Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
| Processo: |
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| Relator: | CID GERALDO | ||
| Descritores: | LOCALIZAÇÃO CELULAR | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 11/03/2020 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Texto Parcial: | N | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | PROVIDO | ||
| Sumário: | - A obtenção de dados de localização celular restringe os direitos de intimidade, privacidade e desenvolvimento da personalidade, mas fá-lo de forma muito pouco significativa, inclusivamente menos intensiva que meios de obtenção de prova sujeitos a regimes menos rigorosos, como sejam as vigilâncias policiais e a obtenção de imagens de videovigilância. - É fundamental que existam motivos e razões de convencimento por parte do juiz competente, para crer que a diligência requerida de obtenção de dados de localização celular, se revelará de grande interesse para a descoberta da verdade ou da prova que, de outra forma, seria impossível ou muito difícil de obter - Num processo penal tão permeável a preocupações de defesa dos arguidos/suspeitos/denunciados, não poderemos perder de vista que a finalidade primeira desse processo continua a ser a perseguição de infracções criminais, como defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos e da comunidade que são lesados com essas infracções criminais, sendo certo que o meio de obtenção de prova pretendido afectará de forma muito pouco significativa terceiros à investigação, servindo em contrapartida para propiciar a perseguição criminal de um delito com considerável gravidade e que causou forte alarme social. | ||
| Decisão Texto Parcial: | |||
| Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa. 1. Nos autos de processo comum, em fase de inquérito, sob o n.º497/20.2PFCSC, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo de Instrução Criminal de Cascais - Juiz 2, o Ministério Público, não se conformando com o despacho datado de 16 de Setembro de 2020, na parte em que indeferiu a promoção de obtenção de dados de localização celular quanto aos aparelhos que se conectaram a um conjunto de antenas durante o hiato temporal relevante para o ilícito sob investigação, vem do mesmo interpor o competente recurso, formulando as conclusões que se transcrevem: 1. Vem o presente recurso interposto do despacho de folhas 107 e 109 dos autos, o qual indeferiu parcialmente o pedido de obtenção de dados de localização celular, formulado pelo Recorrente. 2. Os dados de localização celular são meros registos retirados das células que compõem uma rede de comunicações, e que permitem evidenciar quais telefones estiveram abrangidos pela cobertura dessa célula de rede, sendo gerados independentemente da utilização desses telefones para a realização de quaisquer comunicações. 3. Tais dados permitem assim, apenas e só, obter algumas informações aproximadas (aproximadas porque a área de cobertura de cada célula é geograficamente significativa) sobre o paradeiro e percurso do visado. 4. A obtenção de dados de localização celular não implica qualquer restrição do direito à inviolabilidade das comunicações, pelo singelo motivo de que os dados em causa não respeitam a quaisquer comunicações, existindo antes mera restrição dos direitos à intimidade, privacidade e desenvolvimento da personalidade, na medida em que os dados em causa permitem perceber onde esteve alguém num hiato temporal e que percurso realizou. 5. Essa restrição atinge uma dimensão pouco significativa, seja pela abrangência geográfica da cobertura de cada célula (que permite apenas saber que o visado esteve nessa área territorial, mas não o local exacto dentro dessa área), seja por ser irrisória quando comparada com as restrições a direitos fundamentais operadas por outros meios de obtenção de prova não sujeitos a regimes tão rigorosos, como sejam as vigilâncias policiais ou as imagens de videovigilância. 6. Daí que se possa também afirmar que a afectação de pessoas estranhas à investigação é também pouco significativa, além de que os dados relativos a tais pessoas, que serão relativamente fáceis de distinguir dos dados dos suspeitos (que terão um comportamento telefónico/celular claramente peculiar), serão sempre suprimidos, atento o disposto no art. 188.9, n.9 6 do Código de Processo Penal, aplicado por remissão do art. 189.9, n.s 2 do mesmo diploma (quanto aos dados de localização celular em tempo real), e atento o disposto no art. 11.B, n.91 da Lei n.9 32/2008, de 17 de Julho (quanto aos dados de localização celular conservada). 7. Mesmo no plano das intercepções telefónicas, existe uma afectação de terceiros sem relação com a investigação, mormente todos aqueles que contactem com o visado ou que utilizem fortuitamente o telefone sob escuta, afectação essa que é muito mais intensiva que os dados de localização celular, e que ainda assim não tem impressionado a jurisprudência ou a doutrina. 8. O legislador processual penal estabeleceu um catálogo fechado de visados pela obtenção de dados de localização celular, entre os quais se conta o suspeito, na acepção do art. 1°, alínea e) do Código de Processo Penai, a qual foi densificada pela jurisprudência como correspondendo a um suspeito identificável. 9. A identificabilidade aponta para uma susceptibilidade futura e dotada de razoável previsibilidade, de obter uma identificação positiva do agente do crime, a qual não se basta com atentar nos dados identificativos já conhecidos, havendo que considerar também os dados identificativos que previsivelmente poderão vir a ser obtidos com outras diligências a realizar, nas quais se inclui a própria obtenção de dados de localização celular. 10. Dito de outro modo, se, da conjugação com os dados identificativos já obtidos nos autos com aqueles que previsivelmente possam vir a ser obtidos com os dados de localização celular for possível, com razoável expectativa, antever que será possível chegar a uma identificação de um suspeito, então é forçoso concluir que o suspeito será identificável. 11. Não entender desta forma, considerando que apenas poderão relevar os dados identificativos já apurados nos autos, levará o aplicador do Direito a incorrer em manifesta contradição: com efeito, admitirá, por um lado, que não é exigível um suspeito identificado, mas antes identificável; mas por outro lado, considerará apenas os dados identificativos presentes para aferir uma realidade potencial e futura, sem ponderar os desenvolvimentos possíveis da investigação. 12. O despacho recorrido aplicou erradamente o disposto nos arts. 187.2 a 189.2 do Código de Processo Penal à promoção de obtenção de dados de localização celular conservada, dado que o regime em causa foi revogado, no respeitante a essa tipologia de dados, pela Lei n.2 32/2008, de 17 de Julho. 13. Contrariamente ao que sustenta o despacho recorrido, e conforme é sustentado pela melhor e mais recente doutrina e jurisprudência, é perfeitamente admissível a obtenção de dados de localização celular conservada, onde se incluam listagens de todos os telemóveis que se ligaram a determinadas antenas, sejam ou não suspeitos. 