14º Num processo que reveste complexidade como este é importante que se permita ao arguido, em fase de inquérito, não havendo fundamento para indeferimento como agora não existia, consultar o processo de forma a tomar conhecimento das diligencias de prova já realizadas e os seus resultados de forma a decidir e ponderar a realização de novas diligencias e oferecer provas. 15º O respeito pelo princípio do contraditório refletido no artigo 32º nº 5 da lei fundamental, pressupõe que contra ninguém pode ver tomada uma decisão como seja a de deduzir acusação publica sem que para tanto lhe tenha sido dada a possibilidade de consultar o processo de forma a saber da investigação e decidir sobre a necessidade de oferecer provas e a realização de diligências que considere necessárias - conforme o arguido expressamente requereu - principio constitucional este que foi violado, o que se invoca para todos os efeitos legais. 16º A relevância do principio do contraditório que é garantido em todas as fases do processo penal, na fase de inquérito nomeadamente com o direito concedido ao arguido de consultar o processo (artigo 89º nº 1 do CPP) e de intervir no inquérito oferecendo provas e requerendo as diligências que se lhe afigurarem necessárias (artigo 61º nº 1 al. g) do CPP), assenta no pressuposto de que o facto e a pena que implicam a razão de ser e o culminar do processo não se encontram aprioristicamente definidos, antes decorrem de um processo - que é, também ele, comunicação - de diálogo entre os vários intervenientes processuais de forma a que seja tomada uma justa decisão para o caso concreto, principio constitucional violado no caso concreto. 17º O Ministério Publico ao deferir a consulta do processo em simultâneo com o encerramento do inquérito, sem permitir que o arguido após consulta oferecesse provas e/ou requeresse as diligências que se lhe afigurassem necessárias à sua defesa, ainda na fase de inquérito, conforme o expressamente requerido em 09/05/2023, sem ,apresentar qualquer fundamento, violou os seus direitos de defesa nomeadamente o do contraditório refletido no artigo 32º nº 5 da Constituição da Republica Portuguesa e violou o disposto no artigo 61º nº 1 al. g) do CPP, o que constitui nulidade processual (artigo 118º e ss do CPP) ou, se assim não se entender, irregularidade (artigo 123º do CPP), que tem por consequência a nulidade de todos os atos posteriores a 09/05/2023 nomeadamente a acusação publica. 18º Na pratica ao atuar como atuou deferindo a consulta em simultâneo com o encerramento do inquérito fez com que ao arguido não fosse permitido em fase de inquérito defender-se oferecendo provas e requerendo diligencias que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade o que constitui nulidade processual prevista no artigo 120º nº 2 al. d) do CPP, nulidade que se invoca para todos os efeitos legais, que tem por consequência que se declare a invalidade da acusação publica. 19º O Ministério Publico ao não pronunciar-se sobre o requerimento apresentado a 09/05/2023 onde se solicita copia do relatório da autopsia médico-legal deduzindo acusação publica, encerrando o inquérito, não permitindo ao arguido conhecer o teor do mesmo e se assim entendesse solicitar esclarecimento ou uma segunda perícia, incorreu em omissão de pronuncia, violou o principio do contraditório e o artigo 61º nº 2 al. g) do CPP, o que constitui nulidade processual, ou, se assim não se entender, irregularidade, que se invoca para todos os efeitos legais e que tem como consequência a invalidade da acusação publica. 20º O procedimento referido violou o disposto nos artigos 20º e 32º da Constituição da Republica Portuguesa e os artigos 61º nº 2 al. g) e 267º do CPP. 21º Compete ao Juiz de Instrução Criminal apreciar invalidades cometidas em inquérito sempre que contendam com direitos, liberdades e garantias, como acontece no caso concreto, tanto mais que as normas constitucionais são de aplicação direta (artigo 18º da Constituição da Republica Portuguesa). 22º Conforme tem vindo a ser entendido o conhecimento de invalidades quer se trate de insistências, nulidades ou irregularidades cometidas na fase de inquérito insere-se no âmbito da função jurisdicional do Juiz de Instrução (artigos 122º nºs 2 e 3 do CPP). Termos em que deverá considerar-se procedente a presente arguição de nulidades processuais ou, no caso de assim não se entender, irregularidades processuais, com as legais consequências, nomeadamente declarando-se inválida/nula a acusação publica.» Nessa sequência, a 27.05.2023, a Mmª JIC proferiu o seguinte despacho (transcrição): «Por requerimento de fls. 642 e ss. o arguido veio arguir nulidades e irregularidades processuais do inquérito. Conforme resulta do requerimento do arguido não pretendeu através do mesmo requerer a abertura de instrução referindo expressamente que o faz - sem prescindir de requerer a abertura de instrução. Assim e não obstante o arguido dirigir o requerimento ao juiz de instrução quando a competência para a sua apreciação pertence ao Ministério Público, o mesmo não é inequivocamente um requerimento de abertura de instrução. Assim, notifique o arguido deste despacho e após, dê baixa dos autos e devolva-os ao Ministério Público.» Inconformado com tal despacho, o arguido dele interpôs recurso, apresentando, em abono da sua posição, as seguintes conclusões da motivação (transcrição): «1- O presente recurso tem por objeto o despacho proferido pelo M" Juiz de Instrução em 27/05/2023, que julgou não pronunciar-se sobre a arguição de nulidades processuais elou irregularidades invocadas pelo arguido em 19/06/2023, por entender não ser da sua competência. 