Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1232/19.3PBFUN.L1-3
Relator: CRISTINA ALMEIDA E SOUSA
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
METADADOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: Mensagens escritas recebidas num telemóvel não são metadados, do mesmo modo que não são metadados as intercepções de conversações telefónicas, que sendo, por natureza um meio oculto de obtenção de prova, pois o seu sucesso depende exclusiva e directamente do desconhecimento por parte dos visados de que as suas comunicações telefónicas são objecto de intercepção, incidem directamente sobre o conteúdo das comunicações, em tempo real e para o futuro.

O regime jurídico inserto nos arts. 187º a 189º do CPP, rege sobre os pressupostos substanciais de admissibilidade das escutas telefónicas não foi minimamente afectado pela declaração de inconstitucionalidade decidida, com força obrigatória geral, pelo acórdão do TC n.º 268/2022.

Pese embora a remissão contida no nº 2 do art. 21º da Lei nº 112/2009, para o art 82º-A do CPP, não retire do âmbito dessa remissão a sujeição da decisão a contraditório prévio, neste caso especialíssimo, o contraditório tem-se por cumprido na própria defesa dirigida contra a acusação, já que, dada a natureza imperativa da fixação oficiosa da quantia pecuniária destinada a reparar os danos decorrentes do crime de violência doméstica, sofridos pela vítima, não há qualquer efeito surpresa para o arguido que resulte dessa decisão e as possibilidades de se fazer dirigida contra a acusação ou contra a pronúncia, no uso dos direitos processuais que integram o estatuto jurídico de arguido.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juizes, na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


I–RELATÓRIO


Por sentença proferida em 9 de Junho de 2023, no processo comum singular nº 1232/19.3PBFUN do Juízo Local Criminal do Funchal, Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, foi decidido condenar o arguido AC pela prática, em autoria material, na forma consumada de:
a)- 1 (um) crime de Violência Doméstica Agravado p. e p. pelo art. 152.° n.° 1 al. b) e n.° 2, al. a) do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão;
b)- suspende-se na sua execução a pena de prisão referida em a), pelo período de 3 (três) anos, condicionada a Regime de Prova, nos termos acima referidos.
c)- ao abrigo do disposto no artigo 152.°, n.° 4 do Código Penal, na pena acessória de obrigação de frequência de um programa de prevenção da violência doméstica e proibição de contactos com a ofendida, de forma directa ou indirecta, não podendo aproximar-se dela a distância inferior a 200 metros.

O arguido interpôs recurso desta decisão, tendo, para o efeito, formulado as seguintes conclusões:
I) O MP solicitou à Nos — Madeira, em Julho de 2019, “a faturação detalhada, designadamente o registo e tráfego de chamadas e traceback relativamente ao telemóvel da ofendida (….), mas com origem em telemóvel que se imputa ao arguido (….).
II) Por via disso, e na sequência dos elementos fornecidos pela NOS, foi inclusive ordenada em 12/07/2019, a abertura de um anexo (I), por via do grande número de extração das mensagens envidas pelo denunciado à ofendida.
III) A utilização de tal informação está contaminada pela declaração de inconstitucionalidade proferida no Acórdão do TC n.° 268/2022, de 19/04.
IV) O regime da Lei dos Metadados tem como âmbito de aplicação a obtenção de dados relativos ao passado, ou seja, conservados ou armazenados, em arquivo (cf. artigo 1.°, n.° 1 da Lei no 32/2008, de 17/07).
V) Não sendo deste modo entendido, podemos cair no âmbito da previsão dos artigos 187.° a 189.° do CPP que têm o seu campo de aplicação na interceção de comunicações, obtida em tempo real, a decorrer, entre presentes.
VI) Podemos também equacionar a aplicação, a este caso, do disposto no artigo 189° do CPP que prevê no seu n.° 1 que disposto nos artigos 187.° e 188.° é correspondentemente aplicável às conversações ou comunicações transmitidas por qualquer meio técnico diferente do telefone, designadamente correio eletrónico ou outras formas de transmissão de dados por via telemática, mesmo que se encontrem guardadas em suporte digital, e à interceção das comunicações entre presentes.
VII) O n.° 2 do referido artigo 189° exige que a obtenção e junção aos autos de dados sobre a localização celular ou de registos da realização de conversações ou comunicações só podem ser ordenadas ou autorizadas, em qualquer fase do processo, por despacho do juiz, quanto a crimes previstos no n.° 1 do artigo 187.° do CPP, e em relação às pessoas referidas no n.° 4 do mesmo artigo, o que não aconteceu no presente caso.
VIII) Pelo que padece de nulidade o não cumprimento do disposto nos artigos 187.°, 188.° e 189, todos do CPP, o que desde já se invoca para os devidos efeitos legais.
IX) Assim, independentemente se considerar aquela prova afetada pela declaração de inconstitucionalidade proferida no Acórdão do TC n.° 268/2022, de 19/04, temos por certo que, por esta outra via, a sentença do Tribunal a quo também nunca poderia ter utilizado como meio de prova o conteúdo das mensagens de equipamentos eletrónicos constantes do anexo I, uma vez que não foram especificadamente validadas, sendo assim serão nulas (artigo 126.0, n.°3, do Código de Processo Penal), o que também se invoca para os devidos efeitos legais.
X) Não obstante, caso se entenda legal a utilização das mensagens referidas, sempre se dirá que o arguido negou e a sua autoria, e as mesmas não provam que tenham sido o arguido a enviá-las, sendo insuficientes que se dêem como provados os factos de 6 a 13, não sendo ao arguido que incumbia apresentar qualquer prova, mais ou menos credível, da versão que apresenta sobre as mensagens, conforme é aventado na sentença.
XI) Razão pela qual, tendo a sentença recorrida ancorado a fundamentação dos factos provados de 6 a 13, em prova proibida por lei, está o mesmo aresto a cometer nulidade insanável, que afeta toda a sentença, sendo que tal vício conduz à nulidade da sentença nos termos dos artigos 374°/2 e 379°/l/a) do Código de Processo Penal.
XII) O exame crítico das provas que suportaram a convicção do Tribunal radica no facto de permitir aos sujeitos processuais e ao tribunal de recurso o exame do processo lógico ou racional que subjaz à formação da convicção do julgador, e das razões que levaram a que determinada prova tenha convencido o tribunal, bem como assegurando a inexistência de violação do princípio da inadmissibilidade das proibições de prova, o que não sucedeu na sentença recorrida.
XIII)  Independentemente dos vícios alegado supra, sempre se dirá que, no caso presente, sobre motivação probatória da decisão de facto, verifica-se que relativamente aos factos dados como provados e elencados de 6 a 13, os meios de prova indicados, as impressões de screenshots de mensagens, cuja autoria o arguido negou, são insuficientes para que se dê como provado que as mesmas foram remetidas, ou sejam da sua autoria.
XIV) Conforme consta dos autos, e corroborado pelas declarações do arguido, das testemunhas e da lesada, o arguido residiu com esta entre o período compreendido entre Setembro de 2018 (fr. facto 1 dos provados) a Abril de 2019, data em que este foi para a África do Sul, de onde terá regressado em finais de Maio de 2019.
XV) Consta dos autos que a ofendida apresentou queixa contra o arguido a 15/06/2019 presumindo-se que, pelo menos desde esta data, já não viviam juntos, sendo certo que a 19/06/2019 a ofendida até declarou perante o Magistrado do MP que era ex-companheira do arguido e que se tinha separado há uma semana (fr. págs. 2 e 3 in fine das declarações da queixosa prestada a 19/06/2019perante o Magistrado do MP),
XVI) Consta ainda que o arguido não tinha quaisquer antecedentes criminais com a idade de 61 anos, sendo certo que o arguido teimou em afirmar que foi ele que veio a abandonar a residência da ofendida em Abril de 2019, tendo como destino a África do Sul, onde regressou e casou posteriormente com a atual mulher em 04/10/2020 — cfr. relatório social junto aos autos.
XVII) Por outro lado, das declarações da própria ofendida, bem como de tudo o mais constante dos autos, resulta claro que o arguido nunca agrediu a ofendida fisicamente (cfr. pág. 2 in fine das declarações da queixosa prestada a 19/06/2019 perante o Magistrado do MP), sendo certo que terão vivido ambos pouco mais do que um período de seis meses (Setembro de 2018 a Março de 2019), uma vez que, desde Abril de 2019, separaram-se por iniciativa do arguido (cfr. pág. 3 in fine das declarações da queixosa prestadas a 19/06/2019 perante o Magistrado do MP), data em que este foi para a África do Sul.
XVIII) Pelo que considera o recorrente que a pena de prisão aplicada não deveria ter sido superior ao mínimo legal de dois anos, atendendo mesmo a todas as exigências de prevenção geral e especial, requerendo-se a redução da pena de prisão aplicada de três para dois anos, suspensa pelo mesmo período e sujeita às medidas acessórias tidas por convenientes.
XIX) A queixosa não peticionou qualquer indemnização, bem como não demonstrou em julgamento qualquer vontade nesse sentido, tendo,
XX) Para o arguido foi uma decisão surpresa a sua condenação na quantia de 1.000,00 €, sendo certo que ao arguido nunca foi dado o contraditório relativamente à possibilidade dessa condenação, conforme é aliás exigido pelo 82°-A/2 do C.P.P. (“2. No caso previsto no número anterior, é assegurado o respeito pelo contraditório.)”
XXI) O contraditório é um princípio básico, estruturante de todos os direitos processuais e procedimentos judiciais, decorrendo do mesmo que, salvo em casos excecionais, o Tribunal não pode decidir, sem que todas as partes tenham tido a oportunidade de se pronunciarem sobre a questão, sendo que ao arguido não foi dado, previamente, oportunidade para se pronunciar sobre a mesma, preterindo o Tribunal o princípio do contraditório.
XXII) A violação deste princípio não se subsume na previsão do artigo 122° do CPP, devendo antes ser enquadrada à luz do artigo 195° do CPC, aplicável subsidiariamente ao Direito Processual Penal, sendo geradora de nulidade processual se influir no exame ou na decisão proferida, o que é o caso, nulidade que também se invoca para os devidos efeitos legais.
XXIII) E porque aquela falta do cumprimento do contraditório influiu claramente no exame ou na decisão proferida, é geradora da nulidade da sentença no segmento IV) referente ao arbitramento de indemnização civil, o que desde já se invoca para os devidos efeitos legais - artigo 195°/1 do CPC.
XXIV) Resulta dos autos, fora do período em que a queixosa e arguido se relacionaram (Setembro de 1998 a Abril de 2019) ou até à data em que alegadamente se contactaram (início de Junho de 2019), inexistem relatos, ou queixas, que indiquem que o arguido tenha, por qualquer modo, ou via, tentado contactar com a queixosa.
XXV) Das declarações da queixosa prestadas a 19/06/2019 perante o Magistrado do MP constata-se que a mesma nunca foi agredida e até prescindiu da teleassistência e de qualquer outra medida de coação (cfr. págs. 3 e 4 in fine das declarações da queixosa prestada a 19/06/2019 perante o Magistrado do MP).
XXVI)Do Relatório Social que o arguido tem a sua vida estabilizada, tendo casado em 04/10/2020.
XXVII) Mais declarou a queixosa nos autos, até foi o arguido que abandonou a residência comum (cfr. pág. 3 in fine das declarações da queixosa prestada a 19/06/2019 perante o Magistrado do MP), razão pela qual, não se compreende a aplicação das medidas acessórias aplicadas pelo Tribunal, no termos do disposto no n.° 4 do artigo 152.° do Código Penal, designadamente a aplicação de pena acessória de sujeição do arguido à obrigação de frequência de programa específico de prevenção de violência doméstica, sempre se acrescentando que tal período, sem indicar especificamente qual, com o acompanhamento da DGRSP e medidas a que ficará sujeito no quadro do regime de prova a aplicar, lidar com a separação da ofendida e passar a respeitar a presente e futuras companheiras/os que venham a acontecer a que acrescerá a proibição de contactos com a ofendida, de forma directa ou indirecta, não podendo aproximar-se dela a distância inferior a 200 metros.
XXVIII) Além de não constar expressa a indicação do período pelo qual devem perdurar tais medidas acessórias, parece ao arguido que, estando separado da queixosa, desde meados de 2019, por iniciativa daquele, será inócua formação em finais de 2023, por forma a que aceite tal realidade passada, até porque o arguido desde aquela altura que está junto com a atual mulher, com que é casado desde Outubro de 2020.
XXIX) Também a imposta proibição de contactos com a ofendida, de forma directa ou indirecta, não podendo aproximar-se dela a distância inferior a 200 metros, a controlar pela DGRSP, cremos com o recurso a pulseira eletrónica, ou outros meios adequados, é atualmente desadequado, pois que, como já se referiu, não existem registos de quaisquer contactos do arguido com a ofendida desde meados de 2019.
XXX) E ao ser cumprida tal medida pelo arguido, será controlada pela DGRSP, seguramente com recurso a pulseira eletrónica, ou outros meios adequados, em finais de 2023, quando a própria lesada os rejeitou, por desnecessários ao prescindir da teleassistência e de qualquer outra medida de coação (cfr. pág. 3 in fine das declarações da queixosa prestada a 19/06/2019 perante o Magistrado do MP).
XXXI) O arguido crê que são desproporcionais e desadequadas ao caso concreto caso a penas acessória a que o arguido foi condenado, constantes do segmento VII) da Sentença recorrida, devendo, por isso, ser ordenada a sua revogação por esta Relação.
Nestes termos, deve ser declarada nula a sentença recorrida pelas razões e fundamentos aduzidos supra.
Caso assim não seja entendido, deverá ser reduzida a pena de prisão a que foi condenado o arguido de três para dois anos, suspensa na sua execução, sujeito ao regime de prova previsto.
Mais deve ser revogado pelo Tribunal da Relação a parte da sentença referente ao pedido de indemnização no montante de 1.000,00 €, arbitrado à queixosa pelo tribunal, por violação do princípio do contraditório, ou que seja anulado o julgamento, com o consequente o reenvio para novo julgamento.
Deverá ainda o Tribunal da Relação revogar a parte da sentença referente todas as penas acessórias a que o arguido foi condenado, constantes do segmento VII) da Sentença recorrida, por desproporcional e desadequada ao caso concreto.
Admitido o recurso, o Mº. Pº. apresentou resposta ao mesmo, concluindo nos seguintes termos:
1- Os recursos têm o seu objeto delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente na respetiva motivação, procurando remédio jurídico para erros praticados no processo.
2- O texto do Acórdão preenche os requisitos dos art.° 374.°, do CPP, incluindo enumeração dos factos, a indicação do lugar, do tempo e da motivação da prática dos mesmos, do exame crítico da prova e circunstâncias relevantes para aplicação de uma pena, não padecendo de qualquer nulidade mencionada no art.° 379.°, n.° 1, do mesmo diploma.
3- A convicção do tribunal assentou na ponderação de todos os elementos probatórios, declarações e documentos, incluindo registo policiais, e registos de mensagens contidas no telemóvel da vítima, ao abrigo do disposto no art.° 127.° do CPP, não tendo ficado quaisquer dúvidas no mesmo sobre o autor dos factos e a sua responsabilidade.
4- O recorrente conformou-se com a acusação, não invocou qualquer nulidade do inquérito, no tempo legalmente previsto, nem requereu a abertura de instrução para evitar a despronúncia sobre alguns dos factos, ou todos os factos imputados, aceitando a consequente submissão a julgamento por toda a factualidade indiciada e não requereu quaisquer meios de prova.
5- Em momento algum foi obtida prova em violação dos diretos do recorrente, nem foi solicitada a qualquer operadora de telecomunicações a interceção ou recolha de “dados de base”, ou outros, ao mesmo referentes, o que houve foi transcrição de mensagens contidas no telemóvel das ofendida, que a mesma disponibilizou e que integram o apenso aos autos, embora na mesma data a ofendida também tenha consentido que fossem solicitados à operadora, cfr fls 34 e 35.
6- Os denominados vícios da decisão, ou seja, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão e o erro notório na apreciação da prova, conforme prescreve o art.° 410.° do Código de Processo Penal, têm que resultar do texto da decisão, por si só ou em conjugação com as regras de experiência comum.
7- Apesar de invocar a nulidade da decisão, o recorrente não especificou, como estava obrigado, que provas impõem decisão diversa e que provas devem ser renovadas, em conformidade do disposto no n.° 3 do art.° 412.° do CPP.
8- A decisão recorrida é justa, as penas aplicadas ao arguido não merecem qualquer censura, quanto muito até foi benevolente, na medida em que o tribunal ponderou corretamente todas as circunstâncias que depunham a favor e contra o ora recorrente, nos termos do art. 71.°, do Código Penal, tendo em atenção a culpa do agente e as necessidades de prevenção e bem andou em arbitrar reparação à vítima.
Deste modo, deverá negar-se provimento ao recurso interposto pelo Recorrente, mantendo-se a decisão nos seus precisos termos.
Remetido o processo a este Tribunal da Relação, na vista a que se refere o art. 416º do CPP, o Exmo. Sr. Procurador da República emitiu parecer, dizendo (transcrição parcial):
O Ministério Público acompanha a resposta da Exma. Magistrada do Ministério Público junto da 1- instância à motivação do recurso interposto pelo arguido AC .
Assim, atentos os fundamentos expostos na citada resposta, emite-se parecer no sentido de que seja julgado improcedente o presente recurso, confirmando-se a sentença proferida pelo Tribunal a quo.
Cumprido o disposto no art. 417º nº 2 do CPP, não foi apresentada resposta.
Colhidos os vistos legais e realizada a conferência prevista nos arts. 418º e 419º nº 3 al. c) do CPP, cumpre, então decidir.