14. Isto porque o que releva é que a diligência seja direccionada a suspeitos, nada obstando que a mesma afecte terceiros não visados, que facilmente serão excluídos do campo de interesse da investigação e cujos dados poderão (e deverão) ser destruídos por ordem judicial, nos termos do disposto no art. 11.8, n.2 l da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho. 15. Como se extrai da promoção do Ministério Público, foram fornecidos dados fisionómicos e de vestuário, além do número de telemóvel apreendido no local do crime e presumível deixado pelos suspeitos e de pseudónimos de redes sociais que os mesmos utilizarão, pelo que não corresponde à verdade que o Ministério Público não tenha fornecido identificação de suspeitos. 16. Simplesmente, e mais uma vez conforme a melhor doutrina e jurisprudência, o que se exige é um suspeito identificável e não identificado, no sentido de susceptível de futura individualização e concretização, mediante a conjugação dos elementos probatórios existentes no processo, com os dados celulares que venham a ser obtidos. 17. Posição contrária esvaziaria de conteúdo e sentido útil a obtenção de dados de localização celular conservada que, na esmagadora maioria das vezes, visa complementar outros meios probatórios, para conduzir a uma individualização definitiva de suspeitos. 18. O despacho recorrido incorre, de resto, em contradição, ao considerar que as características de suspeitos fornecidas pelo Ministério Público não são bastantes para justificar a obtenção de dados de localização celular conservada, mas já são suficientes para a obtenção de dados de tráfego e de localização quanto ao telemóvel apreendido no local do crime. 19. Como se extrai do breve enquadramento dos factos sob investigação, estão em causa factos de elevada gravidade, traduzidos na prática de crime de roubo agravado, por indivíduos altamente violentos e perigosos, armados com arma de fogo e arma branca, e que actuaram sobre pessoas de idade avançada e, logo, especialmente vulneráveis. 20. São assim superlativas as exigências de mobilização do sistema de prevenção e repressão criminal quanto ao crime em causa, sob pena de poderem vir a replicar-se factos de idêntica natureza, com eventuais consequências mais funestas. 21. Em termos probatórios, a conjugação dos dados fisionómicos dos suspeitos, fornecidos pelos ofendidos, com o telemóvei encontrado no local do crime, os dados já obtidos através do acesso a esse telemóvei e os dados de tráfego e localização do telemóvei apreendido cuja obtenção o Tribunal a quo determinou, permitem apontar claramente no sentido de dois suspeitos, de características fisionómicas bem individualizadas, com aparente uso de um dado telemóvei e de pseudónimos de redes sociais, e em breve com um conjunto de percursos também conhecido. 22. Ora, todos os elementos em causa, se conjugados com os dados celulares cuja obtenção foi indeferida, levarão indubitavelmente a uma identificação positiva e concreta dos suspeitos do crime. 23. Bastará, de resto, verificar qual o trajecto percorrido pelo indivíduo que transportava o telemóvei apreendido, confirmar que outro número realizou o mesmo percurso no mesmo intervalo horário, para ficar claro quem serão os dois suspeitos, que percurso fizeram para chegar ao local do crime, que percurso fizeram para se colocarem em fuga e eventualmente quanto tempo durou eventual vigilância realizada à casa dos ofendidos. 24. A diligência de prova em causa é essencial, não se logrando alcançar como poderá a investigação avançar, em tempo útil (a obtenção de dados junto de redes sociais é, por natureza, morosa, e o mais das vezes impossível) e com a possibilidade de evitar a prática de ilícitos de natureza similar pelos suspeitos do crime, redundando num mais que provável arquivamento do inquérito e consequente impunidade dos suspeitos. 25. Por outro lado, dentro da arquitectura de tensão dialéctica entre direitos fundamentais e perseguição criminal, o meio de obtenção de prova pretendido afectará de forma muito pouco significativa terceiros em relação à investigação, servindo em contrapartida para propiciar a perseguição criminal de um delito com considerável gravidade e que causou forte alarme social. 26. Em face de tudo quanto vem dito, o Tribunal a quo, ao decidir do modo descrito, violou o disposto nos arts. 2.2, alínea g); 9.2, n.9 1 e 9.2, n.9 3, alínea a) da Lei n.9 32/2008, de 17 de Julho, pelo que deverá o despacho recorrido ser revogado e substituído por douto acórdão que defira a pretensão do Ministério Público e ordene às operadoras que forneçam os dados de localização celular nos estritos termos referidos na promoção sobre a qual recaiu o despacho recorrido. Nestes termos, deverá o presente recurso merecer provimento, sendo o despacho recorrido revogado e substituído por douto acórdão que defira a pretensão do Ministério Público e ordene às operadoras que forneçam os dados de localização celular nos estritos termos referidos na promoção sobre a qual recaiu o despacho recorrido. * Nesta instância, a Ex.mª Procuradora-Geral Adjunta apôs o seu visto. * Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir. * 2. O presente recurso abrange o despacho datado de 16 de Setembro de 2020, na parte em que indeferiu a promoção do Ministério Público, de obtenção de dados de localização celular quanto aos aparelhos que se conectaram a um conjunto de antenas durante o hiato temporal relevante para o ilícito sob investigação. Por isso, definido pelas conclusões da motivação (cfr. artigos 412.º, n.º 1, e 417.º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal, e acórdão do STJ de 27.05.2010, www.dgsi.pt/jstj), o objecto do recurso centra-se nas questões relacionadas com os requisitos de admissibilidade de recolha de prova. * 3. Conhecidos os motivos da discordância do Ministério Público face à decisão judicial, importa conhecer as razões que levaram ao indeferimento parcial do pedido de obtenção de dados de localização celular, formulado pelo recorrente. Eis a reprodução do despacho impugnado: «Nos presentes autos investigam-se factos susceptíveis de consubstanciar a prática de crime de roubo agravado, p. e p. nos termos do disposto nos arts. 210.°, n.° 1 e 2.°, alínea b) do Código Penal, por referência ao art. 204.°, n.° 1, alínea d) e n.° 2, alíneas e) e f) do Código Penal. Veio o MP requerer que se ordene à operadora Altice que, relativamente ao número de telemóvel 9... (na posse de um suspeito) forneça a facturaçào detalhada, registo e listagem de trace-back (chamadas efectuadas-recebidas e mensagens enviadas-recebidas), com referência à respectiva localização celular (Base Transfer Station) e identificação de reencaminhamentos activos e respectiva origem e destino, relativamente ao período compreendido entre as 00h00 de 1 de Agosto de 2020 e as 23h59 de 31 de Agosto de 2020. Nos termos dos artigos 187°, n.