2- Em 09/05/2023, o arguido, apresentou exposição/requerimento nos termos dos artigos 61º al. g) e 89º do CPP, onde alega que atendendo ao tempo decorrido e às diligencias já realizadas seria de prever que a fase de inquérito se encontrava praticamente concluída, que pretendia intervir no inquérito oferecendo provas e requerendo as diligencias que se lhe afigurassem necessárias e que para isso era importante conhecer o resultado e as evidencias que a investigação trouxe ao processo, nomeadamente conhecer o resultado da autopsia médico-legal requerendo copia do relatório – que refere a causa e as circunstâncias da morte, solicitando que concluídas as diligências cujo conhecimento por parte do requerente poderia pôr em causa a obtenção da prova e eficácia das mesmas - argumentos que fundamentaram o indeferimento de um primeiro pedido no mesmo sentido apresentado em 08/03/2023 - e antes de concluído o inquérito lhe fosse permitido consultar o processo de forma a oferecer provas e requerer as diligencias que se lhe afigurassem necessárias. 3- O crime em investigação é o de homicídio, sendo que o processo revela complexidade e está em segredo de justiça sendo que para aferir da pertinência e da necessidade de oferecer provas e requerer diligências em inquérito conforme diz o artigo 61º al. g) do CPP é importante conhecer aprova já produzida e as ilações que de acordo com a razão, a lógica as regras de experiência comum dela se pode extrair. 4- Constando como data de certificação citius o dia 16/05/2023 o arguido foi notificado de que foi deferida a consulta do processo e da acusação pública, encerramento do inquérito. 5- No dia 19/05/2023, o recorrente, sem prescindir de requerer abertura de instrução, nos termos dos artigos 118º, l20º al d) , 122º e 123º todos do CPP, arguiu perante o Juiz de Instrução nulidades processuais ou, se assim não se entendesse, irregularidade resultante do facto do Ministério Publico ao deferir a consulta do processo em simultâneo com o encerramento do inquérito, sem permitir que o arguido após consulta oferecesse provas e/ou requeresse as diligências que se lhe afigurassem necessárias à sua defesa, ainda na fase de inquérito, conforme o expressamente requerido em 09/05/2023, sem apresentar qualquer fundamento, violou os seus direitos de defesa nomeadamente o do contraditório refletido no artigo 32º no 5 da Constituição da República portuguesa e violou o disposto no artigo 61º nº 1 al. g) do CPP, o que constitui nulidade processual (artigo 118º e ss do CPP) ou, se assim não se entender, irregularidade (artigo 123º do CPP), que tem por consequência a nulidade de todos os atos posteriores a 09/0512023 nomeadamente a acusação pública. 6- O MP ao atuar como atuou, na prática privou, opôs-se a que o recorrente consultasse o processo na fase de inquérito ao encerrar esta fase processual em simultâneo com o deferimento da consulta ao processo e sem pronunciar-se quanto ao elemento de prova solicitado, o que constituí um atentado aos seus direitos de defesa constitucionalmente consagrados. 7-O recorrente suscitou nulidade processual ou se assim não entendesse a irregularidade pelo facto do MP ter deduzido acusação publica sem que antes proferisse decisão quanto à solicitada copia do relatório da autopsia médico-legal que o arguido expressamente solicitou e tinha o direito de conhecer de forma a decidir sobre a necessidade ou não de solicitar esclarecimentos ou a realização de nova perícia na fase de inquérito nos termos do artigos 158º e 51º al. g) do CPP. 8-O recorrente defendeu que a relevância do princípio do contraditório que é garantido em todas as fases do processo penal, na fase de inquérito nomeadamente com o direito concedido ao arguido de consultar o processo (artigo 89º nº 1 do CPP) e de intervir no inquérito oferecendo provas e requerendo as diligências que se lhe afigurarem necessárias (artigo 61º nº 1 al. g) do CPP, assenta no pressuposto de que o facto e a pena que implicam a razão de ser e o culminar do processo não se encontram aprioristicamente definidos, antes decorrem de um processo - que é, também ele, comunicação - de diálogo entre os vários intervenientes processuais de forma a que seja tomada uma justa decisão para o caso concreto, principio constitucional violado no caso concreto. 9-No dia 27/05/2023 foi proferido o despacho recorrido que tem o seguinte teor: "Por requerimento de fls 642 e ss o arguido veio arguir nulidades e irregularidades processuais do inquérito. Conforme resulta do requerimento ao arguido este não pretendei através do mesmo requerer a abertura de instrução referindo expressamente que o faz - asem prescindir de requerer a abertura de instrução. Assim e não obstante ao arguido dirigir o requerimento ao Juiz de Instrução quando a competência para a sua apreciação pertence ao Ministério publico o mesmo não é inequivocamente um requerimento de abertura de instrução. Assim, notifique o arguido deste despacho e após dê baixa dos autos e devolva-os ao Ministério Público.", com o qual o recorrente não se pode conformar por violar a lei e a Constituição. 