II–FUNDAMENTAÇÃO

2.1.-DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO E IDENTIFICAÇÃO DAS QUESTÕES A DECIDIR:

De acordo com o preceituado nos arts. 402º; 403º e 412º nº 1 do CPP, o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação.
Além destas, o tribunal está obrigado a decidir todas as questões de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afectem o recorrente, nos termos dos arts. 379º nº 2 e 410º nº 3 do CPP e dos vícios previstos no art. 410º nº 2 do CPP, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito (Acórdão do Plenário das Secções do STJ nº 7/95 de 19.10.1995, in Diário da República, I.ª Série-A, de 28.12.1995 e o AUJ nº 10/2005, de 20.10.2005, DR, Série I-A, de 07.12.2005).
Umas e outras definem, pois, o objecto do recurso e os limites dos poderes de  apreciação e decisão do Tribunal Superior (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do CPP, à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, 2011, págs. 1059-1061).
Das disposições conjugadas dos arts. 368º e 369º por remissão do art. 424º nº 2, todos do Código do Processo Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso pela seguinte ordem:
Em primeiro lugar, das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão;
Em segundo lugar, das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, se esta for uma sentença, as que se referem à matéria de facto, começando pela impugnação alargada, se deduzida, nos termos do art. 412º do CPP, a que se seguem os vícios enumerados no art. 410º nº 2 do mesmo diploma;
Finalmente, as questões relativas à matéria de Direito.
Seguindo esta ordem lógica, tendo como referência as conclusões do recurso, as questões a decidir são as seguintes:
Saber se a sentença é nula, por se ter alicerçado em métodos proibidos de prova por violação de direitos fundamentais designadamente da privacidade, concretamente, nas mensagens trocadas com a ofendida (Lei dos Metadados);
Ainda que assim se não entenda, se houve erro de julgamento, quanto aos factos provados de 6 a 13 que deveriam ter sido considerados não provados;
Se a pena de prisão suspensa é excessiva e deve ser reduzida para o mínimo legal de dois anos;
Se as penas acessórias carecem de baliza temporal;
Se foi preterido o contraditório quanto à indemnização civil.

2.2.–DA FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Da sentença recorrida, consta a seguinte matéria provada e não provada e a forma como o Tribunal a quo fundamentou a mesma (transcrição):

Da acusação
1. O arguido AC  e a ofendida MG iniciaram uma relação amorosa em Setembro de 2018 e viviam como se de marido e mulher se
tratasse no …., Funchal, nesta comarca da Madeira.
2. Cerca de três meses após o início desse relacionamento, o arguido começou a maltratar psicologicamente a ofendida, no interior da aludida residência, por vezes na presença de TG, PG e IG, filhos da mesma.
3. Em diversas situações temporalmente distintas, ocorridas em datas não concretamente determinadas, mas quase diariamente, por vezes na presença dos filhos da ofendida, o arguido apodou a ofendida de “puta”, de “puta do caralho”, de “vaca”, de “cabra” e “vadia” e dizia-lhe que a mesma mordia os lábios e que ia fazer olhinhos e lamber as beiças de homens, que andava a fazer broches ao seu pai, que andava metida com o cunhado, que tinha uma doença contagiosa e por isso não podia estar com o seu neto, que tinha amantes e que andava metida com outros homens.
4. Também em diversas situações temporalmente distintas, ocorridas em datas não concretamente determinadas, mas quase diariamente, o arguido disse à ofendida que lhe ia pegar lume, que a ia queimar viva e que lhe ia cortar o pescoço.
5. De igual modo, o arguido também controlou os movimentos da ofendida, indo no encalço dela, rondando os espaços por ela frequentados e vendo o seu telemóvel.
6. No dia 9 de Fevereiro de 2019, pelas 09h41m, fazendo uso do telemóvel n.° …, o arguido enviou uma mensagem escrita à ofendida com o seguinte teor: «Nojenta. foi te ver se tava agora tas a mandar messagens».
7. No dia 9 de Fevereiro de 2019, pelas 12h15m, fazendo uso do telemóvel n.° …., o arguido enviou uma mensagem escrita à ofendida com o seguinte teor: «Mald8ta tu es».
8. No dia 9 de Fevereiro de 2019, pelas 12h15m, fazendo uso do telemóvel n.° …. o arguido enviou uma mensagem escrita à ofendida com o seguinte teor: «Maldita o ke tu me fazes».
9. No dia 11 de Junho de 2019, pelas 13h23m, fazendo uso do telemóvel n.° …., o arguido enviou uma mensagem escrita à ofendida com o seguinte teor: «Vaca nao atendes».
10. No dia 12 de Junho de 2019, pelas 11h22m, fazendo uso do telemóvel n.° …., o arguido enviou uma mensagem escrita à ofendida com o seguinte teor: «Devias ter vergonha na cara o ke fazes pelo caminho. Nem respeitas o teu trabalho. E muito menos o teu marido».
11. No dia 12 de Junho de 2019, pelas 15h29m, fazendo uso do telemóvel n.° …., o arguido enviou uma mensagem escrita à ofendida com o seguinte teor: «Te vou ceimar kusnte re apanhar».
12. No dia 12 de Junho de 2019, pelas 18h14m, fazendo uso do telemóvel n.° …, o arguido enviou uma mensagem escrita à ofendida com o seguinte teor: «Porca suja kero o ke é meu».
13. No dia 12 de Junho de 2019, pelas 18h23m, fazendo uso do telemóvel n.° …, o arguido enviou uma mensagem escrita à ofendida com o seguinte teor: «Toda a gente já sabe ai a verdade eu a ke não sabia ...por osdo o paulo nao te kere em casa es suja podes pegar doenças ao pequeno».
14. No dia 13 de Junho de 2019, pelas 17h45m, o arguido cruzou- se com a ofendida no Funchal, e, em tom sério e exaltado, na presença de MM, disse-lhe «Eu vou-te regar com gasolina. Vou-te queimar viva!».
15. Com tais comportamentos, persistentes e reiterados, o arguido maltratou psicologicamente a ofendida, por vezes na presença de terceiros, humilhando-a, tratando-a cruelmente e atingindo-a na sua dignidade de pessoa humana, na sua integridade psico-emocional, na sua saúde, nas suas liberdades de decisão, de actuação e de movimentos, no seu sentimento de segurança e nas suas honra e consideração, sujeitando-a a um clima de permanente terror, causando-lhe receio e inquietação, perturbando as suas paz de espírito e tranquilidade e fazendo-a temer pelas suas vida e integridade física, resultado que o arguido previu, quis e alcançou.
16. O arguido previu, quis e logrou agir nos termos acima descritos, bem sabendo que a ofendida era sua companheira, primeiro, e ex- companheira, depois, e que, por isso, lhe devia particular respeito.
17. O arguido actuou sempre de forma livre, deliberada e consciente, com plena capacidade de determinação segundo as legais prescrições, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei e criminalmente punida.