°s 1 e 4 e 189°, n.°s 1 e 2 do CPP ordeno à operadora Altice, que relativamente aos cartão Sim identificado na promoção que antecede forneça as listagens da facturação detalhada de todas as chamadas efectuadas e recebidas, sms, mms, com inclusão da data, hora e duração das comunicações, registo e listagem de trace-back com indicação da respectiva localização celular e identificação de reencaminhamentos activos e respectiva origem e desdno, no período entre OOhOO de 1 de Agosto de 2020 e as 23h59 31 de Agosto de 2020. Mais veio o MP requerer que se ordene às operadoras móveis MEO, NOS e Vodafone que, no prazo de 10 (dez) dias, procedam à conservação e venham aos autos fornecer, em suporte digital PDF e Excel, informação sobre todos os telemóveis (IMEI’s e respecdvos cartões SIM) que funcionaram nos locais a que se reportam as células que indicou e nos períodos temporais indicados, sendo designadamente referentes à localidade da A,T e B. . Nos termos do artigo 189° do CPP, o disposto nos artigos 187° e 188° é correspondentemente aplicável às conversações ou comunicações transmitidas por qualquer meio técnico diferente do telemóvel designadamente correio electrónico ou outras formas de transmissão de dados por via telemática, mesmo que se encontrem guardadas em suporte digital e à intercepçào entre presentes. De acordo com o n.°2 do mesmo artigo a obtenção e junção dos dados sobre a localização celular ou de registos da realização de conversações ou comunicações só podem ser ordenadas ou autorizadas em qualquer fase do processo, por despacho do juiz, quanto a crimes previstos no artigo 187° e em relação às pessoas referidas no n.°4 do mesmo artigo. As pessoas referidas no artigo 187°, n."4 do CPP são os suspeitos, arguidos, pessoa que sirva de intermediário, relativamente à qual haja fundadas razões para crer que recebe ou transmite mensagens destinadas ou provenientes de arguido, ou vítima de crime. No caso dos autos, o MP pretendia que se ordenasse às operadoras o fornecimento de todos os cartões SIM e IME1S de pessoas (suspeitas ou não que, entre outras coisas, tivessem o seu telefone ligado numa área que abrangeria vários locais de Tires, Abóboda e Bairro da Pedra, em determinado dia e hora. O MP não sabe identificar os suspeitos. O que o MP requer não tem fundamento legal e esbarra no artigo 187°, n.°4 do CPP, razão pela qual se indefere, sem mais considerações». * Conforme decorre dos artigos 262.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal e 1.º da Lei n.º 49/2008, de 27 de Agosto (a designada Lei de Organização da Investigação Criminal), na nossa lei processual penal, o inquérito abrange as diligências destinadas a investigar a existência de um crime, com vista a determinar o seu agente ou agentes, e a respectiva responsabilidade, descobrindo e recolhendo as provas que permitam decidir sobre a acusação. Sempre que haja notícia de um crime (ou melhor, de factos susceptíveis de constituir crime), inicia-se um inquérito que se destina, justamente, à descoberta, recolha e, sempre que tal for possível, à verificação e comprovação dos factos que condicionam a aplicação posterior do direito, verificação que, para efeitos de prosseguimento do processo criminal, há-de consistir na sua demonstração feita por meio de provas. A procura e recolha das provas e, essencialmente, a conservação de todos os elementos probatórios que forem apurados constitui a finalidade precípua do inquérito, com vista à dedução da acusação e posteriormente à prova directa, em julgamento, dos factos que integram essa acusação, de forma a desembocar na decisão condenatória. Nesta fase obrigatória (a fase de investigação) do processo comum, a aquisição da prova incumbe ao dominus do inquérito, o Ministério Público, mas a realização de determinadas diligências probatórias, ou são realizadas pelo juiz de instrução, ou têm que ser, previamente, ordenadas ou autorizadas por este. Assim acontece com a intercepção, gravação ou registo de conversações ou comunicações, nos termos dos artigos 187.º e 189.º que, de harmonia com o disposto no artigo 269.º, n.º 1, al. e), do Cód. Proc. Penal, dependem de ordem ou autorização do juiz. Está bom de ver que, com essa diligência, agride-se a esfera de realização da personalidade individual, pois implica uma intromissão na vida privada que pode contender com o direito à privacidade constitucionalmente garantido e protegido. A luta contra a criminalidade organiza-se tipicamente através da limitação de direitos fundamentais. Aliás, a protecção dos direitos e garantias só é pensável e exequível à custa da sua própria e inevitável limitação e restrição. A busca da verdade material é, no processo penal, um dever ético e jurídico, mas o Estado, como titular que é do ius puniendi, também está interessado em que só os culpados de actos criminosos sejam punidos (satius esse nocetem absolvi innocentem damnari). É quase um lugar-comum dizer-se que a verdade material não pode conseguir-se a qualquer preço: há limites decorrentes do respeito pela integridade moral e física das pessoas; há limites impostos pela inviolabilidade da vida privada, do domicílio, da correspondência e das telecomunicações, que só nas condições previstas na lei podem ser transpostos. Componente essencial do princípio do Estado de Direito é a ideia de justiça, a qual exige também a manutenção de uma administração de justiça capaz de funcionar, devendo reconhecer-se as necessidades irrenunciáveis de uma acção penal eficaz e acentuar-se o interesse público numa investigação da verdade, o mais completa possível, no processo penal, sendo o esclarecimento dos crimes graves tarefa essencial de uma comunidade orientada pelo aludido princípio. Em contraponto, como acentua a doutrina (Manuel da Costa Andrade, “Sobre as proibições de prova em processo penal”, Coimbra, 1992, p. 117) existem “limites intransponíveis à prossecução da verdade em processo penal”, que decorrem do reconhecimento de que “quando em qualquer ponto do sistema ou da regulamentação processual penal, esteja em causa a garantia da dignidade da pessoa – em regra do arguido, mas também de outra pessoa, inclusive da vítima –, nenhuma transacção é possível. A uma tal garantia deve ser conferida predominância absoluta em qualquer conflito com o interesse – se bem que, também ele legítimo e relevante do ponto de vista do Estado de direito – no eficaz funcionamento do sistema de justiça penal” (Figueiredo Dias, “Para uma reforma global do processo penal português. Da sua necessidade e de algumas orientações fundamentais”, in Para Uma Nova Justiça Penal, Coimbra, 1983, p. 207). Iniludível é, pois, a existência de uma tensão incontornável entre “dois princípios ético-jurídicos fundamentais: o princípio da reafirmação, defesa e reintegração da comunidade ético-jurídica – i. é, do sistema de valores ético-jurídicos que informam a ordem jurídica, e que encontra a sua tutela normativa no direito material criminal –, e o princípio do respeito e garantia da liberdade e dignidade dos cidadãos, i. é, os direitos irredutíveis da pessoa humana” (Castanheira Neves, “Sumários de Processo Criminal”, 1967-1968). Como em adequada síntese refere João Conde Correia [Revista do Ministério Público, n.