10-Ao contrário do que é sustentado a fase de inquérito nos presentes autos encontra-se finda desde o momento em que foi deduzida acusação pelo Ministério Público, em conformidade com o disposto no nº 1 do artigo 276º e no nº 1 do artigo 272º ambos do CPP, sendo certo que é o juiz de instrução criminal é a única entidade competente para exercer as funções jurisdicionais relativas ao inquérito, conforme artigos 17º, 268º e 269º todos do CPP, abrangendo essa competência não só a fase de inquérito propriamente dita mas também o período temporal que decorre a dedução da acusação e a abertura da fase de instrução - cfr Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 19/12/2017 proc nº 235/15.9FIEVR-E.C1. 11-Não podia o Mº Juiz de Instrução deixar de conhecer dos vícios invocados pelo recorrente por considerar que, nesta fase processual a apreciação dos mesmos é da competência do MP sendo que ao decidir como decidiu violou o disposto nos artigos 17º, 869º nºs 1 e 2, 4º e 6º, 266 nº 1 e 277º nº 1, todos do CPP o que se invoca para todos os efeitos legais. 12-O Mº Juiz de Instrução ao decidir como decidiu fez uma interpretação inconstitucional do artigo 17º do CPP no sentido de que as invalidades de um ato processual praticado durante a fase de inquérito pelo MP e que afeta direitos liberdades e garantias do arguido apenas pode ser conhecido pelo MP, por violar a norma de acesso ao direito e aos tribunais, artigo 20º da CRP, inconstitucionalidade que aqui expressamente se invoca. 13-Compete ao Juiz de Instrução Criminal apreciar invalidades cometidas em inquérito sempre que contendam com direitos, liberdades e garantias, como acontece no caso concreto, tanto mais que as normas constitucionais são de aplicação direta (artigo 18º da Constituição da República Portuguesa). 14-Estão em causa e o recorrente invocou expressamente a violação dos seus direitos de defesa consagrados na Lei e na Constituição nomeadamente a violação do disposto nos artigos 20º e 32º da CRP e do artigo 62º nº 2 al. g) do CPP, pelo que ao contrário do que foi julgado o Mº Juiz podia e devia de acordo com a Lei e com a Constituição conhecer e decidir da arguição de nulidades/irregularidades suscitadas pelo arguido em 19/05/2023. Conforme tem vindo a ser entendido o conhecimento de invalidades quer se trate de insistências, nulidades ou irregularidades cometidas na fase de inquérito insere-se no âmbito da função jurisdicional do Juiz de Instrução (artigos 122º nºs 2 e 3 do CPP). 15- O recurso é legal e tempestivo. NORMAS VIOLADAS: - Artigos 17º, 267º, 268º, 269º, do Código de Processo Penal: - Artigos 18º, 20º e 32º da Constituição da República Portuguesa Termos em que deverá ser julgado procedente o recurso e em consequência revogar o despacho recorrido, devendo ser proferido, pelo Tribunal a quo, novo despacho que conheça dos vícios invocados pelo ora recorrente em 19/05/2023.» O Ministério Público junto do tribunal onde foi proferido o despacho sob recurso apresentou contra-alegações, concluindo do seguinte modo (transcrição): «1.– Nos artigos 268º e 269º do CPP estão previstos os atos que durante o inquérito compete exclusivamente ao juiz de instrução praticar, ordenar ou autorizar. 2.– Durante o inquérito, o juiz de instrução não pode declarar a invalidade de atos processuais presididos pelo Ministério Público ou de atos processuais presididos pelo órgão de polícia criminal, por delegação do MP, e, por outro lado, o Ministério Público também não pode declarar a nulidade de atos processuais presididos pelo juiz de instrução. 3.–No que tange às nulidades dependentes de arguição que respeitem ao inquérito, devem ser invocadas até ao encerramento do debate instrutório ou, não havendo lugar a instrução, até cinco dias após a notificação do despacho que tiver encerrado o inquérito, sendo, pois, nessa altura que compete ao juiz de instrução conhecer das mesmas (cfr. art. 120º, nº 3, al. c), do CPP). 4.– In casu, o arguido arguiu invalidades de atos de inquérito da competência do MP, já após o seu encerramento. 5.– Nessa fase, o titular do inquérito já não tinha competência para conhecer dessas invalidades. 6.– O arguido podia tê-las invocado perante o superior hierárquico do magistrado titular do inquérito, no prazo de 5 dias (não havendo lugar a instrução), ou perante o JIC, através de requerimento de abertura de instrução. 7.– O arguido dirigiu um mero requerimento ao JIC, quando se encontrava-se em curso o prazo para apresentação de RAI, pelo que se nos afigura que, de acordo com os princípios da legalidade e da estrutura acusatória, previstos pelo artigo 32º, nº 5 da CRP, a JIC não poderia, antes de aberta a instrução, pronunciar-se acerca de uma eventual nulidade de inquérito. Neste sentido: AC TRE, 22-01-2021, e AC. T.R.L. de 24-05-2011, ambos in www.dgsi.pt. 8.– Posteriormente, o arguido apresentou RAI, no qual invocou as mesmas invalidades, as quais foram apreciadas por decisão instrutória de 13-07-2023. 9.– Destarte, bem andou a Mma. JIC ao não conhecer da invocada nulidade de inquérito, fora da fase de instrução, quando esta ainda podia ter lugar, devendo o presente recurso ser julgado improcedente.» * O recurso foi admitido a subir em separado, imediatamente e com efeito devolutivo. * Neste Tribunal da Relação de Lisboa, por seu turno, o Exmº Sr. Procurador-geral Adjunto emitiu parecer no sentido de acompanhar, «nos precisos termos em que vem formulada, a resposta da Exma. Magistrada do Ministério Público junto da 1ª instância à motivação do recurso interposto por AA….». Notificado nos ternos do disposto no nº 2 do artº 417º do CPP, o arguido não apresentou resposta. * Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, nada obstando ao conhecimento do mérito do recurso interposto. *** FUNDAMENTAÇÃO I–Questões a decidir Tendo presente que é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objeto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso [quanto a vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410º, n.