DO RELATÓRIO SOCIAL CONSTA:

ICondições sociais e pessoais
18. AC, de 60 anos, manteve com a ofendida uma relação afetiva, com duração ligeiramente superior a um ano, período durante o qual residiram num apartamento de renda social, cuja titularidade estava atribuída à ofendida. Neste período, integravam ainda o agregado três dos quatro filhos da ofendida, já adultos, fruto de um anterior relacionamento. Os filhos do arguido, fruto de um relacionamento anterior cessado por divórcio, também adultos, encontravam-se à data emigrados, reportando o arguido a manutenção de contactos. A relação entre o casal confrontou-se com fatores de instabilidade, destacando-se a precariedade laboral e económica do arguido e a sobrecarga económica da ofendida, que era o elemento que exercia uma profissão regular. A separação concretizou-se em 2019, por iniciativa desta última, num cenário em que o arguido não reconhece qualquer responsabilidade pelos conflitos que existiram.
Entretanto aceitou o termo da relação afetiva, e já refez a sua vida sentimental, mas continua a conservar uma narrativa baseada em ressentimentos e na desqualificação da ofendida. Em 2020 o arguido deslocou-se para a Africa do Sul, motivado pelo reencontro através das redes sociais com uma antiga namorada, com a qual veio a casar naquele país a 4/10/2020. Entre esta data e 6/3/2021, o arguido e o cônjuge residiram na cidade de Joanesburgo, onde esta possuía uma padaria. Em março de 2021, o casal regressou à região, sendo descrita uma dinâmica familiar de solidariedade e interajuda. AC reside com o cônjuge, de 57 anos, num espaço arrendado, pelo qual pagam o montante mensal de 650€, mencionando que este e outros encargos são assumidos pelo vencimento do cônjuge, que trabalha desde julho de 2021 como empregada de limpeza numa unidade hoteleira auferindo o vencimento mínimo regional (720€) e pelos recursos decorrentes da venda do negócio que o cônjuge possuía em Joanesburgo.
A nível económico, e para além do encargo com a renda (que inclui os consumos domésticos) há a referir os relacionados com o combustível dos carros do casal (140€), telecomunicações (20€) e alimentação (150€). AC tem o 6°ano de escolaridade. Encontra-se inativo profissionalmente, assumindo não estar à procura de trabalho, uma vez que se dedica à recuperação da casa dos sogros, perspetivando a coabitação neste espaço uma vez concluídas as obras. O percurso profissional do arguido é pautado por várias experiências, seja na pesca de alto mar, na construção civil e na restauração, ainda que num registo predominantemente irregular. Apresenta-se como um indivíduo com facilidade no contacto, veiculando uma imagem muito positiva de si mesmo.

II–Impacto da situação jurídico-penal
19.– AC  vive o presente processo com sentimentos de injustiça e vitimização, pelo que não foi possível avaliar a sua motivação ou disponibilidade para aderir a uma eventual medida probatória. Mantém o afastamento da ofendida, de quem veicula uma imagem negativa, atribuindo-lhe a intenção de o prejudicar. Esta assumiu manter o receio de que o arguido faça movimentos de reaproximação, seja pessoalmente ou via online, nomeadamente em caso de condenação. O arguido é capaz de adotar uma narrativa convencional em que reconhece a legitimidade do sistema de justiça para punir condutas agressivas, não só, mas também nas relações de intimidade.
III - Conclusão
20.–AC reorganizou a sua vida afetiva por via do casamento referindo sentir-se gratificado nesta nova relação.
Permanece inativo profissionalmente, dedicando-se à reconstrução duma casa de família. No momento não tem rendimentos próprios, sendo as despesas de manutenção asseguradas através do salário do cônjuge e poupanças da mesma. AC continua a conservar uma narrativa baseada em ressentimentos e na desqualificação da ofendida, pelo que subsiste um conflito latente. Face ao exposto, em caso de condenação, as necessidades de intervenção do arguido situam-se ao nível da responsabilização e consolidação da crítica face à violência doméstica e na manutenção do afastamento face à ofendida.

DO CERTIFICADO DE REGISTO CRIMINAL DO ARGUIDO CONSTA:
21.–O arguido não tem antecedentes criminais.
A) Matéria de Facto Não provada:
Não se provaram quaisquer outros factos que não aqueles que acima foram referidos, com interesse para a decisão da causa.
B) Motivação da Decisão de Facto
(…)
Começando pelas declarações prestadas pelo arguido, o mesmo negou o envio das mensagens dos autos, alegando não terem sido enviadas por si, pois que esteve na África do Sul e naquele país furtaram-lhe o telemóvel em Abril de 2019, voltou em Maio desse ano. Em suma negou todos os factos. Acrescentou que os filhos da ofendida mantinham consigo um bom relacionamento. Atribui a culpa deste julgamento à ofendida que o tinha ameaçado que iria para a cadeia se a abandonasse.
No entanto, ouvida a ofendida, a mesma prestou um depoimento credível sem qualquer margem para dúvida. Relatou de forma circunstanciada, que após começarem a viver juntos o arguido não trabalhava, arranjou-lhe emprego, mas foi despedido ao fim de uma semana, ficava inactivo e pedia-lhe dinheiro para cigarros e outros gastos e não trabalhava. Relatou as expressões que lhe dirigia, que a ia queimar viva o que acontecia em qualquer local acrescentando que a regaria com petróleo e atiçado por ciúmes, tentava controlar todos os seus movimentos, dando a ofendida como exemplo que a deixava vir trabalhar de transportes públicos, mas vinha atras do autocarro de automóvel para lhe controlar os movimentos. Descreveu as expressões que constam da matéria assente e contextualizou-as (trabalhava em limpezas numa casa particular e acusava- a de “estar lá fodendo com o doutor” e sem a sua autorização reencaminhava as chamadas para o seu próprio telemóvel, copiava os números e enviava mensagens para a entidade patronal escrevendo “ponha-se a pau que essa puta está metida com o seu marido e o seu filho”. Relatou as expressões utilizadas diariamente pelo arguido acusava-a de sexo oral com o pai do seu patrão e acedia ao seu telemóvel vendo o risco das suas dedadas no vidro do telemóvel e assim o desbloqueava, copiava então os números e tomava conhecimento de todo o seu conteúdo.
A testemunha PG, mecânico filho da ofendida e de relações cortadas com o arguido (ao contrário do que este quis fazer crer) relatou que almoçava em casa da mãe mesmo de visita assistia a conversas em que os ciúmes transbordavam por parte do arguido e nessa sequência a apelidava de “puta, ensebada, que tinha amantes, cabra, vaca) e aconteceu mesmo a sua mãe telefonar-lhe a pedir ajuda pois estava sendo perseguida pelo arguido.
A testemunha IG, filho da ofendida, relatou que presenciou muitas discussões entre o arguido e a sua mãe, ouviu este ameaça-la de morte, ameaças que assustaram a mãe de tal forma que esta saiu para a rua, ouviu o arguido ameaçar que “ia pegar lume” à ofendida, mais referindo que ao arguido não trabalhava, telefonava continuamente à sua mãe a pedir-lhe dinheiro para cigarros apelidava-a de “puta e cabra” e de tal forma assumia proporções violentas que descreveu um episódio em que estava fora de casa e os vizinhos lhe telefonaram para acorrer a casa porque “havia escândalo”.
A testemunha MM, amiga da ofendida relatou de forma bastante impressiva que ouviu o arguido dizer à ofendida que a ia regar com álcool ou aguardente, recordando-se que isso se passou da parte da manha pois estavam a tomar o café. Deu a saber que a ofendia já se lhe tinha queixado que ele a acusava de ter amantes em todas as esquinas, que lhe chamava de puta e que ofendida também se queixava que ele ia ao seu emprego. Notou que a ofendida mudou os seus hábitos de vestir e mostrava-se triste e nas suas palavras “já não era a mesma pessoa”, depois de passar a viver com o arguido.
Todos os depoimentos não mereceram qualquer reparo, relativamente à sua credibilidade e clareza e são consentâneos com a análise que a DGRSP transmitiu no seu relatório social.
Não deixo de referir que enquanto decorria a produção de prova o arguido, não aparentando qualquer respeito, gesticulava, revirava os olhos e ria-se.
Considerou ainda o auto de denúncia de fls. 3 a 5 e o anexo I que contém as impressões de screenshots de mensagens, nomeadamente de fls. 63, 65, 183, 184, 191, 194, 202 e 203, relativamente aos quais a ofendida deu a saber que recebendo no seu telemóvel quis disponibiliza-los às autoridades policiais.
Não se vê assim que a prova que os mesmos contem esteja de alguma forma contaminada face ao teor da declaração de inconstitucionalidade proferida no Acórdão do TC n.° 268/2022, de 19/04, pois que não provem de qualquer intercepção das comunicações , isto é dos dados de trafego do telefone do arguido mas sim a fotografia das mensagens que a ofendida recebeu provindas do telemóvel do arguido que lhe eram dirigidas, não estamos portanto perante dados digitalizados preservados nas bases de dados das operadoras, nem a entrega dos screenshots por parte da ofendida consubstancia a obtenção de prova electrónica preservada ou conservada em sistemas informáticos. Ademais, a versão do arguido de que não foi ele a enviar as mensagens pois o telemóvel estaria perdido algures na Africa do Sul, não mereceu qualquer credibilidade bastando percorrer as 242 páginas, o tipo de conversação registado entre as duas pessoas, a marcação de encontros, sendo certo ainda que o arguido não apresentou qualquer prova mais ou menos credível da versão que apresenta sobre as mensagens.
No que diz respeito os factos que integram os elementos subjectivos do ilícito em questão o tribunal baseou-se na forma como o arguido actuou nas regras da experiência comum, porquanto ao agir da forma descrita o arguido não podia deixar de saber que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
No que concerne aos factos relativos às condições socioeconómicas do arguido foram determinantes as suas declarações, conjugadas com o relatório social junto aos autos.
Por fim, quanto aos antecedentes criminais por parte do arguido o tribunal tomou em consideração o seu Certificado de Registo Criminal.