º 79, 45]: “A máxima protecção dos direitos fundamentais colocaria barreiras intransponíveis à descoberta da verdade e, em consequência, à realização da justiça, e a busca da verdade a todo o custo eliminaria os mais elementares direitos, conduzindo a uma mistificação da justiça. Este conflito revela-se, em toda a sua amplitude, de forma exponencial, no domínio dos meios de prova e de obtenção da prova. Com efeito, o interesse punitivo do Estado e a plêiade de métodos, tendentes a determinar a existência de um facto ilícito, a punibilidade do seu autor e a determinação da pena ou medida de segurança aplicáveis, dada a natureza das coisas, podem afrontar, de forma grave e irreversível, os direitos fundamentais inerentes a um ser livre e digno”. O primado da reserva da vida privada, de que o princípio da inviolabilidade dos meios de comunicação privada, designadamente das telecomunicações, é uma das garantias, face às necessidades da justiça penal na procura da verdade, tem de recuar quando, à luz do princípio de proporcionalidade, a ponderação com o significado do direito fundamental de respeito pela dignidade humana e o livre desenvolvimento da personalidade faz emergir prevalecentes necessidades da justiça criminal, que exigem a admissibilidade da recolha, produção e valoração do meio de prova. No âmbito do processo penal (e só neste) é legalmente admissível a restrição àquele direito, permitindo-se a intercepção e gravação de conversações ou comunicações telefónicas verificados que sejam os pressupostos estabelecidos nos artigos 187.º e 188.º do Cód. Proc. Penal. O artigo 189.º do mesmo compêndio normativo torna extensivo o regime das escutas telefónicas ali definido: - às conversações ou comunicações transmitidas por qualquer meio técnico diferente do telefone, designadamente correio electrónico ou outras formas de transmissão de dados por via telemática; - às comunicações entre presentes; - à obtenção e junção aos autos de dados sobre a localização celular ou de registo de realização de conversações ou comunicações. A matéria extremamente sensível das escutas telefónicas foi uma das que sofreu alteração mais extensa e minuciosa, na reforma introduzida no Código de Processo Penal pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, aproveitando o legislador para corrigir alguns pontos que vinham a ser controvertidos, sobretudo no domínio da sua conformidade com a Constituição da República Portuguesa (CRP), e para regular novos aspectos relacionados com novas áreas problemáticas. Não deve suscitar estranheza esta insatisfação do legislador relativamente à regulação de tal matéria, que vinha já sendo objecto de pontuais modificações e inovações, pois as escutas telefónicas têm uma articulação muito estreita com áreas muito sensíveis dos direitos fundamentais, como sejam os da reserva da intimidade da vida privada e familiar, do direito à palavra e da inviolabilidade das comunicações (arts. 26.º e 34.º, n.ºs 1 e 4 da CRP). Daí a afirmação de COSTA ANDRADE, um dos nossos tratadistas mais proeminentes no estudo sistemático e pioneiro da matéria em foco, de que «(…) as escutas telefónicas se mostr⌠am⌡particularmente rebeldes à pretensão de verter em forma de lei positivada uma qualquer disciplina generalizadora e acabada.» («Sobre O Regime Processual Penal Das Escutas Telefónicas», Revista Portuguesa de Ciência Criminal(RPCC), Ano 1.º, fascículo 3.º, p. 377 e Sobre As proibições De prova Em Processo Penal, Coimbra Editora, p. 280 ). Acresce que as escutas telefónicas, como meio de obtenção de prova particularmente intrusivo, caracterizando-se pela intromissão na intimidade da vida privada e familiar, na correspondência e na comunicação por meio da palavra falada, e acarretando, por isso, uma elevada e expansiva danosidade social, do ponto de vista desses direitos fundamentais, estão conexionadas, de modo particularmente intenso, com o regime das proibições de prova, nas modalidades de proibição de produção e (ou) de utilização. «Não fossem os condicionalismos rigorosos que o tornam admissível, dir-se-ia ser mesmo um meio de obtenção de prova desleal, contrário mesmo ao cerne do processo penal» (JOSÉ MOURAZ LOPES, «Escutas telefónicas: seis teses e uma conclusão», Revista do Ministério Público, Ano 126, n.º 104 – OUT/DEZ 2005). O regime das escutas é, por isso, o sismógrafo do sistema processual penal, na expressão de Maria de Fátima Mata-Mouros, devidamente adaptada de outros tratadistas (“Escutas Telefónicas – O Que Não Muda Com A Reforma”, Revista do CEJ, 1.º semestre de 2008, número especial). Um regime necessariamente fragmentário, descontínuo, reclamando um trabalho em filigrana e uma «intervenção co-criadora da jurisprudência», segundo COSTA ANDRADE (ob. e loc. citados). A evolução legislativa que tem marcado a regulação desta matéria tem sido pontual, como se disse, com excepção da reforma de 2007, que procurou responder mais detalhadamente à delicada e complexa problemática que ela suscita (sobre a evolução legislativa, antes dessa reforma, veja-se o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 462/05, de 25/08/2005, DR 2.ª S. de 5/12/2005, que faz uma análise exaustiva dessa legislação desde a redacção originária dos artigos 187.º e 188.º do CPP, e, na sua esteira, o Acórdão do mesmo Tribunal n.º 4/2006, de 3/01/2006, publicado no DR, 2.ª S. de 14/02/2006, aliás ambos do mesmo Relator: Juiz-Conselheiro Mário José de Araújo Torres). Dado o alto teor de danosidade social que o caracteriza, o legislador teve, desde o início, a preocupação de traçar com rigor os apertados pressupostos e delinear os princípios estruturantes deste meio de prova, que, consensualmente e não só entre juristas (veja-se, entre outros, o sociólogo JEAN ZIEGLER, Os Senhores Do Crime, edição Terramar, capítulo 5.