º 2, do CPP (cfr. o Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, publicado no DR I Série de 28.12.1995), os quais devem resultar diretamente do texto desta, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum; a nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito legal) ou quanto a nulidades da sentença (artigo 379º, n.º 2, do CPP)], as questões que se colocam são as seguintes: a)- uma vez deduzida acusação e antes da fase de instrução, cabe ao JIC a competência funcional para apreciar nulidades/irregularidades ocorridas na fase de inquérito em atos da exclusiva competência do Ministério Público? b)-em caso negativo, tal entendimento está ferido de inconstitucionalidade? * II – Apreciação das questões acima enunciadas Com vista à apreciação das questões acima enunciadas, importa ter presente que, em síntese, emerge dos autos o seguinte: 1.–O arguido AA…. requereu ao Ministério Público que, concluídas as diligências cujo conhecimento por si pudesse por em causa a obtenção da prova e a eficácia das mesmas e antes de concluído o inquérito lhe fosse permitido consultar o processo de forma a oferecer provas e a requerer as diligências que se lhe afigurassem necessárias, mais requerendo cópia do relatório de autópsia médico-legal. 2.–Em face do requerido, o Ministério Público deferiu a requerida consulta e, do mesmo passo, deduziu acusação contra o arguido pela alegada prática, em autoria material, de um crime de homicídio, na forma consumada, p. e p. pelos artgs 10º, nº 1, 14º, nº 1, 26º e 131º do Código Penal. 3.–Por ter sido proferida acusação sem que o arguido pudesse oferecer provas e requerer as diligências que se lhe afigurassem necessárias ainda em fase de inquérito, a 19.05.2023 suscitou perante a Mmª Juiz de Instrução Criminal a exercer funções no Juízo de Instrução Criminal do Funchal, do Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, a apreciação e decisão das nulidades/irregularidades daí decorrentes. 4.–Todavia, por despacho proferido a 27.05.2023, a Mmª JIC decidiu não apreciar as questões suscitadas, em síntese, por entender não ser da sua competência, mas do MP, já que o requerimento em causa não se tratava de um RAI. 5.–Entretanto o arguido apresentou RAI a 15.06.2023, abrindo-se assim a fase de instrução do processo e no âmbito do qual viria a ser proferida decisão instrutória que, além do mais, apreciou também aquelas questões suscitadas pelo arguido. * Cabe desde logo salientar que o objeto deste recurso, tal como definido pelas conclusões da motivação do recorrente, não se dirige ao mérito da decisão instrutória quanto às nulidades/irregularidades invocadas, as mesmas que o arguido havia invocado perante a Mmª JIC depois de proferida acusação em requerimento avulso de 19.05.2023, mas antes de ter sido tempestivamente apresentado requerimento de abertura de instrução. Com efeito, o objeto do presente recurso reporta-se à declinação de competência da Mmª JIC para apreciar tais alegadas nulidades/irregularidades antes da fase de instrução, já depois de deduzida a acusação, por despacho exarado a 27.05.2023. Nessa conformidade, aqui não se abordará o mérito das nulidades/irregularidades alegadas pelo arguido, seja no requerimento de 19.05.2023 seja no RAI, posto que caem fora do objeto do presente recurso. Isto posto, tendo presente as normas invocadas no requerimento recursivo, convém desde logo atentar no que dispõe o artº 18º, nº 1, da CRP, do qual decorre que «Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas.» Isto é, por princípio os direitos, liberdades e garantias conferem posições jurídicas subjetivas que os seus titulares podem invocar perante as autoridades públicas e fazer valer em juízo independentemente de lei ordinária concretizadora, na ausência, inadequação ou insuficiência da lei e mesmo contra o próprio texto da lei. Seja como for, «A ideia de aplicabilidade direta assume-se estruturalmente como um princípio e, portanto, como uma vocação das normas constitucionais sobre direitos, liberdades e garantias, mas que não pode dispensar uma análise casuística, cujo resultado é muitas vezes diferenciado em função da tipologia das normas constitucionais, da densidade e da determinabilidade do seu conteúdo e das funções jusfundamentais que desempenham.» (Jorge Miranda e Jorge Pereira da Silva in Constituição Portuguesa Anotada, Vol. I, 2ª Edição revista, págs. 235 e 236, Universidade Católica Editora, 2017). Por outro lado, dispõe o artº 20º da CRP que «A todos é assegurado o acesso ao Direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.» A constitucionalização dos direitos fundamentais não se esgota no plano material, pois, através da concreta conformação do regime processual, podem ser realizados ou afetados de vários modos, razão pela qual a lei fundamental, em sede de princípios gerais no âmbito dos direitos fundamentais, consagra o direito de acesso ao direito e à tutela Jurisdicional efetiva, sendo certo que a plenitude do acesso à jurisdição aplica-se naturalmente também aos casos em que os particulares pretendem defender jurisdicionalmente os seus direitos ou interesses