2.3.–APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO

Quanto à primeira questão.
Nas conclusões I a XII, o recorrente veio invocar, por um lado, o julgamento de inconstitucionalidade proferido pelo Tribunal Constitucional no acórdão nº 282/2022, como obstáculo intransponível à utilização das mensagens escritas recebidas no telemóvel da ofendida e cuja autoria foi estabelecida na sentença recorrida, como sendo do arguido e, por outro lado, na inobservância das formalidades impostas pelos arts. 187º a 189º do CPP, para concluir que o recurso àquelas mensagens se constituiu num método proibido de prova.
Isto porque, segundo alegou, nas conclusões I e II, «o MP solicitou à Nos — Madeira, em Julho de 2019, “a faturação detalhada, designadamente o registo e tráfego de chamadas e traceback relativamente ao telemóvel da ofendida (96......7), mas com origem em telemóvel que se imputa ao arguido (96......4)» e «por via disso, e na sequência dos elementos fornecidos pela NOS, foi inclusive ordenada em 12/07/2019, a abertura de um anexo (I), por via do grande número de extração das mensagens envidas pelo denunciado à ofendida».
Esta argumentação assenta em duas premissas erradas e em algo que nunca aconteceu, neste processo, portanto, numa inverdade.
Quanto às premissas erradas: a primeira, a de que o acórdão do Tribunal Constitucional nº 282/2022, ou melhor, a declaração de inconstitucionalidade nele exarada, tem aplicação no caso; a segunda, a de que a extracção das mensagens escritas recebidas no telemóvel da ofendida está sujeita ao regime jurídico estabelecido nos arts. 187º a 189º do CPP.
Analisando os erros em que assentou recurso, nesta parte, importa esclarecer o seguinte:
O acórdão do Tribunal Constitucional nº 268/2022, de 19/04/2022 declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral:
a) da norma constante do artigo 4.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, conjugada com o artigo 6.º da mesma lei, por violação do disposto nos números 1 e 4 do artigo 35.º e do n.º 1 do artigo 26.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo n.º 18.º, todos da Constituição;
b) da norma do artigo 9.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, relativa à transmissão de dados armazenados às autoridades competentes para investigação, deteção e repressão de crimes graves, na parte em que não prevê uma notificação ao visado de que os dados conservados foram acedidos pelas autoridades de investigação criminal, a partir do momento em que tal comunicação não seja suscetível de comprometer as investigações nem a vida ou integridade física de terceiros, por violação do disposto no n.º 1 do artigo 35.º e do n.º 1 do artigo 20.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo 18.º, todos da Constituição.
O julgamento de inconstitucionalidade exarado neste acórdão do Tribunal Constitucional visou apenas os artigos 4º, 6º e 9º da Lei 32/2008, também denominada lei dos metadados, no que se refere ao seu armazenamento, no primeiro segmento, e à sua transmissão, no que concerne ao segundo segmento da decisão.
De acordo com a previsão contida no art. 4º da Lei 32/2008 de 17.07, estão no âmbito da inconstitucionalidade, os elementos de informação que permitem encontrar e identificar a fonte de uma comunicação; o destino de uma comunicação; a data, a hora e a duração de uma comunicação; o tipo de comunicação; o equipamento de telecomunicações dos utilizadores, ou o que se considera ser o seu equipamento; a localização do equipamento de comunicação móvel.
Estes correspondem aos denominados «metadados», também conhecidos como «dados sobre dados», ou seja, todos aqueles que não se referindo ao conteúdo das comunicações, mas tão-só às circunstâncias exteriores de tempo, modo e lugar em que tais comunicações foram estabelecidas e à identidade dos seus autores, são «dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações electrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações”, segundo a Lei n.º 32/2008.
Nestes se incluem os dados de base e os dados de tráfego, segundo a classificação que distingue entre dados de base, que são os relativos à conexão de rede e permitem, independentemente de qualquer comunicação, a identificação do utilizador de certo equipamento - nome, morada, número de telefone e os dados de tráfego como aqueles que são gerados pela utilização da rede (ex: localização do utilizador, localização do destinatário, duração da utilização, data e hora, frequência) (Pareceres do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República n.º 16/94, votado em 24/06/94, na base de dados da DGSI, n.º 16/94 – complementar, votado em 2/05/1996, in Pareceres, vol. VI, págs. 535 a 573, e n.º 21/2000, de 16/06/2000, no Diário da República – II Série, de 28/08/2000).
Consoante a natureza e a classificação dos dados informáticos (ela própria variável em função dos avanços tecnológicos e das fontes normativas a que se recorra, conforme Catarina Sarmento e Castro, Direito da Informática, Privacidade e Dados Pessoais, Almedina, 2005, p. 181), consoante os dados sejam de tráfego, de base ou de conteúdo, assim a sua pesquisa e apreensão postulará a sua conformidade constitucional com o segredo das comunicações (art. 34º da CRP), ou com os direitos ao desenvolvimento da personalidade e da reserva da intimidade da vida privada e familiar (artigo 26º nº 1, da CRP), ou com o direito à autodeterminação informativa (artigo 35º nº 1 da CRP) (cfr. Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 241/2002, 486/2009, 403/2015, 699/2013 e 420/2017, todos in www.tribunalconstitcional.pt).
«(…) O objeto de proteção do sigilo de comunicações, consagrado no n.º 4 do artigo 34º da Constituição, reporta-se exclusivamente à interatividade entre utilizadores, possibilitada por meios como o correio eletrónico, o chat ou a videoconferência (utilizador-utilizador). Já os dados de internet tratados para outro tipo de interatividade, nomeadamente a do utilizador com o computador e os respetivos programas (de organização, pesquisa e seleção de informação) e a navegação intra e inter documentos publicados nas páginas web, estão fora do âmbito de proteção daquele preceito constitucional.
«Todavia, como o tratamento informático dessa categoria de dados permite identificar o nome, morada e outros dados de identificação do utilizador, os mesmos são considerados "dados pessoais" protegidos pelo artigo 35º da Constituição.
«(…).
«Portanto, a informação constante dos dados de tráfego, mesmo que separada de um processo de comunicação intersubjetiva, é considerada de caráter pessoal, pois permite identificar o respetivo titular.
«Subsiste assim, em relação a essa categoria específica de dados de tráfego, a pertinência na verificação da conformidade constitucional da norma à luz do direito fundamental à autodeterminação informativa, consagrado no artigo 35.º, nºs 1 e 4, da Constituição.
«No que se refere «a dados pessoais que não envolvem comunicação intersubjetiva (dados de base, dados de localização e dados de tráfego, dissociados de um ato de comunicação, consumado ou tentado, entre duas pessoas) - terá (a sua conformidade constitucional) de ser aferida à luz dos direitos fundamentais consagrados nos artigos 26º nº 1, e 35º nºs 1, 3 e 4, da Constituição; enquanto o acesso àqueles dados de tráfego que envolvem comunicação entre pessoas (mensagens de correio eletrónico, chamadas de telemóvel, conversas por Voip, designadamente, Skype ou Whatsapp) estará, na referida perspetiva, abrangido, desde logo (e sem prejuízo de também se tratar de dados pessoais tutelados nos termos dos citados artigos 26º nº 1 e 35º nºs 1, 3 e 4), pelo âmbito de proteção do artigo 34º nº 4 da Constituição.» (Ac. do TC nº 464/2019, Diário da República n.º 202/2019, Série I de 21.10.2019).
E o Tribunal Constitucional vem aferindo a conformidade constitucional das intromissões nos dados de tráfego, nos dados de base ou nos dados de conteúdo (de comunicação propriamente dita), à luz destes diferentes direitos constitucionais, para efeitos de investigação penal, mas sempre reconhecendo que os mesmos não têm valor absoluto, sendo-lhes aplicável o regime das restrições aos direitos, liberdades e garantias do art. 18º nºs 2 e 3 da CRP e contando-se entre as excepções legítimas ao pleno exercício de tais direitos, as finalidades da investigação criminal, concretamente, a utilização desses dados como meios de prova em processo penal e, ainda que todos eles, reconduzindo-se a um direito global à privacidade pessoal como reserva da intimidade da esfera privada e, mais amplamente, ao direito ao desenvolvimento da personalidade consagrados no artigo 26º da Constituição, mantêm a natureza de direitos disponíveis (no mesmo sentido, Paula Ribeiro Faria, em “Constituição Portuguesa Anotada” dirigida por Jorge Miranda e Rui Medeiros, tomo 1, pág. 383, da ed. de 2005, da Coimbra Editora, Pedro Pais de Vasconcelos, em “Protecção de dados pessoais e direito à privacidade”, em “Direito da sociedade da informação”, vol. I, pág. 252, da ed. de 1999, da Coimbra Editora, o Parecer n.º 21/2000 da P.G.R., no D.R. II Série, de 28.08.2000; Flávio Carneiro da Silva, Apreensão e Utilização Processual de Meios de Prova Existentes em Material Informático, p. 21, in e-book do CEJ, Meios de obtenção de prova e Medidas Cautelares e de Polícia, Abril de 2019, in  http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/penal/eb_MeiosProva.pdf e Henriques Ferreira de Antas e Castro, Apreensão, exame ou perícia, e utilização processual de meios de prova existentes em material informático. Enquadramento jurídico, prática e gestão processual, p. 52, in e-book do CEJ, Meios de obtenção de prova e Medidas Cautelares e de Polícia, Abril de 2019, in  http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/penal/eb_MeiosProva.pdf. ).
Esta categorização em dados de base e dados de tráfego, como espécies de metadados, de acordo com as definições exaradas nos Pareceres nºs 16/94 e 21/2000 do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, começou por ser acolhida pelo Tribunal Constitucional no acórdão nº 241/2002 de 29.05.2002, sendo reiterada nos acórdãos nºs 486/2009, 403/2015, 420/2017, 464/2019 e no acórdão nº 268/2022, que igualmente acolheu esta distinção.
«Sobre a problemática das telecomunicações em geral e, em particular, sobre a recusa dos operadores de telecomunicações em prestar informações sobre dados pessoais dos clientes, dados cobertos pela confidencialidade e sigilo das telecomunicações, solicitadas por ordem judicial (e de outras entidades de polícia criminal) em processos de natureza cível (e criminal), pronunciou-se já o Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República nos Pareceres nº 16/94, votado em 24/06/94 (acessível na Internet em www.dgsi.pt), nº. 16/94 – Complementar, votado em 2/05/1996, in Pareceres, vol. VI, págs. 535 a 573 e nº. 21/2000, de 16/06/2000, in DR, II Série, de 28/08/2000.
«De harmonia com esses Pareceres – que citam alguma da mais autorizada doutrina - no serviço de telecomunicações podem distinguir-se três espécies ou tipologias de dados:
«"(...) os dados relativos à conexão à rede, ditos dados de base; os dados funcionais necessários ao estabelecimento de uma ligação ou comunicação e os dados gerados pela utilização da rede (por exemplo, localização do utilizador, localização do destinatário, duração da utilização, data e hora, frequência), dados de tráfego; dados relativos ao conteúdo da comunicação ou da mensagem, dados de conteúdo".» (Ac. do TC nº 241/2002, in http://www.tribunalconstitucional.pt).
«Numa concreta comunicação é possível separar do núcleo duro da informação fornecida ou transmitida um conjunto de marcos ou pontos de referência que lhe dão o respetivo suporte e que permitem circunscrever a informação sob todas as formas. Tais dados são ‘informações’ que acrescem aos dados e que têm como objetivo informar sobre eles, em princípio, para tornar mais fácil a sua organização. Sendo dados sobre dados (‘informação sobre informação’), acabam por fornecer informação sobre a localização, tempo, tipo de conteúdo, origem e destino, entre outras, dos atos comunicacionais efetuados através de telecomunicações ou por outros meios de comunicação.
«Como categoria que tem por fim um efeito jurídico é de usar a designação ‘dados de tráfego’ (…) porque no nosso ordenamento jurídico já há uma definição legal desse enunciado. Com efeito, o artigo 2.º, n.º 1, alínea d), da Lei n.º 41/2004, de 18 de agosto, sobre Segurança nas Telecomunicações, define ‘dados de tráfego’ como ‘quaisquer dados tratados para efeitos do envio de uma comunicação através de uma rede de comunicações eletrónicas ou para efeitos da faturação da mesma’.
«A este propósito, o Tribunal Constitucional acolheu, desde o Acórdão n.º 241/2002, de 29/05/2002, uma classificação tripartida (louvando-se, então, nos Pareceres do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República n.º 16/94, votado em 24/06/94, na base de dados da DGSI, n.º 16/94 – complementar, votado em 2/05/1996, in Pareceres, vol. VI, págs. 535 a 573, e n.º 21/2000, de 16/06/2000, no Diário da República – II Série, de 28/08/2000) dos dados resultantes do serviço de telecomunicações. Ali se distinguiram: ‘(…) os dados relativos à conexão à rede, ditos dados de base; os dados funcionais necessários ao estabelecimento de uma ligação ou comunicação e os dados gerados pela utilização da rede (por exemplo, localização do utilizador, localização do destinatário, duração da utilização, data e hora, frequência), dados de tráfego; dados relativos ao conteúdo da comunicação ou da mensagem, dados de conteúdo’». (Acórdãos do TC nºs 403/2015 e 420/2017, in http://www.tribunalconstitucional.pt).