º), se tem entendido ser imprescindível, nesta era da criminalidade organizada, para a descoberta de determinados crimes, mas sem postergar ou anular os direitos fundamentais atingidos por tal meio. Estes só devem ser sacrificados excepcionalmente, quando tal se mostre necessário (por falta de outro meio) à prevenção e investigação desses crimes, e apenas enquanto houver necessidade de lançar mão dele, revelando-se esse meio como adequado e proporcional, o que envolve forçosamente uma ponderação dos bens e direitos em conflito. No entanto, há diferenças a assinalar, podendo dizer-se que o regime da obtenção dos dados de localização celular ou de registo da realização de conversações ou comunicações diverge do regime das escutas telefónicas em dois pontos e coincide em outros tantos. Divergem na medida em que o juiz só autoriza (e não ordena) as escutas e só o fará a requerimento do Ministério Público na fase de inquérito, ao passo que a obtenção e a junção aos autos de dados de localização celular ou dos referidos registos pode ser ordenada ou autorizada pelo juiz em qualquer fase do processo. Coincidem quanto à existência de um catálogo fechado de crimes e de um catálogo restrito de pessoas em relação aos quais é possível lançar mão destes meios de obtenção de prova. Não se suscitando qualquer dúvida de que se indicia a prática de um crime do catálogo, interessa que nos foquemos no âmbito subjectivo das escutas (e, portanto, também da obtenção dos dados de localização celular ou de registo da realização de conversações ou comunicações) e especificamente num dos alvos possíveis: o suspeito da prática do crime que se investiga. Importa recordar que antes da revisão do CPP operada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, o âmbito subjectivo da intercepção e gravação de conversações ou comunicações telefónicas não estava delimitado como agora resulta do n.º 4 do artigo 187.º e por isso qualquer pessoa podia ser alvo dessa diligência. Houve o claro propósito de restringir a admissibilidade da referida diligência de recolha de prova a “um leque de pessoas que, em abstracto, se movem num quadro relacional próximo do crime, sendo suspeitos ou arguidos, ou por terem uma relação social próxima do agente do crime” [Cfr. Carlos Adérito Teixeira, “Escutas telefónicas: a mudança de paradigma e os velhos e os novos problemas” in Revista do CEJ, 1.º semestre de 2008, número 9 (especial), p. 247.]. Por outro lado, é pacífico o entendimento de que, quando se trata de interpretar e aplicar normas restritivas de direitos fundamentais, o critério interpretativo não pode deixar de ser aquele que assegure a menor compressão possível dos direitos afectados, ou seja, a restrição do direito fundamental em causa há-de limitar-se ao estritamente necessário à salvaguarda do interesse (também constitucionalmente tutelado) na descoberta de um concreto crime e na punição do(s) seu(s) agente(s). A questão que se coloca no recurso interposto pelo Ministério Público, tem a ver com a densificação da noção de suspeito. Para compreensão do que se deva entender como suspeito, o ponto de partida deverá sempre ser a definição legal prevista no art. 1º, alínea e) do Código de Processo Penal, que identifica o suspeito como "toda a pessoa relativamente à qual exista indício de que cometeu ou se prepara para cometer um crime, ou que nele participou ou se prepara para participar". A referida definição, pela sua amplitude e pela falta de especificação do quantum de indiciação necessário para a sua existência, não é suficiente para servir de base ao conceito de suspeito para os efeitos que ora nos interessam. E perante essa insuficiência, a jurisprudência, considerando também as especificidades da obtenção de dados de localização celular, tem refinado o conceito em causa, entendendo que o suspeito não tem de ser alguém já identificando, mas tão- só identificável. No caso presente, o Ministério Público defende que o legislador processual penal estabeleceu um catálogo fechado de visados pela obtenção de dados de localização celular, entre os quais se conta o suspeito, na acepção do art. 1°, alínea e) do Código de Processo Penai, a qual foi densificada pela jurisprudência como correspondendo a um suspeito identificável (conclusão 8), mas a identificabilidade aponta para uma susceptibilidade futura e dotada de razoável previsibilidade, de obter uma identificação positiva do agente do crime, a qual não se basta com atentar nos dados identificativos já conhecidos, havendo que considerar também os dados identificativos que previsivelmente poderão vir a ser obtidos com outras diligências a realizar, nas quais se inclui a própria obtenção de dados de localização celular (conclusão 9) ou, dito de outro modo, se, da conjugação com os dados identificativos já obtidos nos autos com aqueles que previsivelmente possam vir a ser obtidos com os dados de localização celular for possível, com razoável expectativa, antever que será possível chegar a uma identificação de um suspeito, então é forçoso concluir que o suspeito será identificável (conclusão 10). Neste sentido, e entre muitos outros arestos, menciona-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, citado pelo recorrente, proferido no âmbito do processo n.s 153/18.1JAPRT-A.P1, datado de 26-09-2018 e disponível em www.dgsi.pt, no qual se refere, para além do mais, o seguinte: "A referida questão tem sido alvo de tratamento no seio da jurisprudência, a qual, maioritariamente, nos remete para a solução vertida no despacho recorrido e que, de resto, cita dois arestos a título mera mente exemplificativo. Deste sentir jurisprudencial decorre que inexistindo suspeito ou arguido não poderá "monitorizar-se" um número indeterminado de suspeitos, o que significa que, tal como é referido no despacho recorrido, não pode pretender-se a identificação do suspeito através dos registos de eventos de rede, quando a lei prevê precisamente o oposto, isto é, que exista já um suspeito para que os ciados possam ser recolhidos. Concorda-se inteiramente com esta ilação, a qual, de resto, foi já igualmente sustentada em acórdão proferido pela aqui Adjunta no âmbito do processo n- 3454/17.2JAPRT-A.P1 proferido em 11/04/2018, inédito. Porém, ali se alertava já que "... a doutrina e jurisprudência têm sustentado o entendimento de que não será necessário conhecer os dados de identificação civil da pessoa visada mas terá, pelo menos, que ser uma pessoa concreta, passível de individualização. Quer dizer, não se exigindo a determinação da pessoa impõe-se que seja determinável". Daqui decorre que uma coisa é um processo correr termos contra incertos e coisa diversa é o mesmo conter já algum suspeito ou suspeitos que carecem apenas de ser identificados. É certo que a diligência que se pretende vai abranger outras pessoas que pudessem estar presentes nas imediações, mas a mesma não é direcionada para essas pessoas, mas apenas para o suspeito já existente, cuja conduta é circunscrita a uma específica hora e local e, ademais, correlacionada com o seu indiciado e específico comportamento, o que, logicamente, vai conduzir ao natural afastamento de quem assuma condutas perfeitamente distintas, já que inseridas numa normalidade vivencial que as destrinça, ao que acresce o facto de não estar aqui em causa a determinação dos suspeitos do crime, mas apenas qual o número de telefone e IMEI do suspeito já determinado, mas ainda não concreta mente identificado. E aqui, e tal como anotava o recorrente, é bom relembrar que as informações recolhidas que nos afastem do referenciado suspeito deverão ser eliminadas, tal como sucede com a não transcrição de escutas que nenhum interesse revelem para a descoberta da verdade, ou porque os visados nada tenham que ver com a matéria em investigação, ou porque, mesmo no casos de os visados serem suspeitos ou até já arguidos, respeitam a assuntos das suas vidas privadas em nada interferentes ou relacionados com o