legalmente protegidos perante os poderes públicos. Note-se que este princípio basilar, afirmamo-lo já, conforma-se com diferentes formas organizacionais de acesso ao direito e à tutela jurisdicional, desde que o titular do direito possa aceder a uma tutela jurisdicional efetiva do mesmo, isto é, em síntese, no sentido de levar ao conhecimento de determinado órgão jurisdicional uma determinada pretensão, como seja um tribunal judicial ou ordem de jurisdição de outra natureza. Por outro lado, cabe ao legislador ordinário a competência para delimitar os pressupostos ou requisitos processuais de que depende a efetivação da garantia de acesso aos tribunais, mas quando determinada norma da lei ordinária ou certa interpretação de uma norma contenda diretamente com este direito fundamental, coartando o acesso ao direito na aceção que já vimos, ter-se-á de considerar a mesma materialmente inconstitucional. No que ao processo penal diz respeito, a Constituição, no artº 32º, proclama os princípios basilares das garantias neste domínio sob a epígrafe «Garantias de processo criminal». Na parte que ora interessa estatui então o seguinte: «1.–O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso. (…). 4.–Toda a instrução é da competência de um juiz, o qual pode, nos termos da lei, delegar noutras entidades a prática dos atos instrutórios que não se prendam diretamente com os direitos fundamentais. 5.–O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os atos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório. (…)». Ora, o nº 1 do preceito em causa não constitui uma mera norma programática a desenvolver pela lei ordinária, pois será em face das circunstâncias concretas de cada caso que se hão de estabelecer os concretos conteúdos dos direitos de defesa, no quadro dos princípios estabelecidos pela lei e pela Constituição, à luz de um processo equitativo (due process of law, na terminologia da jurisprudência norte-americana), sendo o arguido um sujeito processual a quem devem ser asseguradas todas as possibilidades de contrariar a acusação, a independência e a imparcialidade do juiz ou tribunal e a lealdade do procedimento. Tal não se reporta apenas à decisão final, mas a todas as decisões que ao longo do processo implicam restrições de direitos ou possam condicionar a solução definitiva do caso. É assim na lei ordinária e em particular nas normas procedimentais penais – o direito processual penal é direito constitucional aplicado – que haverão de se densificar os princípios fundamentais informadores e expressos, designadamente, no artº 32º da CRP. Assim, genericamente, nesta sede, diremos que estar-se-á perante uma inconstitucionalidade material sempre que alguma norma processual ou procedimento aplicativo dela implicar um encurtamento inadmissível, um prejuízo insuportável e injustificável das possibilidades de defesa do arguido (neste sentido, entre muitos outros, cfr. o Ac. do TC nº 61/88). O direito de defesa do arguido concretiza-se também na possibilidade de adoção de uma determinada estratégia processual e ainda em pelo menos um grau de recurso em termos amplos, abrangendo questões de direito e de facto, o que não significa que a garantia constitucional dê cobertura à possibilidade de recorrer de toda e qualquer decisão ao longo do processo, desde que não atinja o conteúdo essencial do direito de defesa e a limitação seja justificada por outros valores relevantes no processo penal. Por seu turno, a estrutura acusatória do processo significa essencialmente o reconhecimento do arguido como sujeito processual a quem é garantida a efetiva liberdade de atuação para exercer a sua defesa face à acusação que fixa o objeto do processo e que é deduzida por entidade independente do tribunal que decide a causa. Num processo de estrutura acusatória, como é o nosso, existe uma paridade no posicionamento jurídico da acusação e da defesa em todos os atos jurisdicionais, isto é, uma igualdade de meios de intervenção processual (igualdade de armas) pelo menos nas fases jurisdicionais. Em tal modelo, a acusação fixa o objeto do processo, de sorte que o arguido, naquele processo, não pode ser condenado por factos que o extravasam, ressalvada a exceção permitida pelo artº 359º do CPP. Também a separação entre as funções de acusação e julgamento são garantia de independência e imparcialidade do julgador, inerente aliás ao direito fundamental do direito de acesso aos tribunais consagrado no artº 20º, nº 1, da CRP, conforme já vimos. Tal modelo contrapõe-se à estrutura inquisitória do processo, em que o tribunal é o dominus absoluto do mesmo, intervindo oficiosamente, sem necessidade de acusação por entidade diversa do julgador, em que o arguido fica inteiramente submetido aos poderes do juiz, o qual, orientado pelo fim último da descoberta da verdade e da defesa da sociedade, investiga em segredo, sem contraditório e oficiosamente, podendo prescindir de qualquer atuação voluntária do visado. De todo o modo, a estrutura acusatória do processo não é incompatível com momentos ou fases inspiradas na estrutura inquisitória, desde que justificadas pela procura da verdade e sempre submetidas ao dever de lealdade para com o arguido, o que limita os meios de prova admissíveis. O princípio do contraditório, por seu turno, traduz-se na estruturação da audiência de julgamento e dos atos instrutórios que a lei determinar (estes não se confundem com os atos da fase processual da instrução) em termos de um debate