«O conjunto de metadados elencado no artigo 4.º abrange dados de diferente natureza, categorizados na jurisprudência constitucional como dados de base e dados de tráfego. A distinção é relevante, pois a tutela constitucional não é modelada nos mesmos termos para as duas espécies.
«Os dados de base referem-se à conexão à rede, independentemente de qualquer comunicação, permitindo a identificação do utilizador de certo equipamento — nome, morada, número de telefone (Acórdãos n.ºs 241/2002, 486/2009, 403/2015, 420/2017 e 464/2019); como se disse no Acórdão n.º 486/2009, reproduzindo os Pareceres n.ºs 16/94 e 21/2000 do Conselho Consultivo da PGR, «Os dados de base constituem, na perspetiva dos utilizadores, os elementos necessários ao acesso à rede, designadamente através da ligação individual e para utilização própria do respetivo serviço: interessa aqui essencialmente o número e os dados através dos quais o utilizador tem acesso ao serviço». Já os dados de tráfego são definidos como «os dados funcionais necessários ao estabelecimento de uma ligação ou comunicação e os dados gerados pela utilização da rede (por exemplo, localização do utilizador, localização do destinatário, duração da utilização, data e hora, frequência)» (Acórdão n.º 403/2015); «Constituem, pois, elementos já inerentes à própria comunicação, na medida em que permitem identificar, em tempo real ou a posteriori, os utilizadores, o relacionamento direto entre uns e outros através da rede, a localização, a frequência, a data, hora e a duração da comunicação, devem participar das garantias a que está submetida a utilização do serviço, especialmente tudo quanto respeite ao sigilo das comunicações» (Acórdão n.º 486/2009, reproduzindo os Pareceres n.ºs 16/94 e 21/2000 do Conselho Consultivo da PGR)
«A norma abrange ambas as categorias de metadados: ao determinar a conservação de dados relativos a «nome do assinante ou do utilizador registado», «códigos de identificação atribuídos ao utilizador», «O código de identificação do utilizador e o número de telefone atribuídos a qualquer comunicação que entre na rede telefónica pública» e «nome e o endereço do assinante ou do utilizador registado, a quem o endereço do protocolo IP estava atribuído», alcançam-se os designados dados de base, que não pressupõem qualquer comunicação (abrangendo até uma fase prévia à comunicação), visando a identificação do utilizador do aparelho que se conexiona à rede. Por outro lado, ao estabelecer a conservação de dados gerados a propósito de uma certa comunicação (dados relativos à data, hora e duração de comunicações, protocolos IP estáticos e dinâmicos, hora e data de início [log in] e fim [log off] de ligação à internet), compreendem -se os dados de tráfego, aqueles que são produzidos pelo estabelecimento de uma certa comunicação ou sua tentativa.
«Importa traçar dois sublinhados no que respeita à subsunção dos dados mencionados no artigo 4.º da Lei n.º 32/2008 na categorização seguida pelo Tribunal Constitucional (dados de base e dados de tráfego).
A primeira nota refere-se aos endereços de protocolo IP. Estes são habitualmente inseridos na categoria de dados de base, por não revelarem quaisquer circunstâncias da comunicação — mas apenas a identificação do computador que se conectou à rede. (…).
A segunda nota liga-se à natureza dos designados “dados de localização”, definidos pela alínea c) do artigo 2.º da Diretiva 2002/58/CE como «quaisquer dados tratados numa rede de comunicações eletrónicas que indiquem a posição geográfica do equipamento terminal de um utilizador de um serviço de comunicações eletrónicas publicamente disponível». Reconduzindo aquele conceito às categorias de metadados reconhecidas pelo Tribunal Constitucional, a informação relativa à localização do equipamento pode enquadrar-se nos dados de base (quando identifica a posição geográfica do aparelho, independentemente de qualquer comunicação) ou nos dados de tráfego (quando esta identificação está associada a uma comunicação ou tentativa de comunicação — onde estava o sujeito A quando comunicou com o sujeito B). Sucede que a primeira espécie dos dados de localização (a que não pressupõe comunicações) é residual, como notou o Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 464/2019: «segundo o parecer da CNPD n.º 38/2017, nos dias de hoje ocorrem comunicações mesmo quando o utilizador do equipamento de comunicação não o aciona direta e intencionalmente. É, por exemplo, o caso das atualizações efetuadas pelas aplicações de correio eletrónico ou outro tipo de mensagens, o que significa que a geração e troca de dados são praticamente constantes, mesmo quando os cidadãos utilizadores dos equipamentos nada fazem». Por essa razão, «tem-se considerado que os mesmos estão também incluídos no conceito mais amplo de “dados de tráfego”» (Acórdão n.º 403/2015), ideia que aqui se reafirma» (Acórdão do TC nº 268/2022, in http://www.tribunalconstitucional.pt).
Objecto da declaração de inconstitucionalidade não foram, por conseguinte, todos os metadados.
Os que estão incluídos no âmbito da inconstitucionalidade dos arts. 4º, 6º e 9º da Lei 32/2008 de 17.07, são apenas os metadados destas duas subcategorias armazenados em arquivos, durante o período de um ano, pelos fornecedores de serviços de comunicações eletrónicas publicamente disponíveis ou de uma rede pública de comunicações, porque «o tratamento de todos estes dados, ao manter o rastreio dos passos dos utilizadores, seja quanto à sua localização, seja quanto à utilização que faz da internet, seja quanto às pessoas com quem contacta ou tenta contactar, por telefone, correio eletrónico, mensagens escritas ou através da internet, é suscetível de comprimir os direitos à reserva da intimidade da vida privada, ao livre desenvolvimento da personalidade e à autodeterminação informativa. (…) Permitem rastrear a sua localização «ao longo do dia, todos os dias (desde que transporte o telemóvel ou outro dispositivo eletrónico de acesso a Internet), e identificar com quem contacta (chamada - inclusive as tentadas e não concretizadas - por telefone ou telemóvel, envio ou receção de SMS, MMS, de correio eletrónico, ou de comunicações telefónicas através da Internet), bem como a duração e a regularidade dessas comunicações» (ac. do TC nº 268/2022), ademais não delimitando a Lei o universo dos seus destinatários às pessoas suspeitas da prática dos crimes graves do catálogo, antes sendo aplicável a toda a gente.
Ora as mensagens escritas recebidas no telemóvel da ofendida não são metadados.
Os metadados, por seu turno, não se confundem com as intercepções de conversações telefónicas, que sendo, por natureza um meio oculto de obtenção de prova, pois o seu sucesso depende exclusiva e directamente do desconhecimento por parte dos visados de que as suas comunicações telefónicas são objecto de intercepção, incidem directamente sobre o conteúdo das comunicações, em tempo real e para o futuro, nada tendo que ver com a obtenção de dados de informação armazenada, num contexto de comunicações pretéritas, pelos operadores dos serviços de telecomunicações, nos termos e para os efeitos da Lei 32/2008, de 17 de Julho.
Escutas telefónicas não são, pois, metadados.
O regime jurídico inserto nos arts. 187º a 189º do CPP, rege sobre os pressupostos substanciais de admissibilidade das escutas, traduzidos no catálogo de crimes para cuja investigação podem ser utilizadas escutas telefónicas e na sua imprescindibilidade e necessidade para os fins da investigação, autorização judicial, universo de pessoas visadas, prazo de duração, previstos no art. 187º e as regras de procedimento relativas a aspectos meramente formais como o tempo da sua audição, como e quando se procede à respectiva transcrição, destruição, ou migração para outros processos, que se encontram contemplados nos arts. 188º e 189º.
Acontece que este regime não foi minimamente afectado pela declaração de inconstitucionalidade decidida, com força obrigatória geral, pelo acórdão do TC n.º 268/2022, nem tem também aplicação no caso.
«Os arts.187 a 189, do CPP, regulam o recurso aos dados relativos a conversações ou comunicações telefónicas em tempo real, enquanto o acesso aos dados conservados pelas operadoras por conversações ou comunicações telefónicas passadas é regulado pela Lei nº32/2008, de 17 Julho; o nº1, do art.187 citado, delimita o objeto dessa regulação como “a interceção e a gravação de conversações ou comunicações telefónicas”, o que representa comunicações a ocorrer, conversações ou comunicações telefónicas em tempo real. Já se o que interessa processualmente são comunicações passadas, localizadas no tempo e no espaço, chama-se à colação a Lei nº32/2008, de 17 de Julho,
«São, pois, dois meios de prova diferentes, um as escutas telefónicas, outro a conservação e transmissão dos dados. O primeiro regulado nos arts 187 a 190 do CPP. O segundo previsto nos artigos 4º, 6º e 9º da L. 32/2008, agora declarados inconstitucionais nos termos do acórdão nº 268 do Tribunal Constitucional» (Ac. STJ de 6.09.2022, proc. 4243/17.0T9PRT-K.S1. No mesmo sentido, Ac. do STJ de 10.11.2022, proc. 35/15.9PESTB-Z.S2, in http://www.dgsi.pt).
Esclarecidos os dois erros em que assentou a tese do recorrente, cumpre sublinhar que os sms insertos no telemóvel da ofendida não provieram de intercepções de comunicações telefónicas e nisto consiste a inverdade das afirmações feitas nas conclusões I e II do recurso.
É que nunca foi determinada a intercepção das conversações verbais ou escritas efectuadas de e para o telemóvel da ofendida e/ou do arguido.
O que aconteceu foi que, agindo nos limites constitucionalmente admissíveis em que os direitos à reserva da intimidade da vida privada e da inviolabilidade do segredo das comunicações, são disponíveis, a ofendida consentiu em abrir mão deles, para o efeito de fornecer ao Tribunal o seu próprio telemóvel a partir de cujo visionamento, foram transcritos os sms a que aludem os pontos de facto 6 a 13 e que vieram a integrar o Apenso I.
De resto, esse carácter disponível está também expressamente previsto no regime jurídico em matéria de proteção das pessoas singulares, no que diz respeito ao tratamento dos dados pessoais e à livre circulação desses dados consagrado no Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016 (que revogou a Diretiva 95/46/CE), também designado por Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD) e, bem assim, pela Lei n.º 58/2019, de 8 de agosto (que revogou a pretérita Lei n.º 67/98, de 26 de outubro, Lei da Proteção de Dados Pessoais).
Nos termos do artigo 4º nº 1 do RGPD são «dados pessoais», a “informação relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável («titular dos dados»); é considerada identificável uma pessoa singular que possa ser identificada, direta ou indiretamente, em especial por referência a um identificador, como por exemplo um nome, um número de identificação, dados de localização, identificadores por via eletrónica ou a um ou mais elementos específicos da identidade física, fisiológica, genética, mental, económica, cultural ou social dessa pessoa singular”.
É o próprio RGPD que, no seu art. 6º nº 1 als. reconhece a natureza disponível do direito à preservação e protecção dos dados pessoais e o seu carácter não absoluto, ao prever, nas als. a) e e), a licitude do tratamento e publicitação desses dados mediante o consentimento do titular dos mesmos para uma ou mais finalidades específicas e quando tal se mostre necessário ao exercício de funções de interesse público ou ao exercício da autoridade pública de que está investido o responsável pelo tratamento.
E, em sintonia com a natureza disponível destes direitos, a lei do cibercrime prevê situações especiais em que é possível ao OPC proceder à pesquisa de dados sem prévia autorização do MP e entre elas, conta-se, no art. 15º nº 3 al. a), o consentimento de quem tiver a disponibilidade ou controlo dos dados, desde que fique devidamente documentado.
Ainda que possa e deva considerar-se, à semelhança do que é exigido pelo art. 174º nº 5 al. c) do CPP que exige o consentimento do visado (e não apenas o de quem tiver a disponibilidade ou controlo dos dados) que só o próprio titular dos direitos postos em crise ou comprimidos com o acesso aos dados informáticos tem legitimidade substantiva e processual para autorizar essa recolha e a sua consideração como provas válidas e eficazes (cfr. nesse sentido, João Conde Correia, Prova Digital: as leis que temos e a lei que devíamos ter, Revista do Ministério Público nº 139, Ano 35, Junho- Setembro 2014, p. 51), pois que, mantendo a natureza de direitos disponíveis, essa disponibilidade só pode estar na esfera jurídica da pessoa a quem o bem jurídico visado pela previsão constitucional é reconhecido ou atribuído, o que é certo é que uma vez prestado o consentimento pelo titular dos dados informáticos, para o acesso e apreensão dos mesmos, para a investigação criminal, fica definitivamente afastada qualquer ilicitude do procedimento de obtenção dessas informações.