objeto da investigação. Sem esquecer, obviamente, como também alega o recorrente, que em boa parte das escutas apenas se conhece um número de telefone e/ou a alcunha de alguém alegadamente suspeito da prática de um crime e tal não obsta a que se proceda à interceção de comunicações, devendo relembrar-se ainda que nesta não é apenas escutado o visado, mas todas as pessoas para quem o mesmo telefone ou as que também lhe telefonem, logo, um conjunto indeterminado de possíveis sujeitos sem uma qualquer relação com o suposto crime. Assim sendo, e dado o completo paralelismo, limitar-nos-emos a aderir a um recente acórdão proferido neste tribunal[4], no qual se sustentou que "Esta diligência de prova não é lícita apenas para verificar a localização celular ou a realização de comunicações telefónicas por suspeitos cujo número de telemóvel e/ou IMEI se encontra já determinado. Ela também pode ser realizada para apurar o número de telefone e/ou IMEI de suspeitos já determinados mas cuja identificação completa ainda não é conhecida. O que releva para o efeito da verificação do requisito do artigo 187º nº 4 al a) é que o meio de prova vise diretamente a obtenção de dados sobre a pessoa suspeita e não sobre um conjunto de pessoas indeterminadas. No caso em apreço é evidente que a investigação não está direcionada para todas as pessoas que estiveram no local à hora do rebentamento da caixa ATM, mas sim para aqueles quatro ou cinco indivíduos já determinados e suspeitos do crime". Da vária jurisprudência dos Tribunais Superiores, é notória a existência de graus de exigência e especificação diversos, quanto ao critério objectivo do quantum de identificação necessário para se poder concluir pela existência de um suspeito identificável nos autos. Porém, a identificabilidade aponta para uma susceptibilidade futura e dotada de razoável previsibilidade, de obter uma identificação positiva do agente do crime. Se estamos perante uma identificação potencial e futura, tal significa que, com vista à verificação de identificabilidade, não basta atentar nos dados identificativos já conhecidos, havendo que considerar também os dados identificativos que previsivelmente poderão vir a ser obtidos com outras diligências a realizar, nas quais se inclui a própria obtenção de dados de localização celular, ou seja, se, da conjugação com os dados identificativos já obtidos nos autos com aqueles que previsivelmente possam vir a ser obtidos com os dados de localização celular for possível, com razoável expectativa, antever que será possível chegar a uma identificação de um suspeito, então é forçoso concluir que o suspeito será identificável. Este entendimento é sufragado, por exemplo, no caso sobre que incidiu o Acórdão da Relação do Porto de 11/02/2015, proc. 2063/14.2JAPRT-A.P1, Relator: Neto de Moura (disponível em www.dgsi.pt), onde se defende, também, que o suspeito de um crime não tem de ser completamente identificado ou individualizado bastando que seja pessoa determinável ou identificável, porém, como se observa naquele aresto, se os dados de localização celular que se pretendem obter não tem como alvo um suspeito, mas um conjunto de pessoas não identificadas e unidas apenas pelo simples facto de estarem num dado local num dado momento não é admissível a obtenção de dados de localização celular relativos a um número indeterminado de pessoas «(…) Se o Código de Processo Penal estabelece que, para efeitos do que nele se dispõe, “suspeito” é “toda a pessoa relativamente à qual exista indício de que cometeu ou se prepara para cometer um crime, ou que nele participou ou se prepara para participar” (artigo 1.º, al. e)), é a partir da definição legal que poderemos chegar a uma conclusão sobre como densificar (que elementos factuais é necessário estarem reunidos) este conceito, que tem ínsita a ideia de individualização ou determinação da pessoa sobre a qual recaem as suspeitas. Aceita-se, sem dificuldade, que para a individualização do(s) agente(s) do crime não é necessária uma indicação completa dos elementos identificadores, não tem que haver uma identificação rigorosa, precisa do suspeito. Temos para nós que, para tanto, basta que seja pessoa determinável ou identificável. Ora, identificável é a pessoa que possa ser identificada directa ou indirectamente, designadamente por referência a um número de identificação ou a um ou mais elementos específicos da sua identidade física, fisiológica, psíquica, económica, cultural ou social. Por isso que dizer que os suspeitos são indivíduos do sexo masculino, que tinham na cabeça um capacete de protecção integral, de cor preta, e, debaixo deste, um passa montanhas preto, com dois orifícios na zona dos olhos, usavam luvas de cor preta e que um deles era jovem, magro, com cerca de 1,75 m de altura, trajava calças de ganga azul claro e era portador de uma mochila com a inscrição "EAST PACK" e que o outro era de compleição forte, com cerca de 40 anos, vestia blusão de cor escura e “falava correctamente português e sem sotaque característico” (cfr. conclusão V) não permite identificação alguma. Numa eventual diligência de reconhecimento pessoal, se correctamente realizada, é óbvio que, com esses dados, nunca o ofendido lograria identificar os autores do roubo. Daí que a diligência de obtenção de prova que a autoridade policial, com o beneplácito do Ministério Público, pretende levar a cabo não tem por alvo uma pessoa concreta sobre a qual recaiam suspeitas da prática do crime em investigação, mas antes um leque, mais ou menos, alargado de pessoas que, sendo detentoras de telemóveis que estavam ligados e tendo por isso activado as células identificadas a fls. 26 e 27 destes autos, podem nada ter a ver com a prática do crime, mas são erigidas à categoria de suspeitos pela simples circunstância de estarem no local e no momento do cometimento do roubo. Se “a existência de um catálogo de alvos obsta à determinação de escutas telefónicas em processo contra incertos” e se “o legislador pretendeu que a autorização judicial tivesse por referência as conversações mantidas por pessoas concretas, ainda que não seja conhecida a sua identidade civil”, pelo que “são inadmissíveis as escutas determinadas a grupos de pessoas cujo único traço comum é o de ocuparem habitualmente ou esporadicamente um determinado espaço físico” (Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal”, 2.