ou discussão entre a acusação e a defesa, as quais são chamadas a deduzir as suas razões de facto e de direito, a oferecer provas, a controlar as provas contra si oferecidas e a discretear sobre o valor e resultado probatórios de umas e outras. Em termos genéricos, pode afirmar-se que a observância deste princípio deverá ter lugar sempre que seja importante para a descoberta da verdade e para a concretização dos direitos de defesa. Ora, feito este sucinto périplo e centrando agora a nossa atenção no caso que nos ocupa, salvo melhor opinião, não se vê de que modo possa ser inconstitucional o entendimento de que o requerimento a invocar nulidades/irregularidades na fase de inquérito não deva ser antes de mais apresentado ao respetivo titular (Ministério Público) e, se depois de deduzida a acusação (com o qual se encerra a fase de inquérito), a questão não deva ser apreciada em sede de reclamação hierárquica se o arguido optar por não requerer a abertura de instrução; e menos se compreende esse juízo de inconstitucionalidade se tal questão puder ser levada ao JIC em sede de instrução, como aliás ocorreu no caso presente, pois, seja de que forma forma for, inexiste qualquer encurtamento inadmissível, um prejuízo insuportável e injustificável das possibilidades de defesa do arguido, que acabou por ver a questão apreciada em sede de instrução (e cujo mérito – repisa-se – aqui não sindicamos). Neste caso, o acesso do arguido a uma instância jurisdicional ocorreu, em termos de poder ser apreciada e decidia a alegação das nulidades/irregularidades suscitadas em tempo útil. Por conseguinte, salvo melhor opinião, não se vê qualquer desconformidade com os princípios constitucionais norteadores do processo penal o despacho da Mmª JIC que não apreciou o requerido pelo arguido a 19.05.2023, posto que não se tratava de um RAI. Cabe agora verificar se, em face da lei ordinária, tal despacho merece reparo. Sob a epígrafe «Competência do juiz de instrução», estabelece o artº 17º do CPP que «Compete ao juiz de instrução proceder à instrução, decidir quanto à pronúncia e exercer todas as funções jurisdicionais até à remessa do processo para julgamento, nos termos prescritos neste código.» Por seu turno, no que tange às nulidades dependentes de arguição cometidas na fase de inquérito, as mesmas podem ser arguidas «até ao encerramento do debate instrutório ou, não havendo lugar a instrução, até cinco dias após a notificação do despacho que tiver encerrado o inquérito» (al. c) do nº 3 do artº 120º do CPP). Ora, o juiz de instrução criminal não procede à instrução do processo (no sentido de dirigir a investigação na fase de inquérito), mas controla o resultado da atividade instrutória do Ministério Público, quando para isso for solicitado pelo arguido ou pelo assistente por via da abertura da instrução, nos termos dos artgs 286º e 288º do CPP. Para além disso, o juiz de instrução criminal é o garante dos direitos fundamentais do arguido ou do ofendido durante a fase de inquérito do processo, fase de processo essa dirigida pelo Ministério Público, assistido pelos órgãos de polícia criminal (cfr. os artgs 53º, nº 2, al. b), e 263º, nºs 1 e 2, do CPP). É por isso que determinados atos intrusivos na esfera dos direitos, liberdades e garantias terão de ser praticados, ordenados ou autorizados pelo juiz de instrução criminal, nos termos prescritos nos artgs 268º e 269º do CPP, estando-lhe ainda reservada a competência exclusiva (antes da fase processual de julgamento) para a admissão como assistente (artº 68º do CPP), a declaração da excecional complexidade do processo (artº 215º, nº 4, do CPP), a condenação do faltoso em multa e a emissão de mandados de detenção (artº 116º do CPP), a recolha de declarações para memória futura (artº 271º do CPP) e a concordância com a suspensão provisória do inquérito (artº 281º do CPP) ou com o arquivamento em caso de dispensa de pena (artº 280º do CPP). Não cabe ao juiz de instrução criminal, conforme frisado nas contra-alegações do Ministério Público, antes de aberta a instrução, sindicar os atos da exclusiva competência deste. E tal assim é, por regra, como decorrência da estrutura acusatória do processo penal português. Conforme sustenta Paulo Pinto de Albuquerque (in Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2ª ed. Atualizada, anotação 5 ao artº 118º, pág. 300, Universidade Católica Editora, 2008) «Durante o inquérito, o Ministério Público e o juiz de instrução têm ambos competência para declarar um acto processual inexistente, nulo ou irregular ou uma prova proibida. Esta solução é imposta pela conjugação de dois princípios estruturantes do processo penal: o princípio da legalidade e o princípio da estrutura acusatória do processo penal. O princípio da legalidade implica aquela competência concorrente do Ministério Público e do juiz de instrução na fase de inquérito, pois também a magistratura do Ministério Público está vinculada ao princípio da legalidade e numa fase processual dirigida pelo Ministério Público essa vinculação há-de traduzir-se precisamente no poder de controlar as invalidades nela cometidas. (…) Contudo, esta competência concorrente tem limites e elas resultam da estrutura acusatória do processo penal. Esta estrutura implica uma separação orgânica e funcional entre as duas magistraturas que se verifica mesmo na fase de inquérito. Assim, durante o inquérito, o juiz de instrução só pode conhecer da ilegalidade de actos da sua competência