Sendo assim, a junção da prova digital pelos órgãos de polícia criminal, no decurso de uma pesquisa informática consentida não carece para ser admissível, válida e eficaz de prévia autorização da autoridade judiciária, independentemente da natureza dos dados obtidos, justamente em face do consentimento previamente prestado pelo titular dos dados, ficando, por essa via, afastada a aplicação dos artigos 16º nºs 1 e 3 e 17º da lei do cibercrime, o que não encerra inconstitucionalidade alguma, em virtude da natureza disponível dos direitos em causa, nos termos que já ficaram acima expostos e, de resto, expressamente, assumida pelo legislador constitucional, tal como já se referiu e se pode facilmente retirar do texto dos arts. 26º nºs 2 e 4; 34º parte final e 35º nºs 2 e 4, parte final da CRP, ao atribuir à lei ordinária a função modeladora desses direitos, designadamente, ao nível das restrições ao seu pleno exercício e ressalvando a admissibilidade das mesmas, «nos casos previstos na lei».
A transcrição destas mensagens além de lícita, constituí prova documental sujeita a livre apreciação pelo julgador, em conformidade com as regras de lógica, de razoabilidade humana e das regras de experiência comum, como previsto no art. 127º do Código Penal (Acs. do STJ de 15.02.2007, proc. 06P4092, de 17.11.2009, proc. 169/07.3GCBNV.S1, de 4.11.2009, proc. 680/07.6GCBRG.G1.S1 e de 10.11.2022, proc. 35/15.9PESTB-Z.S2., in http://www.dgsi.pt).
Não há, pois, nulidade alguma a decretar e o recurso improcede, nesta parte.
Quanto à segunda questão.
A matéria de facto pode ser sindicada em recurso através de duas formas: uma, de âmbito mais estrito, a que se convencionou designar de «revista alargada», implica a apreciação dos vícios enumerados nas als. a) a c) do art. 410º nº 2 do CPP; outra, denominada de impugnação ampla da matéria de facto, que se encontra prevista e regulada no art. 412º nºs 3, 4 e 6 do mesmo diploma.
Assim, se no primeiro caso, o recurso visa uma sindicância centrada exclusivamente no texto da sentença, dirigida a aferir da capacidade do juiz em expressar de forma adequada e suficiente as razões pelas quais se convenceu e o sentido da decisão que tomou, já no segundo, o que o recurso visa é o reexame da matéria de facto, através da fiscalização das provas e da forma como o Tribunal recorrido formou a sua convicção, a partir delas.
O erro do julgamento verifica-se sempre que o Tribunal tenha dado como provado um facto acerca do qual não foi produzida prova e, portanto, deveria ter sido considerado não provado, ou inversamente, quando o Tribunal considerou não provado um facto e a prova é clara e inequívoca, no sentido da sua comprovação.
O mecanismo por via do qual deverá ser invocado - impugnação ampla da matéria de facto – encontra-se previsto e regulado no art. 412º nºs 3, 4 e 6 do CPP e envolve a reapreciação da actividade probatória realizada pelo Tribunal, na primeira instância e da prova dela resultante.
No entanto, essa reapreciação não é livre, nem abrangente, antes tem vários limites, porque, além de não importar um novo julgamento da causa, está condicionada ao cumprimento de deveres muito específicos de motivação e formulação de conclusões do recurso (Maria João Antunes, in RPCC – Ano 4 Fasc.1 – pág. 120; Acórdão do STJ n.º 3/2012, de 8/3/2012, DR, I Série, n.º 77, de 18/4/2012 Acs. da Relação de Guimarães de 6.11.2017, proc. 3671/13.4TDLSB.G1; da Relação de Évora de 09.01.2018 proc. 31/14.3GBFTR.E1; da Relação de Coimbra de 08.05.2018, proc. 30/16.0GANZR.C1; da Relação de Lisboa de 12.06.2019, processo 473/16.0JAPDL.L1 e de 28.04.2021, processo 4426/17.2T9LSB.L1, in http://www.dgsi.pt).
Assim, nos termos do nº 3 do art. 412º do CPP, quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e c) as provas que devem ser renovadas».
O art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal, por seu turno, estabelece a possibilidade de o recurso se fundamentar na insuficiência da matéria de facto provada para a decisão; na contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão, ou no erro notório na apreciação da prova, «mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito».
Trata-se de vícios estruturais cuja apreciação não envolve nem pode envolver qualquer sindicância à prova produzida, no Tribunal de primeira instância, porque só o texto da decisão recorrida os pode evidenciar.
Referem-se apenas à forma como a decisão se encontra redigida, pelo que a indagação da sua existência faz-se, exclusivamente, a partir da análise do respectivo texto, na sua globalidade, sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, ainda que constem do processo, com excepção das regras de experiência comum.
Em matéria de erro de julgamento, o ónus de especificação das provas concretas, previsto no art. 412º do CPP «só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida. Por exemplo, é insuficiente a indicação genérica de um depoimento, de um documento, de uma perícia ou de uma escuta telefónica realizada entre duas datas ou a uma pessoa. Mais exactamente, no tocante aos depoimentos prestados na audiência, a referência aos suportes magnéticos só se cumpre com a indicação (…) das passagens dos depoimentos gravados que impõem diferente decisão, não bastando a indicação das rotações correspondentes ao início e ao fim de cada depoimento» (Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal, 4ª. ed., 2009, nota 8 ao art. 412º., pág. 1144).
Este ónus de indicação das provas que impõem decisão diversa da recorrida, apresenta, pois, uma configuração alternativa, conforme a acta da audiência de julgamento contenha ou não a referência do início e do termo de cada uma das declarações e depoimentos gravados.
Assim, se a acta contiver essa referência, a indicação dos excertos em que se funda a impugnação faz-se incluindo a referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 364º (nº 4 do artigo 412º do C.P.P.).
Mas, se a acta não contiver essa referência, basta a identificação e transcrição nas motivações de recurso das ditas “passagens/excertos” dos meios de prova oral gravados (Acs. da Relação de Évora, de 28.05.2013, proc. 94/08.0GGODM.E1 e da Relação de Lisboa de 22.09.2020, proc. 3773/12.4TDLSB.L1-5, in http://www.dgsi.pt).
Em qualquer das duas hipóteses, o recorrente terá de indicar, com toda a clareza e precisão, o que é que, na matéria de facto, concretamente, quer ver modificado, apresentando a sua versão probatória e factual oposta à decisão de facto exarada na sentença que impugna, e quais os motivos exactos para tal modificação, em relação a cada facto alternativo que propõe, o que exige que o recorrente apresente o conteúdo específico de cada meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida e o correlacione comparativamente com o facto individualizado que considera erradamente julgado.
Quando se trate de depoimentos de testemunhas, de declarações de arguidos, assistentes, partes civis, peritos ou consultores técnicos, se o recorrente não individualizar, no universo das declarações prestadas, quais as particulares passagens, nas quais ficaram gravadas as frases que se referem ao facto impugnado, não pode considerar-se cumprido o ónus de impugnação especificada exigido pelo art. 412º nºs 3 als. a) e b) e nº 4 do CPP.
O mesmo tem de dizer-se em relação a documentos, ou escutas telefónicas, reconhecimentos, perícias, em suma, todos os meios de prova considerados pelo Tribunal do julgamento, para firmar a sua convicção e fixar os factos, como provados ou não provados. 
Uma forma genérica de impugnação, além de permitir converter em regra uma excepção, desvirtuando completamente o regime do duplo grau de jurisdição da matéria de facto, que se traduz num reexame pontual e parcial da prova, porque restrito aos precisos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, prejudica e pode mesmo inviabilizar o exercício legítimo do princípio do contraditório pelos demais sujeitos processuais com interesse juridicamente relevante no desfecho do recurso.
Além disso, transferiria para o tribunal de recurso a incumbência de encontrar e selecionar, segundo o seu próprio critério, as específicas passagens das gravações que melhor se adequassem aos interesses do recorrente, ou seja, de fazer conjecturas sobre quais seriam os fundamentos do recurso, o que não é aceitável, porque o tribunal não pode, nem deve substituir-se ao recorrente, no exercício de direitos processuais que só a este incumbem, nos termos da lei, nem deve tentar perscrutar ou interpretar a sua vontade, interferindo, por essa via, com a própria inteligibilidade e concludência das motivações do recurso, logo, com a definição do seu objecto.
É, igualmente, inadmissível, à luz dos princípios da imediação e oralidade da audiência de discussão e julgamento, da livre apreciação da prova e da segurança jurídica, partindo da constatação de que o contacto que o Tribunal de recurso tem com as provas é, por regra e quase exclusivamente, feito através da gravação, sem a força da imediação e do exercício sistemático do contraditório que são característicos da prova produzida no julgamento.
Ora, o recorrente não cumpriu o ónus de indicação dos segmentos das suas declarações, ou de algum dos depoimentos prestados em audiência, de que possa ter resultado o erro de julgamento que imputa ao Tribunal.
Para além de considerações de índole genérica sobre a sua percepção acerca da falta de credibilidade da versão dos factos apresentada pela ofendida e pelas testemunhas, em contraponto com a veracidade da sua versão e do sentido da prova testemunhal globalmente considerada, não há uma única menção a que o Tribunal se tenha alicerçado a propósito seja de que facto concreto, de entre os elencados na sentença, em algo que não tenha sido dito por alguma das pessoas ouvidas no julgamento, ou contra afirmações por elas proferidas, o mesmo acontecendo em relação à prova documental produzida. 
Os argumentos aduzidos nas conclusões XIII a XV, são totalmente inaptos para dar lugar sequer à audição da prova gravada.
É que estas afirmações, por muito ilustrativas que possam ser da discordância da recorrente e do modo como ele própria percepcionou a prova e dela retirou várias conclusões acerca da credibilidade das testemunhas inquiridas e dos factos que resultaram provados ou não provados, não integra erro de julgamento.
Só revela qual é a sua convicção acerca da prova produzida.
Acontece, que a convicção é a do Tribunal do julgamento e não a do recorrente e nem tão-pouco a do Tribunal do recurso.
Em nenhum excerto das motivações ou das conclusões do recurso, o recorrente argumentou sequer que o Tribunal deu como provado algo que nenhuma testemunha tenha dito, ou algo que tenha resultado contrariado ou infirmado por algum dos relatos dos factos apresentados pelas diversas pessoas ouvidas, ou que, para fundamentar os factos provados o Tribunal tenha invocado outros meios de prova de cujo conteúdo resulte o contrário, ou que deles nada conste que permita afirmar a verificação histórica desses mesmos factos, nem que os factos julgados não provados estão em contradição ou manifesta oposição e em que medida com afirmações produzidas pelo arguido, pela assistente e/ou pelas testemunhas e quais são os motivos pelos quais esses meios de prova deveriam ter sido credibilizados e não foram.
Mas, sendo assim, o recurso não ultrapassa o patamar da mera discordância alicerçada numa convicção diversa acerca do sentido geral da prova, no confronto com a qual a do Tribunal sempre terá de prevalecer, por se encontrar alicerçada nos princípios da oralidade, da imediação e do contraditório que são característicos da audiência de discussão e julgamento.
«A censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção.
«Doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão» (Acórdão do TC n.º 198/2004, de 24-03-2004, in DR, II Série, n.º 129, de 02-06-2004).
Sendo certo que, «a atribuição de credibilidade, ou não, a uma fonte de prova testemunhal ou por declarações, tem por base uma valoração do julgador que, enquanto fundada na imediação e na oralidade (nessa medida), o tribunal de recurso, em rigor, só poderá criticar demonstrando que é inadmissível face às regras da experiência comum» (Ac. da Relação de Lisboa de 2.11.2021, proc. 477/20.8PDAMD.L1-5, in http://www.dgsi.pt).
A matéria de facto não provada só poderia ser dada como provada, se a partir das indicações exactas dos excertos das declarações do arguido, das declarações da vítima e dos depoimentos das testemunhas inquiridas, ou de algum documento ou outro meio de prova que tivesse sido produzido, se pudesse concluir pela insustentabilidade lógica, ou pela arbitrariedade do modo como a convicção do Tribunal se formou a partir dessas provas e das conclusões que delas extraiu.
Mas o recorrente nem sequer tentou colocar em crise a fidedignidade do exame crítico da prova feito pelo tribunal recorrido à que foi efectivamente produzida durante a discussão da causa.