ª edição actualizada, UCE, 509-510), por identidade de razão (é, ainda, o direito à reserva da vida privada que está em causa) não será admissível a obtenção dos dados de localização celular ou de registo da realização de conversações ou comunicações relativos a um número indeterminado de pessoas. Se a lei estabelece um catálogo fechado de alvos ou visados, não é legal qualquer pretensão que só ignorando o requisito legal poderá ser satisfeita. No entanto, é isso que pretende o recorrente ao requerer (e depois insurgir-se contra a decisão que indeferiu o requerimento) que sejam solicitados dados de tráfego e de localização celular que, inevitavelmente, abrangeria um grupo, mais ou menos, numeroso (e, seguramente, um número indeterminado) de pessoas que assim veriam devassada a sua privacidade garantida pelo sigilo das telecomunicações. E, como se refere no já citado acórdão da Relação de Évora de 30.09.2010, no limite, todas essas pessoas podem ser alheias aos factos noticiados. É, pois, no mínimo, duvidoso que a diligência de obtenção de prova em causa se revele, em concreto, um meio adequado a imediatizar o resultado almejado, ou seja, a descoberta dos autores do crime de roubo cometido, mas não podem restar grandes dúvidas que se revela excessiva (logo, desproporcionada) face às finalidades visadas». . Tal como o recorrente, não perfilhamos deste entendimento, o qual foi seguido no despacho recorrido, e que passa por considerar que a lei não permite, de todo e em abstracto, que sejam obtidos, para efeitos de investigação criminal, dados de localização celular, onde se incluam listagens de todos os telemóveis que se ligaram a determinadas antenas, sejam ou não suspeitos. Seguindo de perto Duarte Rodrigues Nunes, in Da admissibilidade da obtenção de dados de localização celular ou de dados de tráfego de todos os telemóveis/cartões que accionaram um determinado conjunto de antenas/células de telecomunicações no lapso de tempo em que o crime sob investigação terá sido praticado, para posterior identificação dos seus autores, Revista do Ministério Público, Ano 40, n.s 157, pp. 137-138 (obra citada pelo recorrente), “na verdade, a obtenção dos dados de tráfego e/ou de localização celular não é dirigida contra as pessoas que se encontram naquele local no momento em que os factos terão sido praticados, mas sim contra os autores do crime ainda não identificados (daí o recurso à obtenção de tais dados), mas identificáveis (podendo a identificação resultar desta diligência ou de outras cuja realização ela venha a possibilitar), sendo que os Tribunais têm entendido, com razão, que o suspeito não tem de estar já identificado, bastando que seja uma pessoa identificável”. Com efeito, nenhum problema suscita o facto de a diligência requerida afectar pessoas diversas dos suspeitos investigados, dado que a mesma não é direccionada a essas pessoas e a simples análise dos dados obtidos será suficiente para descortinar condutas criminógenas das demais – neste sentido cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 03-12-2019, proferido no âmbito do processo n.º 199/19.2GAFAL-A.E1 e disponível em www.dgsi.pt. Como resulta da promoção sobre a qual recaiu o despacho recorrido, o Recorrente referiu: "As diligências já realizadas permitiram apurar que os factos terão sido praticados por dois suspeitos, a saber: a) Um indivíduo do sexo masculino, de raça branca, aparentando cerca de 30 anos, com estatura de cerca de l,80m, compleição magra, trajando um casaco de fato-de-treino todo vermelho, dizendo "Benfica" nas costas, e expressando-se em língua portuguesa sem sotaque estrangeiro; b) Um indivíduo do sexo masculino, de raça branca mas com tez amorenada, aparentando cerca de 35 anos, com estatura de cerca de l,70m, compleição forte, face redonda, cabelo escuro e expressando-se em língua portuguesa, mas com sotaque brasileiro. Mais se apurou que um dos suspeitos traria consigo um telemóvel, com o número telefónico 9..., e que os suspeitos utilizarão as contas de Instagram "X" e "Y"." Não foi oferecida a identificação civil dos suspeitos, aliás desconhecida, mas foram fornecidos abundantes dados identificativos dos dois suspeitos. Porém, como foi já referido e resulta da jurisprudência acima referida, a lei não exige que o suspeito seja identificado cabalmente, através dos seus dados de identificação civil, mas antes que seja identificável. Ora, como bem observa o Digno recorrente, o despacho recorrido revela que o Tribunal a quo exige um suspeito identificado, ao invés de identificável, o que é manifestamente contraditório com a melhor e mais recente doutrina e jurisprudência sobre a matéria, além de constituir uma posição que esvazia de qualquer sentido útil a obtenção de dados de localização celular conservada (diligência que tem, como uma das grandes utilidades, precisamente permitir a individualização e concretização de suspeitos identificáveis). A identificabilidade do sujeito deverá assim considerar sempre todas as diligências probatórias ainda não realizadas que, hipoteticamente, poderão contribuir para a materialização desse potencial. Não entender desta forma, considerando que apenas poderão relevar os dados identificativos já apurados nos autos, levará o aplicador do Direito a incorrer em manifesta contradição: com efeito, admitirá, por um lado, que não é exigível um suspeito identificado, mas antes identificável; mas por outro lado, considerará apenas os dados identificativos presentes para aferir uma realidade potencial e futura, sem ponderar os desenvolvimentos possíveis da investigação. Por outro lado, como bem salienta o recorrente, o despacho recorrido padece de manifesta contradição, dado que, pese embora refira que não são identificados suspeitos e que tal constitui fundamento para indeferir parte da promoção do Ministério Público, não deixou de deferir o pedido de obtenção de dados celulares quanto ao telemóvel apreendido no local do crime - os dados identificativos dos suspeitos bastam para uma promoção e para outra já não bastam? Aqui chegados, deve salientar-se que não se deve olvidar que estão em causa factos de elevada gravidade, traduzidos na prática de crime de roubo agravado, por indivíduos altamente violentos e perigosos, armados com arma de fogo e arma branca, e que actuaram sobre pessoas de idade avançada e, logo, especialmente vulneráveis. São assim superlativas as exigências de mobilização do sistema de prevenção e repressão criminal quanto ao crime em causa, sob pena de poderem vir a replicar-se factos de idêntica natureza, com eventuais consequências mais funestas. Em termos probatórios, a conjugação dos dados fisionómicos dos suspeitos, fornecidos pelos ofendidos, com o telemóvel encontrado no local do crime e os dados já obtidos através do acesso a esse telemóvel, permitem apontar claramente no sentido de dois suspeitos, de características fisionómicas bem individualizadas e com aparente uso de um dado telemóvel e de pseudónimos de redes sociais. A esses elementos, haverá que juntar os dados de tráfego e localização relativos ao telemóvel apreendido, os quais o Tribunal a quo deferiu (ainda que, em rigor, os fundamentos subjacentes a ambas as pretensões fossem os mesmos). Ora, todos os elementos em causa, se conjugados com os dados celulares cuja obtenção foi indeferida, levarão indubitavelmente a uma identificação positiva e concreta dos suspeitos do crime. Bastará, de resto, verificar qual o trajecto percorrido pelo indivíduo que transportava o telemóvel apreendido, confirmar que outro número realizou o mesmo percurso no mesmo intervalo horário, para ficar claro quem serão os dois