e o magistrado do Ministério Público só pode conhecer da ilegalidade de actos da sua competência, neste se incluindo todos os actos investigatórios (…). A competência do juiz de instrução não deve constituir oportunidade para ele se alçar em senhor do inquérito, o que aconteceria se o juiz se colocasse numa posição de sindicante permanente da actividade do Ministério Público (…). Portanto, o juiz de instrução não pode declarar durante o inquérito a invalidade de actos processuais presididos pelo MP ou de actos processuais presididos pelo órgão de polícia criminal, por delegação do MP.» E na anotação seguinte, afirma o mesmo autor que «Portanto, do despacho do Ministério Público que decide durante o inquérito se um acto processual é ou não inexistente, nulo ou irregular ou uma prova é ou não proibida não cabe reclamação para o juiz, nem recurso para o tribunal superior, mas reclamação hierárquica para o superior hierárquico do magistrado do MP. A reclamação para o superior hierárquico pode ter lugar até ao termo do prazo para a abertura de instrução, mas tem de ser interposta dentro do prazo de 10 dias a contar do conhecimento do vício pelo interessado.» No mesmo sentido se orientou o Ac. do TRG de 25.05.2020, proc. nº 95/19.3JAPRT – C.G1, com texto integral em www.dgsi.pt, onde, a dado passo, é referido o seguinte (transcrição): «Pela sua pertinência, uma vez que ali se explana, por via dos trabalhos preparatórios, a origem lógica, a natureza, o valor e o alcance objetivo da solução jurídica encontrada pelo legislador, recorremos também nós ao trecho doutrinário da autoria de Simas Santos e Leal Henriques, que a Exma. Procuradora-Geral Adjunta já invocou no seu douto parecer: Assim, M. Simas Santos e M. Leal Henriques, in "Código de Processo Penal Anotado", I Volume, 2ª edição, 2004, Rei do Livros, pág. 596, referem que, na Comissão Revisora da primitiva versão do Código, durante a apreciação do artigo 118º, «o Dr. J. A. Barreiros propôs que se lhe aditasse um n.º 4, onde se impusesse que as nulidades e irregularidades fossem declaradas pelo juiz, sem prejuízo da prévia revogação do acto e sanação dos seus efeitos pela entidade que o tivesse praticado. Face a tal proposta, o PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA considerou ser dever e faculdade do M.º P.º declarar essa nulidade na fase do inquérito, sem necessidade de intervenção do juiz, mal se compreendendo que o M.º P.º, numa óptica de defesa dos direitos fundamentais do arguido, não pudesse pôr fim a qualquer nulidade. Na mesma linha se posicionou FIGUEIREDO DIAS, acrescentando que se tratava aqui não de uma declaração formal de nulidade, mas de uma revogação, uma sanação, sendo errado sustentar-se que ao reconhecer essa faculdade ao M.º P.º, ficaria o arguido impedido de apresentar a sua defesa, uma vez que o Código prevê altura própria para a arguição de nulidades (al. c) do n.º 3 do art.º 120.º). Em resultado deste entendimento e da sugestão do PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA para que, a fim de se evitarem confusões, se eliminasse a menção ao juiz feita no art.º 122.º, n.º 3, o mesmo Prof. Figueiredo Dias adiantou que no caso do art.º 122.º n.º 3 há uma formalização na declaração da nulidade, ao passo que no inquérito apenas existe o acto de pôr cobro aos efeitos de uma nulidade processual no cumprimento de um dever próprio do M.º P.º, mas sem materialização em qualquer acto formal de declaração de nulidade (auto-correcção). E termina afirmando que a formalização durante o inquérito da declaração de nulidade de um acto descaracterizaria o sistema do Código, possibilitando uma fase de recurso, sendo certo que no inquérito se reclama e não se arguem nulidades, arguição que só ocorre depois do inquérito e perante o juiz.» Mutatis mutandis, no caso em apreço, tendo sido proferida acusação pelo Ministério Público, restava ao arguido duas vias: o recurso hierárquico ou a abertura de instrução (nos termos do artº 287º do CPP), tendo ele, aliás, entretanto, optado por esta última via, reiterando no RAI os argumentos esgrimidos no seu requerimento de 19.05.2023 e sobre qual viria a incidir decisão instrutória. Em suma, conforme já vimos, não competia ao JIC sindicar a atividade do Ministério Público na fase de inquérito, por ter deduzido acusação sem ter facultado ao arguido a possibilidade de consulta do processo e de poder requerer o que tivesse por conveniente ao abrigo do direito processual consagrado no artº 61º, nº 1, al. g), do CPP, por referência à invocação da nulidade/irregularidade alegada no requerimento de 19.05.2023, pois se o fizesse estaria violada a estrutura acusatória do processo e, aí sim, uma tal decisão de fundo que se pronunciasse sobre a matéria de tal requerimento poderia estar ferida de inconstitucionalidade por violação daquele princípio basilar consagrado no artº 32º, nº 5, da CRP. Não se ignora que neste Tribunal da Relação de Lisboa já se decidiu de forma diversa, como por exemplo no Ac. de 24.09.2015, proc. nº 208/13.9TELSB-B.L1, com texto integral em www.dgsi.pt, entendendo-se então que o juiz de instrução tem competência para apreciar invalidades cometidas em inquérito sempre que contendam com direitos, liberdades e garantias, tanto mais que as normas constitucionais são de aplicação direta, impondo-se no imediato – independentemente da fase processual - a intervenção jurisdicional quando possa estar em causa a alegada violação de direitos, liberdades