Com efeito, não há em todo o texto do requerimento de interposição do recurso, uma única transcrição, seja de que excerto das declarações do arguido, nem dos depoimentos das testemunhas inquiridas, nem de qualquer documento ou relatório pericial, nem sequer a delimitação de algum segmento dos meios de prova produzidos em audiência de discussão e julgamento, por referência às rotações da gravação dessas declarações e depoimentos, segundo as menções consignadas em acta, muito menos, a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.
A falta de indicação concreta, nas motivações e nas conclusões, dos excertos ou segmentos dos depoimentos e das declarações nos termos previstos no nº 3 al. b) e no nº 4 do art. 412º do CPP, que seriam aptos a demonstrar a incorrecção do julgamento do factos, conduz necessariamente à improcedência da impugnação ampla da matéria de facto, porque essa omissão ultrapassa a mera deficiência relativa apenas à formulação das conclusões, antes constituindo uma falta que afecta o próprio conteúdo daquelas, o que inviabiliza, quer a possibilidade de aperfeiçoamento dessas conclusões (cfr. Acs. do TC nºs 374/2000, 259/2002 e 140/2004, in www.tribunalconstitucional.pt; Ac. do STJ de fixação de jurisprudência nº 3/2012, de 8 de Março de 2012, publicado no D.R 1ª série, nº77, de 18 de Abril de 2012, Acs. da Relação de Évora de 08.01.2013, proc. 10/13.6ZCLSB-B.E1, da Relação de Lisboa de 8.10.2015, proc. 220/15.3PBAMD.L1-9; da Relação de Guimarães de 15.04.2020, proc. 621/19.8T9VNF.G1, in http://www.dgsi.pt), quer a modificabilidade da decisão sobre a matéria de facto, já que a inobservância do tríplice ónus de impugnação especificada imposto pelo art. 412º  afasta a aplicabilidade da norma contida no art. 431º al. b) do CPP.
Em face do que fica exposto, a impugnação ampla da matéria de facto tem de ser julgada improcedente e a apreciação deste Tribunal tem de ficar restringida à verificação dos vícios decisórios previstos no art. 410º nº 2 do CPP, que são de conhecimento oficioso.
Lendo o texto da sentença recorrida, nele não se vislumbra que o Tribunal tenha retirado de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, ou que tenha considerado como provado algo que notoriamente esteja errado, ou que seja  incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro facto contido na sentença recorrida, nem que tenham sido inobservadas as regras legais sobre o valor da prova vinculada, nem quaisquer regras de experiência comum, ou critérios de lógica ou de razoabilidade humana, nem que tenham sido omitidas quaisquer diligências probatórias essenciais.   
Como estes vícios decisórios também não se vislumbram no texto da sentença recorrida, nem por si só, nem conjugado com regras de experiência, pois ali não se detecta qualquer ambiguidade, obscuridade, lapso material, ou incongruência susceptíveis de enquadrar alguma das alíneas a) a c) do art. 410º nº 2 do CPP, o recurso improcede também nesta parte.
As terceira e quarta questões serão apreciadas em conjunto, pois que ambas se referem à pena principal e às penas acessórias impostas, em resultado da condenação do arguido pela prática do crime de violência doméstica e a elas se referem as conclusões XVI a XVIII.
O recorrente pretende a redução da pena ao limite mínimo da moldura penal abstracta, de dois anos, com os argumentos de que não tem antecedentes criminais e de que à data dos factos já contava 61 anos, além do que nunca agrediu a ofendida fisicamente, e que a separação se verificou por iniciativa do arguido que se mudou para a África do Sul onde reside com a sua mulher, com a qual casou em 4.10.2020.
A sentença recorrida, discorreu assim, em matéria de escolha e determinação concreta da pena (transcrição parcial):
«In casu, devemos considerar que a ilicitude dos factos é acima da média, tendo em conta os factos em causa a violência deles que transmite a que a gravidade do seu comportamento também ela acima da média.
«O arguido não revela capacidade crítica para o seu comportamento embora em termos abstratos revele capacidade de pensar de forma crítica sobre a problemática criminal em apreço, censurando o uso de todo o tipo de violência num relacionamento e legitimando a intervenção do sistema de justiça e a sanção dos agressores. Não tem antecedentes criminais. Não trabalha nem procura emprego, não evidencia hábitos de trabalho, escusa a sua responsabilidade, vitimizando-se e atribuindo as culpas à ofendida.
«As necessidades de prevenção geral são muito elevadas, dada a frequência com que estes crimes são praticados em especial nesta comarca.
«Assim, atento o exposto e após ponderação global das referidas circunstâncias, tendo por referência as exigências de prevenção geral e especial, julgo adequada e proporcional aplicar ao arguido a pena de 3 (três) anos de prisão, pela prática do crime de violência doméstica.»
Em primeiro lugar, cumpre referir que não ter antecedentes criminais é o mínimo que se pode esperar e exigir de qualquer cidadão, nada tendo de especialmente abonatório e ainda menos para o efeito pretendido pelo arguido de reduzir a pena de prisão ao limite mínimo da moldura penal abstracta.
Dos fins das penas anunciados no art. 40º do Código Penal e do princípio da proporcionalidade consagrado no art. 18º nº 2 da Constituição da República Portuguesa (na sua tripla vertente, necessidade da pena, adequação e proporcionalidade em sentido estrito e nas suas manifestações de proibição do excesso e de proibição de protecção deficiente), as linhas orientadoras em matéria de escolha e determinação concreta da pena são as seguintes:
As penas servem finalidades exclusivas de prevenção geral e especial;
A pena concreta tem como limite máximo inultrapassável, a medida da culpa;
A medida da culpa constituí o fundamento ético da pena;
Tendo por referência esse limite máximo inultrapassável da culpa, a pena concreta é fixada dentro de uma moldura de prevenção geral positiva ou de integração, cujos limites mínimo e máximo são, respectivamente, o ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e as exigências mínimas de defesa da ordem jurídica penal, correspondendo às exigências básicas e irrenunciáveis de restabelecimento dos níveis de confiança por parte da sociedade, na validade da norma incriminadora violada;
Dentro desta moldura de prevenção geral positiva ou de integração, a dosimetria concreta da pena terá de resultar do que se mostrar necessário e ajustado às exigências de prevenção especial, em regra, positiva ou de socialização, ou em casos excepcionais,  negativa, de intimidação ou de segurança individual (Figueiredo Dias, in Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, págs. 65-111 e na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 3, Abril - Dezembro 1993, páginas 186 e 187. No mesmo sentido, Anabela Miranda Rodrigues, O Modelo de Prevenção na Determinação da Medida Concreta da Pena, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, nº 2, Abril/Junho de 2002, pág. 147 e ss., Claus Roxin, Culpabilidad y Prevención en Derecho Penal, p. 113; Eduardo Correia, BMJ nº 149, p. 72 e Taipa de Carvalho, Condicionalidade Sócio-Cultural do Direito Penal, p. 96 e ss.).
É função da pena salvaguardar a reposição e a integridade dos bens jurídicos violados com a prática dos crimes, introduzir um efeito de confiança, no seio da comunidade, acerca da validade e eficácia das correspondentes normas jurídicas incriminadoras e produzir um efeito dissuasor da criminalidade, nos cidadãos em geral, induzindo-lhes a aprendizagem da fidelidade ao direito.
Também é função da pena assegurar, no âmbito da prevenção especial, em regra, positiva ou de socialização, a reintegração do agente na sociedade, excepcionalmente negativa ou de intimidação, prevenindo a reincidência.     
«A protecção de bens jurídicos implica a utilização da pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos (prevenção geral negativa), incentivar a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos (prevenção geral positiva). A protecção de bens jurídicos significa ainda prevenção especial como dissuasão do próprio delinquente potencial» (Fernanda Palma, in “As Alterações Reformadoras da Parte Geral do Código Penal na Revisão de 1995: Desmantelamento, Reforço e Paralisia da Sociedade Punitiva”, nas “Jornadas sobre a Revisão do Código Penal”, edição 1998, AAFDL, pág. 25).
No que respeita à decisão sobre a pena, mormente à sua medida, começa por lembrar-se que os recursos não são novos julgamentos da causa, mas tão só remédios jurídicos. Assim, também em matéria de penas, o recurso mantém o arquétipo de remédio jurídico.
A actividade jurisdicional de escolha e determinação concreta da pena não corresponde a uma ciência exacta, sendo certo que além de uma certa margem de prudente arbítrio na fixação concreta da pena, também em matéria de aplicação da pena o recurso mantém a sua natureza de remédio jurídico, não envolvendo um novo julgamento. O tribunal de recurso só alterará a pena aplicada, se as operações de escolha da sua espécie e de determinação da sua medida concreta, levadas a cabo pelo Tribunal de primeira instância revelarem incorrecções no processo de interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais vigentes em matéria de aplicação de reacções criminais. Não decide como se o fizesse ex novo, como se não existisse uma decisão condenatória prévia.
E sendo assim, é preciso ter sempre em atenção que o Tribunal recorrido mantém incólume a sua margem de actuação e de livre apreciação, sendo como é uma componente essencial do acto de julgar.
A sindicabilidade da medida concreta da pena em via de recurso, abrange, pois, exclusivamente, a determinação da pena que desrespeite os princípios gerais previstos nos arts. 40º e 71º do CP, as operações de determinação impostas por lei, a indicação e consideração dos factores de medida da pena, mas já não abrange «a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exato de pena, exceto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada» (Figueiredo Dias, DPP, As Consequências Jurídicas do Crime 1993, §254, p. 197; Acs. da Relação de Lisboa de 11.12.2019, proc. 4695/15.2T9PRT.L1-9, da Relação do Porto de 13.10.2021, proc. 5/18.5GAOVR.P1 in http://www.dgsi.pt).
Assim, mesmo que associada à sua idade de 61 anos, a ausência de antecedentes criminais pudesse ser sopesada com carácter atenuante, para efeitos de ilustração do comportamento anterior aos factos, sempre teria em sentido contrário agravante a sua total ausência de autocrítica para a gravidade dos seus comportamentos abusivos e integradores do crimes de violência doméstica, como assinalado no texto da decisão recorrida e, de resto, evidenciado no argumento de que como não agrediu fisicamente a vítima, fica desse modo justificada a redução da pena ao mínimo legal.
O crime de violência doméstica não é menos grave por não ter sido cometido através de castigos corporais ou agressões à integridade física e, como defluí de forma evidente do texto da sentença recorrida, a Mma. Juíza teve todo o cuidado na análise da gravidade dos factos, do grau de ilicitude e de culpa do arguido, das exigências de prevenção geral e especial, de sopesar todos estes factores que dada a sua gravidade jamais poderiam conduzir a uma pena tão branda como aquela que o arguido pretende lhe seja aplicada, sob pena de a dimensão da pena como instrumento de protecção de bens jurídicos ficar totalmente comprometida.
O recurso improcede, pois, nesta parte, mantendo-se na íntegra a pena de três anos fixada na primeira instância.
Quanto às penas acessórias carecerem de baliza temporal, embora nem se perceba qual o efeito jurídico pretendido pelo recurso, sempre se dirá que, tendo a duração das penas acessórias um limite mínimo de seis meses e máximo de cinco anos, nos termos do nº 4 do art. 152º do CP e, pese embora, do dispositivo da sentença tal não conste expressamente determinado, ao referir que as penas acessórias são impostas no quadro do regime de prova que acompanha a suspensão da execução da pena e tendo o período da suspensão sido fixado em três anos, esta é a duração das penas acessórias.
Com efeito, parece que outra não pode ser a interpretação a retirar do seguinte excerto da sentença (transcrição):
No caso concreto e perante toda a factualidade apurada, assente que o Arguido apresenta nulo sentido crítico dos seus comportamentos, o que denota também alguma dificuldade de lidar com sentimentos de frustração, afigura-se-nos preenchidos os pressupostos subjacentes à aplicação de pena acessória de sujeição do Arguido à obrigação de frequência de programa específico de prevenção de violência doméstica, sempre se acrescentando que tal período parece-nos razoável para o Arguido, com o acompanhamento da DGRSP e medidas a que ficará sujeito no quadro do regime de prova a aplicar, lidar com a separação da Ofendida e passar a respeitar a presente e futuras companheiras/os que venham a acontecer a que acrescerá a proibição de contactos com a ofendida, de forma directa ou indirecta, não podendo aproximar-se dela a distancia inferior a 200 metros.
Portanto, a delimitação temporal das penas acessórias está feita e fixada nos três anos, ainda que só por referência ao período de suspensão da execução da pena e do regime de prova.