suspeitos, que percurso fizeram para chegar ao local do crime, que percurso fizeram para se colocarem em fuga e eventualmente quanto tempo durou eventual vigilância realizada à casa dos ofendidos. É certo que a obtenção de dados de localização celular restringe os direitos de intimidade, privacidade e desenvolvimento da personalidade, mas fá-lo de forma muito pouco significativa, inclusivamente menos intensiva que meios de obtenção de prova sujeitos a regimes menos rigorosos, como sejam as vigilâncias policiais e a obtenção de imagens de videovigilância. Esta conclusão comporta consequências também no plano do potencial desse meio de obtenção de prova para atingir um universo ilimitado de pessoas sem relação com os factos sob investigação. Tal leva a que se deva considerar a diligência como desproporcionada e lesiva dos direitos fundamentais desses indivíduos? Entendemos que a resposta deverá ser negativa, dado que não sendo visados pela diligência em causa, será simples distingui-los dos suspeitos e o Tribunal poderá determinar a destruição dos dados em causa. Como exemplarmente fundamenta o recorrente “… se o potencial invasivo intrínseco desse meio de obtenção de prova é manifestamente diminuto, sê-lo-á ainda menos para as pessoas que não sejam de interesse para a investigação. Isto porque, além de permitir apenas informações em grosso sobre o paradeiro e eventual trajecto dessas pessoas, todos os dados que não sejam respeitantes aos agentes do crime serão necessariamente destruídos, atento o disposto no art. 188º, nº 6 do Código de Processo Penal, aplicado por remissão do art. 189º, nº 2 do mesmo diploma (no caso dos dados de localização celular em tempo real), e atento o disposto no art. 11º, nº 1 da Lei nº 32/2008, de 17 de Julho (no caso dos dados de localização celular conservada). E, dados os concretos factos sob investigação e os concretos locais de interesse para a investigação, será na maioria das vezes muito simples discernir entre os comportamentos telefónicos/celulares relevantes para a investigação e aqueles que são inócuos, e logo sem relação com os factos sob investigação. Deve ainda notar-se que mesmo as intercepções telefónicas, incidindo em comunicações bilaterais entre indivíduos diversos, apenas se centram em uma das pessoas que compõem esse binómio comunicacional, acabando contudo por afectar todas as outras pessoas que contactam com o visado. O mesmo é dizer que, mesmo quando o legislador estabelece um elenco restrito de indivíduos que possam ser visados com um meio de obtenção de prova intrusivo, não deixa de se verificar que terceiros sem qualquer relação com os factos sob investigação venham a ser afectados. Aliás, na hipótese de ser colocado sob escuta um telefone público (possibilidade que a lei processual penal não proíbe), esse potencial de afectação é ainda mais potenciado. Também nas já referidas situações das imagens de videovigilância ou das vigilâncias existe um universo potencialmente infindável de pessoas afectadas por tais diligências, sem que alguma vez se tenha discutido a licitude ou proporção dessa afectação circunstancial. Mais: é permitido que os dados de tráfego e localização possam ser conservados e processados pelas operadoras para efeitos de facturação dos seus serviços (ou seja, para a prossecução de finalidades de natureza estritamente jurídico-civil), sinal sintomático de que a sua conservação enquanto dados pessoais é perspectivada como pouco significativa. Perante a existência de outros exemplos de meios de obtenção de prova ou meios de prova com o potencial de afectar (o que é diferente de visar) um universo potencialmente ilimitado de indivíduos, e perante a possibilidade de dados de localização celular serem utilizados para finalidades jurídico-civis, cremos que o argumento da grande afectação de terceiros pela junção de dados de localização celular a um processo penal não é tão impressivo como certa jurisprudência faz crer”. É fundamental que existam motivos e razões de convencimento por parte do juiz competente, para crer que a diligência requerida de obtenção de dados de localização celular, se revelará de grande interesse para a descoberta da verdade ou da prova – que de outra forma seria impossível ou muito difícil de obter – porquanto, "no caso de se tratar de crimes graves, dificilmente se poderá negar a proporcionalidade de uma tão pouco intensa restrição de direitos fundamentais em prol da investigação criminai de tais crimes, sobretudo se inexistirem outros meios de identificar os autores dos crimes, como parecia ser o caso em todos os arestos que encontrámos. E, por isso, será dificilmente aceitável que, num Estado de Direito, que se comprometa a perseguição penal de crimes tão graves apenas para não se levar a cabo uma restrição de direitos fundamentais tão pouco intensa" (Duarte Rodrigues Nunes, ob. cit., pp. 142-143). Não há pois dúvida que o meio de obtenção de prova pretendido seria útil e necessário para a investigação, não se logrando alcançar como poderá a investigação avançar, em tempo útil (a obtenção de dados junto de redes sociais é, por natureza, morosa, e o mais das vezes impossível) e com a possibilidade de evitar a prática de ilícitos de natureza similar pelos suspeitos do crime, redundando num mais que provável arquivamento do inquérito e consequente impunidade dos suspeitos. “Numa era de crescente evolução tecnológica, em que os agentes do crime se munem de artifícios sofisticados para despistar os investigadores, também se impõe que a estes sejam concedidos os meios que assegurem a eficácia da investigação, sempre em conformidade com os princípios da adequação e da proporcionalidade e numa ponderação casuística sobre a factualidade indiciária da prática do crime e da necessidade investigatória” - assim, José A. H. dos Santos Cabral, em anotação ao Art.º 187.º em Código de Processo Penal Comentado, 2014, Coimbra: Almedina, pp. 794, citado no Ac. Relação de Lisboa de 22-10-2014, Relator: Nuno Ribeiro Coelho. Num processo penal tão permeável a preocupações de defesa dos arguidos/suspeitos/denunciados, não poderemos deixar de perder de vista que a finalidade primeira desse processo continua a ser a perseguição de infracções criminais, como defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos e da comunidade que são lesados com essas infracções criminais, sendo certo que, como foi já salientado, o meio de obtenção de prova pretendido afectará de forma muito pouco significativa terceiros à investigação, servindo em contrapartida para propiciar a perseguição criminal de um delito com considerável gravidade e que causou forte alarme social. * 4. Em face do exposto, acordam os juízes desta 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que defira a pretensão do Ministério Público e ordene às operadoras que forneçam os dados de localização celular nos estritos termos referidos na promoção sobre a qual recaiu o despacho recorrido. Sem tributação. Lisboa, 3 de Novembro de 2020 Cid Geraldo Ana Sebastião |