e garantias, assim se garantindo a tutela consagrada no texto constitucional e materializando o direito ao juiz que a mesma comporta. Conforme expusemos acima, salvo melhor opinião, entendemos que a garantia constitucional de tutela jurisdicional conforma-se com diferentes formas de densificação desse direito pelo legislador ordinário, no respeito pela estrutura acusatória do processo, não tendo que ser imediata a intervenção do juiz para acautelar direitos, liberdades e garantias que possam estar em causa em atos da exclusiva competência do Ministério Público, posto que o possa fazer em tempo útil, como por exemplo na fase de instrução do processo, como aliás é o caso dos presentes autos. Nesse contexto, a menos que as delongas na intervenção jurisdicional possam redundar num encurtamento inadmissível, num prejuízo insuportável e injustificável das possibilidades de defesa do arguido ou da tutela de interesses fundamentais de outro sujeito processual, ou mesmo quando o visado nem sequer é sujeito processual e não exista outra forma de tutela jurisdicional (hipótese de fundo em causa no aludido acórdão deste tribunal, pois o recorrente era mero suspeito), o JIC não tem competência funcional para sindicar atos da exclusiva competência do Ministério Público na fase de inquérito. Salvo o devido respeito por opinião diversa, cremos que esta solução é a mais equilibrada no confronto entre o direito de tutela jurisdicional dos direitos, liberdades e garantias e os outros valores que também enformam o processo penal. Assim, se existir remédio processual, por exemplo, na fase de instrução, em caso de alegada violação de direitos, liberdades e garantias em atos praticados na fase de inquérito e da exclusiva competência do Ministério Público, não pode o JIC ser chamado precocemente a sindicar tal tipo de atos, sob pena até de se poder abrir a porta a todo o tipo de abusos, provocando sucessivas intervenções do JIC, entorpecendo assim a ação penal e, em última análise, a ação da Justiça. Se fizesse vencimento a tese contrária à que pugnamos, neste caso, o arguido/recorrente poderia ver a mesma questão apreciada em três momentos distintos: em intervenção avulsa do JIC (a que está aqui em causa), na fase de instrução e na fase de julgamento. Nenhum direito pode ser considerado de per si, nem pode ser exercido de forma irrestrita, pois confronta-se sempre com outros direitos, interesses e valores, também eles constitucionalmente consagrados, sendo certo que a sua concordância prática nenhuma questão de constitucionalidade convoca se os respetivos núcleos fundamentais puderem ser preservados. Aqui chegados, concluímos que nenhum direito de defesa do arguido/recorrente foi postergado com a prolação do despacho sob recurso, tanto mais que pôde, em tempo útil, exercer o seu direito de defesa na fase de instrução do processo, onde invocou a mesmíssima (alegada) nulidade/irregularidade. Pelo exposto, deverá improceder o recurso interposto, mantendo-se o despacho recorrido. * III – Das custas Dispõe o artº 513º do CPP o seguinte: «1.– Só há lugar ao pagamento da taxa de justiça quando ocorra condenação em 1ª instância e decaimento total em qualquer recurso. 2.– O arguido é condenado em uma só taxa de justiça, ainda que responda por vários crimes, desde que sejam julgados em um só processo. 3.– A condenação em taxa de justiça é sempre individual e o respetivo quantitativo é fixado pelo juiz, a final, nos termos previstos no Regulamento das Custas Processuais. 4.– (…)». Assim, tendo o arguido decaído totalmente no presente recurso, deverá ser condenado no pagamento de taxa de justiça nos termos do artº 8º, nº 9, do RCP e Tabela III a ele anexa. Nessa conformidade, uma vez que as questões suscitadas não são especialmente complexas, variando a taxa de justiça entre 3 e 6 UC, entendemos adequado fixá-la em 3 (três) UC. *** DISPOSITIVO Face ao exposto, acordam os juízes desta 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso interposto, mantendo-se o despacho recorrido. * Custas pelo recorrente, com 3 (três) UC de taxa de justiça (cfr. o artº 513º, nºs 1 e 3, do CPP, e o artº 8º, nº 9, do RCP, em conjugação com a tabela III anexa). * Registe e notifique (artº 425º, nºs 3 e 6, do CPP). Lisboa, 28 de setembro de 2023. (Texto processado por computador, composto e revisto pelo 1º signatário) Os Juízes Desembargadores, José Castro Jorge Manuel da Silva Rosas de Castro Antero Luís (com voto de vencido) (Assinaturas eletrónicas no canto superior esquerdo da 1ª página) * Voto de vencido Voto vencido por entender que o juiz de instrução tem competência para apreciar as invalidades cometidas em inquérito sempre que contendam com direitos liberdades e garantias, tanto mais que as normas constitucionais são de aplicação directa. Por outro lado, entendo que em matérias de alegada violação de direitos liberdades e garantias, a intervenção jurisdicional impõe-se, no imediato, independentemente da fase processual em que a mesma ocorra, assim se garantindo a tutela jurisdicional consagrada no texto constitucional e materializando o “direito ao juiz” que a mesma comporta, tal como defendemos no Processo nº 208/13.9TELSB-B.L1-9, disponível em www.dgsi.pt, para cujos fundamentos se remete. Nesse sentido, entendo que o Meritíssimo Juiz de Instrução devia ter conhecido do requerimento do arguido, por ter competência para o efeito e estarem em causa as garantias ao direito de defesa em processo criminal. Antero Luís |