Por fim a questão da inobservância do contraditório na fixação da compensação prevista no art. 82º A do CPP.
A Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro que instituiu o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à protecção e à assistência das vítimas destes crimes, estabelece, no artigo 21º, o direito da vítima «a obter uma decisão de indemnização por parte do agente do crime, dentro de um prazo razoável», impondo sempre a aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal, excepto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser.
O art. 82º A do CPP, sob a epígrafe de reparação da vítima em casos especiais, refere no seu nº 1, que não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72º e 77º, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de protecção da vítima o imponham.
E no n.º 2, que no caso previsto no número anterior, é assegurado o respeito pelo contraditório.
O artigo 82º A do CPP consagra a possibilidade de o Tribunal, oficiosamente, fixar uma reparação monetária à vítima de um crime, como efeito penal da condenação.
Pressupostos da fixação desta reparação são, para além da existência de uma condenação pela prática de um crime, a existência de danos dele emergentes e a verificação de particulares razões de protecção à vítima.
Pese embora, o que está aqui em causa não seja uma indemnização em sentido próprio, porque o tribunal, na aplicação de critérios de equidade dentro dos limites que tiver por provados, terá em conta, na sua medida, menos a natureza e a extensão dos danos e mais as fragilidades do lesado, a verdade é que, com excepção dos crimes previstos na Lei 104/2009 de 14 de Setembro, na redacção introduzida pela Lei 121/2015 de 1 de Setembro e na Lei da Lei 112/2009, de 16.9, com as alterações da Lei 125/2015 de 3 de Setembro, «tratando-se de uma fixação oficiosa de indemnização por danos morais por parte do tribunal, a sua fixação, alicerçada em critérios de equidade, assentará nos factos resultantes da prova produzida na audiência de discussão e julgamento» (Ac. da Relação de Coimbra de 11.05.2016, proc. 94/12.6GAACB.C2, in http://www.dgsi.pt), pelo que se imporá a demonstração de danos causados à vítima (cfr., Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição, p. 245).
Mas, nos casos como o presente em que a fixação de uma quantia pecuniária resulta da condenação por crimes de violência doméstica, essa reparação é automática e resulta directamente das normas contidas no art. 21º da Lei 112/2009 de 16 de Setembro.
«Em caso de condenação por crime de violência doméstica há sempre que arbitrar uma indemnização à vítima, ou porque ela a pediu ou, não o tendo feito e não se tendo oposto ao seu arbitramento, expressamente, por via do disposto no art. 21º da Lei n.º 112/2009, de 16/9» (Ac. da Relação de Coimbra de 28.05.2014, proc. 232/12.9GEACB.C1. No mesmo sentido, Ac. da Relação de Lisboa de 16.09.2015, processo n.º 67/14.4 S2LSB.L1-3; Ac. da Relação de Coimbra de 18.05.2016, processo 232/12.9GEACB.C2, Ac. da Relação de Évora de 04.04.2017, proc. 66/15.9GBABF.E1, Ac. da Relação de Guimarães de 7.03.2016, processo 697/14.4GAVNF.G1, Ac. da Relação de Lisboa de 08.10.2018, processo 853/15.8PJLSB.L1-5, in http://www.dgsi.pt).
Esta é a solução que melhor se compagina, quer com o teor literal do art. 21º da Lei 112/2009 citada, no confronto com o texto do art. 82º A do CPP e seguindo o princípio genericamente consagrado no art. 9º do CC, também aplicável em matéria de interpretação de normas do direito penal, de que o legislador soube fazer corresponder o seu pensamento e objectivos visados com a lei que criou ao respectivo texto e consagrou as soluções mais adequadas aos factos que pretende incluir no seu âmbito de provisão ou, em alternativa, o referido art. 21º não teria qualquer sentido útil, pois em nada se distinguiria da previsão legal contida no art. 82º A do CPP.
É a única consentânea com o princípio da legalidade no âmbito do Direito Penal e é também a solução que resulta quer da configuração do crime de violência doméstica como um tipo legal de crime cuja consumação pressupõe, necessariamente, uma ou múltiplas ofensas à personalidade da pessoa que tem com o agressor um vínculo relacional próximo, de natureza familiar ou só afectivo, considerada no seu todo, de bem estar físico e psíquico, associada ao valor constitucional da dignidade humana.
O bem jurídico tutelado na incriminação pelo art. 152º do CP protege, pois, «a saúde, enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana e da garantia da integridade pessoal contra os tratos cruéis, degradantes ou desumanos, num bem jurídico complexo que abrange a tutela da sua saúde física, psíquica, emocional e moral» (Plácido Conde Fernandes, “Violência Doméstica, Novo Quadro Penal e Processual Penal”, in Jornadas sobre a Revisão do Código Penal, Revista do CEJ, 1.º semestre de 2008, n.º 8, pág. 305. No mesmo sentido, Maria Manuela Valadão e Silveira, Sobre o Crime de Maus Tratos Conjugais, Revista de Direito Penal, vol. I, n.º 2, ano 2002, ed. da UAL, págs. 32-33 e 42; Augusto Silva Dias, Materiais Para o Estudo da Parte Especial do Direito Penal, Crimes Contra a Vida e a Integridade Física, 2.ª edição, AAFDL, 2007, pág. 110).
A consideração da reparação prevista no art. 21º da Lei 112/2009 de 16 de Setembro, como uma consequência automática da condenação por crime de violência doméstica é, por fim, a que se compatibiliza com a noção de vítima contida no art. 2º al. a) da Lei 112/2009 como a «pessoa singular que sofreu um dano, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou psíquica, um dano emocional ou moral, ou uma perda material, diretamente causada por ação ou omissão, no âmbito do crime de violência doméstica previsto no artigo 152.º do Código Penal».
Acresce que esta reparação tem de ser fixada com base na equidade sendo as circunstâncias do caso em que a mesma se materializa, as mesmas que se referem ao tempo, modo e lugar em que o crime de violência doméstica foi consumado.
Ora, essas circunstâncias terão de estar descritas na acusação, de acordo com a estrutura acusatória do processo penal e com a sua função delimitadora do objecto do processo e dos poderes de cognição do Tribunal e em relação à qual, a constituição da república portuguesa e o processo penal já prevêem e reconhecem ao arguido amplas oportunidades de exercício do contraditório, quer apresentando contestação, aí invocando as razões de facto e direito e oferecer as provas, pertinentes à sua defesa, controlar a admissibilidade e a produção das provas da outra parte e pronunciar-se sobre o valor e resultado de umas e outras e, em geral, em condições de igualdade e ao longo de todo o processo, influenciar as decisões a proferir, quanto aos factos e quanto à aplicação do direito, por forma a que nenhuma decisão seja tomada pelo tribunal sem prévia possibilidade de os intervenientes no processo a discutirem, contestarem e valorarem, tal como defluí das disposições nos arts. 20º nºs 4 e 5 e 32º da CRP, 61º nº 1 als. a) a f), 315º, 327º; 332º a 334º, 340º, 358º, 359º, entre outros, todos do CPP.
Vale por dizer, que sendo os factos determinantes da fixação de uma quantia pecuniária destinada a compensar a vítima pelos males do crime, aqueles que já constam da acusação e face ao carácter obrigatório da indemnização, a utilidade daquele nº 2 do art. 82º-A do CPP fica totalmente neutralizada.
Pese embora a remissão contida no nº 2 do art. 21º da Lei nº 112/2009, para o art 82º-A do CPP, não retire do âmbito dessa remissão a sujeição da decisão a contraditório prévio, neste caso especialíssimo, o contraditório tem-se por cumprido na própria defesa dirigida contra a acusação, já que, dada a natureza imperativa da fixação oficiosa da quantia pecuniária destinada a reparar os danos decorrentes do crime de violência doméstica, sofridos pela vítima, não há qualquer efeito surpresa para o arguido que resulte dessa decisão e as possibilidades de se fazer ouvir e de influenciar o seu sentido (neste caso, circunscritas ao montante pecuniário a fixar), antes de a mesma ser tomada, coincide de pleno com a defesa que optar por fazer dirigida contra a acusação ou contra a pronúncia, no uso dos direitos processuais que integram o estatuto jurídico de arguido.
E sendo assim, se é certo que a imposição prevista no nº 2 do art. 82º A do CPP, em geral, para todos os crimes cujos bens jurídicos postulem especiais deveres de protecção às vítimas, exija que ou no despacho de recebimento da acusação, ou nas actas da audiência de discussão e julgamento conste a advertência ou a  menção feitas directamente ao arguido quanto à possibilidade de condenação na referida indemnização, com a consequente notificação para aduzir argumentos de facto e de direito e indicar meios de prova, cuja relevância seria debater, quer o montante da indemnização, quer a própria existência desta, tal exigência já não pode ser a mesma, quando o crime seja de violência doméstica, dado reforço da tutela das vítimas deste tipo de crime, preconizada em todo o regime da Lei 112/2009 e especialmente, no seu art. 21º.
Assim sendo, impõe-se concluir que o nº 2 do art. 82º A do CPP foi cumprido, não tendo sido cometida irregularidade alguma.
Pelo que, nesta parte, o recurso também improcede.

III–DECISÃO

Termos em que decidem, neste Tribunal da Relação de Lisboa:
Em negar provimento ao recurso, confirmando, na íntegra, a sentença recorrida.
Custas pelo arguido, que se fixam em 3 UCs – art. 513º do CPP.
Notifique.
*

Acórdão elaborado pela primeira signatária em processador de texto que o reviu integralmente (art. 94º nº 2 do CPP), sendo assinado pela própria e pelos Mmos. Juízes Adjuntos.


Tribunal da Relação de Lisboa, 11 de Outubro de 2023

                                  
Cristina Almeida e Sousa
-Relatora -
Francisco Henriques
- Primeiro Adjunto -
Maria Margarida Almeida
- Segunda Adjunta -